Homilias JOÃO PAULO II 808


SANTA MISSA PARA OS INSTITUTOS ECLESIÁSTICOS

DE ESTUDOS SUPERIORES EM ROMA


Basílica Vaticana

809
23 de Outubro de 1981




1. "Eu sou a videira verdadeira... Permanecei em Mim" (
Jn 15-1 Jn 4).

Com estas palavras a Igreja Romana saúda hoje a vossa Comunidade académica, professores e estudantes dos Ateneus eclesiásticos de Roma, que iniciais o novo ano de trabalho. Tais palavras, bem conhecidas, ressoam na presente Liturgia da Santa Missa de abertura. Cristo dirigiu-as aos seus Apóstolos na Quinta-feira santa. Que desejou Ele, então, exprimir?

Valendo-se de uma imagem, usada muitas vezes pelo Antigo Testamento para indicar o Povo eleito e para lamentar os frutos não bons por ele produzidos — quem não recorda o texto de Isaías: "Quando esperava vê-la produzir uvas, ela não deu senão uvas verdes" (5, 4)? — Jesus apresenta-se como a "videira verdadeira" que correspondeu aos cuidados e às expectativas do Pai. Como exuberante videira, Jesus tem ramos: são eles constituídos por aqueles que, mediante a fé e o amor, n'Ele estão vitalmente inseridos. Com eles se instaura urna circulação de linfa vital que, se de um lado é indispensável para produzir frutos ("sem Mim nada podeis fazer", Jn 15,5), de outro traz em si a exigência de se exprimir em frutos fecundos: todo o ramo que não der fruto será lançado fora e no fogo arderá (cf. Jo Jn 15,6).

Daqui o imperativo: "Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós... Quem está em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto" (ibid., 4-5). Jesus mesmo preocupa-se em esclarecer o sentido deste "permanecer n'Ele": consiste no amor; um amor, porém, que não se exaure em sentimentalismo, mas se traduz no concreto testemunho do cumprimento dos mandamentos.

2. Portanto, em síntese, este é o conteúdo do importante trecho evangélico proposto pela Liturgia de hoje. Mas uma segunda pergunta se impõe: se este é o sentido válido para todos, que deseja exprimir a Igreja Romana quando no início do novo Ano académico vos saúda, professores e alunos dos Ateneus eclesiásticos, com as mesmas palavras dirigidas por Jesus Cristo ao círculo dos seus mais íntimos discípulos?

Todos sois discípulos de Cristo, que escutam as suas palavras na última vintena do século XX. Sois, porém, uma particular comunidade de discípulos de Cristo. Alguns de vós, discípulos deste único Mestre, são ao mesmo tempo instrutores, mestres, professores. Outros são estudantes, em diversas etapas dos estudos e em diferentes campos da pesquisa teológica e científica.

E sois uma comunidade caracterizada pela presença de pessoas provenientes de todas as partes do mundo. Talvez não haja outro centro de estudos, em que a catolicidade da Igreja se manifeste de modo tão evidente. Pode dizer-se que todas as Nações da terra estão aqui representadas e muitas vezes em formas de convivência comunitária, que consentem a cada um inserir-se mais facilmente no ambiente novo, sem perder a própria identidade de proveniência. Encontram-se, além disso, entre vós todas as componentes do Povo de Deus: sacerdotes diocesanos e regulares, religiosas e leigos, almas de vida contemplativa e as que se preparam para assumir trabalhos de apostolado activo.

Pois bem, a pergunta é: que significa para vós, para uns e outros, "permanecer em Cristo assim como o ramo está na videira?". Que significa: "dar fruto, assim como o dá o ramo enquanto está na videira?". Não é, talvez, chamada a intervir toda a vossa existência, que deve deixar-se sempre mais penetrar pela linfa da graça proveniente de Cristo, para poder abrir-se à revelação dos seus mistérios? Viver a união com Cristo, mediante a fé que actua no amor, é a condição necessária para progredir no conhecimento da Verdade de Deus, que no Verbo encarnado veio ao encontro da nossa fome de respostas seguras e satisfatórias. Está escrito: "Se permanecerdes na Minha palavra..., conhecereis a verdade" (Jn 8,31-32). De facto, "aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor" (1Jn 4,8).

