Homilias JOÃO PAULO II 861


VIAGEM APOSTÓLICA EM PORTUGAL

MISSA PARA OS JOVENS


Lisboa, 14 de maio de 1982




1. O Reino de Deus está próximo!

Sim! “Dizei a todos: está próximo de vós o Reino de Deus!” (Lc 10,9).

Foi com estas palavras que Jesus Cristo, ao enviar em missão os setenta e dois discípulos, lhes recomendou que anunciassem a Mensagem, como acabámos de ouvir no Evangelho de hoje.

Mas estas palavras são dirigidas também aos cristãos de todos os tempos: a nós, portanto, que estamos aqui reunidos em nome do Senhor, em continuidade com os discípulos que as ouviram directamente.

862 São dirigidas especialmente a vós, jovens, que aqui vos encontrais, esta tarde em tão grande número, cheios de entusiasmo e alegria, manifestando a vossa disponibilidade a Cristo e o vosso desejo de construir um mundo mais humano e cristão. Vós sois depositários desta grande esperança da humanidade, da Igreja e do Papa. Deus deu-me a graça da amar muito os jovens.

Por isso, gostaria de falar-vos como um amigo fala ao seu amigo, com cada um individualmente, olhos nos olhos, de coração a coração. “O Reino de Deus está próximo!”. E quase me atreveria a dizer: estas palavras são dirigidas especialmente a vós jovens portugueses, filhos de um povo de missionários que, por todo o mundo, levaram essa mesma mensagem, como acentuou o Senhor Cardeal Patriarca, Dom António Ribeiro.

Obrigado, Senhor Cardeal, pelas suas palavras. Elas confortam-me e tomo-as como promessa de continuidade, ao retribuir, a todos cujos sentimentos interpretou, as saudações. E, nesta hora, rendo homenagem de gratidão, em nome de toda a Igreja, à grande gesta evangelizadora de Portugal missionário.

O Reino de Deus está verdadeiramente próximo! Aproximou-se do homem de modo definitivo. Está entre nós e está dentro de nós.

A proximidade do Reino de Deus reside, antes de mais, no facto de Deus ter vinho e ter assumido a natureza humana. Está próximo em Cristo; está próximo por meio de Cristo. N’Ele, com efeito, o Reino está tão perto de nós, que, em certo sentido, se torna difícil imaginar uma aproximação maior e mais íntima. Poderia Deus estar mais próximo do homem do que fazendo-Se Homem?

Estando assim tão próximo, em Cristo, nosso Senhor e Salvador, o Reino de Deus está sempre diante do homem. É proposto aos homens, como uma missão a realizar, uma meta a alcançar. Nas diversas dimensões da sua existência, os homens podem, pois, aproximar-se dele ou dele afastar-se. Antes de mais, podem chegar a alcançá-lo em si próprios, e realizá-lo dentro de si.

Mas podem também perdê-lo de vista, desviar-se da sua perspectiva. Podem até actuar contra ele. Podem mesmo propender para afastá-lo do homem; podem afastar o homem dele, e subtrair-lho.

E no entanto, Cristo veio ao mundo para introduzir os homens no Reino de Deus, para inserir o Reino nos corações dos homens e no meio deles. Mais: Cristo confiou mesmo este Reino aos homens. Chamou-os para o trabalho pelo Reino de Deus. E este trabalho tem o nome de evangelização.

2. A palavra “evangelização” vem de “Evangelho”, que significa “Boa Nova”. O Reino de Deus constrói-se sobre este fundamento da Boa Nova. Mais ainda: ele mesmo é Boa Nova. É o Anúncio da salvação definitiva do homem. E aqui, poder-se-ia perguntar: o que é a “salvação”?

Detenhamo-nos nas palavras de Isaías, ouvidas na primeira leitura da Santa Missa de hoje:
“O espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor me ungiu. Enviou-me a levar a boa nova aos que sofrem, a curar os de coração triste, a anunciar a libertação aos cativos e aos prisioneiros a liberdade, a proclamar um ano de graça do Senhor” (
Is 61,1-2).

863 Estas palavras do Profeta permaneceram muitos séculos à espera do momento de serem lidas, na sinagoga de Nazaré, por Aquele que era tido como o “Filho do Carpinteiro”: Jesus de Nazaré. E Ele, depois de as ler, disse: “cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir com os vossos ouvidos” (Lc 4,21).

As palavras de Isaías, que Jesus de Nazaré tomaria como programa da sua missão, contêm precisamente a boa nova acerca da salvação.

