Homilias JOÃO PAULO II 1036

1036 2. «Não sabeis que sois templos de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?» (1Co 3,16). Estas palavras de São Paulo eram dirigidas a uma comunidade cristã determinada — a de Corinto — mas valem para toda a comunidade que se desenvolve em qualquer cidade ou aldeia no arco dos séculos. De que viviam as comunidades dos inícios? De onde recebiam o Espírito de Deus? Os Actos dos Apóstolos testemunham que os cristãos, desde o início, eram assíduos na oração, na escuta da palavra de Deus e na fracção do pão, isto é, na liturgia eucarística (cf. Act Ac 2,42). Desse modo retornavam cada dia ao Cenáculo, até ao momento em que Cristo instituiu a Eucaristia. A partir de então, a Eucaristia tornou-se o início de uma nova construção.

A Eucaristia tornou-se fonte de um vínculo profundo entre os discípulos de Cristo: era ela que edificava a «comunhão », a comunidade do seu Corpo Místico, enraizada no amor e impregnada do amor. O sinal visível desse amor era a solicitude quotidiana por cada pessoa que se encontrasse em necessidade. A partilha do pão eucarístico constituía para os cristãos um convite e um empenho a compartilhar também o pão quotidiano, com aqueles que dele eram privados. Havia também quem — como lemos nos Actos dos Apóstolos — tendo propriedades e bens, os «vendiam e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um» (Ac 2,45). Esta actividade da primeira comunidade da Igreja em todas as dimensões da vida social, era a continuação da missão de Cristo de levar ao mundo uma nova justiça — a justiça do reino de Deus.

3. Irmãos e Irmãs! Hoje, enquanto celebramos a Eucaristia, torna-se claro, também para nós, que somos chamados a viver da mesma vida e do mesmo Espírito. É esta uma grande tarefa da nossa geração, de todos os cristãos deste tempo: levar a luz de Cristo à vida quotidiana. Levá-la aos «areópagos modernos », nos enormes sectores da civilização e cultura contemporâneas, da política e da economia. A fé não pode ser vivida só no íntimo do espírito humano. Deve encontrar a sua expressão externa na vida social. «Quem não ama a seu irmão, ao qual vê, como pode amar a Deus, que não vê? D’Ele temos este mandamento: Quem ama a Deus, ame também a seu irmão» (1Jn 4,20-21). Esta é a grande tarefa que está diante de nós, homens de fé.

Várias vezes tratei das questões sociais nos discursos, e sobretudo nas Encíclicas: Laborem exercens, Sollicitudo rei socialis, Centesimus annus. Contudo, é preciso retornar a estes temas, enquanto no mundo houver uma injustiça, mesmo que seja a mais pequena. Doutra forma, a Igreja não seria fiel à missão que lhe foi confiada por Cristo — à missão da justiça. Mudam com efeito os tempos, mudam as circunstâncias, mas sempre há no meio de nós aqueles que têm necessidade da voz da Igreja e do Papa, a fim de que sejam expressas as angústias deles, os seus sofrimentos e as suas misérias. Não podem ser desiludidos. Devem saber que a Igreja estava e está com eles, que o Papa está com eles; que ele abraça com o coração e com a oração qualquer pessoa que seja afligida pelo sofrimento. O Papa falará — e não pode deixar de falar — dos problemas sociais, porque aqui está em jogo o homem, a pessoa concreta.