Eis, portanto o fruto que sois chamados a dar mediante o quotidiano trabalho do estudo: o conhecimento sempre mais profundo do "mistério encoberto desde os tempos eternos, mas agora manifestado pelas Escrituras dos profetas, segundo o mandamento de Deus eterno" (Rm 16,25-26). Não está nisto o dever da Teologia? Ela, de facto, é um processo de conhecimento mediante o qual a mente humana, esclarecida pela fé e estimulada pelo amor, avança nos territórios imensos, que à sua frente lhe abriu de par em par a Revelação divina.

3. É oportuno parar aqui um momento para reflectir. A imensidade de Deus foi-nos entregue na limitação da palavra humana, assim como a Pessoa do Verbo se encerrou, encarnando-se, na limitação de uma natureza humana. A Teologia não deve esquecer isto. A sua aplicação ao estudo da palavra, da imagem e da proposição contidas no Livro sagrado não deve constituir senão um caminho rumo à Infinidade, que nestes elementos foi-nos participada.

810 A Teologia deverá, portanto, continuamente ajustar-se à Revelação no seu conjunto, procurando orientar-se segundo as linhas fundamentais, que regularam o seu desenvolvimento para a realização e a plenitude, que é Cristo. Isto não exclui que se possa dedicar a um aspecto particular da mensagem revelada, sem que haja um posterior, explícita atenção ao arco inteiro do seu horizonte. A especialização é uma consequência da limitação da nossa inteligência e é, portanto, legítima também na Ciência teológica. Será necessário, porém, conservar sempre viva consciência do facto que à limitação das forças humanas não corresponde (como em outras ciências) a limitação do objecto. A tensão, por conseguinte, do trabalho teológico não corre na direcção de uma sempre mais minuciosa fragmentação, mas, ao contrário, ela alarga-se na direcção da síntese, que nos foi oferecida de modo divinamente insuperável na pessoa de Cristo.

A pesquisa teológica, no intento de investigar o "mistério de Deus", deverá além disso manter-se constantemente aberta às indicações que lhe vêm dos "sinais dos tempos". Isto não significa deva ela preocupar-se em seguir de modo servil as modas do momento. Significa, pelo contrário, que deve aplicar-se em recolher com dócil prontidão "O que o Espírito diz às Igrejas" (
Ap 2,7) também ao longo da nossa geração, procurando interpretar as indicações emersas, sob a Sua acção, das expectativas dos povos, dos sofrimentos dos povos, das descobertas da ciência e das propostas dos santos.

Dever de uma Teologia completa é, enfim, o de ler o presente à luz da Tradição, da qual a Igreja é depositária. A Tradição é vida: nela a riqueza do mistério cristão exprime-se, manifestando progressivamente, em contacto com as instáveis vicissitudes da história, as virtualidades implícitas nos perenes valores da Revelação. O teólogo, que deseje oferecer às perguntas dos seus contemporâneos uma resposta autenticamente cristã, não poderá obtê-la a não ser desta fonte.

4. Falei directamente da Teologia, mas não entendi com isto tirar nada à importância das outras disciplinas, que são oportunamente cultivadas nos vossos Ateneus. Cada uma delas tem um seu preciso papel a desempenhar no conjunto geral dos estudos eclesiásticos. Ou melhor, a circunstância é-me propícia para dirigir a cada um a cordial exortação a prosseguir com vivo empenho no próprio ramo do saber, uma vez que será do contributo de todos que a Igreja poderá tirar o maxímo benefício para o seu trabalho de evangelização e de promoção humana no mundo.

Se me detive a falar de modo particular da Teologia é porque a considero como o ponto central, à volta do qual se inove no seu conjunto o esforço de pesquisa, que se desenvolve na Igreja. Há, de facto, disciplinas que predispõem e preparam para a Teologia, como é o caso, por exemplo, da Filosofia cuja competência, salvaguarda a sua autonomia, é assegurar os instrumentos racionais indispensáveis para toda a indagação teológica. Não afirmava, além disso, São Tomás que a metafísica "tota ordinatur ad Dei cognitionem sicut ad ultimum finem, unde et scientia divina nominatur" (C. Gen. III, c. 25)?