O que é pois a salvação? É a vitória do bem sobre o mal, realizada no homem, em todas as dimensões da sua existência. A própria superação do mal já tem um carácter salvífico. A forma definitiva da salvação consistirá para o homem em libertar-se completamente do mal e em alcançar a plenitude do bem. Esta plenitude chama-se e é de facto a salvação eterna. Realiza-se no Reino de Deus como uma realidade escatológica de vida eterna. É uma realidade do “tempo futuro” que, mediante a cruz de Cristo, se iniciou na sua Ressurreição.

Todos os homens são chamados à Vida eterna. São chamados à salvação.

Tendes consciência disto? Tendes consciência disto vós, jovens meus amigos: que todos os homens estão chamados a viver com Deus e que, sem Ele, perdem a chave do “mistério” de si mesmos?

3. Esta chamada à salvação é trazida por Cristo. Ele tem para o homem “palavras de vida eterna” (Io.6, 68); e dirige-se ao homem tal qual é, situado em circunstâncias muito variadas: dirige-se ao homem concreto que vive na terra. Dirige-se particularmente ao homem que sofre, no corpo ou na alma.

Ele vem, como ouvimos na primeira leitura, a “consolar os que choram... a dar aos que estão tristes uma coroa em vez de cinzas, óleo de alegria em vez de luto, glória em vez de desespero” (Is 61,2-3).

Mas dirige-se também a vós, jovens!

Sim, a vós jovens: porque no vosso espírito está impressa, de modo particular, a problemática essencial da salvação, com todas as suas esperanças e tensões, sofrimentos e vitórias.

É sabido quanto vós sois sensíveis à tentação entre o bem e o mal, que existe no mundo e em vós próprios. No íntimo de vós mesmos, sofreis ao ver o triunfo da mentira e da injustiça; sofreis, por vos sentirdes incapazes de fazer triunfar a verdade e a justiça; sofreis, por vos descobrirdes, ao mesmo tempo, generosos e egoístas. Desejaríeis servir e colaborar sempre com as iniciativas em favor dos oprimidos, mas... sentis-vos traídos por tantas coisas e aliciados por outras que vos quebram as asas. Espontaneamente sois levados a rejeitar o mal e a desejar o bem. Mas, algumas vezes tendes dificuldade em ver e em aceitar que para chegar ao bem é preciso passar pela renúncia, o esforço, a luta, a cruz; sucedeu com aquele jovem que, desejando a perfeição e querendo seguir Jesus, não conseguia compreender e aceitar que era necessário renunciar aos bens materiais.

Contudo, caros jovens, para além destas tensões, possuís uma aptidão quase co-natural para evangelizar. Porque a evangelização não se faz sem entusiasmo juvenil, sem juventude no coração, sem um conjunto de qualidades em que a juventude é pródiga: alegria, esperança, transparência, audácia, criatividade, idealismo... Sim, a vossa sensibilidade e a vossa generosidade espontânea, a tendência para tudo o que é belo, tornam cada um de vós um “aliado natural” de Cristo. Para mais, só em Cristo encontrareis resposta aos próprios problemas e inquietações. E vós sabeis porquê: Ele foi o homem que mais amou; e deixou-nos um “código” do amor, o seu Evangelho que, lido pelo Concílio, “... proclama a liberdade dos filhos de Deus; rejeita toda a escravidão, derivada, em última análise, do pecado; respeita integralmente a dignidade da consciência e a sua livre decisão; sem cessar, recorda que todos os talentos humanos devem redundar em serviço de Deus e dos homens; e, finalmente, a todos recomenda a caridade” (Gaudium et spes GS 41).

864 No fim de contas, só o amor salva. E repito: a problemática da salvação – isto é, a vitória do bem sobre o mal – é um tema fundamental da vida humana. A vida do homem desenrola-se inteiramente na órbita desse apelo. Por isso, o tema “salvação” é daqueles que estão inscritos, de modo particular, na alma dos jovens. Importa saber fazer a sua leitura com perspicácia e desenvolvê-lo honestamente, em vida e obras.

4. A salvação é uma missão. Cristo veio para nos dizer que a salvação – isto é, o Reino de Deus – é uma missão. Veio também para nos ensinar como a devemos desempenhar.

Aos setenta e dois discípulos, que envia “dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares onde Ele havia de ir”, Cristo diz: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos Pedi, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe” (
Lc 10,2).

A Igreja recorda-nos estas palavras frequentemente. Recorda-as, de modo particular, para nos convidar à oração pelas vocações sacerdotais e religiosas, pelas vocações missionárias.

