Homilias JOÃO PAULO II 1148

1148 Agora Ele está presente na sinagoga de Nazaré. Nazaré é a Sua cidade: aqui Ele viveu e trabalhou durante anos no humilde banco do carpinteiro. Hoje, porém, Ele está presente na sinagoga numa veste nova: à margem do Jordão, depois do baptismo de João, recebeu a missão messiânica em cumprimento da vontade do Pai. E agora Ele apresenta-Se aos seus concidadãos com as palavras de Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; Enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a mandar em liberdade os oprimidos; a proclamar um ano de graça do Senhor» (Lc 4,18-19). Conclui aqui a leitura e, depois de uma pausa, pronuncia algumas palavras que surpreendem os ouvintes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir» (ibid., v. 21). A declaração não dá lugar a dúvidas: Ele é o «Ungido», Ele é o «Consagrado», a Ele alude o profeta Isaías. N'Ele se cumpre a promessa do Pai.

2. Hoje, Quinta-Feira Santa, estamos reunidos na Basílica de São Pedro para meditar sobre aquele evento: assim como os consagrados da Antiga Aliança, também nós dirigimos o olhar para Aquele ao qual o Livro do Apocalipse chama «a testemunha fiel, o primogénito dos mortos e o Príncipe dos reis da terra» (1, 5). Olhamos para Aquele a quem trespassaram (cf. Jo Jn 19,37). Dando a vida para nos libertar do pecado (cf. Jo Jn 15,13), Ele revelou-nos o Seu «grande amor»; manifestou-Se como o verdadeiro e definitivo Consagrado com a unção que, no poder do Espírito Santo, nos redime por meio da Cruz. É no Calvário que se actuam em plenitude as palavras: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu» (Lc 4,18).

Esta consagração e o sacrifício da Cruz constituem respectivamente a inauguração e o cumprimento da missão do Verbo encarnado. Do supremo acto de amor consumado no Gólgota, a Quinta-Feira Santa comemora a manifestação sacramental instituída por Jesus no Cenáculo, enquanto a Sexta-Feira Santa evidencia o aspecto histórico, dramático e cruento. Na sua dúplice dimensão, este sacrifício assinala o início da «nova» unção no Espírito Santo e representa o penhor da descida do Paráclito sobre os Apóstolos e sobre a Igreja que, por isso, num certo sentido, celebra hoje o seu nascimento.

3. Caros irmãos sacerdotes, estamos reunidos esta manhã à volta da mesa eucarística no dia santo, no qual fazemos memória do nascimento do nosso sacerdócio! Hoje celebramos a particular «unção» que em Cristo se tornou também nossa. Quando, no decurso do rito da nossa Ordenação, pelo Bispo foram ungidas as nossas mãos com o sagrado crisma, tornámo-nos partícipes da unção sacerdotal de Cristo. A partir daquele momento, o poder do Espírito Santo, que foi derramado sobre nós, transformou para sempre a nossa existência. Este poder divino perdura em nós e acompanhar-nos-á até ao fim.

Enquanto nos preparamos para entrar nos dias santíssimos em que comemoramos a morte e ressurreição do Senhor, queremos renovar a nossa gratidão ao Espírito Santo pelo inestimável dom que nos foi feito com o sacerdócio. Como não nos sentirmos devedores para com Aquele que quis associar-nos a essa admirável dignidade? Este sentimento nos leve a dar graças ao Senhor pelas maravilhas que realizou na nossa existência; nos ajude a olhar com firme esperança para o nosso ministério, pedindo humildemente perdão das nossas eventuais infidelidades.

Sustente-nos Maria para que, como Ela, nos deixemos conduzir pelo Espírito para seguirmos Jesus até ao termo da nossa missão terrena.

Escrevi na Carta deste ano aos Sacerdotes: «Acompanhado por Maria o sacerdote saberá renovar todos os dias a sua consagração até quando, sob a guia do mesmo Espírito invocado com confiança no itinerário humano e sacerdotal, entrar no oceano de luz da Trindade» (n. 7).

Com esta perspectiva e com esta esperança prossigamos com confiança no caminho que o Senhor abre diante de nós dia após dia. O seu divino Espírito sustenta-nos e guia-nos.





NA MISSA "IN COENA DOMINI


E CERIMÓNIA DO LAVA-PÉS


Quinta-feira Santa, 9 de Abril de 1998



1. "Verbum caro, panem verum / Verbo carnem efficit...".