Há depois outras disciplinas que, tendo na Teologia o seu natural fundamento, dela constituem um desenvolvimento e uma derivação. Refiro-me, por exemplo, ao Direito Canónico, cuja competência é explicar a dimensão institucional da Igreja, mostrando como as estruturas jurídicas surgem da inteira natureza do mistério cristão. E penso ainda na História eclesiástica, que não pode contentar-se em expor unicamente os aspectos político-sociais da vida da Igreja ou reduzir-se ao relato dos actos e das omissões dos representantes da Hierarquia, mas deve, pelo contrário, procurar apresentar o caminho realizado por todo o Povo de Deus no decurso da história, realçando a novidade que o fermento evangélico soube suscitar na sucessão milenária da humanidade.

5. São simples acenos, mas penso sejam suficientes para fazer perceber qual seja o harmonioso edifício constituído pelo conjunto das disciplinas, ao qual se dirigem os vossos interesses. Um "edifício". O pensamento leva-nos espontaneamente àquela "pedra angular", de que nos falou na sua primeira carta o Apóstolo Pedro, o fundador desta Igreja de Roma. A "pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus" (1P 2,4) é Cristo.

Jesus Cristo: videira verdadeira!

Jesus Cristo: pedra angular!

De que modo, caros professores e alunos, cumprireis ao longo de toda a vida e, em particular, durante este ano, o dever de construir precisamente sobre esta pedra angular, que é Cristo?

A resposta vos é sugerida pelo mesmo apóstolo Pedro: empenhando-vos em formar "um edifício espiritual, por meio de um sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus, por Jesus Cristo" (1P 2,5). Por outras palavras: empenhando-vos em "ser Igreja" juntamente com os Pastores, colocados por Cristo no meio de vós.

811 "Ser Igreja": eis a palavra de ordem! E isto no duplo sentido de viver em comunhão fraterna de pensamentos, de sentimentos, de trabalho, surgidos do mesmo ideal e ao mesmo tempo orientados para o mesmo objectivo; e "ser Igreja" constantemente colocando-vos no contexto de toda a Comunidade eclesial, isto é vendo no vosso empenho um serviço prestado aos irmãos, que esperam ser guiados por vós a uma compreensão mais vasta e profunda da riqueza infinita da Verdade divina.

Uma viva consciência eclesial será, principalmente, o critério mais seguro para vos salvaguardar do perigo de construir sobre fundamento diferente daquele posto por Deus. Na verdade, não podemos esquecer — e os factos confirmam-no — que infelizmente é possível encontrar não a "pedra angular", mas "uma pedra de tropeço, uma pedra de escândalo" (
1P 2,8) devido a uma atitude de desobediência para com a Palavra (cf. ibid.), anunciada com autoridade na Igreja.

6. Estamos aqui, esta noite, recolhidos em oração para implorar de Deus que isto não aconteça, mas que pelo contrário cada um de vós possa em Jesus Cristo dar um particular fruto daquele conhecimento nascido da fé animada pelo amor, contribuindo assim para construir a Igreja!

Vós, que mediante a graça do Baptismo já vos tomastes "raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus" (1P 2,9), por meio de todo este trabalho de conhecimento que vos é próprio seja como cientistas e professores, seja como estudantes, sois chamados a proclamar "as virtudes d'Aquele que vos chamou das trevas para a Sua luz admirável" (1P 2,9).

Convencei-vos de que deste modo participais do Povo de Deus e de que este é o vosso singular quinhão e a vossa herança neste mesmo Povo de Deus. Sede conscientes de que ao cultivar este quinhão e esta herança, sois aqueles que "alcançaram misericórdia" (1P 2,10).

7. Como Bispo desta Igreja, que está em Roma e se alegra com a presença da vossa Comunidade académica, considero particular dever do meu ministério nesta Sé iniciar este novo ano de trabalho convosco junto do altar da Basílica de São Pedro.