Mas, caros jovens, não basta rezar para que o Senhor desperte vocações. É preciso estar pessoalmente atento ao apelo que Ele quiser dirigir-vos; é preciso que não falte a coragem para responder generosamente a esse chamamento. As comunidades cristãs necessitam de sacerdotes que as alimentem com a Palavra e o Corpo de Cristo, precisam da vida religiosa, que seja sinal de Deus e oblação a Deus em benefício dos irmãos. E vós não desejareis prolongar a presença do Senhor no mundo de hoje, responder aos pequeninos que buscam quem lhes parta o pão e não encontram? (Cfr. Lam Lm 4,4)

Falar da evangelização, recordar a tarefa missionária aqui, em Portugal, é evocar um dos aspectos mais positivos da história do vosso país. Daqui saíram tantos missionários, vossos antepassados, que foram levar a Boa Nova da salvação o outros homens. Do Oriente ao Ocidente (Japão, Índia, África, Brasil...); e ainda hoje são visíveis os frutos dessa missionação. E muitos destes missionários eram jovens como vós. Como não lembrar, entre outros, aqui em Lisboa, o exemplo de São João de Brito, jovem lisboeta, que, deixando a vida fácil da corte, partiu para a Índia, a anunciar o evangelho da salvação aos mais pobres e desprotegidos, identificando-se com eles, e selando a sua fidelidade a Cristo e aos irmãos com o testemunho do martírio?

Rapazes e raparigas de Portugal: levantai os olhos e vede “a seara loirejante para a ceifa”, à espera de braços para o “trabalho”.

5. Falámos do sacerdócio, da vida religiosa e do trabalho missionário, como formas de vocação que têm importância particular em ordem à evangelização, e pelas quais a Igreja reza de modo especial. Sente-se chamada a esta oração pelas palavras do Senhor: “pedi, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe” (Lc 10,2).

Mas as palavras do Senhor Jesus acerca da “messe grande” e dos trabalhadores, devemos entendê-las num sentido ainda mais fundamental e, ao mesmo tempo, mais amplo do que o indicado pelos géneros de vocações na Igreja que acabamos de mencionar.

Falando da “messe”, da “messe grande” e dos “trabalhadores”, Cristo quer, antes de mais, fazer compreender aos seus ouvintes que o “Reino de Deus”, isto é, a “salvação”, é a grande tarefa de todo o homem. Cada pessoa deve sentir-se “trabalhador”, protagonista da própria salvação: o trabalhador que é chamado para a “messe”. Cada pessoa deve “ganhar” honestamente esta salvação. E isto é essencial também para toda a obra da evangelização.

“Messe” que dizer, portanto, realizar em si próprio a missão de evangelizar. Cada pessoa é chamada pela palavra de Deus a este género de trabalho; é chamado em especial cada jovem – rapaz ou rapariga. Não podemos evangelizar os outros, se primeiro não estamos nós evangelizados. Não podemos colaborar na salvação dos outros, se primeiro não entramos nós pelos caminho da salvação.

865 Encetámos esta caminhada da salvação no dia do nosso Baptismo, quando, renunciando ao mal, escolhemos o bem, em Jesus Cristo; começamos a viver a Vida Nova, fruto da sua Morte e Ressurreição. Esta Vida deve desenvolver-se sempre. Para isso, Ele ficou connosco, na Igreja: ficou especialmente nos Sacramentos; ficou na Eucaristia e na Penitência.

Vós todos, vós amigos jovens, apreciais estas fontes da Vida? Sabeis corresponder ao convite de Jesus – o Pão da Vida! – participando conscientemente na Eucaristia, com o desejo de viver em plenitude, de vencer o mal e alcançar o bem? E, quando é necessário, por causa do pecado, da imperfeição ou da fraqueza, sabeis trilhar o caminho da conversão e da reconciliação, buscando o sacramento da Penitência, o perdão e a Vida? Formai a vossa consciência e sede fiéis ao Senhor, que ama e perdoa!

6. À medida que empreendemos o “trabalho em nós próprios”, vemos claramente que não podemos ser “trabalhadores da própria salvação”, sem pensarmos simultaneamente nos outros. O problema da própria salvação está ligado organicamente à questão da salvação dos outros. E também isto é essencial para a evangelização.

