Homilias JOÃO PAULO II 968


1994


CELEBRAÇÃO DA EUCARISTIA POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO


DO RESTAURO DOS AFRESCOS DE MIGUEL ÂNGELO NA CAPELA SISTINA




8 de abril de 1994



1. « Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis ».

Entramos hoje na Capela Sistina para admirar os seus afrescos maravilhosamente restaurados. São obras dos maiores mestres do Renascimento: de Miguel Ângelo sobretudo, mas depois também do Perugino, de Botticelli, de Ghirlandaio, de Pinturicchio e de outros. Na conclusão destas delicadas intervenções de restauração, desejo agradecer a todos Vós aqui presentes, e de modo particular àqueles que, de vários modos, deram o seu contributo para este nobre empreendimento. Trata-se de um bem cultural de valor inestimável, de um bem que tem carácter universal. Disto dão testemunho os inúmeros peregrinos que, provindos de todas as nações do mundo, visitam este lugar para admirar a obra de sumos mestres e reconhecer nesta Capela uma espécie de admirável síntese da arte pictórica.

Apaixonados cultores do belo deram, depois, prova da sua sensibilidade, com o concreto e considerável contributo posto à disposição, para restituir à Capela o seu original vigor de cores. Pôde-se, além dis so, contar com a obra de especialistas particularmente versados na arte da restauração, que efectuaram as suas intervenções valendo-se das tecnologias mais avançadas e seguras. A Santa Sé exprime a todos o seu cordial agradecimento pelo esplêndido resultado obtido.

2. Os afrescos que aqui contemplamos, introduzem-nos no mundo dos conteúdos da Revelação. As verdades da nossa fé falam-nos aqui de todas as partes. Dela o génio humano tirou a sua inspiração, empenhando-se em revesti-La de formas de inigualável beleza. Eis porque sobretudo o Juízo Universal suscita em nós o vivo desejo de professar a nossa fé em Deus, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E, ao mesmo tempo, estimula-nos a reafirmara nossa adesão a Cristo ressuscitado, que virá no último dia como supremo juiz dos vivos e dos mortos. Diante desta obra prima nós confessamos Cristo, Rei dos séculos, cujo Reino não terá fim.

Precisamente este Filho eterno, a quem o Pai confiou a causa da redenção humana, fala-nos na dramática cena do Juízo Universal. Estamos diante de um Cristo extraordinário. Ele possui em Si uma beleza antiga, que num certo sentido se distancia das representações pictóricas tradicionais. Do grande afresco Ele nos revela, antes de tudo, o mistério da sua glória lígado à ressurreição. Estarmos reunidos aqui, durante a Oitava da Páscoa, deve ser considerado circunstância mais do que nunca propícia. Antes tudo, estamos diante da glória da humanidade de Cristo. Ele, de facto, há-de vir na sua humanidade para julgar os vivos e os mortos, penetrando as profundezas das consciências humanas e revelando o poder da sua redenção. Por esta razão, ao lado d'Ele encontramos a Mãe, a « Alma socia Redemptoris ». Cristo na história da humanidade é a verdadeira pedra angular, da qual o Salmista diz « A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se pedra angular» (SL 117/198, 22). Esta pedra, então, não pode ser rejeitada. Único Mediador entre Deus e os homens, Cristo, da Capela Sistina, exprime em Si mesmo o inteiro mistério da visibilidade do Invisível.

3. Estamos assim no centro da questão teológica. O Antigo Testamento excluía qualquer imagem ou representação do Criador invisível. Esta, com efeito, era a ordem que Moisés tinha recebido de Deus, no monte Sinai (cf. Êx Ex 20,4), porque havia o perigo de o povo, inclinado à idolatria, se deter no seu culto a uma imagem de Deus que é inimaginável, porque acima de qualquer imaginação e entendimento do homem. O Antigo Testamento permanece fiel a esta tradição, não admitindo nenhuma representação do Deus Vivo nem nas casas de oração, nem no Templo de Jerusalém. A uma semelhante tradição aderem os membros da religião muçulmana, que crêem num Deus invisível, omnipotente e misericordioso, Criador e Juiz de todas as criaturas.

Mas Deus mesmo vem ao encontro das exigências do homem, o qual traz no coração o desejo ardente de O poder ver. Não acolheu porventura Abraão o mesmo Deus invisível, na admirável visita de três misteriosas Personagens? « Tres vidit et Unum adoravit » (cf. Gn Gn 18,1-14). Diante daquelas três Pessoas Abraão, o pai da nossa fé, experimentou de modo profundo a presença d'Aquele que é Só e único. Este encontro tornar-se-á o tema do incomparável ícone de Andrei Rublev, ápice da pintura russa. Rublev foi um daqueles santos artistas, cuja criatividade era fruto de contemplação profunda, de oração e jejum. Através da sua obra se exprimia a gratidão da alma ao Deus invisível, que concede ao homem representá-l'O de modo visível.