Durante esta liturgia eucarística supliquemos o Espírito Santo com as seguintes palavras:

"Derramai em nós, á Deus, o espírito de inteligência, de verdade e de paz, para que conheçamos de todo o coração o que Vos agrada e sejamos unânimes em praticá-lo" (Oração da Colecta)

"Olhai, ó Deus, com bondade, as oferendas dos vossos filhos, para que compreendamos o que é bom e recto aos vossos olhos e o proclamemos confiantes" (Sobre as oferendas)

"Ó Deus misericordioso, o sacramento que recebemos nos confirme na vossa vontade e nos torne por toda a parte testemunhas da verdade" (Depois da Comunhão)

..."Honra, então, para vós que credes" (1P 2,7)

812 ..."Dando vós muito fruto, Meu Pai é glorificado" (Jn 15,8)

Amém.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE

À PARÓQUIA ROMANA DE JESUS DIVINO OPERÁRIO


Domingo, 25 de Outubro de 1981




"Amo-Te, Senhor, minha força, / Senhor , minha rocha e fortaleza, / meu libertador".

1. Pronuncio juntamente convosco estas fervorosas palavras do salmo responsorial, hoje que me é dado realizar na vossa paróquia a visita pastoral, que tinha sido programada para o dia 24 de Maio. São conhecidas as circunstâncias que tornaram impossível naquela ocasião o nosso encontro. Mas precisamente as mesmas circunstâncias me impelem hoje a repetir do modo mais pessoal as palavras do salmista: "Senhor, minha força, meu libertador, amo-Te!". E com as mesmas palavras saúdo contemporaneamente todos vós, aqui reunidos, toda a paróquia dedicada a Jesus Divino Operário, agradecendo-vos o pensamento e a oração que de modo particular senti durante as semanas e os meses passados.

2. A visita à paróquia dedicada a Jesus Divino Operário tinha particular motivo em Maio deste ano, pois toda a Igreja recordava a primeira grande encíclica de Leão XIII, dedicada à "questão social" e sobretudo à "causa dos operários". De facto a encíclica foi publicada a 15 de Maio de 1891. Para manifestar a continuidade da doutrina e da acção da Igreja no âmbito destes importantes problemas, publiquei uma nova encíclica social Laborem exercens, dedicada directa e totalmente ao trabalho humano no contexto da nossa realidade contemporânea, tão diferenciada neste campo.

Precisamente com este"património" venho hoje à vossa Comunidade, à Paróquia de Jesus Divino Operário, para Lhe oferecer em homenagem não só a recordação daquele Documento histórico de há noventa anos, mas também a expressão do pensamento e da solicitude da Igreja de hoje.

Ao encontrar-me pela primeira vez convosco, desejo principalmente apresentar a reconhecida saudação ao meu Cardeal Vigário, a D. Remigio Ragonesi, Bispo responsável desta região, e ao Pároco, Mons. Francesco Rauti, que dos seus quarenta anos de Sacerdócio dedicou vinte e seis a esta Paróquia, seguindo-a incansavelmente desde a sua erecção: de modo particular desejo-lhe de coração boa saúde, a fim de poder continuar ainda por muitos anos o seu generoso trabalho pastoral. Saúdo depois os três zelosos Vice-párocos, os Sacerdotes e os Religiosos que prestam o seu trabalho espiritual, as Religiosas e os Leigos comprometidos nas várias actividades catequéticas, formativas, caritativas e desportivas. Mas sobretudo, com grande afecto, desejo saudar-vos, caros fiéis de Jesus Divino Operário, crianças e jovens, adultos e anciãos, e por meio de vós quero atingir com o meu amor de Pai e de Amigo todas as milhares de famílias que formam esta gigantesca Comunidade romana: levai a minha saudação e o meu afecto a todos, especialmente aos doentes, aos que sofrem e àqueles que por vários motivos se sentem sós e afastados.

3. Hoje, na primeira leitura do livro do Êxodo, escutámos os apelos que o autor do texto dirige, da parte de Deus, aos homens da Antiga Aliança, e que não perdem a sua actualidade em nenhuma época: "não maltratarás... / não oprimirás... / não farás mal algum à viúva e ao órfão / não procederás... como um usurário / se tomares em penhor... restituí-lo-ás".