O homem começa a sua vida a receber. Ao nascer acha-se inserido num mundo feito pelos outros, principalmente pelos mais próximos: pais, irmãos e irmãs. A criança recebe aí praticamente tudo, desde o alimento até à formação. Aí aprende a falar, a caminhar e a conviver. Ao descobrir as suas riquezas e capacidades, o jovem procura ultrapassar esta fase infantil do receber para passar à fase do dar. Não se contenta com o mundo que recebeu. Quer criar o “seu mundo”. É o momento da grande opção da vida. É o momento em que se desenha e se prepara a orientação básica a imprimir ao resto da vida.

Esta passagem, do receber ao dar, da dependência ao assumir a própria responsabilidade, não se dá sem crise. Mas é sobretudo crise de crescimento e de amadurecimento. Muitas vezes o jovem não é entendido, nem se entende a si mesmo. Já não quer ser tratado como criança; mas sente que ainda não é adulto. Muitas vezes vacila no seu interior.

Por outro lado, tudo parece despertar nele: descobre os valores, o sexo, o amor e o ideal; e descobre também a verdadeira dimensão da fé. Grandiosas descobertas para vós, queridos jovens!

O mundo já não vos aparece como mito, mas como grande tarefa que se vos impõe; a vossa vida já não se apresenta apenas como dom. Torna-se empenho. A vossa atitude não se reduz a esperar tudo pronto.

Duas grandes preocupações vos interpelam, na perspectiva do futuro: a preparação para a profissão e a preparação para o estado de vida. Estas duas preocupações absorvem-vos particularmente, às vezes até à impaciência. A vossa tensão de jovens pode resumir-se entre o “já” e o “ainda não”. Já sentis responsabilidade, mas ainda não tendes oportunidades para demonstrá-la. Já quereis contribuir eficazmente para o bem comum, tanto com ideias como com obras, mas ainda não se deparam as ocasiões.

Ora é exactamente neste momento, no grande momento da opção e preparação do vosso futuro, que mais precisais de Cristo. E, guiados por Ele, podereis escolher a vossa profissão e o vosso futuro, tendo em vista o bem comum e as exigências do reino de Deus, as exigências da fé. Sois chamados a “trabalhar” na salvação dos outros ao mesmo tempo que “trabalhais” na vossa salvação. Soi chamados a ser apóstolos, a evangelizar a Boa Nova, sejam quais forem as vossas opções para o futuro.

Sede generosos: escolhei com amor e preparai-vos bem. Preparai-vos para a profissão, honesta e dignamente; preparai-vos para o estado de vida que ireis abraçar; e se optardes pelo matrimónio, fazei-o com seriedade e com respeito por quem um dia há-de compartilhar convosco a vida e os ideais da família segundo Deus.

7. Na verdade, a “messe é grande”. Importa somente que cada um de nós se torne aquele “trabalhador” autenticamente evangélico. A “messe” indica o fruto do trabalho humano. Mas indica, ao mesmo tempo, o dom que vem até nós, por meio da criação.

866 A salvação que Cristo põe diante do homem como sua missão é, simultaneamente, um dom, é sobretudo um dom.

“...Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e até aos confins do mundo” (
Ac 1,8). São estas as últimas palavras que, segundo os Actos dos Apóstolos, Cristo Ressuscitado pronunciou sobre a terra, antes da sua ascensão ao Céu. Encontramo-nos no período litúrgico que vai da Ressurreição à Vinda do Espírito Santo: por isso, tais palavras revestem-se para nós de especial actualidade.

É do Espírito Santo que os homens recebem a força para se salvarem. Isto é, a salvação que é para o homem tarefa pessoal e comunitária, há-de ser realizada com a força do Espírito Santo. Por isso, ela significa, ante de mais, um dom. É um grande dom no qual Deus partilha com o homem algo que é essencialmente Seu. Em certo sentido, “dá-Se a si mesmo ao homem”: dá-Se a si mesmo em Cristo.

Dá-Se para ser aquela força de verdade e de amor, que forma o “homem novo”, capaz de transformar o mundo: verdade que, manifestando-se como exigência da consciência e da dignidade humana, dita as opções do amor, amor que aproxima, faz união, eleva, constrói e salva, quando damos as mãos aos outros em fraternidade humana, cristã e eclesial. Dá-Se, em particular nos Sacramentos – Baptismo, Confirmação, Penitência, Eucaristia – pelos quais é conferido ou aumentado o dom que, do Cenáculo chegou até nós, como Pão da Vida e como “Força”, que nos enriquece, dia após dia, até ressuscitarmos para a Vida eterna (Cfr. Io. 6, 51. 58), com Cristo, para vivermos junto do Pai.

Assim, devemos acolher sempre a salvação como um Dom, e, ao, mesmo tempo, a ela nos devemos aplicar como a uma missão.