969 4. Tudo isto foi acolhido pelo Segundo Concílio de Niceia, o último da Igreja indivisa, que rejeitou de modo definitivo a posição dos iconoclastas, confirmando a legitimidade do costume de exprimir a fé mediante representações artísticas. O ícone não é então apenas obra de arte pictórica. Ele é, num certo sentido, como que um sacramento da vida cristã, porque nele se faz presente o mistério da Encarnação. Nele se reflecte, de modo sempre novo, o Mistério do Verbo feito carne, e o homem - autor e, ao mesmo tempo, partícipe - alegra-se com a visibilidade do Invisível.

Porventura não foi Cristo mesmo que pôs as bases dessa alegria espiritual? « Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta » - pediu Filipe no cenáculo, na vigília da paixão de Cristo. E Jesus: « Estou há tanto tempo convosco e não Me conheces, Filipe? Quem Me vê, vê o Pai... Não crês que Eu estou no Pai e que o Pai está em Mim? » (
Jn 14,8-10). Cristo é a visibilidade do Deus invisível. Por meio d'Ele, o Pai penetra a criação inteira e o Deus invisível torna-se presente entre nós e comunica-se connosco, tal como as três personagens, de que fala a Bíblia, se sentaram à mesa e comeram com Abraão.

5. Porventura, também Miguel Ângelo não tirou precisas conclusões das palavras de Cristo « Quem Me vê, vê o Pai »? Ele teve a coragem de admirar, com os próprios olhos, este Pai no momento em que profere o « fiat » criador e chama à existência o primeiro homem. Adão foi criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn Gn 1,26). Enquanto o Verbo eterno é o ícone invisível do Pai, o homem-Adão é o seu ícone visível. Miguel Ângelo esforça-se de todos os modos por dar de novo a esta visibilidade de Adão, à sua corporeidade, os traços da antiga beleza. Antes, com grande audácia, transfere essa beleza visível e corpórea ao próprio Criador invisível. Estamos provavelmente diante de uma invulgar ousadia da arte, porque ao Deus invisível não se pode impor a visibilidade própria do homem. Não seria uma blasfémia? É difícil, porém, deixar de reconhecer no Criador visível e humanizado o Deus revestido de majestade infinita. Antes, por tudo aquilo que a imagem com os seus limites intrínsecos consente, aqui se disse tudo o que era possível dizer. Tanto a majestade do Criador como a do juiz falam da grandeza divina: palavra comovedora e unívoca, tal como, de outro modo, comovedora e unívoca é a « Pietà » na Basílica Vaticana, e de igual modo o Moisés na Basílica de S. Pedro in Vincoli.

6. Na expressão humana dos mistérios divinos não é talvez necessária a « kenosis », como consumação daquilo que é corporal e visível? Essa consumação entrou fortemente na tradição dos ícones cristão orientais. O corpo é certamente a « kenosis » de Deus. Lemos, com efeito, em São Paulo que Cristo « se despojou a Si mesmo tomando a condição de servo » (Ph 2,7). Se é verdade que o corpo representa a « kenosis » de Deus e que, na representação artística dos mistérios divinos, se deve exprimir a grande humildade do corpo, a fim de que aquilo que é divino se possa manifestar, é também verdade que Deus é a fonte da beleza integral do corpo.

Parece que Miguel Ângelo, a seu modo, se tenha deixado guiar pelas sugestivas palavras do Livro do Génesis que, a respeito da criação do homem, varão e mulher, observa: « Estavam ambos nus, mas não sentiam vergonha » (Gn 2,25). A Capela Sistina é precisamente - se assim se pode dizer - o santuário da teologia do corpo humano. Ao dar testemunho da beleza do homem criado por Deus, como homem e mulher, ela exprime também, de certo modo, a esperança de um mundo transfigurado, o mundo inaugurado por Cristo ressuscitado, e antes ainda por Cristo do monte Tabor. Sabemos que a Transfiguração constitui uma das principais fontes da devoção oriental; ela é um livro eloquente para os místicos, tal como um livro aberto foi para São Francisco o Cristo crucificado, contempÍado no monte da Verna.