"A palavra do Senhor / pão e vinho transformou: / pão em carne, vinho em sangue, / em memória consagrou. / Não os sentidos, mas a fé prova esta verdade".

1149 Estas expressões poéticas de S. Tomás de Aquino sintetizam bem a hodierna Liturgia vespertina "in Cena Domini", e ajudam-nos a entrar no âmago do mistério que celebramos. Lemos no Evangelho: "Sabendo Jesus que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por eles" (Jn 13,1). Hoje é o dia em que recordamos a instituição da Eucaristia, dom do amor e fonte inexaurível de amor. Nela está escrito e radicado o novo mandamento: "Mandatum novum do vobis...": "Um mandamento novo vos dou: Que vos ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros" (Jn 13,34).

2. O amor atinge o seu ápice no dom que a pessoa faz de si mesma, sem reservas, a Deus e aos irmãos. Ao lavar os pés aos Apóstolos, o Mestre propõe-lhes uma atitude de serviço: "Vós chamais-Me Mestre e Senhor, e dizeis bem, visto que o sou. Ora, se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros" (Jn 13,13-14). Com este gesto, Jesus revela um traço característico da Sua missão: "Eu estou no meio de vós como aquele que serve" (Lc 22,27). Verdadeiro discípulo de Cristo é, portanto, somente aquele que "toma parte" na Sua vicissitude, tornando-se como Ele solícito no serviço aos outros também com sacrifício pessoal. O serviço, com efeito, isto é, o cuidado das necessidades do próximo, constitui a essência de todo o poder bem ordenado: reinar significa servir. O ministério sacerdotal cuja instituição hoje celebramos e veneramos, pressupõe uma atitude de humilde disponibilidade, sobretudo para com os mais necessitados. Só nesta luz podemos captar plenamente o evento da última Ceia, que estamos a comemorar.

3. A Quinta-Feira Santa é qualificada pela Liturgia como "o hoje eucarístico", dia em que "Jesus Cristo nosso Senhor confiou aos Seus discípulos o mistério do seu Corpo e do seu Sangue, para que o celebremos em Sua memória" (Cânon romano para a Quinta-Feira Santa). Antes de ser imolado na Cruz na Sexta-Feira Santa, Ele instituiu o Sacramento que perpetua esta Sua oferta em todos os tempos. Em cada Santa Missa, a Igreja faz memória daquele evento histórico decisivo. Com viva trepidação o sacerdote se inclina sobre os dons eucarísticos, para pronunciar as mesmas palavras ditas por Cristo "na noite em que foi traído". Ele repete sobre o pão: "Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós" (1Co 11,24), e depois sobre o cálice do vinho: "Este cálice é a Nova Aliança no Meu sangue" (ibid., v. 25). A partir daquela Quinta-Feira Santa de há quase dois mil anos até esta tarde, Quinta-Feira Santa de 1998, a Igreja vive mediante a Eucaristia, deixa-se plasmar pela Eucaristia, e continua a celebrá-la à espera do retorno do seu Senhor.

Façamos nosso, nesta tarde, o convite de Santo Agostinho: Igreja amadíssima, "manduca vitam, bibe vitam; habebis vitam, et integra est vita!": "come a vida, bebe a vida: terás a vida e ela permanecerá intacta!" (Sermo CXXXI, I, 1).

4. "Pange lingua, gloriosi / Corporis mysterium / Sanguinisque pretiosi...". Adoremos este "mysterium fidei", do qual se nutre a Igreja incessantemente. Reaviva-se nos nossos corações o sentido vivo e trépido do supremo dom que é para nós a Eucaristia.

E desperte-se a gratidão, ligada ao reconhecimento do facto que não há nada em nós que não tenha sido dado pelo Pai de todas as misericórdias (cf. 2Co 1,3). A Eucaristia, o grande "mistério da fé", permanece antes de mais e sobretudo um dom, algo que "recebemos". Afirma-o São Paulo, introduzindo a narração da última Ceia com estas palavras: "Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti" (1Co 11,23). A Igreja recebeu-o de Cristo e ao celebrar este sacramento dá graças ao Pai celeste por tudo o que Ele em Jesus, seu Filho, fez por nós.

