Homilias JOÃO PAULO II 771


SANTA MISSA «IN COENA DOMINI»


772
Basílica de São João de Latrão

Quinta-feira, 16 de Abril de 1981




1. "Chegara a sua hora" (
Jn 13,1).

Encontramo-nos reunidos de novo, ao entardecer, no dia de Quinta-feira Santa para estarmos com Cristo ao chegar a Sua hora. O Evangelista diz que isto se deu "antes da festa da Páscoa" (Jn 13,1), e chama àquela hora, que tinha chegado, "a hora de passar deste mundo para o Pai" (Jn 13,1).

Reunimo-nos nesta veneranda Basílica, que é a catedral do Bispo de Roma, para estarmos com Jesus Cristo nesta hora do seu "passar" e para iniciarmos juntamente com Ele o nosso Tríduo Pascal do ano do Senhor de 1981.

2. Abramos os nossos corações, reforcemos o ouvido interior da fé. Falem-nos as vozes e os acontecimentos carregados do mais abundante conteúdo. Abramos os nossos corações, estimulemos a vista interior da fé. Desvele-se diante de nós o mistério escondido antes dos séculos no seio da Santíssima Trindade, mistério que no tempo pré-estabelecido se tornou o Corpo e o Sangue do Filho de Deus Encarnado — e veio habitar entre nós sob as espécies do pão e do vinho na Última Ceia.

Eis o grande mistério da fé!

Essa "hora" que chegou — então e agora — é primeiro que tudo o cumprimento da profecia feita ao Povo de Deus da Antiga Aliança: fazer sair os filhos de Israel para fora da escravidão do Egipto mediante o sangue do Cordeiro: "Conservareis a recordação desse dia, comemorando-o com uma solenidade em honra do Senhor; celebrá-la-eis como instituição perpétua, de geração em geração" (Ex 12,14).

Quando, em conformidade com a recomendação do Livro do Êxodo, Jesus, juntamente com os Apóstolos, começou a celebrar esse dia, dia de o Povo de Deus ser libertado da escravidão mediante o sangue do Cordeiro, precisamente então chegou a Sua hora.

3. E eis que durante a ceia, para a qual se reuniram, Ele tornou o pão e, dando graças, o partiu e disse: "Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em Minha memória". E, depois de cear, tomou o cálice e disse: "Este cálice é a Nova Aliança no Meu sangue; cada vez que o beberdes, fazei-o em Minha memória". Assim soam estas palavras na versão dada por São Paulo na primeira Carta aos Coríntios (11, 24-25).

Chegou, pois, a hora de Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus. Aproximou-se o tempo da libertação do Povo de Deus por meio do Seu sangue. Por meio do Seu corpo e do Seu sangue. É o tempo da Nova Aliança.

773 4. Chegou a hora do Seu passar.

E esta hora perdura através dos séculos e das gerações. O Apóstolo escreve: "Sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha" (
1Co 11,26).

Se hoje recordamos de modo especial a hora da última Ceia, fazemo-lo também porque esta hora dura incessantemente e enche todas as horas da história da Igreja e do mundo.

Desde que chegou, uma, vez por todas, a hora de Cristo, Cordeiro de Deus, a hora do Seu passar deste mundo para o Pai, essa hora dura e enche todas as horas até ao fim do mundo, pois Cristo "tendo amado os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por eles" (Jn 13,1). Portanto, em cada hora da história renova-se e realiza-se de novo o Seu passar deste mundo para o Pai, nos Seus membros que passam n'Ele, com Ele e por Ele, deste mundo para o Pai.

A Eucaristia é o sacramento do nosso passar deste mundo para o Pai.

5. Mediante a Eucaristia o homem — o homem que traz em si, em certo sentido, todo o mundo visível — passa para o Pai, que se manifestou a si mesmo em Jesus Cristo: "Quem Me vê, vê o Pai" (Jn 14,9). Este homem traz em si o mundo e restitui-o, em Cristo, a Deus.

"Que poderei retribuir ao Senhor / por todos os benefícios que me tem feito?" (Sl 115/116, 12).

Para passar mediante a Eucaristia, o homem deve ser puro. Deve ser puro com aquela pureza que lhe dá Cristo: "Se Eu não te lavar, não terás parte comigo" (Jn 13,8). É necessário primeiro confessar a própria indignidade e aceitar a purificação que dá Cristo, para se ter depois parte no Seu passar do mundo para o Pai: para transformar, juntamente com Ele, o mundo e restituí-lo ao Pai.

6. O lava-pés, que repetiremos dentro em breve como rito litúrgico, significa essa prontidão. É a prontidão em transformar o mundo e em restituí-lo ao Pai. Transforma-se o mundo — verdadeiramente transforma-se o mundo — mediante o amor.Jesus, que passa deste mundo para o Pai, deixa aos discípulos este mandamento: "Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei" (Jn 13,34).

A prontidão em transformar o mundo mediante o amor manifesta-se neste lava-pés, que será repetido dentro de alguns instantes segundo o rito litúrgico. Cristo, de facto, na hora da última Ceia, depois de lavar os pés aos discípulos, disse: "Dei-vos o exemplo, para que, segundo Eu fiz, façais vós também" (Jn 13,15).

Lavar os pés quer dizer servir.Só aquele que verdadeiramente serve, verdadeiramente transforma o mundo para o restituir ao Pai.

774 7. Eis que chegou a Sua hora: a hora do Cordeiro de Deus. Tudo está consumado, para poder completar-se o Sacrifício do Corpo e do Sangue. Tudo foi feito para este Sacrifício poder ficar na história do homem, na vida da Igreja, e para poder transformar o mundo.