Se diante do Juízo Universal permanecemos ofuscados pelo es­plendor e pelo assombro, admirando por um lado os corpos glorificados e, por outro, os corpos submetidos à condenação eterna, compreendemos também que a inteira visão está profundamente impregnada de uma única luz e de uma única lógica artística: a luz e a lógica da fé, que a Igreja proclama confessando: « Creio em um só Deus... Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis ». Com base nessa lógica, no âmbito da luz que provém de Deus, também o corpo humano conserva o seu esplendor e a sua dignidade. Se o desprendemos dessa dimensão, ele torna-se de certo modo um objecto, que muito facilmente é aviltado, porque só diante dos olhos de Deus o corpo humano pode permanecer nu e descoberto e conservar intacto o seu esplendor e a sua beleza.

7. A Capela Sistina é o lugar que, para todos os Papas, conserva a recordação de um dia particular da sua vida. Para mim, trata-se do dia 16 de Outubro de 1978. Precisamente aqui, neste espaço sagrado, se reúnem os Cardeais, aguardando a manifestação da vontade de Cristo a respeito da pessoa do Sucessor de São Pedro. Aqui eu ouvi, dos lábios do meu Reitor de outrora, Maximilien de Furstenberg, as significativas palavras: «Magister adest et vocat te ». Neste lugar o Cardeal Primaz da Polónia, Stefan Wyszynski, disse-me: « Se te elegerem, peço-te que não recuses ». E aqui, em espírito de obediência a Cristo e entregando-me à sua Mãe, aceitei a eleição que surgiu do Conclave, declarando ao Cardeal Camerlengo, Jean Villot, a minha disponibilidade a servir a Igreja. Assim, pois, a Capela Sistina mais uma vez se tornou, diante de toda a Comunidade católica, o lugar da acção do Espírito Santo, que constitui na Igreja os Bispos, constitui de modo particular aquele que deve ser o Bispo de Roma e o Sucessor de Pedro.

Ao celebrar hoje o sacrifício da Santa Missa na mesma Capela, no décimo sexto ano do meu serviço à Sé Apostólica, peço ao Espírito do Senhor que não cesse de estar presente e operante na Igreja. Peço-Lhe que a introduza felizmente no terceiro milénio.

Invoco a Cristo, Senhor da história, para que esteja com todos nós até ao fim do mundo, como Ele mesmo prometeu: « Ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad consumationem saeculi » (Mt 28,20).



                                  1996







NA SOLENE CELEBRAÇÃO DO TE DEUM DE AÇÃO DA GRAÇAS


31 de Dezembro de 1996




970 1. «Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher... para que recebêssemos a adopção de filhos» (Ga 4,4-5).

Chegamos ao termo de um ano solar: dentro de algumas horas 1996 cederá a passagem ao novo ano, depois de ter atingido, para assim dizer, a sua plenitude cronológica e o ápice do caminho iniciado há 366 dias.

A expressão «plenitude dos tempos» tem um valor, podemos dizer, histórico, porque nos recorda que o ano já a terminar nos aproxima, a grandes passos, do início do terceiro milénio. Contudo, com essa expressão São Paulo, na Carta aos Gálatas, quer evocar uma dimensão mais profunda que faz referência a quanto se realizou na gruta de Belém: «Deus enviou» ao mundo «o Seu Filho, nascido de mulher» (Ga 4,4). Nestas palavras revive o evento misterioso da Noite Santa: o unigénito e eterno Filho de Deus, «por obra do Espírito Santo encarnou no seio da Virgem Maria e fez-Se homem» (Símbolo Niceno-Constantinopolitano). Entrou na história dos homens e como que a superou.

Com efeito, pode-se definir doutro modo o ingresso de Deus na história, senão como superação da própria história? Quando Deus Se fez Homem, o tempo no seu cadenciar de anos, de séculos e milénios foi introduzido na dimensão da eternidade divina: de facto, vindo ao mundo, mediante o Seu Filho Unigénito, Deus quis unir entre si as dimensões do tempo e da eternidade. Ao referir-se a isto, a liturgia hodierna torna- nos conscientes duma perspectiva nova: com a Encarnação do Verbo o tempo do homem é chamado a participar da eternidade de Deus.

2. Como acontece tudo isto? À pergunta dá resposta a leitura da liturgia hodierna das Vésperas: «Deus enviou» ao mundo «o Seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que se encontravam sob o jugo da Lei e para que recebêssemos a adopção de filhos» (Ga 4,4-5). Por isto o Verbo Se fez carne e habitou entre nós, para que nós, acolhendo-O, recebêssemos a adopção de filhos.

O apóstolo João, no Prólogo do seu Evangelho, proclama com admiração: «O Verbo fez-Se homem e habitou entre nós... A todos os que O receberam... deu-lhes o poder de se tornar filhos de Deus» (Jn 1,14 Jn 1,12). O Unigénito, consubstancial ao Pai, veio ao mundo a fim de, mediante a graça santificante, serem regenerados todos os homens, chamados ao alto privilégio de se tornarem, por adopção divina, «filii in Filio», filhos no Filho.