Acolhamos em cada celebração eucarística este dom sempre novo; deixemos que o seu poder divino penetre os nossos corações e os torne capazes de anunciar a morte do Senhor à espera da Sua vinda. "Mysterium fidei" canta o sacerdote após a consagração; e os fiéis respondem: "Mortem tuam annuntiamus, Domine...": "Proclamamos a vossa morte, Senhor Jesus, e celebramos a vossa ressurreição, enquanto esperamos a vossa vinda gloriosa". O resumo da fé pascal da Igreja está contido na Eucaristia.

Também nesta tarde damos graças ao Senhor que instituiu este grande Sacramento. Nós celebramo-lo e recebemo-lo para encontrar nele a força de progredir no caminho da existência, esperando o dia do Senhor. Então seremos introduzidos também nós na habitação onde Cristo, Sumo Sacerdote, entrou mediante o sacrifício do seu Corpo e do seu Sangue.

5. "Ave, verum corpus, natum de Maria Virgine": "Salve, verdadeiro corpo, nascido de Maria Virgem", assim ora neste dia a Igreja. Nesta "espera da Sua vinda", nos acompanhe Maria, da qual Jesus recebeu o corpo, o mesmo corpo que nesta tarde partilhamos fraternalmente no banquete eucarístico.

"Esto nobis praegustatum mortis in examine": "Seja-nos dado saborear-te no momento decisivo da morte". Sim, tomai-nos pela mão, ó Jesus eucarístico, naquela hora suprema que nos introduzirá na luz da vossa eternidade: "O Iesu dulcis! O Iesu pie! O Iesu, fili Mariae!".





NA VIGÍLIA PASCAL


Sábado Santo, 11 de Abril de 1998




1150 1. «Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança» (Gn 1,26). «Deus criou o homem à sua imagem; foi à imagem de Deus que Ele o criou; criou-os homem e mulher» (Gn 1,27).

Nesta Vigília Pascal, a Liturgia proclama o primeiro capítulo do livro do Génesis, que evoca o mistério da criação e, de modo particular, da criação do homem. Uma vez mais, a nossa atenção concentra-se sobre o mistério do homem, que se manifesta plenamente em Cristo e por meio de Cristo.

«Fiat lux», «faciamus hominem»: estas palavras do Génesis manifestam toda a sua verdade, quando são passadas pelo cadinho da Páscoa do Verbo (cf. Sal 12[11],7). Durante o recolhimento de Sábado Santo, através do silêncio da Palavra, aquelas palavras chegam à plenitude do seu significado: aquela «luz» é luz nova, que não tem ocaso; aquele «homem» é «o homem novo, criado em conformidade com Deus na justiça e na santidade verdadeiras» (Ep 4,24).

A nova criação realiza-se na Páscoa. No mistério da morte e ressurreição de Cristo, tudo fica redimido, e tudo se torna de novo completamente bom, segundo o desígnio originário de Deus.

Sobretudo o homem, filho pródigo que dissipou no pecado o bem precioso da liberdade, readquire a sua dignidade perdida. «Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram». Como ressoam verdadeiras e profundas estas palavras, na noite de Páscoa! E que inefável actualidade têm elas para o homem do nosso tempo, tão ciente das suas possibilidades de domínio sobre o universo, mas tantas vezes confuso acerca do sentido autêntico da sua existência, na qual já não sabe reconhecer os vestígios do Criador!

2. A este propósito, acorrem-me ao pensamento alguns passos da Constituição Gaudium et spes do Concílio Vaticano II, que se harmonizam bem com a admirável sinfonia das Leituras da Vigília Pascal. Com efeito, este documento conciliar, se considerado profundamente, revela intimamente um carácter pascal, tanto no conteúdo como na sua inspiração originária. Assim, diz ele: «Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro (cf. Rom Rm 5,14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, (...) "imagem de Deus invisível" (Col 1,15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. (...) Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem. (...) Sofrendo por nós, não só nos deu o exemplo, para que sigamos os seus passos, mas também abriu um novo caminho, em que a vida e a morte são santificadas e recebem um novo sentido. O cristão, tornado conforme à imagem do Filho que é o primogénito entre a multidão dos irmãos, recebe "as primícias do Espírito" (Rm 8,23) (...). Por meio deste Espírito, "penhor da herança" (Ep 1,14), o homem todo é renovado interiormente, até à "redenção do corpo" (Rm 8,23): "Se o Espírito d'Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos dará também a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita" (Rm 8,11). O cristão (...), associado ao mistério pascal e configurado à morte de Cristo, vai ao encontro da ressurreição, fortalecido pela esperança» (nº 22).