Eis-nos reunidos nesta célebre Catedral; desejamos fazer tudo para iniciar o sagrado Tríduo da Páscoa de Jesus Cristo, Cordeiro de Deus.

"Que poderei retribuir ao Senhor / por todos os benefícios que me tem, / Tomarei o cálice da salvação / e invocarei o nome do Senhor... / É preciosa aos olhos do Senhor / a morte dos Seus santos" (Sl 115/116, 12-13, 15).

A morte do Filho não tem preço.



VIGÍLIA PASCAL DO SÁBADO SANTO


Basílica Vaticana

Sábado, 18 de Abril de 1981




1. "Buscais a Cristo crucificado"? (Mt 28,5).

É a pergunta que ouvirão as mulheres quando, "ao alvorecer do primeiro dia da semana" (ibid. 28, 1), vierem ao sepulcro.

Crucificado!

Antes do sábado foi Ele condenado à morte e expirou na cruz, gritando: "Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito" (Lc 23,46).

Colocaram, por isso, Jesus num sepulcro, em que ninguém fora ainda deposto, num sepulcro emprestado por um amigo, e afastaram-se. Afastaram-se todos, à pressa, para seguir a norma da Lei religiosa. De facto, deviam iniciar a festa, a Páscoa dos Judeus, a memória do êxodo da escravidão do Egipto: na noite antes do sábado.

775 Depois passou o sábado pascal e começou a segunda noite.

2. E eis que viemos todos nós a este templo — assim como tantos nossos irmãos e irmãs na fé aos diversos templos em todo o globo terrestre — para que desça às nossas almas e aos nossos corações a noite santa: a noite depois do sábado.

Estais aqui, Filhos e Filhas da Igreja que está em Roma, Filhos e Filhas da Igreja que se encontra distribuída pelos vários países e continentes, estrangeiros e peregrinos. Juntos vivemos a Sexta-Feira Santa: a via-sacra entre as ruínas do Coliseu — e a adoração da cruz até ao momento em que uma grande pedra foi rolada à porta do sepulcro — e lhe puseram um selo.

Porque viestes agora? Procurais Jesus crucificado?

Sim. Procuramos Jesus Crucificado. Procuramo-lo nesta noite depois do sábado, que precedeu a chegada das mulheres ao sepulcro, quando elas viram com grande pasmo e ouviram: "Não está aqui..." (
Mt 28,6).

Viemos, pois, depressa, já adiantada a noite, para velarmos junto do Seu túmulo. Para celebrarmos a vigília pascal.

E proclamamos o nosso louvor a esta maravilhosa noite, pronunciando com os lábios do diácono o "Exultet" da vigília. E ouvimos as Leituras sagradas, que assemelham esta noite única ao dia da Criação, sobretudo à noite do êxodo, durante a qual o sangue do cordeiro salvou os filhos primogénitos de Israel da morte e os fez sair da escravidão do Egipto.

E depois, no momento de renovada ameaça, o Senhor conduziu-os para a terra enxuta no meio do mar.

Velamos, pois, nesta única noite junto do túmulo selado de Jesus de Nazaré, tendo a consciência de que tudo quanto foi anunciado pela Palavra de Deus no curso das gerações se cumprirá esta noite, e que a obra da redenção do homem atingirá nesta noite o seu zénite.

Velamos portanto, e, embora a noite seja profunda e o sepulcro se encontre selado, confessamos que já se acendeu nela a Luz e ela caminha através do negrume da noite e da obscuridade da morte. É a luz de Cristo: Lumen Christi.

3. Viemos para mergulhar na Sua morte; tanto nós que há bastante tempo recebemos o Baptismo que nos mergulha em Cristo, como também aqueles que receberão o Baptismo nesta noite.

776 Estes são os nossos novos irmãos e irmãs na fé; até agora eram catecúmenos, e esta noite podemos saudá-los na comunidade da Igreja de Cristo, que é una, santa, católica e apostólica. São os nossos irmãos e irmãs na fé e na comunidade da Igreja, e provêm de diversos países e continentes: Coreia, Holanda, Itália, Japão, Nigéria, Ruanda, Senegal e Togo.

Saudamo-los cordialmente e com alegria proclamamos o "Exsultet" em honra da Igreja, nossa Mãe, que os vê recolhidos aqui na plena luz de Cristo: Lumen Christi.

E proclamamos, juntamente com eles, o louvor da água baptismal, em que, por obra da morte de Cristo, desceu o poder do Espírito Santo: o poder da vida nova que jorra para a eternidade, para a vida eterna (cf. Jo
Jn 4,14),

4. Assim, antes ainda que desponte a aurora e as mulheres cheguem ao túmulo vindas de Jerusalém, nós aqui estamos para procurar Jesus Crucificado, porque:

"O nosso velho homem foi crucificado com Ele, a fim de já não sermos escravos do pecado..." (Rm 6,6);

porque:

nós nos consideramos "mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus" (ibid. 6, 11); de facto: "Quanto a Ele, morrer pelo pecado, morreu uma só vez; mas a Sua vida é uma vida para Deus" (ibid. 6, 10);

porque:

"Pelo Baptismo sepultámo-nos juntamente com Ele, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos mediante a glória do Pai, assim caminhemos nós também numa vida nova (ibid.6, 4);

porque:

"Uma vez que nos tornámos com Ele num mesmo ser por uma morte semelhante à Sua, também o seremos por uma ressurreição semelhante" (ibid. 6, 5);

porque cremos

777 que "se morrermos com Cristo... como Ele também havemos de viver" (ibid. 6, 8), porque cremos

que "Cristo ressuscitado dentre os mortos já não morre; a morte já não tem domínio sobre Ele" (ibid. 6, 9),

5. Exactamente por isto estamos aqui.

Por isto velamos junto do Seu túmulo.