3. A Igreja professa esta verdade acerca da plenitude do tempo e quer proclamá-la hoje dum modo muito singular. Como Bispo de Roma e Sucessor do Apóstolo Pedro, cuja missão é anunciar o Evangelho Urbi et Orbi, tenho razões especiais esta tarde para louvar a Deus pela «plenitude do tempo» e pela salvação que se actua no mundo, mediante o ministério eclesial. Tenho singulares motivos de agradecimento ao Senhor por aquilo que a nossa comunidade eclesial, centro da Igreja universal, faz de modo particular ao serviço da cidade de Roma: com efeito, ela é em primeiro lugar enviada aos cidadãos romanos, como outrora lhes foram enviados os apóstolos Pedro e Paulo. Desde aquela época passaram-se cerca de dois mil anos e, no arco destes dois milénios, o mandato conferido à Igreja de Roma produziu inúmeros frutos de bem.

Esta tarde, neste magnífico templo situado no centro da Urbe, na nossa acção de graças queremos fazer menção de todo o benefício operado por Deus, através do ministério apostólico tanto na Igreja universal como na nossa Cidade. Desejo dar graças ao Senhor, de modo especial, pelos resultados alcançados no ano que está para terminar, durante o qual, ao aproximar-se a conclusão do segundo milénio, iniciámos a preparação próxima para o Grande Jubileu.

4. Tenho ainda diante dos olhos o magnífico espectáculo da última Vigília de Pentecostes. Naquela circunstância a Igreja que está em Roma, nas suas diversas componentes — Bispos, Sacerdotes, Famílias religiosas e fiéis leigos, em representação de todo o Povo de Deus — deu solenemente início à preparação imediata do Ano Santo, com o lançamento da grande Missão da Cidade.

O meu pensamento dirige-se, além disso, às paróquias e às comunidades que viveram no ano corrente a graça da Visita pastoral: Santo António de Pádua na Circunvalação Ápia; São Cleto, São Júlio, São Vicente Pallotti, Santa Maria «Causa Nostrae Laetitiae», Santa Bibiana, Beato José Maria Escrivá, Santa Madalena de Canossa, na primeira parte do ano, e, recentemente, São Jerónimo Emiliano e Nossa Senhora de Valme. O número das paróquias até agora visitadas são assim 251; faltam ainda 77.

Por todos estes eventos e pelo serviço prestado à Igreja de Roma, estou grato ao Cardeal Vigário e a vós, caros Irmãos Bispos Auxiliares, juntamente com os párocos, os vigários paroquiais e os sacerdotes que trabalham na nossa Cidade. Agradeço aos Religiosos e às Religiosas, assim como aos leigos empenhados nas várias actividades apostólicas e a todos dirijo uma cordial e fraterna saudação.

971 Desejo, além disso, exprimir a minha gratidão a todos os fiéis da Diocese de Roma. Obrigado, Irmãos e Irmãs! Obrigado, famílias romanas, «igrejas domésticas » (cf. Lumen gentium LG 11), primeiras e fundamentais células da sociedade! Obrigado, membros das muitas Comunidades, Associações e Movimentos empenhados em animar a vida cristã da nossa Cidade!

Saúdo com vivos sentimentos de gratidão o Padre Peter-Hans Kolvenbach, Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, e os Padres Jesuítas que trabalham nesta igreja. Apresento, também, uma saudação cordial às Autoridades Civis presentes e, de modo especial, ao Presidente da Câmara Municipal de Roma, agradecendo-lhe o dom do cálice que, segundo uma bonita tradição, cada ano se renova. De coração faço votos por que jamais falte o empenho de todos para dar à Cidade uma feição mais de acordo com os valores de fé, de cultura e de civilização que promanam da sua vocação e da sua história milenária, também em vista do Grande Jubileu do Ano 2000.

5. Caríssimos Irmãos e Irmãs, haurindo inspiração e encorajamento das palavras do apóstolo Paulo aos Gálatas, recordadas nesta liturgia das Vésperas, sirvamos juntos a única causa da Redenção: a partir do momento em que Deus enviou o Seu Filho unigénito, para que nós pudéssemos obter a filiação adoptiva (cf. Gál Ga 4,5), não pode existir para nós maior tarefa do que a de estarmos totalmente ao serviço do projecto divino.

«A minha alma glorifica ao Senhor!» (Lc 1,46). Este cântico, brotado do coração de Maria por ocasião da visita à Santa Isabel, possa tornar-se hoje expressão da nossa acção de graças. A Igreja repete-o cada dia, recordando-se de todos os benefícios de que se sente colmada.