O autor do livro do Êxodo com estas ordens tão fortes e peremptórias quer fazer-nos reflectir sobre a realidade fundamental da existência de urna "lei moral natural", ínsita na estrutura mesma do homem, ser inteligente e volitivo. Deus não criou o homem por acaso, mas segundo um projecto de amor e de salvação. Pelo facto mesmo de uma pessoa ser viva e consciente, não pode deixar-se conduzir e dominar pelo arbítrio, pela autonomia, pelo impulso dos instintos e das paixões. Infelizmente é hoje ensinado e propagado pelos meios de comunicação, de modo especial pelos audiovisuais, um "humanismo instintivo", que exalta o valor arbitrário da espontaneidade instintiva, do hedonismo e da agressividade. Mas não é assim: há uma lei moral inscrita na consciência mesma do homem, que impõe o respeito dos direitos do Criador e do próximo e da dignidade da própria pessoa; lei que praticamente se exprime com os "Dez Mandamentos".

A transgressão da lei moral natural é fonte de terríveis consequências e já o fazia notar São Paulo na Carta aos Romanos: "Tribulação e angústia, para toda a alma de quem pratica o mal...; glória, porém, honra e paz, para todo aquele que pratica o bem" (Rm 2,9-10). O que São Paulo atribuía aos povos pagãos, que não tinham agido em conformidade com o conhecimento racional de Deus, único Criador e Senhor, e tinham desprezado a lei moral natural, verifica-se impressionantemente em todos os tempos, e por conseguinte também na nossa época: "E como não procuraram ter de Deus conhecimento perfeito, entregou-os a um sentimento pervertido, a fim de que fizessem o que não convinha; cheios como estão de toda a injustiça, perversidade, cupidez e maldade..." (Rm 1,28-29). A degradação da moral, quer em campo social quer no âmbito pessoal, causada pela desobediência à lei de Deus inscrita no coração do homem, é a mais terrível ameaça a cada pessoa e à humanidade inteira.

813 Esta dramática situação já existia nos tempos da encíclica Rerum Novarum; e infelizmente, após noventa anos, somos ainda testemunhas dela com a queda da moral e a consequente grande ameaça para o homem.

4. No Evangelho de hoje um doutor da Lei interroga Jesus: "Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?" (
Mt 22,36). Cristo responde: "Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é-lhe semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas" (Mt 22,37-40).

Com estas palavras, Cristo define qual é o fundamento último de toda a moral humana, isto é aquilo sobre que se apoia toda a construção desta moral. Cristo afirma que ela se apoia em definitivo sobre estes dois Mandamentos. Se amas a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo como a ti mesmo, /se amas verdadeira e realmente — então decerto "não maltratarás", nem "oprimirás", não "farás mal" a ninguém, em particular "à viúva e ao órfão", "não procedarás / como um usurário", e "se tomares em penhor... restituí-lo-ás" (Ex 22,20-25) .

A presente Liturgia da palavra ensina-nos de que modo se constrói o edifício da moral humana a partir dos próprios fundamentos — e ao mesmo tempo convida-nos a construir este edifício precisamente assim. Do mesmo modo em cada um como em todos: no homem que é sujeito consciente dos seus actos, na família e na sociedade inteira.

Dado que devemos aproveitar honestamente da participação na Liturgia de hoje, é preciso pensar se e como construímos nós o edifício da nossa moral. E se a consciência começa a reprovair as nossas obras, reflictamos se a esta moral não falta o fundamento do amor. Dirigindo nesta altura um olhar particular para a vossa Paróquia, antes de tudo devo congratular-me com todos vós pelo intenso trabalho organizativo e formativo realizado nestes vinte e seis anos, e de modo especial no período presente. A vossa Paróquia sempre foi considerada um centro de acolhimento e de propulsão: lugar de testemunho e de serviço, comunidade fraterna e de amizade. De facto, na Paróquia, Jesus Redentor e Mestre está presente na Liturgia, na Eucaristia, na administração dos sacramentos da vida cristã, na palavra do Magistério que ensina, ilumina e salva. Jesus, que desejou inserir-se na família de um operário e, podemos pensar, que durante a Sua vida oculta trabalhou tantos anos com José e Maria, está aqui presente na Paróquia para dar significado a cada trabalho, para o transformar em acto de amor, que dura eternamente. Continuai portanto a ser "paroquianos" fervorosos e assíduos, e fazei de modo que o maior número de fiéis frequente a Santa Missa festiva, para que a percentagem seja confortadora e encorajadora.