Vela a Igreja. E vela o mundo.

A hora, da vitória de Cristo sobre a morte é a hora maior da sua história.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A BÉRGAMO (ITÁLIA)

26 DE ABRIL DE 1981

SANTA MISSA NA COMEMORAÇÃO

DO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO PAPA JOÃO XXIII




Praça Central de Sotto il Monte

26 de Abril de 1981




Caríssimos Irmãos e Filhos

1. Contemplámos, ó Deus, as maravilhas do Vosso amor.

Estas palavras da liturgia bem se adaptam a este "Domingo in Albis", em que, celebrando nós, na sua Terra natal, o Centenário do nascimento do Papa João XXIII contemplamos o maravilhoso dom que o Senhor nos fez com a sua vida e doutrinação. É com ânimo cheio de alegria e comoção que me encontro hoje, aqui, em Sotto il Monte, para esta solene e tão significativa cerimónia celebrada convosco, a quem apresento a minha saudação afectuosa.

778 Trouxe-me aqui o desejo vivíssimo de tributar ao meu venerado Predecessor uma honra e reconhecimento que lhe são devidos não só por parte da Igreja, mas de todos os homens que lhe apreciaram a bondade e a sabedoria.

Grande parte de vós, habitantes de Sotto il Monte e de Bérgamo, conheceu o Papa João, viu-o e encontrou-se com ele; falou-lhe, ouviu a sua voz quente, amorosa e persuasiva, sensível a toda a alegria e a todo o sofrimento humano. E também eu me lembro dele com viva comoção na primeira sessão do Concílio Vaticano II e sobretudo no encontro final da mesma, quando nos apresentou a saudação que desejava fosse um "até mais ver", e em vez disso era o último adeus.

De modo particular apraz-me recordar o afecto que o Papa João sempre sentiu para com a minha Pátria, a Polónia. Ele, a 17 de Setembro de 1912, por ocasião do Congresso Eucarístico de Viena, visitou Cracóvia e celebrou na Catedral, no altar da Cruz milagrosa de Vavel, como ele gostava de recordar com exactidão extrema de pormenores; além disso, visitou muitas vezes o Santuário mariano de Jasna Gora, descobrindo, nos profundos sentimentos religiosos do meu povo, alguma coisa próxima, que o enternecia e confortava.

Era justo, portanto, era necessário, que numa circunstância tão singular e solene, o seu Sucessor na Cátedra de Pedro, viesse à terra natal dele para meditar na sua mensagem e respirar a sua espiritualidade.

2. Como bem sabeis, na sexta-feira 25 de Novembro de 1881, na família Roncalli, nascia Ângelo José, quarto de 13 filhos, e na tarde do mesmo dia o sino da igreja paroquial retinia, para anunciar o Baptizado que se realizava.

E assim nós comemoramos não só o nascimento para a luz do sol do pequeno "Angelinho", mas também o nascimento espiritual, para a vida da graça e da fé, daquele que viria a ser, como disse Paulo VI, "o Papa da bondade, da mansidão e da pastoralidade da Igreja" (Insegnamenti di Paolo VI, Vol.
1P 534); o Papa que soube amar a todos e por todos foi amado devido às suas características de paternidade, serenidade e sensibilidade humana e sacerdotal. De facto, o motivo do seu tão extraordinário êxito na estima e no afecto do mundo inteiro, então e hoje, foi a sua bondade: os homens têm necessidade extrema de bondade, e por isso amaram o Papa João e ainda o veneram e o invocam.

Parece vermo-lo por estas estradas, por estas colinas e entre estas casas, nesta sua paisagem, tão ardentemente amada e recordada com ternura até aos últimos dias de vida. O "seu querido ninho de Sotto il Monte", em que todos os anos, quando lhe foi possível — como sacerdote, como Bispo e como Cardeal — veio refugiar-se para retemperar o seu espírito "in gratia et fide", como o tinham educado os pais e o padrinho, o tio-avô Xavier.

3. Se nos perguntamos onde e como adquiriu o Papa João esses dotes de bondade e paternidade, unidas estas a uma fé cristã sempre íntegra e pura, é fácil responder: na família.

Ele mesmo, por toda a sua longa vida e num grandíssimo número de escritos, particulares e oficiais, recorda, comovida e reconhecidamente o seu patriarcal lar doméstico, os anos da meninice e da adolescência, passados num ambiente límpido e sereno, em que o estilo era a graça de Deus, vivida com simplicidade e coerência, a regra de vida era o catecismo e a instrução paroquial, o conforto era a oração, especialmente a Missa festiva e o Terço vespertino, e o empenho quotidiano era a caridade: "Éramos pobres — escrevia o Papa João — mas contentes com a nossa condição, confiados na ajuda da Providência. Quando um mendigo se apresentava à porta da cozinha, onde uns 20 jovens esperavam a tigela de caldo, havia sempre um lugar a mais. A minha mãe apressava-se em mandar sentar o hóspede ao lado de nós" (Giornale dell'anima, IV ed. Appendice).