«... E o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador. Porque olhou para a humilde condição da Sua Serva» (Lc 1,47). Com Maria assim canta a Igreja que está em Roma, redescobrindo quotidianamente a sua fragilidade e as maravilhas que Deus realiza n’Ela.

«Desde agora todas as gerações me hão-de chamar ditosa, porque me fez grandes coisas o Omnipotente. É Santo o Seu nome e a Sua misericórdia vai de geração em geração para aqueles que O temem» (Lc 1,48-50).

Estamos aqui para anunciar as misericórdias realizadas pelo Senhor no arco do ano que está a terminar. Estamos aqui para, com a alma repleta de gratidão, nos dispormos a cruzar, à meia-noite, o limiar do ano de 1997.

Te Deum laudamus...
A Vós, ó Deus, louvamos,
a Vós, Senhor, cantamos.
Eterno Pai,
972 adora-Vos toda a terra...
Tende piedade de nós, Senhor,
tende piedade de nós.
Vós sois a nossa esperança,
jamais seremos confundidos.

Amém!





                                                                   1997


SOLENIDADE DE MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS

DIA MUNDIAL DA PAZ


1 de Janeiro de 1997

1. «Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus» (Lc 1,31). Jesus quer dizer «Deus que salva».


Jesus, nome dado pelo próprio Deus, significa que «em nenhum outro há salvação» (Ac 4,12) senão em Jesus de Nazaré, nascido de Maria Virgem. N’Ele Deus Se fez homem, vindo assim ao encontro de cada ser humano.

«Tendo Deus falado outrora aos nossos pais, muitas vezes... pelos Profetas, agora falou-nos nestes últimos tempos pelo Filho» (He 1,1). Este Filho é o Verbo eterno, consubstancial ao Pai, que Se fez homem para nos revelar o Pai e para nos tornar possível a compreensão de toda a verdade acerca de nós. Falou-nos com palavras humanas, e também com as suas obras e com a sua própria vida: desde o nascimento até à morte na cruz e à ressurreição.

973 Tudo isto, desde o início, causa maravilha. Já os pastores, vindos a Belém, se admiraram de quanto tinham visto, e os outros ficaram atónitos escutando o que eles contavam a respeito do Recém-nascido (cf. Lc Lc 2,18). Guiados pela intuição da fé, eles reconheceram o Messias no menino que jazia na manjedoura, e o pobre nascimento em Belém do Filho de Deus impeliu-os a proclamar com alegria a glória do Altíssimo.

2. O nome Jesus pertencia desde o início Àquele que foi chamado assim no oitavo dia depois do nascimento. Num certo sentido, ao vir ao mundo Ele trouxe consigo este nome, que exprime de maneira admirável a essência e a missão do Verbo encarnado.

Ele veio ao mundo para salvar a humanidade. Quando, pois, Lhe foi imposto este nome, foi revelado ao mesmo tempo quem era e qual haveria de ser a sua missão. Muitos em Israel tinham este nome, mas Ele teve-o dum modo único, realizando em plenitude o seu significado: Jesus de Nazaré, Salvador do mundo.

3. São Paulo, como acabámos de escutar na segunda Leitura, escreve: «... ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para que recebêssemos a adopção de filhos» (Ga 4,4-5). O tempo está unido ao nome de Jesus desde o início. Este nome acompanha-O na sua vicissitude terrena imersa no tempo, mas sem que Ele esteja submetido a ela, pois n’Ele está a plenitude do tempo. Antes, ao tempo humano Deus trouxe a plenitude, entrando com ela na história do homem. Não entrou como um conceito abstracto. Entrou como Pai que dá a vida, — uma vida nova, a vida divina — aos seus filhos adoptivos. Por obra de Jesus Cristo todos nós podemos participar da vida divina: filhos no Filho, destinados à glória da eternidade. São Paulo aprofunda depois esta verdade: «E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações, o Espírito que clama: “Abbá, Pai!”» (Ga 4,6). Em nós, homens, a filiação divina provém de Cristo e actua-se por obra do Espírito Santo. O Espírito vem para nos ensinar que somos filhos e, ao mesmo tempo, para tornar efectiva em nós esta filiação divina. O Filho é Aquele que com todo o seu ser diz a Deus: «Abbá, Pai».