3. Estas palavras do último Concílio apresentam-nos o mistério da vocação de cada baptizado. Apresentam-no de modo particular a vós, queridos Catecúmenos, que, segundo antiquíssima tradição da Igreja, ides receber o sacramento do Baptismo durante esta Vigília santa. Nós vos saudamos cordialmente e agradecemos o vosso testemunho.

Vindes de diversas Nações da terra: Canadá, China, Colômbia, Índia, Itália, Polónia, África do Sul.

Caríssimos, o Baptismo constitui, num sentido absolutamente especial, a vossa Páscoa, o sacramento da vossa redenção, do vosso novo nascimento em Cristo, pela fé e por obra do Espírito Santo, em virtude do qual podereis chamar Deus com o nome de «Pai», e sereis filhos no Filho.

Fazemos votos de que a vida nova, cujo dom ides receber nesta santíssima noite, se desenvolva até à sua plenitude, produzindo abundantes frutos de amor, alegria e paz, frutos de vida eterna.

4. «O vere beate nox!», canta a Igreja no Precónio Pascal, recordando as maravilhas realizadas por Deus na Antiga Aliança, durante o êxodo dos israelitas do Egipto. É o anúncio profético do êxodo do género humano da escravidão da morte para a vida nova, por meio da Páscoa de Cristo.

1151 O vere beate nox! Apraz-nos repetir com o hino pascal, ao contemplar o mistério universal do homem à luz da ressurreição de Cristo. No princípio, Deus criou-o à sua imagem e semelhança. Por obra de Cristo crucificado e ressuscitado, esta semelhança com Deus, ofuscada pelo pecado, foi restaurada e levada ao seu apogeu. E podemos repetir com um antigo autor: Homem, contempla-te a ti mesmo! Reconhece a tua dignidade e a tua vocação! Cristo, ao derrotar nesta santa noite a morte, abre à tua frente as portas da vida e da imortalidade.

Fazendo-me eco do canto do diácono, que proclamou o anúncio pascal, repito com alegria: Annuntio vobis gaudium magnum: surrexit Dominus vere! Surrexit hodie!

Amen.





NA MISSA DE SUFRÁGIO


PELA ALMA DO CARDEAL ALBERTO BOVONE


20 de Abril de 1998




1. «Pater, in manus tuas commendo spiritum meum» (Lc 23,46).

As palavras de Jesus, a Sua extrema invocação ao Pai na cruz, guiam-nos na meditação e na oração, enquanto estamos recolhidos aqui, na Basílica Vaticana, para celebrar o sagrado rito de sufrágio pelo venerado Irmão Cardeal Alberto Bovone, falecido na sexta-feira passada. Criado Cardeal na vigília do Tempo quaresmal, ele partiu para a Jerusalém do céu, após uma dolorosa enfermidade, no final da oitava da Páscoa, antecipação no tempo do dia sem ocaso da eternidade.

Ele viveu a sua última Páscoa como Cardeal, e a Providência pediu-lhe imediatamente o testemunho definitivo, para que o valor da sua fé – segundo as palavras do apóstolo Pedro – lhe valesse como louvor, glória e honra na manifestação de Jesus Cristo (cfr. 1P 1,7).

O mistério da Páscoa configurou-o plenamente ao seu Senhor, pelo Qual ele despendeu a sua vida, amando até ao fim a Igreja e quantos, nela, estavam confiados aos seus cuidados de Pastor solícito e bom.

2. O expirar de Jesus na cruz abre de par em par para cada homem que vem a este mundo, e que dele parte, um oceano de esperança. «Expirou», anota o Evangelista (Lc 23,46 cf. Jo Jn 19,30). Este último respiro de Cristo é o centro da história, que precisamente em virtude dele é história de salvação.

Com o expirar de Jesus na cruz, Deus doou-Se inteiramente à humanidade, Pai, Filho e Espírito Santo, vencendo o pecado e a morte. Aquele respiro humano que se exauria era sacramento do inexaurível Espírito de vida, que ao terceiro dia ressuscitou o Filho do Homem, «a testemunha fiel», fazendo-O «o primogénito dos mortos» (Ap 1,5).

Quem morre no Senhor é «feliz desde agora» (cf. Ap Ap 14,13), porque une o seu expirar ao de Cristo, na esperança segura de que «Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, também com Ele nos há-de ressuscitar e nos fará aparecer diante d'Ele» (2Co 4,14).