A catequese familiar e paroquial foi o seu alimento espiritual; a fidelidade às práticas de piedade e às cerimónias da Igreja foi o seu empenho constante, porque teve nos pais o exemplo, o estímulo e a sua primeira escola de teologia. Com doce afabilidade recordava num discurso: "A querida imagem de Nossa, Senhora, sob o título de 'Auxiliadora' foi por muitos anos familiar aos nossos olhos de criança e adolescente na casa dos nossos pais" (Discorsi, Messaggi, Colloqui del Santo Padre Giovanni XXIII, Vol. IV, p. 307). E no discurso pronunciado pelo seu octogésimo aniversário disse: "Foi destas recordações que tomou princípio e alimento de veneração tudo quanto se referia à vida religiosa, no santuário das nossas famílias, modestas, laboriosas, tementes a Deus e serenas" (idem, Vol. IV, p. 23).

Na noite de Natal de 1959, ele com viva saudade voltava aos tempos longínquos e com simplicidade e sabedoria traçava as linhas da Doutrina Cristã acerca da família: "Como eram bem vividas as grandes realidades da família cristã! Noivado no reflexo da luz de Deus, matrimónio sagrado e inviolável no respeito das quatro notas características: fidelidade, castidade, amor mútuo e santo temor de Deus; espírito de prudência e de sacrifício na educação atenta dos filhos; e sempre, em todas as circunstâncias, amor do próximo, perdão, espírito de paciência, confiança e respeito para com os outros. É assim que se edifica uma casa que não vem a desmoronar-se" (idem, Vol. II, p. 96).

779 4. A sua fé originada na família, iluminada e confirmada pelo estudo sério e metódico realizado no Seminário dentro do sulco da Sagrada Escritura, do Magistério da Igreja, da Patrística e da Teologia qualificada e aprovada, acompanhada depois, no decurso dos anos, pela leitura e pela meditação dos grandes mestres da ascética e da mística, ficou de tal modo sempre íntegra e profunda, sem sofrer as debandadas do modernismo, sem se afastar nunca do recto caminho da Verdade. Em 1910 anotava no "Diário da Alma": "Agradeço de joelhos ao Senhor ter-me conservado ileso no meio de tanto referver e agitar-se de língua e de cérebro... Devo recordar sempre que a Igreja contém em si a juventude eterna da verdade e de Cristo, que é de todos os tempos... O primeiro tesouro da minha alma é a fé, a santa fé pura e ingénua dos meus pais e dos meus bons antepassados".

De tal fé genuína e transparente, que lhe foi instilada pela família, brotou também o seu total e confiado abandono na Providência expresso no mote inspirador da sua vida: "Oboedientia et Fax"; nasceu a visão sobrenatural e escatológica da existência e de toda a história, para a qual ele caminha à luz dos "novíssimos" e da "teologia do além". Esta fé, intimamente apreciada como Verdade absoluta e como significado da humana existência, expressou-se com suavidade e confiança nas práticas de piedade, que alimentam a vida cristã: as tantas e tão belas devoções que, durante os séculos, floresceram no fértil tronco do dogma: a união com Cristo Eucarístico e Crucificado, com o Sagrado Coração; a devoção a Maria Santíssima, aos Anjos e aos Santos; a constante recordação das almas do Purgatório; e naturalmente as visitas ao Santíssimo Sacramento, a Confissão com regularidade, a reza do Terço, os retiros e os Exercícios Espirituais, a meditação e as peregrinações.

Trata-se de uma fé, justa e rectamente tradicional, que não é porém estática, gelada, indevidamente conservadora no mudar exigente e arrastador dos tempos e das situações; pelo contrário, é maravilhosamente juvenil, intrépida, aberta e previdente, tanto que ideou e iniciou o Concílio Vaticano II e sentiu, com aguda inteligência, todas as problemáticas acompanhadoras da época moderna, como bem demonstram as Encíclicas Mater et Magistra e Pacem in terris.

5. O Papa João foi verdadeiramente um homem mandado por Deus. Imensamente rica e preciosa é a herança que nos deixou. Mas nesta sua terra natal, onde da família recebeu os primeiros germes da fé que depois se desenvolveu de modo tão surpreendente e fecundo, eu desejo recordar e reunir em particular quanto ele nos diz a respeito da família.

Já tinha posto de sobreaviso acerca dos perigos que a ameaçam: "Este santuário — dizia com lágrimas no coração — está ameaçado por muitas insídias. Uma propaganda, por vezes sem limite, serve-se dos poderosos meios da imprensa, do espectáculo e do divertimento para difundir, especialmente na juventude, os germes nefastos da corrupção. É necessário que a família se defenda... Aproveitando também, quando é necessário, a tutela da lei civil (idem, Vol. Março de 1959). Por isso, o seu ensinamento permanece válido e perene, porque é a voz da Verdade e é o que no íntimo deseja e espera a alma de cada pessoa. Apraz-me sintetizar esse ensinamento nos seguintes cinco "pontos firmes".

— Primeiro de tudo, a sacralidade da família, e portanto também do amor e da sexualidade: "a família é dom de Deus — dizia —, encerra uma vocação que vem do alto, a qual não se improvisa" (idem, Vol. III, p. 67). "Na família dá-se a mais admirável e íntima cooperação do homem com Deus: as duas pessoas humanas criadas à imagem e semelhança divina, são chamadas não só ao grande encargo de continuar e prolongar a obra criadora, dando a vida física a novos seres, a que o Espírito vivificador infunde o vigoroso princípio da vida imortal, mas são chamadas também ao dever mais nobre e que aperfeiçoa o primeiro, isto é, o da educação cívica e cristã da prole" (idem, Vol. II, p. 519). Por motivo desta essencial característica, quis Jesus que o matrimónio fosse 'Sacramento' ".