Falo a respeito disto também na Polónia, porque sei que a minha Nação tem necessidade desta mensagem sobre a justiça. Hoje, com efeito, no tempo da construção de um Estado democrático, no tempo de um dinâmico desenvolvimento económico, descobrem-se com particular clareza todas as carências da vida social no nosso país. Cada dia nos damos conta de como são inúmeras as famílias provadas pela indigência, de modo especial as famílias numerosas. Quantas são as mães sozinhas, que lutam para manter os próprios filhos! Quantos são os anciãos abandonados e privados de meios para viver! Nos institutos para crianças órfãs e abandonadas não faltam aqueles que não têm o pão quotidiano e o vestuário suficientes. Como não recordar os doentes, que não podem ser circundados do devido cuidado, por causa da falta de meios? Nas ruas e praças aumentam os desabrigados. Não se pode deixar passar em silêncio a presença entre nós de todos estes irmãos, que fazem também parte da mesma Nação e do mesmo Corpo de Cristo. Ao aproximarmo-nos da mesa eucarística para nos nutrir do seu Corpo, não podemos permanecer indiferentes a respeito daqueles aos quais falta o pão quotidiano. É preciso falar deles, mas também se deve ir ao encontro das suas necessidades. É uma obrigação que grava especialmente sobre aqueles que exercem o poder: a eles, que estão ao serviço do bem comum, compete a tarefa de estabelecer leis adequadas e de dirigir a economia do País, de tal modo que estes fenómenos dolorosos da vida social encontrem a sua justa solução. Mas é também nosso dever comum, um dever de amor, levar ajuda, de acordo com as nossas possibilidades, àqueles que a esperam. «Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes», diz Cristo (Mt 25,40). «Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a Mim que o deixastes de fazer» (Mt 25,45). Há necessidade da nossa obra cristã, do nosso amor, a fim de que Cristo, presente nos irmãos, não sofra indigência.

No nosso País muito já foi feito sob este aspecto. Também a Igreja na Polónia fez e faz muito a respeito disto. Na actividade pastoral da Igreja entraram já de modo estável as iniciativas em favor dos necessitados, dos doentes, dos desabrigados não somente no País, mas também fora dos seus confins. Estão a desenvolver-se o voluntariado e as obras caritativas. Quero, pois, exprimir o meu apreço a todos aqueles que — entre o clero, os religiosos e os leigos — demonstram cada dia sensibilidade para com as necessidades dos outros, capacidade duma generosa partilha dos bens e grande empenho a favor do outro. O vosso serviço, muitas vezes escondido, com frequência ignorado pelos meios de comunicação, permanece sempre sinal da credibilidade pastoral da missão da Igreja.

Apesar destes esforços, ainda permanece um grande campo de acção. Encorajo-vos, Irmãos e Irmãs, a despertar em vós a sensibilidade para com todo o tipo de indigência, e a colaborar com generosidade ao levar a esperança a todos os que dela estão privados. Que a Eucaristia seja para vós fonte inexaurível desta sensibilidade e da força necessária para a actuar na vida de cada dia.

4. Desejaria deter-me um pouco sobre a questão do trabalho humano. No início do meu Pontificado dediquei a este problema uma Encíclica inteira, a Laborem exercens.Hoje, dezasseis anos depois da sua publicação, muitos problemas continuam a ser actuais. Muitos deles se acentuaram ainda mais no nosso País. Como não mencionar aqueles que, como consequência da reorganização das empresas e das cooperativas agrícolas, se encontraram diante do drama da perda do trabalho? Quantas pessoas e famílias inteiras caíram por isso numa pobreza extrema! Quantos jovens já não vêem uma razão para empreender os estudos e elevar a sua qualificação escolar, ante a perspectiva da falta de emprego na profissão escolhida! Escrevi na Encíclica Sollicitudo rei socialis, que o desemprego é o sinal do subdesenvolvimento social e económico dos Estados (cf. n. 18). Por isso, é preciso fazer todo o possível para prevenir este fenómeno. O trabalho, de facto, «é um bem do homem — é um bem da sua humanidade — porque, mediante o trabalho, o homem não só transforma a natureza adaptando-a às próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e, antes, num certo sentido, “se torna mais homem”» (Laborem exercens LE 9). Entretanto, é também uma obrigação que deriva da fé e do amor, para os cristãos que dispõem de meios de produção, empenhar-se em criar lugares de trabalho, contribuindo desse modo para a solução do problema do desemprego no ambiente mais próximo. Peço ardentemente a Deus que todos aqueles que desejam obter de maneira honesta o pão com o trabalho das próprias mãos, tenham as condições adequadas para o fazer.