1152 3. «Beati mortui qui in Domino moriuntur» (Ap 14,13). A Sagrada Escritura recorda-nos que para morrer no Senhor é preciso viver no Senhor, confiando-se à Sua graça quotidianamente, momento após momento, e esforçando-se por lhe corresponder com todas as forças.

Viver no Senhor! Como não dar graças a Deus neste momento, enquanto o coração sofre pela separação deste nosso venerado Irmão, pelo testemunho de fidelidade que ele nos deixa? Durante a sua existência ofereceu-nos um luminoso exemplo de dócil seguimento de Cristo. Sim, esta Eucaristia que juntos celebramos é, antes de tudo, acção de graças pelo dom de um cristão e de um Pastor que, com grande discrição, edificou a Igreja, nos diversos encargos que lhe foram confiados, sobretudo na Cúria Romana.

4. Com efeito, foi precisamente no âmbito da Cúria que ele começou o seu serviço em 1951, prosseguindo-o sem cessar até à morte. A sua profunda e equilibrada formação espiritual, apostólica e doutrinal, e mais ainda as suas virtudes de laboriosidade fiel e de abertura cordial, assim como a sua sabedoria, permitiram-lhe prestar durante longos anos uma preciosa colaboração em primeiro lugar na Congregação do Concílio, que depois se tornou para o Clero, e sucessivamente na Congregação para a Doutrina da Fé, da qual eu mesmo o nomeei Secretário em 1984, elevando-o à dignidade Arquiepiscopal. Durante onze anos foi validíssimo colaborador do Cardeal Ratzinger, que o consagrou Bispo e o teve sempre fraternalmente querido.

Concluiu o seu serviço à Sé Apostólica como Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, Dicastério importante para a vida da Igreja, cuja finalidade essencial é viver e testemunhar em cada momento a santidade de Deus. Estou certo de que a dedicação ao Evangelho e o ardente desejo da santidade, que o seu peculiar ministério deste último período lhe deu ocasião de intensificar examinando a vida de tantos Servos de Deus e Beatos, hoje encontram junto do Pai aquela plena realização a que cada baptizado constantemente aspira. Possam agora no céu vir-lhe ao encontro os Beatos e os Santos, que aqui sobre a terra ele contribuiu para fazer conhecidos, e o introduzam na alegria do Paraíso.

5. Para isto, queremos unir a nossa oração, reconhecendo que, apesar das imperfeições humanas sempre presentes na existência de quem é peregrino sobre a terra, o nosso venerado Irmão Cardeal Bovone foi um sacerdote de fé cristalina, alimentada por oração constante. Uma espiritualidade robusta, arraigada na educação familiar, paroquial e seminarística, sustentou-o no fiel exercício do ministério sacerdotal, consentindo- lhe realizar um admirável equilíbrio entre o trabalho na Cúria e a actividade pastoral.

Esta riqueza de dons do Senhor, que ele tão bem soube fazer frutificar durante a peregrinação terrena, faz pensar nos aromas que as mulheres, discípulas de Jesus, levavam consigo, segundo as palavras do Evangelista, ao irem ao sepulcro ao romper da aurora (cf. Lc Lc 21,1).

6. Ele mesmo, porém, o querido Cardeal Bovone, com a característica modéstia impregnada de uma veia de saboroso humorismo, convida-nos a não nos determos sobre a sua pessoa, mas sim a dirigirmos o olhar para o mistério: «Por que buscais entre os mortos Aquele que vive? Não está aqui; ressuscitou!» (Lc 24,5-6). Convida-nos – como baptizado, como Pastor, como Cardeal – no dia seguinte ao da Oitava da Páscoa, ao «dia que o Senhor fez», a tornar nossas as palavras do apóstolo Pedro: «Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que na Sua grande misericórdia nos regenerou pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que não pode contaminar-se, e imarcescível» (1P 1,3-4).

A nossa vida está nas mãos do Senhor, sempre, em cada instante. Sobretudo no momento da morte. «Pai, nas Vossas mãos entrego o Meu espírito». Por isto o nosso saudoso Irmão pede-nos que o acompanhemos com a oração, enquanto realiza a sua passagem deste mundo para o Pai.

Sustentado pela materna intercessão de Maria Santíssima, possa ele «alcançar a meta da sua fé, isto é, a salvação da alma» (cf. 1P 1,9). Possa «exultar de alegria inefável e gloriosa» (cf. ibid., v. 8), contemplando finalmente, e para sempre, Aquele a quem amou na terra sem O ver: Jesus Cristo, nosso Senhor, ao Qual sejam dados glória e louvor nos séculos eternos.