— A moralidade da família. "Não nos deixemos enganar, cegar, iludir — aconselhava com sabedoria cristã e paternal —: a Cruz é sempre a única esperança de salvação; a Lei de Deus está sempre nela, com os seus dez mandamentos a recordar ao mundo que só nela está a salvaguarda das consciências e das famílias, que só na sua observância está o segredo da paz e da tranquilidade de consciência. Quem se esquece disto, embora pareça esquivar qualquer preocupação de seriedade, depressa ou tarde constrói para si a própria tristeza e miséria" (idem, Vol. II,
PP 281-282). E noutra ocasião acrescentava: "O culto da pureza é a honra
e o tesouro mais precioso da família cristã" (idem, Vol. IV, p. 897).

— A responsabilidade da família. O Papa João tem confiança na obra educativa dos pais, sustentada pela graça divina. Dirigindo-se ás mães dizia: "A voz da mãe, quando anima, convida e repreende, permanece esculpida profundamente no coração dos seus, e não se esquece nunca. Oh, só Deus conhece o bem despertado por esta voz, e a utilidade que ela procura à Igreja e à sociedade humana" (idem, Vol. II, p. 67). E aos pais acrescentava: "Nas famílias — onde o pai reza e tem fé alegre e consciente, frequenta as instruções catequéticas e a elas leva os filhos — não haverá tempestades nem desolações de uma juventude rebelde e sem amor. A nossa palavra quer ser sempre de esperança; mas estamos certo que, nalgumas expressões desconfortantes de vida juvenil, a maior responsabilidade se deve buscar primeiramente naqueles progenitores, especialmente nos pais de família, que fogem dos deveres precisos e graves do seu estado" (idem, Vol. IV, p. 272).

— A finalidade da família. Sob este ponto, o Papa João era claro e linear: o fim para que se nasce é a santidade e a salvação, e a família é querida por Deus para este fim. Há vinte anos, na carta-testamento, escrita por ocasião dos seus 80 anos, recordando uma a uma as suas amadas pessoas de família dizia: "Isto é o que mais vale: assegurar cada um a vida eterna confiando na bondade do Senhor que tudo vê e a tudo provê" (3 de Dezembro de 1961). E comentando cada um dos mistérios do Rosário, afirmava que pedia no terceiro mistério gozoso pelas crianças de todas as raças humanas vindas à luz nas últimas 24 horas (idem, Vol. IV, p. 241).

— A exemplaridade da família cristã. O Papa João exortava insistentemente os pais e os filhos cristãos a serem exemplo de fé e virtude no mundo moderno, segundo o modelo da Sagrada Família: "O segredo da verdadeira paz — dizia —, do mútuo e duradouro acordo, da docilidade dos filhos, do florescer de costumes delicados, está na imitação continua e generosa da doçura e da modéstia da Família de Nazaré" (idem, Vol. II, PP 118-119). O Papa João está seguro que destas famílias exemplares podem brotar numerosas e escolhidas vocações sacerdotais e religiosas, apesar das dificuldades dos tempos.

780 Esta é, em síntese, a doutrina do grande e amável Pontífice, acerca da família, doutrina que soa a condenação clara das teorias e das práticas, que são contra a instituição familiar.

A figura sorridente e boa do Papa João, tão próxima do coração de todos os italianos, concorra para fazer ressurgir uma vez mais na alma aquele património de bondade e solidariedade, característico de um povo que deseja a vida e não a morte do homem, a promoção e não a destruição da família.

6. Caríssimos Irmãos e Filhos. Encontrarmo-nos aqui, hoje, em Sotto il Monte, com o Papa João, para comemorar o Centenário do seu nascimento, é indubitavelmente grande alegria para todos e suave consolação; mas deve ser também incentivo para termos sempre presente o seu exemplo e ouvirmos a sua palavra: "Todo o crente — escrevia ele na Pacem in terris — deve ser centelha de luz, centro de amor, fermento vivificador na massa" (n. 57).

Esta é a recomendação que vos deixo em seu nome. Deixo-a a vós, habitantes de Sotto il Monte e de toda a terra de Bérgamo, por ele tanto amada, seguindo as indicações do Plano Pastoral, optimamente proclamado pelo vosso Bispo.

Deixo-a a todos os fiéis da Igreja, sacerdotes e leigos, e torno-a extensiva a todos os homens de boa vontade, que foram atraídos e comovidos pela paternal figura do Papa João.

Seja ainda precioso património de todos a terna devoção a Maria Santíssima, que sempre assinalou a sua vida. "A nenhuma outra coisa tende ela senão a tornar mais robusta, pronta e operante a nossa fé", são palavras suas. "Maria ajudará a todos nós, que somos peregrinos cá na terra: com o seu auxílio supremo venceremos as inevitáveis tristezas e adversidades e habituar-nos-emos a olhar para o Céu com serenidade e alegria" (idem, Vol. II, p. 707). O Papa João nos acompanhe com o seu exemplo e a sua oração pelas estradas cansativas da nossa vida. Ele é bom amigo: escutemo-lo. A sua herança é verdadeiramente para bênção.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A BÉRGAMO (ITÁLIA)

26 DE ABRIL DE 1981

SANTA MISSA EM BÉRGAMO



Domingo, 26 de Abril de 1981




1. "Jesus veio colocar-se no meio deles e disse-lhes: A paz esteja convosco!" (Jn 20,19).

A experiência que viveram os Apóstolos "na tarde desse mesmo dia, o primeiro da semana" (ibid.), experiência que se repetiu oito dias mais tarde no mesmo cenáculo, também nós a revivemos, de modo misterioso mas real, esta tarde: na nossa assembleia litúrgica, reunida à volta do altar para a celebração da Eucaristia, Cristo renova a Sua presença de ressuscitado e repete os Seus votos: A paz esteja convosco!