Quanto mais consciência tivermos da grandeza do Dom, tanto mais ardentemente assumimos a missão, tanto mais a sério nos tornamos os “trabalhadores da messe”. Aqui está o fundo da questão; é esta a contextura vital da evangelização.

8. Cristo Ressuscitado chama os seus discípulos à evangelização, dizendo-lhes: “sereis minhas testemunhas” (Ac 1,8). Eis a palavra-chave!

Tornamo-nos testemunhas de Cristo, quando, como nos discípulos do Evangelho, amadurece em nós o problema da salvação, o problema do chamamento ao Reino de Deus. Quando o acolhemos, dele nos apropriamos e nos identificamos com ele. Quando ele dá forma a toda nossa vida e ao nosso modo de agir.

Jovens, rapazes e raparigas, filhos de Portugal dos nossos dias:

Olhai para tantos que vos precederam no passado, também eles filhos desta Pátria. Filhos da sua cultura e da sua língua. Das suas provações e da suas vitórias.

Quantos deles responderam, com a doação total da vida, ao apelo de Cristo! Da Rainha Santa Isabel a João de Deus, de António de Lisboa a João de Brito – para falar só de santos canonizados – por caminhos diferentes, todos eles se moveram na caridade de Deus, enamorados do ideal da verdade e do amor, movidos pelo Espírito e Cristo. E quem poderá dizer, perante o vosso entusiasmo e alegria, que os jovens portugueses de hoje são menos interessados, menos disponíveis e menos atentos a Cristo que os do passado? Sim, Cristo confia em vós! A Igreja confia em vós! O Papa confia em vós!

867 Acolhei, amados jovens, acolhei uma vez mais o chamamento de Cristo: Sede testemunhas d’Ele!





VIAGEM APOSTÓLICA EM PORTUGAL

MISSA PARA OS AGRICULTORES


Vila Viçosa, 14 de maio de 1982


Amado Irmão Dom Maurílio de Gouveia, Arcebispo de Évora,
Amados Irmãos no Episcopado,
Excelentíssimas Autoridades,
Caríssimos irmãos e irmãs presentes e
queridos agricultores e trabalhadores destas terras portuguesas:

1. “Ide vós também para a minha vinha e tereis o salário que for justo”.

Nesta e outras passagens evangélicas Jesus exprime-se por meio de parábolas, cujo conteúdo é tomado do mundo que o rodeia. Nelas o Divino Mestre refere-se, muitas vezes, ao trabalho do campo. Assim acontece, no texto da celebração da Palavra de hoje, com a parábola dos trabalhadores da vinha. Cristo por meio de exemplos colhidos do mundo criado e de factos conhecidos de seus ouvintes, introdu-los na realidade supra-sensível e invisível do Reino de Deus.

Na verdade, era deste modo que Ele fazia compreender aos homens o Seu reino espiritual.

O homem que trabalha honestamente, como ser livre e inteligente, continua a obra da criação, realizando a comunhão com Deus; tornando-se participante da Redenção até chegar à gradual e plena participação da Vida divina. É nesta perspectiva que vamos meditar a parábola, queridos filhos de Portugal, em especial das regiões do Ribatejo, Alentejo, e Algarve, e também convosco dilectos ciganos e peregrinos vindos de outras terras portuguesas ou da vizinha Espanha. Estou agradecido ao Senhor Arcebispo de Évora, pelas suas amáveis palavras de saudação, e igualmente ao jovem trabalhador que se fez intérprete dos sentimentos de seus companheiros.

868 Também eu vos saúdo e quero dizer-vos, a todos os que viveis entregues ao duro trabalho de cultivar a terra: a minha presença aqui, bem como a do Senhor Arcebispo de Évora e de outros Bispos de Portugal e da Espanha, é sinal concreto de que a Igreja compreende e reconhece as vossas legítimas aspirações de justiça, progresso e paz no desempenho da vossa profissão. A Igreja, o Papa, os Bispos de Portugal estão convosco para vos ajudar a vencer incompreenções e injustiças, para dar a mão aos mais pobres e desprotegidos, dentro da esfera da sua missão, a fim de todos poderem progredir e participar com serenidade dos altos valores humanos e cristãos de um trabalho digno e produtivo. Aqui, no Santuário de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, sob a olhar da “Rainha” de Portugal, coroada por Dom João IV, vamos fazer a nossa reflexão, pedindo ao Espírito Santo, Espírito de verdade e de amor, que nos ilumine e assista.