Amém.





HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE A MISSA NA PARÓQUIA ROMANA


DE SANTO ESTÊVÃO PROTOMÁRTIR


26 de Abril de 1998


1153 1. «É o Senhor!» (Jn 21,7). Esta exclamação do apóstolo João põe em relevo a intensa emoção provada pelos discípulos ao reconhecerem Jesus ressuscitado, que lhes apareceu pela terceira vez na margem do mar de Tiberíades.

João faz-se como que porta-voz dos sentimentos de Pedro e dos outros Apóstolos diante da presença do Senhor ressuscitado. Depois de uma longa noite de solidão e de canseira, chega o alvorecer e a Sua aparição muda radicalmente todas as coisas: as trevas são vencidas pela luz, o trabalho infrutuoso torna-se pesca fácil e abundante, o sentido de canseira e de solidão transforma-se em alegria e paz.

A partir de então, estes mesmos sentimentos animam a Igreja. Se, por vezes, à primeira vista pode parecer que as trevas do mal e a fadiga do viver quotidiano têm a supremacia, a Igreja sabe com certeza que, sobre quantos seguem Cristo, já resplandece a sempre nova luz da Páscoa. O grande anúncio da Ressurreição infunde nos corações dos crentes uma íntima alegria e uma renovada esperança.

2. O Livro dos Actos dos Apóstolos, que a Liturgia nos faz reler durante este tempo pascal, descreve a vitalidade missionária, rica de alegria, da qual era animada a Comunidade cristã das origens, embora entre dificuldades e obstáculos de todo o tipo. Esta mesma vitalidade prolongou-se nos séculos, graças à obra do Espírito Santo e à cooperação dócil e generosa dos crentes.

Lemos hoje na primeira Leitura: «E nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo» (Ac 5,32). O Espírito Santo vivifica o empenho apostólico dos discípulos de Cristo, sustentando-os nas provas, iluminando-os nas opções, assegurando eficácia ao seu anúncio do mistério pascal.

3. Cristo realmente ressuscitou! Aleluia! Também hoje a Igreja continua a propor o mesmo anúncio festivo. «Cristo realmente ressuscitou!», estas palavras são como um brado de alegria e um convite à esperança. Se Cristo ressuscitou, observa São Paulo, a nossa fé não é vã. Se com Cristo morremos, com Ele ressuscitamos: portanto, agora devemos viver como ressuscitados.

Caríssimos Irmãos e Irmãs da Paróquia de Santo Estêvão Protomártir! Saúdo todos vós com afecto. A minha presença no meio de vós liga-se idealmente à visita que o meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, fez a esta vossa Comunidade, por ocasião da Páscoa de 1966, há trinta e dois anos.

Saúdo cordialmente o Cardeal Vigário, o Arcebispo Vice-Gerente, o vosso zeloso Pároco, Mons. Vincenzo Vigorito, e todos aqueles que colaboram com ele na guia da Comunidade paroquial. Dirijo um particular pensamento a quantos, sobretudo neste último período, estão empenhados na Missão da Cidade. Quereria encorajá-los a prosseguir neste esforço missionário, anunciando e testemunhando, com todos os meios e em qualquer ambiente, o Evangelho que renova a existência do homem.

Todos têm necessidade desta Palavra que salva; é o Senhor ressuscitado que a traz pessoalmente a todos. Comunicai, caríssimos paroquianos esta mensagem de esperança a quantos encontrais nas casas, nas escolas, nos escritórios, nos postos de trabalho. Aproximai sobretudo quem está sozinho, quem se encontra em momentos de sofrimento e em condições precárias, os doentes e os marginalizados. A todos e a cada um proclamai: Cristo realmente ressuscitou!

4. Deste modo, a vossa Comunidade que, como muitas outras paróquias romanas, teve origens recentes e já possui uma história densa de problemáticas sociais e humanas, tornar-se-á cada vez mais lugar de solidariedade e de encontro, de alegria e de revigoramento espiritual. A vossa Paróquia quis ser assim desde que nasceu em 1953, por obra dos Padres Passionistas. Nos dois decénios sucessivos a Comunidade cresceu de maneira notável, graças ao afluxo de muitos imigrados provenientes sobretudo das zonas do centro e sul da Itália.