Com estes mesmos votos me dirijo também eu a vós, caríssimos Irmãos e Irmãs da antiga e gloriosa Igreja de Bérgamo. Dirijo-me primeiramente a Si, venerado Irmão Dom Giulio Oggioni, que, sucedendo ao caro Dom Clemente Gaddi, lhe continua o trabalho como zeloso pastor, guiando esta escolhida porção do rebanho de Cristo. A minha saudação e os meus votos de alegria e paz pascal vão, em seguida, para todos os Bispos aqui presentes e para todos os fiéis da Lombardia inteira, com um especial pensamento para a Arquidiocese de Milão, a que me ligam, além do mais, o afecto e a devoção a São Carlos, e a que me levará, se Deus quiser, o próximo Congresso Eucarístico Nacional, que lá se está preparando para 1983; e com especial recordação para Bréscia, diocese de origem do Papa Paulo VI, que prosseguiu a obra empreendida por João XXIII; tenciono honrar também com uma visita a terra natal de Paulo VI no próximo ano.

Dirijo uma deferente saudação para todas as Autoridades civis, e renovo, além disso, a minha saudação augurai aos Sacerdotes e aos Religiosos, com quem tive já ocasião de me encontrar; torno-a extensiva aos componentes das diversas Associações de leigos que trabalham na diocese de Bérgamo e, entre esses sobretudo aos jovens: como o seu Bispo, também o Papa confia em cada leigo cristão, desejando que a inteira Comunidade adquira cada vez mais viva consciência das responsabilidades ligadas com o baptismo e saiba oferecer testemunho coerente e corajoso em todo o momento da própria vida.

781 2. A paz esteja convosco!

Saudando-vos assim, venho ter convosco, caros Irmãos e Irmãs, no domingo, que tradicionalmente chamamos "in albis" e põe fim à oitava da Páscoa. Venho para entrar, em certo sentido, no cenáculo. O cenáculo é a casa em que nasceu a Igreja. Vim portanto visitar, primeiro que tudo, uma casa. É a casa familiar, de que saiu um grande Papa e servo de Deus, João XXIII. Neste ano cai o centenário do seu nascimento em Sotto il Monte. Por este motivo, aceitei com alegria o convite da Igreja de Bérgamo para visitar este ano o lugar de nascimento de Angelo José Roncalli, e a terra a que ele esteve ligado por motivo da sua proveniência: a vossa terra de Bérgamo.

Já esta manhã, em Sotto il Monte, manifestei gratidão a Deus por motivo deste homem, que no baptismo recebeu o nome de Angelo José e, depois da eleição para a Sé Romana de São Pedro, tomou o de João. Assim pois, o conhecem a Igreja e o mundo, como o homem "cujo nome era João". Com este nome foi conhecido e amado. Com este nome é recordado e invocado: o Papa João.

Homem de maravilhosa simplicidade e humildade evangélica que, no decurso de pouco menos de cinco anos do seu ministério pastoral na Cátedra de Pedro, deu início quase a uma nova época da Igreja. Ancião quase octogenário, ele manifestou a juventude sem ocaso da Esposa de Cristo. Homem enamorado da tradição, deu início a uma nova vida na Igreja e na cristandade. Fez tudo isto em plena consonância com tudo o que ele mesmo foi, e, ao mesmo tempo, como se nada viesse dele. Como se fosse guiado por uma luz mais alta e levado por uma confiança incondicionada e filial n'Aquele que o "cingiu e guiou" (cf. Jo
Jn 21,18). Acaso para onde ele mesmo não queria? Não. Certamente não. Tudo isto decorreu na mais profunda harmonia entre a vontade d'Aquele que o guiou e daquele que se deixou guiar, e que, por sua vez, guiou a Igreja.

E a Igreja sabia e sentia que esta era a figura de Pedro; que aquele que, como sucessor de Pedro, trazia o nome de João, era verdadeiramente o Pedro dos nossos tempos, que o Senhor mesmo conduz. Aquele que o Espírito Santo guia. E a Igreja teve confiança no Papa João naquele que, por sua vez, tão ilimitadamente teve confiança.

Quando, depois de um breve pontificado, estava para deixar este mundo, todos os choravam e saudavam com lágrimas; mas sabiam que nisto estava a Mão do Senhor; que, se ele se ausentava, era porque tinha desempenhado a sua missão e a sua "parte" na obra de Cristo durante o século XX. Ausentava-se portanto o Papa João humildemente como humildemente subira à Cátedra de Pedro. Ausentava-se, embora o Concílio estivesse apenas iniciado, embora os trabalhos para a reforma do direito canónico (também por ele ideada) se estejam ainda agora realizando. Todavia — visitando, no centenário do seu nascimento, a casa de que saiu e a terra que lhe deu origem — devemos reconhecer que o Papa que saiu daqui, deste ninho, se parecia de modo particular àquele dono de casa de que fala o Evangelho que, do tesouro do Reino de Deus, extrai "coisas novas e coisas antigas" (Mt 13,52). E viemos precisamente para agradecer ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, no centenário do seu nascimento. Quão necessários, quão indispensáveis são na história da Igreja tais "donos de casa", que — guiados pelo Espírito de Verdade — sabem manifestar de novo todos os tesouros do Reino de Deus: "coisas antigas e coisas novas".

3. Assim pois, do limiar da casa rural em Sotto il Monte, das colinas desta vossa terra de Bérgamo, da pia baptismal e dos altares da Igreja que nela cumpre a sua missão — vê-se o cenáculo jerosolimitano como o lugar do encontro de Cristo Ressuscitado com a Igreja dos tempos que vieram e dos que estão para vir.