2. A parábola dos trabalhadores da vinha, que acaba de ser lida, encerra duas importantes verdades de ordem sobrenatural. A primeira é que a justiça do Reino de Deus se realiza também mediante a obra do homem, através do “seu trabalho na vinha do Senhor”. Cada um é convidado para ele, a fim de “construir o mundo nos vários modos, momentos e aspectos da vida humana terrestre. A segunda verdade é que o dom do Reino de Deus outorgado à humanidade, está acima de toda e qualquer medida que os homens costumam usar para avaliar a relação entre mérito e recompensa, entre trabalho e salário. Esse dom transcende o homem. Sendo sobrenatural não se pode medir com critérios meramente humanos.

O texto evangélico dos trabalhadores da vinha e os outros da hodierna celebração convidam-nos a uma reflexão sobre o trabalho do homem, especialmente sobre o trabalho da terra, na perspectiva da ordem e da justiça que deveriam reinar na sociedade.

A Igreja, como bem sabeis, tem dedicado muita atenção a estes problemas da chamada questão social, sobretudo no último século. Embora a sua primordial atenção tenha ido para a indústria e para o trabalho industrial, também o trabalho do homem que cultiva a terra, tem constituído parte explícita e importante do ensino da Igreja, desde o tempo da Encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII. Assim Pio XI denunciava a influência negativa do capitalismo industrial sobre a agricultura, deplorando a situação de tantos camponeses, “reduzidos a inferior condição de vida, privados da esperança de vir a alcançar qualquer porção de terra e, por conseguinte, sujeitos para sempre à condição de proletários, caso não se utilizem remédios oportunos e eficazes”.

Mas foi sobretudo o Papa João XXIII, descendente de uma família camponesa, quem dedicou especial atenção aos problemas da vida agrícola, reivindicando para a agricultura o posto que lhe compete. Na “Mater et Magistra” ele recomenda não só o superamento do desequilíbrio existente entre os vários sectores de cada país, mas trata também da questão em perspectiva mundial, pondo em evidência a necessidade de novos equilíbrios e da cooperação solidária das nações ricas e prevalentemente industrializadas com as pobres, em via de desenvolvimento e com uma economia agrícola em atraso.

Nos nossos tempos, de acentuadas tensões económicas e sociais, prevalece a visão unilateral do progresso, voltada prevalentemente para a industrialização. Mas é consolador verificar também como se vai já pondo em evidência a necessidade de restituir à agricultura o lugar que lhe compete no âmbito do desenvolvimento de cada nação e do progresso internacional. Ainda recentemente os vossos Bispos, à luz da Encíclica “Laborem Exercens” mostravam a necessidade de “atacar com decisão as crónicas enfermidades da agricultura em Portugal, na linha do reconhecimento da dignidade e dos direitos dos homens, das mulheres e das famílias do campo”. Justamente observavam eles “que não basta proclamar direitos”, mas ser urgente “criar as condições económicas, sociais e culturais, para que a satisfação desses direitos seja possível, e assim os camponeses, muito em particular os jovens, se sintam verdadeiramente estimulados a fixarem-se à terra e ao trabalho agrícola”. É um desafio para todos e ao qual “os próprios rurais também não podem deixar de responder, abrindo-se a formas novas de associação e cooperação entre si e a oportunas iniciativas de modernização de técnicas e de cultura”.

3. Para a nossa visão dos problemas do trabalho do campo ser como deve, temos de fixar o pensamento – em continuidade com a tradição da doutrina social da Igreja, na dignidade e posição do homem neste mundo. Na verdade é o homem que realiza o trabalho e é por causa dos homens que todo o trabalho humano tem de ser fundado na justiça, inspirada e valorizada pelo real e efectivo amor ao próximo.

Através do salmo oitavo, recitado há momentos, podemos compreender o que é o homem no pensamento de Deus e na ordem da criação. Na presença do Senhor, o Salmista faz a si mesmo esta pergunta: Que é o homem? De certo modo, a pergunta é feita ao próprio Deus:
Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, / a lua e as estrelas que Vós fixastes, / que é o homem para vos lembrardes dele, / o Filho do homem, para dele cuidardes?”.

Estas palavras falam da pequenez do homem, em confronto com as grandes obras da criação. Ao mesmo tempo, proclamam a sua incomparável dignidade. De facto, apesar da pequenez do homem, Deus “lembra-se e cuida dele”. A dignidade humana ainda sobressai mais com os dizeres que o Salmista acrescenta a seguir: “Destes-lhe o domínio sobre as obras das vossas mãos. Tudo submetestes debaixo de seus pés”.