Muito me alegra saber que a vossa paróquia deu à Igreja três sacerdotes, enquanto alguns jovens se preparam para o Sacerdócio e algumas jovens se encontram no Noviciado. As vocações são certamente uma grande graça do Senhor para uma Paróquia, e são também índice de vida cristã convicta e profunda. É necessário que o Seminário Romano receba muitas e santas Vocações: a imensa Cidade de Roma tem extrema necessidade delas! Continuai, portanto, com diligência a preocupar-vos com as crianças e os jovens "ministrantes", os grupos dos adolescentes e da pastoral familiar e os encontros de formação especializada, de acordo com a Obra Diocesana das Vocações Eclesiásticas.

É-me grato também saber que todos os anos, no período quaresmal e pascal, cada família é visitada pelos Sacerdotes para o rito da Bênção. É uma visita breve e fugaz, mas sempre um encontro humano e espiritual, um acto de amizade e de responsabilidade pastoral, uma relação recíproca de estima e de afecto.

A minha exortação é a que persevereis corajosamente na construção do edifício da vossa Paróquia sobre o amor a Deus e aos irmãos, sobre o respeito da Lei moral e sobre a vida de graça. E isto só é possível mediante uma cuidadosa e capilar formação das consciências, mediante as aulas de catequese, as lições de religião para cada uma das categorias, o estudo do Evangelho nos vários grupos, a direcção espiritual, a Confissão frequente e bem feita e o cuidado especial das famílias jovens. A sociedade moderna, tão avançada na cultura e tão problemática, tem muita necessidade de cristãos esclarecidos, que saibam viver e testemunhar concretamente e sempre o seu amor a Cristo e aos irmãos.

5. "Senhor, minha rocha, minha fortaleza e meu refúgio; meu escudo, minha defesa e meu castelo" (Ps 18,3).

O homem, em diversas situações da vida, dirige-se a Deus para encontrar n'Ele auxílio — por exemplo com as palavras do salino responsorial de hoje. Dirige-se a Ele nas dificuldades e perigos.

Os perigos mais ameaçadores são os de natureza moral — quer no que diz respeito aos indivíduos, quer também às famílias e às sociedades inteiras:

814 E então são necessários um esforço maior e uma cooperação com Deus mais zelosa para construir sobre a rocha firme, sobre o fundamento dos Seus mandamentos e sobre o poder da Sua graça.Este fundamento perdura sem cessar. E Deus não recusa a graça àqueles que sinceramente aspiram a ela.

A todos vós, caros paroquianos da Paróquia de Jesus Divino Operário, desejo com todo o coração construais sobre este fundamento, aspireis à graça de Cristo.

Realizem-se em vós estas palavras, com as quais saudei no início a vossa comunidade:

"Amo-Te, Senhor, minha força; / Senhor, minha rocha e fortaleza, / meu libertador".



VISITA PASTORAL À PARÓQUIA ROMANA

DE SÃO LOURENÇO FORA DOS MUROS


Domingo, 1 de Novembro de 1981




1. "Estes são os que vieram da grande tribulação; lavaram os seus vestidos e os branquearam no sangue do Cordeiro" (Ap 7,14).

Foi um dos anciãos, que se encontram diante do trono do Altíssimo, quem pronunciou estas palavras: as pessoas vestidas de branco, que João viu com olhar profético, são os remidos e constituem "multidão imensa", cujo número é incalculável e cuja proveniência é a mais variada possível. O sangue do Cordeiro, que por todos se imolou, exerceu em todos os ângulos da terra a sua universal e eficacíssima virtude redentora, trazendo graça e salvação a esta "multidão imensa". Depois de passarem as provas desta vida e se purificarem no sangue de Cristo, eles — os remidos — encontram-se em segurança no Reino de Deus, louvam-n'O e bendisem-n'O pelos séculos.