O cenáculo de Jerusalém é o primeiro lugar da Igreja na terra. E é, em certo sentido, o protótipo da Igreja em todo o lugar e em toda a época. Também na nossa. Cristo, que foi ter com os Apóstolos na primeira tarde depois da Ressurreição, vem sempre de novo a nós para repetir continuamente as palavras: "A paz esteja convosco! Assim como o Pai Me enviou, também Eu, vos envio a vós... Recebei o Espírito Santo; aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos..?' (Jn 20,21-23).

A verdade contida exactamente nestas palavras não se tornou acaso a ideia-guia do Concílio Vaticano II? do Concílio que dedicou os seus trabalhos ao mistério da Igreja e à missão do Povo de Deus, recebida de Cristo mediante os Apóstolos? Missão dos Bispos, sacerdotes, religiosos e leigos?... "Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós" (Jn 20,21).

Deste Concílio — cuja obra João XXIII iniciou, guiado (como ele mesmo confessava) pela, clara inspiração do Espírito Santo — a Igreja saiu com fé renovada no poder das palavras de Cristo, dirigidas aos Apóstolos no cenáculo. Saiu com nova certeza acerca da própria missão: a missão recebida do Senhor e Salvador. Saiu para o futuro. Do limiar da casa em Sotto il Monte, das colinas da vossa terra de Bérgamo, vê-se a Igreja como cenáculo de todos os povos e continentes, aberta para o futuro.

É difícil submeter aqui a uma análise profunda a perspectiva desta abertura. Mas é também difícil não mencionar pelo menos o que, de modo particular, saiu do íntimo do Papa João. É o novo impulso para a unidade dos cristãos e uma particular compreensão da missão da Igreja perante o mundo contemporâneo. Estes temas viram um essencial aprofundamento no banco do Concílio. Embora neste espaçoso cenáculo da Igreja dos nossos tempos, difundida por todo o globo terrestre, não faltem, as dificuldades, as tensões e as crises, que originam justificados temores, seria difícil não reconhecer que devido ao Papa saído da vossa terra, de Bérgamo, de Sotto il Monte — nasceu uma obra providencial. É necessário somente que mantenhamos fidelidade ao Espírito de Verdade, orientador desta obra, que sejamos honestos em compreender e aplicar o Concílio, e ele mostrará ser mesmo esse caminho que a Igreja dos nossos tempos e dos futuros deve seguir para o cumprimento dos seus destinos.

782 Aceitemos portanto estas palavras da liturgia de hoje, tiradas da primeira carta de São Pedro: "Isto vos enche de alegria, embora talvez vos seja preciso, por pouco tempo ainda, passar por diversas provações. E assim, pela prova a que é sujeita a vossa fé, haveis de encontrar louvor, glória e honra, na altura da Revelação de Jesus Cristo, pois a fé tem muito mais valor que o ouro que desaparece, embora seja experimentado pelo fogo" (1P 1,6-7).

Acolhamos estas palavras — e acolhamos a prova da nossa fé — pedindo ao Senhor Ressuscitado que sejamos capazes dela, assim como o foi o Papa João.

4. Do limiar da casa rústica em Sotto il Monte, das colinas da vossa terra de Bérgamo, por obra daquele seu filho que foi o Papa João — Angelo José Roncalli — vêem-se as grandes perspectivas da Igreja e do mundo. As perspectivas da família humana, que vive na paz construída sobre a verdade, a liberdade, a justiça e o amor, graças à mensagem que saiu do cenáculo jerosolimitano. Vê-se depois aquele grande cenáculo da Igreja dos nossos tempos, propagada no meio das gentes e dos continentes, no meio das nações e dos povos... a dimensão universal da Igreja.

Mas vê-se também a dimensão mais pequena da Igreja: a de "Igreja doméstica". O Papa João manteve-se fiel a esta Igreja até ao fim da vida, e constantemente voltava a ela, primeiro no sentido literal da palavra — como sacerdote, bispo e cardeal patriarca de Veneza —, depois como Papa, agora só com a recordação, o pensamento e o coração, e mediante as visitas dos seus que lhe eram caros.

Esta manhã, celebrando a liturgia eucarística em Sotto il Monte, recordámos muitas palavras suas sobre este assunto. Evocámos aquele clima da sua família, que foi verdadeira "Igreja doméstica". Família que viveu de oração e de trabalho, de Eucaristia e de amor recíproco, de sacrifício unido a espírito de simplicidade e de pobreza. Esta casa de família em Sotto il Monte não foi porventura também um pequeno cenáculo, em que Cristo Ressuscitado vinha dizer, detendo-se perante as pessoas de família, "A paz esteja convosco"? De facto, lá precisamente, naquele ambiente, Angelo José ouviu pela primeira vez as palavras: "Assim como o Pai Me enviou, também Eu te envio a ti.Recebe o Espírito Santo!" (cf. Jo Jn 20,21-22). As vocações sacerdotais nascem mais facilmente num clima assim.

Quantas vezes também lá, naquela casa, ouviu Cristo aquela gente simples, que vivia do trabalho dos campos, a mesma profissão que, uma vez, ouvira no cenáculo de Jerusalém da boca de Tomé: "Meu Senhor e meu Deus" (Jn 20,28). O conhecimento da presença do Salvador e a lei divina escrita nos corações da família constituíram a fonte da felicidade habitual daquela nobre gente, segundo as melhores tradições do ambiente e da sociedade à qual eles pertenciam.