Na Encíclica “Laborem Exercens” eu quis exaltar a figura proeminente do “homem que trabalha”.

869 Esta é a “chave essencial” para a interpretação e solução dos problemas sociais. Com a palavra trabalho designo toda a actividade humana, a partir da mais modesta e de execução humilde até à mais elevada. Também ao labor da terra se devem aplicar os critérios ou princípios gerais expostos nessa Encíclica, na qual dedico algumas páginas à “dignidade do trabalho agrícola”.

4. Caríssimos trabalhadores rurais, homens e mulheres, jovens e anciãos: É também a vós que o Senhor da vinha se dirige no Evangelho através do convite: “Vai também tu para a minha vinha e eu dar-te-ei o salário justo”. Apesar de concisa, esta frase leva-nos ao estudo de vários problemas, cuja solução só pode ser obtida mediante a aplicação dos fundamentais princípios éticos, de valor universal, em que se baseia o real progresso da sociedade. Ao aplicá-los, devem ter-se em conta as situações particulares, os diversos tipos e graus de desenvolvimento de cada zona humana. Numa palavra, é necessário olhar às exigências da justiça, e atribuir o primado moral àquilo que deriva da verdade total sobre o homem.

O mundo contemporâneo, apesar do enorme progresso científico e da técnica, vive sob o terror de uma grande catástrofe, que poderá inverter os seus grandes sucessos, se a guerra vier a prevalecer sobre a paz. Por isso as despesas com o armamento deveriam ser reduzidas, a fim de garantir a todos os países um mínimo de condições necessárias ao seu desenvolvimento global, especialmente pelo que se refere ao sector agrícola e alimentar. O estado de pobreza absoluta de certos grupos humanos de muitos países, com economia agrícola atrasada, ofende a dignidade de milhões de pessoas constrangidas a viver em condições de miséria degradante. Urge, portanto, dar aos trabalhadores do campo a possibilidade de realizarem concretamente seus direitos humanos fundamentais.

5. Na primeira leitura bíblica tirada do livro de Amós fala-se de levantamento de ruínas ou seja de “reconstrução”. Se é difícil construir, custa ainda muito mais, após certas fases de declínio, encontrar novas formas de equilíbrio e de renovamento, para superar conceitos ou processos antiquados e produzir mais e melhor.

Dentro duma estratégia nacional de desenvolvimento, adaptada às concretas condições de capacidade e de cultura próprias, o desenvolvimento harmónico e progressivo da agricultura, precisa de ser enquadrado num programa global dos diversos sectores da economia nacional, que tenha em conta os objectivos humanos fundamentais; isto é, não apenas o efectivo aumento da produção, mas também a equitativa distribuição do produto do trabalho. Com tal enquadramento num programa global, há-de ter-se em vista garantir a existência de infra-estruturas adequadas, de oportunas condições de crédito, de meios modernos e suficientes de transporte e de trabalho, com o respectivo comércio interno e externo dos produtos agrícolas, dentro de espírito criativo e de sã competição.

6. “Dar-vos-ei o que for justo”, diz o senhor da parábola evangélica. São palavras de importância capital, porque se relacionam com a grave problemática do salário justo e dos direitos humanos e da dignidade do trabalhador do campo. Neste ponto é imperativo reconhecer o lugar privilegiado de quem trabalha a terra, quer se trate de agricultores proprietários ou de simples trabalhadores não proprietários. As grandes empresas devem utilizar a terra, fazendo-a produzir sempre mais, com a oportuna participação dos trabalhadores, e subordinando o rendimento e utilidade próprias ao direito do justo salário de quantos contribuem para a produção, sem perder de vista a função social da propriedade.

Por isso, são de apreciar as iniciativas e acções conjuntas de grandes associações de agricultores e trabalhadores, sem descurar o valor económico das empresas agrícolas de grupos mais reduzidos, de famílias, até de particulares, com possibilidades de exploração vantajosa da propriedade.

Óptimo seria se os camponeses pudessem trabalhar em terra própria, criando empresas agrárias verdadeiramente funcionais.

7. Caríssimos agricultores e trabalhadores rurais: com espírito de colaboração, vós deveis ser os artífices do progresso da agricultura, como elemento importante do desenvolvimento económico e social da vossa pátria. Procurai, pois, desenvolver o espírito de iniciativa, promovendo a inserção de jovens qualificados, nas empresas agrícolas. Permiti que vos lembre: os princípios expressos na “Laborem Exercens” sobre o homem que trabalha, em particular sobre o trabalhador do campo, aplicam-se também à mulher que trabalha na terra.