Estamos a tocar aqui o ápice do mistério da nossa vida cristã. O nome «cristão » indica, de facto, um novo modo de ser: existir à semelhança do Filho de Deus. Como filhos no Filho, participamos na salvação, a qual não é apenas libertação do mal, mas é, antes de tudo, plenitude do bem: do sumo bem da filiação de Deus. E é o Espírito de Deus que renova a face da terra (cf. Sl.103[104], 30). No primeiro dia do ano novo a Igreja convida-nos a tomar consciência cada vez mais profunda disto. Convida-nos a considerar nessa luz o tempo humano.

4. A liturgia hodierna celebra a solenidade da Mãe de Deus. Maria é Aquela que foi escolhida para ser Mãe do Redentor, compartilhando intimamente a Sua missão. Na luz do Natal, ilumina-se o mistério da sua maternidade divina. Maria, Mãe de Jesus que nasce na Gruta de Belém, é também Mãe de cada homem que vem ao mundo. Como não confiar a Ela o ano que inicia, para implorar que seja um tempo de serenidade e de paz para a humanidade inteira? No dia em que se abre este novo ano sob o olhar da Mãe de Deus que abençoa, invoquemos para cada um e para todos o dom da paz.

5. Com efeito, já há diversos anos, o dia primeiro de Janeiro é celebrado, por iniciativa do meu venerado predecessor, o Papa Paulo VI, como Dia Mundial da Paz. Estamos aqui, na Basílica Vaticana, também este ano, para implorar o dom da paz para as Nações do mundo inteiro.

É significativa, nessa perspectiva, a presença dos ilustres Senhores Embaixadores junto da Santa Sé, os quais saúdo com deferência. Saúdo com afecto também o Presidente do Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Cardeal Roger Etchegaray, e todos os seus Colaboradores, enquanto lhes agradeço o precioso contributo que oferecem à difusão da mensagem de paz, que a Igreja não se cansa de repetir.

O tema da Mensagem para este Dia é «Oferece o perdão, recebe a paz». Como é necessário o perdão para fazer desabrochar a paz no coração de cada crente e de cada pessoa de boa vontade! Paz e perdão constituem como que um binómio inseparável. Cada pessoa de boa vontade, desejosa de trabalhar incansavelmente para a edificação da civilização do amor, deve fazer próprio este convite: Oferece o perdão, recebe a paz.

6. A Igreja ora e trabalha pela paz em todas as dimensões: pela paz das consciências, pela paz das famílias, pela paz entre as Nações. Ela é solícita pela paz no mundo, porque é consciente de que somente na paz se pode desenvolver, de modo autêntico, a grande comunidade dos homens.

Encaminhando-nos para o termo deste século, em que o mundo e, especialmente, a Europa experimentaram não poucas guerras e sofrimentos, como desejaríamos que o limiar do ano 2000 pudesse ser cruzado por todos os homens sob o sinal da paz! Por isto, pensando na humanidade chamada a viver outro ano de graça, repitamos com Moisés as palavras da Antiga Aliança: «Que o Senhor te abençoe e te proteja. Que o Senhor faça resplandecer a Sua face sobre ti e te seja benevolente. Que o Senhor dirija o Seu olhar sobre ti e te conceda a paz!» (Nb 6,24-26). Além disso, repitamos com fé e esperança as palavras do Apóstolo: Cristo é a nossa paz! (cf. Heb He 2,14). Tenhamos confiança na ajuda do Senhor e na materna protecção de Maria, Rainha da paz. Apoiemos esta nossa esperança em Jesus, nome de salvação dado aos homens de todas as línguas e raças. Confessando o Seu nome, caminhemos confiantes rumo ao futuro. Certos de que não ficaremos desiludidos, se confiarmos no santíssimo Nome de Jesus.

974 In te Domine speravi,
non confundar in aeternum.

Amém!







NA SANTA MISSA DA EPIFANIA


E RITO DE ORDENAÇÃO EPISCOPAL


DE 12 PRESBÍTEROS


6 de Janeiro de 1997




1. «Levanta-te e resplandece, Jerusalém, chegou a tua luz; a glória do Senhor levanta-se sobre ti» (Is 60,1).

Neste dia, solenidade da Epifania, ressoam assim as palavras do Profeta. O antigo e sugestivo oráculo de Isaías prenuncia de algum modo a luz que, na noite do Natal, brilhou sobre a gruta de Belém, antecipando o cântico angélico: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do Seu agrado» (Lc 2,14). Apontando a luz, num certo sentido, o Profeta indica Cristo. Assim como aos pastores em busca do recém-nascido Messias, hoje esta luz resplandece no caminho dos Magos que vieram do Oriente, para adorar o nascido Rei dos Judeus.

Os Magos representam os povos da terra inteira que, à luz do Natal do Senhor, se encaminham pela estrada que conduz a Jesus constituindo, num certo sentido, os primeiros destinatários daquela salvação inaugurada pelo nascimento do Salvador e levada à sua plena realização no mistério pascal da sua morte e ressurreição.