5. Caros Irmãos e Irmãs. Na memória do Papa João juntamos hoje estas duas dimensões da Igreja: a grande, universal, em que durante os últimos anos da sua vida Angelo José Roncalli foi chamado a suceder a São Pedro na Sé romana; e a pequena, "doméstica". A "Igreja doméstica", a família cristã, constitui especial fundamento da grande. Constitui também o fundamento da vida das nações e dos povos, segundo o testemunhou o recente Sínodo dos Bispos e como, constantemente, o testemunha a experiência não corrompida pelos maus costumes de tantas sociedades e tantas famílias.

Precisamente esta "Igreja doméstica" pertence à herança do Papa João. É a parte integral da mensagem que toda a sua vida forma, da mensagem da verdade e do amor dirigido a toda a Igreja e a todo o mundo, mas de maneira particular dirigida à Itália: a esta Terra.

Esta mensagem é necessário lê-la à luz das palavras da primeira Carta de São Pedro: "Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que na Sua grande misericórdia nos regenerou pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que não pode contaminar-se, e imarcescível, reservada, nos céus para vós..." (1, 3-4).

Mas é preciso reler ao mesmo tempo esta mensagem, a mensagem particular do Papa João, no contexto das ameaças, ameaças reais, que atingem o património humano e cristão da família, destruindo os princípios fundamentais sobre que está construída, desde os fundamentos, a mais esplêndida comunidade humana. Estes princípios dizem respeito, ao mesmo tempo, aos valores essenciais de que não pode prescindir nenhum programa, não só o cristão, mas também o simplesmente humano.

O primeiro destes valores é o amor fiel dos cônjuges mesmos, como fonte da sua confiança recíproca e também da confiança dos filhos para com eles. Sobre tal confiança, como sobre rocha, baseia-se toda a subtil construção interior da família, a inteira "arquitectura das almas", que irradia com matura humanidade sobre gerações novas.

783 O segundo valor fundamental é o respeito da vida desde o momento da sua concepção sob o coração da mãe.

6. Quanto a isto, é oportuno que a figura do Papa João do "Papa bom", de Angelo José Roncalli, filho desta Terra de Bérgamo, se erga diante de toda a Igreja e em particular diante desta Nação, em que viu a luz;

— se erga, com toda a verdade da sua, mensagem evangélica, que é ao mesmo tempo mensagem muito humana; ele, tão cheio de solicitude pelo verdadeiro bem da sua Pátria pelo verdadeiro bem de cada Nação e de cada homem,

— se erga diante de nós e esteja presente no meio de nós.

Permiti portanto que diante dele — diante da sua figura — eu repita as palavras que pronunciei no quinto domingo da Quaresma:

"De facto, existe na nossa época uma crescente ameaça ao valor da vida. Esta ameaça, que se evidencia, particularmente na sociedade do progresso técnico, da civilização materialista e do bem-estar, apresenta um ponto de interrogação à mesma autenticidade humana daquele progresso...

Destruir a vida humana significa sempre que o homem perdeu a confiança no valor da sua existência; que destruiu em si, no seu conhecimento, na sua consciência e vontade, aquele primeiro e fundamental valor.

Deus diz: "Não matarás" (
Ex 20,13). E este mandamento é simultaneamente o princípio fundamental e a norma do código da moralidade, inscrito na consciência de cada homem.

Se concedemos direito de cidadania ao assassínio do homem, quando está ainda no seio da mãe, então encaminhamo-nos por isso mesmo para o declive de incalculáveis consequências de natureza moral. Se é lícito tirar a vida a um ser humano, quando ele é mais débil, totalmente dependente da mãe, dos pais e do âmbito das consciências humanas, então destruímos não só um homem inocente, mas também as consciências mesmas.E não se sabe quão larga e rapidamente se propaga o raio daquela destruição das consciências, nas quais se fundamenta, antes de tudo, o sentido mais humano da, cultura e do progresso do homem...

Se aceitássemos o direito de tirar o dom da vida ao homem ainda não nascido, conseguiríamos depois defender o direito do homem à vida em todas as suas situações? Conseguiríamos deter o processo de destruição das consciências humanas?" (cf. Angelus, 5 de abril de 1981, L'Oss , Rm 1).

Papa João! Pronunciei estas palavras no domingo, 5 de Abril, e hoje repito-as aqui, na tua terra natal. Foram ditadas pelo amor para com o homem, por aquele amor que tem a sua fonte na caridade com que abraça o homem Aquele que o criou e Aquele que o remiu: Cristo crucificado e ressuscitado. Foram ditadas pelo sentido da particular dignidade que tem cada homem desde o instante da concepção até à morte.

784 Pana João! Estas palavras foram ditadas pelo amor e pelo respeito para com esta Nação da qual tu foste filho, assim como eu sou filho da minha Nação. E como filho da minha Pátria, a Polónia, desejo trocar o amor que tu tiveste por ela, servindo eu a Itália, assim como, por causa da missão que herdei de ti na sé de São Pedro, desejo servir todas as sociedades, todas as nações e todos os homens. Como o homem é "o caminho da Igreja" (cf. Enc. Redemptor hominis RH 14), assim como Cristo é para cada homem na Igreja, "o caminho, a verdade e a vida" (Jn 14,6).

Caros Irmãos e Irmãs. Pela memória do Papa João é preciso que façamos tudo o que pode servir para tutelar a família e a dignidade da paternidade e da maternidade responsável, a confiança recíproca das gerações que façamos todo o possível para tutelar a, nossa "Igreja doméstica" — esta no meio da qual se revela Cristo Ressuscitado, assim como entre os apóstolos no Cenáculo, — esta, aonde Ele entra... — e diz: "A paz esteja convosco!" Amém.



Homilias JOÃO PAULO II 771