Entretanto, como bem sabeis, o desejado progresso agrícola não pode dar-se sem suficiente instrução e formação profissional, que siga a modernização dos métodos e meios da actividade agrícola. Por isso não podemos deixar de encarecer o esforço de quantos em Portugal trabalham neste sentido.

Lembram contudo os vosso Bispos, no já aludido documento, que “a reforma agrária não pode ser questão instrumentalizada para a obtenção de dividendos partidários, porque toca a vida dos homens da agricultura em tal dimensão e profundidade que é criminoso fazer dela instrumento partidário. A reforma agrária deve ser a reforma da agricultura em Portugal, no sentido de personalizar o trabalho agrícola. Importa salientar, neste ponto, o dever de todos actuarem com métodos respeitadores da liberdade, autonomia e participação responsável dos camponeses e de todos os cidadãos no fomento da justiça social”.

870 8. Voltamos mais uma vez, caríssimos trabalhadores do campo, à parábola evangélica da vinha.

Ela ensina-nos que o homem não só vive no mundo, na sociedade, num estado ou nação, mas também é chamado, ao mesmo tempo, ao Reino de Deus, de que fala a imagem da vinha. O trabalho humano da terra (e para a terra) e a construção do Reino de Deus encontram-se e unem-se entre si.

O Reino de Deus, não pode ser avaliado pelas dimensões de ordem social e terrena. A sua edificação dá-se não só pelo merecimento, mas também pela graça, e sobretudo pela graça, a qual torna possível todo e qualquer merecimento. Como fruto da graça e do mérito, o Reino de Deus não é um prémio correspondente ao mérito, como seria o salário em relação ao trabalho prestado, mas é, primariamente, um dom sobrenatural: um Dom que está acima de qualquer merecimento.

Todos nós somos cidadãos da pátria terrestre. O nosso trabalho é de extraordinária importância para a consecução do bem comum. Mas nós somos também cidadãos do Reino de Deus que não é deste mundo e chega até nós como dom divino e como vocação cristã.

O Senhor convida-nos a responder a esta vocação e a unir-nos a Ele, através da oração que dignifica o nosso trabalho de cristãos. “Ora et labora” – reza e trabalha – é um antigo princípio dado por São Bento aos seus monges. Unir o trabalho à oração e fazendo do trabalho oração dar-vos-á coragem, constância e serenidade para vencerdes dificuldades e incompreensões, tornará mais alegre o vosso trabalho, com as melhores incidências na vossa vivência cristã, na construção de uma sociedade melhor e mais feliz.

Apraz-me reevocar aqui a figura tradicional e cristã do trabalhador rural destas terras portuguesas que, pelo que me contaram, ao toque das Ave-Maria ou das Trindades e, já em casa, ao toque das Almas, no campanário das igrejas, suspende, por momentos, a sua actividade para levantar o pensamento ao Alto, rezando a Deus, doador de todos os bens.

9. Ó Senhor nosso Deus, como é grande o vosso nome em toda a terra! Aqui, neste Santuário da Virgem Imaculada, hoje o Bispo de Roma e sucessor de São Pedro ergue para Vós as mãos, o pensamento e o coração, juntamente com todos os Filhos e Filhas desta terra portuguesa, em união sobretudo com os que cultivam a terra com o trabalho das suas mãos e com o suor do seu rosto.

Em uníssono com eles, ó Pai de bondade e Senhor de todo o universo, eu imploro a vossa bênção para o seu duro trabalho. Abençoai, Senhor, os seus campos e as suas canseiras! Desça copiosa a vossa bênção sobre as suas famílias e sobre todas as suas comunidades! Abençoai, Senhor, a sua pátria, Portugal!

Criador do universo, é fruto do trabalho desta gente o pão e o vinho que diariamente oferecemos no Sacrifício eucarístico, para se transformarem no Corpo e Sangue do vosso Filho Jesus Christo.

É um trabalho que serve para a Eucaristia!

Que estas terras, todos os campos de Portugal, desde o Minho e Trás-os-Montes ao Algarve, sejam sempre favorecidos de colheitas abundantes. Que a graça do vosso Reino inunde os corações de todos os seus habitantes!

871 No vosso Reino de justiça, de paz e de amor, concedei, Senhor, o prémio eterno a todos eles; Vós sois esse prémio, ao mesmo tempo que o vínculo sagrado a uni-los no amor e na paz que jamais terão fim.



Homilias JOÃO PAULO II 861