As palavras da primeira leitura da liturgia de hoje exprimem assim a alegria escatológica da salvação já conseguida — salvação de que participam pessoas "de todas as nações, raças, povos e línguas" (Ap 7,9). É a alegria de todos os Santos, que estão em pé "diante do Cordeiro" e clamam em alta voz: "A salvação pertence ao nosso Deus que está sentado no trono, e ao Cordeiro" (Ap 7,10).

Por obra do Cordeiro, que tira os pecados do mundo, todos estes participam da santidade do próprio Deus.

"Amém. Louvor, glória, sabedoria, acção de graças, honra, poder e força ao nosso Deus, para todo o sempre. Amém" (Ap 7,12).

Participando da santidade do próprio Deus, todos aqueles que a Igreja recorda como entre si intimamente associados na Comunhão dos Santos (Communio Sanctorum), participam ao mesmo tempo da glória de Deus. E gozam da Sua glória.

815 2. Entre eles encontra-se o grande Santo, a que está dedicada esta histórica Basílica: Lourenço diácono e mártir, de quem se orgulha a Igreja Romana assim como a Igreja de Jerusalém e orgulha de Santo Estêvão, também diácono e protomártir. Escreveu a propósito São Leão Magno: o Senhor "quis exaltar a tal ponto o seu nome glorioso em todo o mundo, que do Oriente ao Ocidente, no fulgor vivíssimo da luz irradiada pelos maiores diáconos, a mesma glória, que veio a Jerusalém de Estêvão, tocou também a Roma por mérito de Lourenço" (Homilia 85, 4; PL 54, 486).

Verdadeiramente Lourenço, da mesma maneira que Estêvão, veio da "grande tribulação" e "lavou os seus vestidos e branqueou-os no sangue do Cordeiro (cf. Apoc
Ap 7,14). A história confirma-nos quanto é glorioso o nome de Lourenço, como glorioso é o sepulcro junto do qual estamos agora reunidos e sobre o qual se levanta o altar papal. A sua solicitude pelos pobres, o seu generoso serviço à Igreja de Roma no importante sector da assistência e da caridade, a fidelidade ao Papa Sisto II, por ele conduzida até ao ponto de o querer seguir até à prova suprema do martírio, e o heróico testemunho do sangue, dado a Cristo só poucos dias mais tarde, são coisas universalmente conhecidas, muito para além das particularidades da mais conhecida tradição iconográfica.

Na verdade, Lourenço veio da "grande tribulação" e saiu dela vitorioso, de maneira que a sua memória é bendita nos séculos. Quantas são as igrejas, as paróquias, as capelas e as localidades que no mundo a ele vão buscar o nome? Quantas são as igrejas que têm o nome dele aqui em Roma? Quero limitar-me só a esta Basílica, que à distância de tantos séculos e depois de várias transformações e também destruições (infelizmente!) nos leva com o pensamento àquela primitiva Basílica que o imperador Constantino "fecit... Beato Laurentio martyri via Tiburtina, in agrum Veranum" (Liber Pontificalis).

Disse "destruições", pois não posso esquecer os gravíssimos prejuízos sofridos por este templo, como pela parte circunstante do "Bairro de São Lourenço", no bombardeamento de 19 de Julho de 1943. Ainda está viva a recordação daquele dia dramático, quando a branca figura de Pio XII, acompanhado por aquele que passados vinte anos seria seu sucessor com o nome de Paulo VI, compareceu imediatamente entre a população aterrada e sem ânimo, trazendo ele conforto, esperança e socorro no meio das ruínas ainda fumegantes. Nem me esqueço de que esta Basílica, sempre querida aos Romanos Pontífices, encerra no hipogeu os despojos mortais do Servo de Deus Pio IX.

3. E eis que, neste dia solene que hoje vive toda a Igreja, Lourenço arcediago e mártir, testemunha heróica de Cristo crucificado e ressurgido — dir-se-ia que nos fala a nós com as palavras da primeira carta de São João: "Vede com que amor nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E, de facto, somo-lo!" (1Jn 3,1).