Inúmeras pessoas naqueles anos transferiram-se para Roma em busca de melhor sorte, separando-se forçadamente das tradições e dos valores das suas cidades. No meio de vós há quem se recorda das dificuldades das origens, com as conexas problemáticas humanas e sociais, quando os arcos do aqueduto se tinham tornado lugar de abrigo para tantos núcleos familiares de imigrados. A essas difíceis situações, a Paróquia procurou dar respostas concretas, segundo as próprias possibilidades, sempre mostrando grande coragem e generosidade pastoral.

1154 O próprio Papa Paulo VI, que ficou impressionado pela situação de pobreza aqui encontrada, sustentou pessoalmente várias iniciativas, entre as quais a criação de um centro social de saúde. Providencialmente em auxílio dos habitantes de Tor Fiscale vieram em seguida as Irmãs Filhas de Cristo Rei, que fundaram uma escola e um jardim-de-infância.

Não posso, depois, deixar de recordar a caríssima Madre Teresa de Calcutá, que aqui abriu a sua primeira casa na Europa, agora tornada comunidade de formação dos Missionários da Caridade.

5. Graças a Deus, nos últimos anos a situação melhorou de maneira notável depois da construção de novos agrupamentos em Tor Bella Monaca e em Nuova Ostia. Contudo, permanecem alguns bolsões de pobreza e de solidão; preocupantes são a carência de habitações, o desemprego, especialmente juvenil, a evasão escolar, as pragas da droga, da microcriminalidade e da prostituição.

Diante de tudo isto, vós não ficastes indiferentes. Sei bem que vos empenhais, de modo generoso com gestos de solidariedade corajosa, em levar o anúncio de Cristo. O Papa, hoje no meio de vós, quer com a sua presença sustentar-vos nesta não fácil, mas exaltante missão apostólica e missionária. Olhai para Cristo: Ele é a vida que não morre. Ele dá esta vida a todo aquele que a Ele se dirige com fé sincera. Sede testemunhas e promotores desta vida, pondo os valores do Evangelho como fundamento de uma sociedade mais justa e solidária.

Estou aqui hoje também para vos louvar e vos encorajar. Para encorajar os Sacerdotes e as Religiosas que aqui prodigalizam as suas energias, os leigos empenhados que aqui, como em tantas outras periferias romanas, com muita frequência abandonadas a si mesmas, deram e continuam a oferecer um precioso testemunho de amor e de cuidado pela vida humana em todas as suas fases. Quero encorajar sobretudo quantos se dedicam com perseverança a transmitir os valores da fé aos irmãos, em particular aos últimos e aos marginalizados.

6. «Digno é o Cordeiro, que foi imolado, de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor» (
Ap 5,12).

Neste terceiro Domingo de Páscoa, façamos nossas as palavras da liturgia celeste referidas pelo Apocalipse. Enquanto contemplamos a glória do Ressuscitado, peçamos ao Senhor que à vossa Comunidade seja concedido contar com um futuro mais sereno e rico de esperança.

O Senhor torne cada um sempre mais consciente da sua missão ao serviço do Evangelho.

Caríssimos Irmãos e Irmãs, Cristo ressuscitado vos dê a coragem do amor; vos torne Suas testemunhas! Cumule-vos com o seu Espírito a fim de que, com a Igreja inteira, sustentados pela intercessão de Maria, possais proclamar o cântico de glória dos remidos: «Ao que está sentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas acções de graças, honra, glória e poder» (Ap 5,13).

Amém!







NO DOMINGO DO BOM PASTOR E DA ORDENAÇÃO


DE 30 NOVOS SACERDOTES PARA A DIOCESE DE ROMA


3 de Maio de 1998




1155 1. O Bom Pastor! Esta figura bíblica tem origem na observação e na experiência. Durante longo tempo, Israel foi um povo de pastores e a tradição da época dos patriarcas e das gerações sucessivas encontra correspondência nos textos do Antigo Testamento. O pastor, aquele que vigilante guarda o rebanho e o conduz às pastagens férteis, tornou-se a imagem do homem que guia e está à frente de uma nação, sempre solícito por aquilo que lhe diz respeito. Assim no Antigo Testamento é representado o pastor de Israel.