Tendo chegado a Belém, os Magos adoram o Menino divino e oferecem dons simbólicos, tornando-se precursores dos povos e das nações que, ao longo do séculos, não cessam de procurar e encontrar Cristo.

2. Na segunda Leitura, tirada da Carta aos Efésios, o apóstolo Paulo comenta com intensa admiração o mistério celebrado na solenidade hodierna: «... Sem dúvida já ouvistes falar da graça que Deus me concedeu a vosso favor. Por revelação me foi dado conhecer o mistério... que nas gerações passadas não foi dado a conhecer aos filhos dos homens, como agora foi revelado, pelo Espírito, aos Seus santos Apóstolos e Profetas: os gentios são co-herdeiros, pertencem ao mesmo Corpo e comparticipam na Promessa, feita em Cristo Jesus por meio do Evangelho» (Ep 3,2-3 Ep 3,5-6). Filho da Nação eleita, convertido por Cristo, Paulo tornou-se partícipe da Revelação divina, depois dos outros Apóstolos, para a transmitir às nações do mundo inteiro. Após essa grande viragem da sua vida, ele compreende que a eleição se estende a todos os povos e que os homens são chamados à salvação, porque «partícipes da promessa por meio do Evangelho» (Ep 3,6). Com efeito, a luz de Cristo e o chamamento universal à salvação são destinados aos povos de toda a terra. «Este carácter de universalidade que distingue o Povo de Deus é dom do Senhor; por Ele a Igreja católica tende eficaz e constantemente à recapitulação total da humanidade com todos os seus bens sob a cabeça, Cristo, na unidade do Seu Espírito» (Lumen gentium LG 13).

3. Compreendemos assim o sentido pleno da Epifania, apresentado por Paulo do modo como ele mesmo o entendeu e actuou. Tarefa do Apóstolo é difundir no mundo o Evangelho, anunciar aos homens a redenção operada por Cristo, conduzir a humanidade inteira pela via da salvação, manifestada por Deus a partir da noite de Belém. A actividade missionária da Igreja, através das suas múltiplas etapas no decurso dos séculos, encontra na festa da Epifania o seu início e a sua dimensão universal.

Precisamente para ressaltar esta dimensão universal da missão da Igreja, há vários anos surgiu o costume de, na festa da Epifania, o Bispo de Roma impor as mãos e invocar o Espírito Santo, para o serviço episcopal, sobre alguns presbíteros, provenientes de diversas nações.

975 Hoje são doze os Irmãos aos quais tenho a alegria de conferir a plenitude do Sacerdócio. Durante a Consagração episcopal será posto sobre as suas cabeças o livro do Evangelho, para ressaltar que levar a Boa Nova é a sua missão fundamental, rica de alegria e, ao mesmo tempo, de trabalho para quantos se empenham em realizá-la de modo responsável e fiel. Oremos juntos a fim de que a luz, que iluminou os Magos a caminho de Belém, acompanhe também estes neo-eleitos ao Episcopado.

4. Caros Irmãos escolhidos por Deus para o ministério episcopal, desejo a cada um de vós a riqueza e a plenitude da Epifania de Cristo. Desejo-a a ti, Mons. Luigi Pezzutto, que serás o Representante Pontifício no Congo e no Gabão, no coração do Continente africano, a mim tão caro. Oro por ti, Mons. Paolo Sardi, que, nomeado Núncio Apostólico com encargos especiais, continuarás a trabalhar ainda ao meu lado na Secretaria de Estado; agradecendo-te o serviço até agora prestado, desejo que continues assim, com o mesmo zelo. Saúdo-te, Mons. Varkey Vithayathil, a quem é confiada a importantíssima tarefa de administrar o Arcebispado-Mor de Ernakulam-Angamaly dos Sírio-Malabares, no do estado indiano do Querala. Desejo que a Epifania de Cristo resplandeça em plenitude para ti, Mons. Délio Lucarelli, Pastor da Diocese de Rieti; para ti, Mons. Ignace Sambar-Talkena, Bispo de Kara (Togo), e para ti, Mons. Luciano Pacomio, Pastor da Diocese de Mondovi. A luz do Espírito Santo te guie, Mons. Ângelo Massafra, primeiro Bispo de Rrëshen e Administrador Apostólico de Lezhë (Albânia), e a ti, Mons. Florentin Crihãlmeanu, chamado a colaborar como Auxiliar do Bispo da tua diocese de Cluj-Gherla (Roménia). O Senhor te sustente, Mons. Jean Claude Périsset, no encargo de Secretário Adjunto do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, e a ti, caríssimo Mons. Piotr Libera, que, como Auxiliar, estarás ao lado do meu irmão Arcebispo de Catovice (Polónia). Acompanhe-te, Mons. Basílio do Nascimento, enviado aos fiéis da nova Diocese de Baucau (Timor Oriental), e a ti, Mons. Hil Kabashi, que a Providência envia à Albânia Meridional, te acompanhe o mesmo Espírito e a Sua graça.