Ao completar-se a salvação eterna, na glória do reino celestial, reconfirma-se e realiza-se em plenitude definitiva aquilo que aceitámos mediante a fé: "desde agora somos filhos de Deus" (1Jn 3,2).

Somo-lo mediante a graça santificante no tempo da vida terrestre, ao abrigo da fé. Mas ainda não se manifestou em plenitude o que viremos a ser um dia. Quando O virmos assim como Ele é, seremos semelhantes a Ele, assim como o Filho é semelhante ao Pai.

Assim parece falar-nos nesta veneranda Basílica em directa proximidade ao Campo Verano, São Lourenço, diácono e mártir romano e, juntamente com ele, falam hoje todos os Santos.

E depois destas palavras joaninas acrescentamos um fervoroso incentivo a todos nós, que nesta terra "peregrinamos mediante a fé e a esperança". Parecem na verdade, dizer:

"Todo o que n'Ele tem esta esperança, purifica-se a si mesmo, como também Ele é puro" (1Jn 3,3).

4. A solenidade de Todos os Santos traz consigo uma particular chamada à santidade. Devemo-nos recordar de que se trata de uma chamada universal, isto é válida para todos os seres humanos sem distinção de idade, de profissão, de raça e de língua. Como os salvos, assim os chamados. Recebei esta chamada vós todos, que formais a comunidade paroquial do Povo de Deus que se reúne na Basílica de São Lourenço. No dia da celebração dos Santos e da santidade, é justo e oportuno este chamamento que deseja agora dirigir, com a saudação mais cordial, a cada um de vós.

816 Está presente comigo o Senhor Cardeal Vigário de Roma, que sempre me acompanha nestas visitas pastorais, e com ele está também o Bispo Auxiliar do sector Norte. Unido a eles, meus Irmãos e Colaboradores no episcopado, retomo este apelo à santidade, nascido da íntima significação eclesial e espiritual da festividade hodierna, e repito-o em forma e em tom de vivíssima exortação a todos os elementos da Paróquia. Esta, em comparação com as outras Paróquias da Urbe, não é muito numerosa, mas quantos problemas conhece e deve enfrentar, pela sua dominante composição operária e pela sua típica colocação nas imediatas proximidades do centro histórico, englobando no seu âmbito — além do Cemitério do Verano — importantes estruturas escolares, hospitalares e civis!

Dirijo-me, primeiro que tudo, ao Reverendo Pároco, aos Coadjutores e a todos os Confrades da Comunidade Capuchinho, que sei estarem empenhados num delicado e não fácil trabalho: para eles o caminho da santidade está ligado não já à segregação do mundo, mas a um multiforme e bem exigente apostolado em favor de tantos fiéis que se encontram, por vezes, em situação precária e, em não poucos diferentes casos, estão sujeitos a dispersões e perigos. Coragem, digo-lhes eu, assegurando o meu apreço, a minha recordação e a minha prece de comunhão, em apoio do seu trabalho que, precisamente por causa das aludidas dificuldades, é mais meritório e genuinamente evangélico.

E recomendo, em seguida, a todos os Paroquianos corresponderem com generosa disponibilidade a estes cuidados dos seus Sacerdotes, reagindo contra as insidiosas ameaças de descristianização e demonstrando com a sua vida que são dignos das tradições cristãs que se encontram no nome glorioso do Santo titular desta Basílica. A vocação à santidade, de facto, quer dizer pôr em prática, na solidez da própria existência, os exemplos e os ensinamentos de Jesus Cristo. Assim fizeram os Santos, assim devemos fazer todos nós.

5. Na solenidade de Todos os Santos, portanto, vivemos especialmente a presença de Cristo, que se tornou a causa da salvação eterna para todos quantos receberam a mensagem do Seu Evangelho da cruz e da ressurreição.

A nós que vivemos neste mundo não cessa o mesmo Cristo de dizer:

"Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e vos aliviarei" (
Mt 11,28).

Oxalá o nosso encontro hodierno à volta de Cristo, que na Eucaristia renova a Sua morte e ressurreição, se torne para todos — fatigados e oprimidos — a fonte da esperança. Oxalá n'Ele encontremos o conforto e a graça da salvação eterna.

Amém.



Homilias JOÃO PAULO II 808