Na Sua pregação, Jesus liga-se a esta imagem, mas introduz um elemento inteiramente novo: pastor é aquele que dá a vida pelas suas ovelhas (cf. Jo
Jn 10,11-18). Ele atribui esta característica ao bom pastor, distinguindo-o de quem, ao contrário, é mercenário e portanto não cuida do próprio rebanho. Antes, apresenta-Se a Si mesmo como o protótipo do bom pastor, capaz de dar a vida pelo seu rebanho. O Pai enviou-O ao mundo para que fosse o pastor não só de Israel, mas da humanidade inteira.

É de modo especial na Eucaristia que se torna sacramentalmente presente a obra do Bom Pastor, o qual, depois de ter anunciado a «boa nova» do Reino, ofereceu em sacrifício a própria vida pelas ovelhas. A Eucaristia é, de facto, o sacramento da morte e ressurreição do Senhor, do Seu supremo acto redentor. É o sacramento em que o Bom Pastor torna constantemente presente o Seu amor oblativo por todos os homens.

2. Caríssimos Diáconos da Diocese de Roma! Neste quarto domingo de Páscoa, comummente chamado domingo «do Bom Pastor», no qual se celebra o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, vós estais para receber o sacramento do Presbiterado, que vos tornará conformes a Cristo Bom Pastor. Tornar-vos-eis ministros «d'Aquele que na Liturgia exerce perenemente o Seu ofício sacerdotal a nosso favor, por meio do seu Espírito» (Presbyterorum ordinis PO 5).

Com o sacramento do Baptismo, introduzireis os homens no povo de Deus; com o da Penitência, reconciliareis os pecadores com Deus e com a Igreja; mediante a Unção dos enfermos, aliviareis os sofrimentos dos doentes. Sereis, sobretudo, ministros da Eucaristia: recebereis como herança inestimável este sacramento, no qual se renova cada dia o mistério do sacrifício de Cristo e perdura nos séculos o evento decisivo da Sua morte e ressurreição para a salvação do mundo. Celebrareis o sacrifício do Corpo e do Sangue de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, como Ele mesmo o ofereceu pela primeira vez no Cenáculo, na vigília da sua Paixão. Sereis, assim, associados pessoalmente de modo sacramental ao mistério do Bom Pastor, que oferece a vida pelas Suas ovelhas.

Sede conscientes da sublime missão que neste dia vos é confiada! Ela consiste em compartilhar a mesma missão de Cristo. Sereis Seus sacerdotes para sempre: «Tu es sacerdos in aeternum».

E cada dia, ao aproximardes-vos do altar com devoção, renovai, caríssimos, o vosso «eis-me» generoso ao Senhor, para que a vossa vida, à imagem daquela do Bom Pastor, seja dedicada inteiramente ao bem das almas.

3. Caríssimos Diáconos, a Igreja que está em Roma exulta pela vossa Ordenação. Sou eu o primeiro a alegrar-me porque, como vosso Bispo, posso imporvos as mãos, invocando sobre vós o poder do Espírito Santo.

Comigo alegram-se o Cardeal Vigário, os Bispos Auxiliares e os presbíteros da Diocese, em cujo presbitério estais para entrar como irmãos mais jovens e promitentes. Sentem-se felizes por isto os vossos pais, os vossos familiares e quantos vos seguiram na vossa formação e hoje compartilham a vossa alegria. A inteira Comunidade diocesana, espiritualmente aqui reunida, dá graças ao Espírito Santo pelo dom desta fecundidade espiritual.

Com imensa gratidão, ela canta o hino Veni Creator, implorando para vós a abundância dos sete dons:

«Accende lumen sensibus,
1156 infunde amorem cordibus
Infirma nostri corporis,
virtute firmans perpeti».

Ao recordar-se do exemplo do Bom Pastor que, com o sacrifício da própria vida, protegeu do inimigo o rebanho, também a Igreja de Roma ora:

«Hostem repellas longius,
pacemque dones protinus
Ductore sic te praevio vitemus omne noxium».

Ela invoca o Espírito da verdade, para que vos conduza ao pleno conhecimento de Deus Pai, Filho e Espírito Santo:

«Per te sciamus da Patrem,
noscamus atque Filium,
Te utriusque Spiritum
1157 credamus omni tempore».

E com a alma repleta de gratidão pelo inefável mistério que hoje se realiza em vós, todos juntos proclamamos a glória de Deus uno e trino:

«Deo Patri sit gloria,
et Filio qui a mortuis surrexit,
ac Paraclito,
in saeculorum saecula».

Amém!







Homilias JOÃO PAULO II 1148