5. Caros e venerados Irmãos, é-me grato, neste momento, imaginar-vos ao lado dos Magos, enquanto adorais o Rei da paz, o Salvador do mundo, e ver a mão do Menino Jesus, guiada por aquela de sua Mãe santa, no acto de abençoar cada um de vós. É o Cordeiro de Deus, o Pastor dos Pastores, que vos pede que prolongueis e difundais a Sua caridade no admirável corpo da Igreja, e em todas as partes do mundo, nestes anos de preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000. Fortificados pelo seu auxílio, ide sem hesitação; sede apóstolos fiéis e corajosos de Cristo, anunciando e testemunhando o Evangelho, luz que ilumina todos os povos. Não temais! Cristo está convosco todos os dias, até ao fim do mundo (cf. Mt
Mt 28,20). «Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje... por toda a eternidade» (Ep 13,8).

Amém!







POR OCASIÃO DA SANTA MISSA DE BAPTISMO


12 de Janeiro de 1997




1. «Ide, pois, ensinai todas as nações, baptizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28,19).

A Igreja celebra hoje a festa do Baptismo de Cristo, e também este ano tenho a alegria de administrar, nesta ocasião, o sacramento do Baptismo a alguns recém-nascidos: dez meninas e nove meninos, dos quais quatorze são italianos, dois polacos, um espanhol, um mexicano e um indiano. Sede bem-vindos, queridos pais, que aqui vos encontrais com os vossos filhos. Saúdo também os padrinhos e as madrinhas, bem como todos vós aqui presentes.

2. Caríssimos Irmãos e Irmãs, antes de administrar o Sacramento a estas criancinhas, quereria deter-me a reflectir convosco sobre as palavras de Deus que acabámos de ouvir. O Evangelho segundo Marcos, como os outros sinópticos, narra o baptismo de Jesus no rio Jordão. A Liturgia da Epifania recorda este acontecimento, apresentando-o num tríptico que engloba a adoração dos Magos do Oriente e as bodas de Caná. Cada um destes três momentos da vida de Jesus de Nazaré constitui uma particular revelação da Sua filiação divina. As Igrejas Orientais ressaltam sobretudo a circunstância hodierna, denominada, em síntese, «Jordão». Consideram-na como um momento da «manifestação » de Cristo, intimamente relacionado com o Natal. A Liturgia oriental, aliás, põe em relevo, mais que o nascimento de Jesus em Belém, a sua revelação como Filho de Deus. Revelação que se verificou com singular intensidade precisamente durante o baptismo no Jordão.

O que João Baptista conferia nas margens do Jordão era um baptismo de penitência, referente à conversão e ao perdão dos pecados. Mas ele anunciava: «Depois de mim, vai chegar outro que é mais poderoso do que eu... Eu vos baptizarei em água, mas Ele baptizar-vos-á no Espírito Santo» (Mc 1,7-8). Anunciava isto a uma multidão de penitentes, que iam ter com ele para lhe confessar os seus pecados, arrependendo-se e dispondo-se a corrigir a própria vida.

É de outra natureza o Baptismo conferido por Jesus e que a Igreja, fiel ao seu mandamento, não cessa de administrar. Este Baptismo liberta o homem do pecado original e perdoa os pecados, resgata-o da escravidão do mal e assinala o seu renascimento no Espírito Santo; comunica-lhe uma vida nova, que é participação na vida de Deus Pai, que nos foi doada pelo seu Filho Unigénito, o qual Se fez homem, morreu e ressuscitou.

3. No momento em que Jesus sai da água, o Espírito Santo desce sobre Ele em forma de pomba e, tendo-se aberto o céu, do alto ouve-se a voz do Pai: «Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti pus toda a Minha complacência » (Mc 1,11). Por conseguinte, o acontecimento do baptismo de Cristo não é apenas revelação da sua filiação divina, mas é, ao mesmo tempo, revelação de toda a Santíssima Trindade: o Pai — a voz do alto — revela em Jesus o Filho Unigénito que Lhe é consubstancial, e tudo isto se cumpre em virtude do Espírito Santo que, sob forma de pomba, desce sobre Cristo, o Consagrado do Senhor.


Homilias JOÃO PAULO II 968