Ao lado do problema do desemprego está, depois, a atitude de quem considera o trabalhador como um instrumento de produção, com a consequência de que o homem é ofendido na sua dignidade de pessoa. Na prática, este fenómeno assume a forma de exploração. Com frequência ele manifesta-se com modalidade de emprego, no qual não só não é garantido ao trabalhador algum direito, mas este é submetido a tal sentido de precariedade e de temor da perda do trabalho, que na prática é privado de qualquer liberdade de decisão. Muitas vezes esta exploração se manifesta, além disso, em tal horário de trabalho que priva o trabalhador do direito ao repouso e da solicitude pelo bem espiritual da família. A isto une-se muitas vezes também um pagamento injusto, juntamente com negligências no campo dos seguros e da assistência médica. Nem faltam casos em que, especialmente no que concerne às mulheres, é negado o direito ao respeito pela dignidade da pessoa.

O trabalho humano não pode ser tratado apenas como uma força necessária para a produção — a chamada «força de trabalho». O homem não pode ser visto como instrumento de produção. O homem é criador do trabalho e seu artífice. É preciso fazer todo o possível a fim de que o trabalho não perca a sua dignidade própria. A finalidade do trabalho — de todo o trabalho — é o próprio homem. Graças a esse, ele deveria poder aperfeiçoar e aprofundar a sua personalidade. Não nos é lícito esquecer — e isto quero dizê-lo com firmeza — que o trabalho é «para o homem» e não o homem «para o trabalho». Deus colocou diante de nós grandes tarefas, exigindo de nós o testemunho no campo social. Como cristãos, como pessoas que acreditam, devemos sensibilizar as nossas consciências diante de qualquer espécie de injustiça e de qualquer forma de exploração evidente ou camuflada.

Nesta altura, dirijo-me antes de tudo àqueles irmãos em Cristo que oferecem trabalho aos outros. Não vos deixeis enganar pela visão de um lucro imediato, em desvantagem dos outros. Preveni-vos de todo o sinal de exploração. Caso contrário, qualquer partilha do Pão eucarístico se tornará para vós uma censura e uma acusação. A quantos, ao contrário, empreendem um trabalho, qualquer tipo de trabalho, digo: cumpri-o de modo responsável, honesto e cuidadoso. Assumi os vossos deveres em espírito de colaboração com Deus na obra da criação do mundo. «Dominai a terra» (cf. Gn 1,28). Assumi o trabalho com sentido de responsabilidade pela promoção do bem comum, que deve servir não só a esta geração, mas a todos aqueles que no futuro habitarem esta terra — a nossa terra pátria — a Polónia.

1037 5. «Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos Seus caminhos, que guardes os Seus preceitos, Suas leis e Seus decretos. Se assim fizeres viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo Senhor, teu Deus» (Dt 30,15-16) — estas palavras do testamento de Moisés ressoam hoje com grande força na nossa Pátria. «Escolhe [portanto] a vida!» (ibid., 30, 19), exorta Moisés.

Sobre que caminho andaremos nós no terceiro milénio? «Ofereço-te hoje a vida e o bem, a morte e o mal», diz o Profeta. Irmãos e Irmãs, peço-vos: «escolhei, então, a vida»! Esta escolha realiza- se no coração, na consciência de cada homem, mas não fica sem uma influência também sobre a vida de uma sociedade — de uma nação. Portanto, cada crente é de algum modo responsável pela forma da vida social. O cristão que vive da fé, que vive da Eucaristia, é chamado a construir o futuro próprio e o da sua Nação — um futuro baseado sobre os sólidos fundamentos do Evangelho. Não tenhais, pois, medo de assumir a responsabilidade da vida social na nossa Pátria. Esta é a grande tarefa que está diante do homem: caminhar com coragem no mundo; lançar as bases do futuro: a fim de que ele seja o tempo do respeito pelo homem; um tempo aberto à Boa Nova! Fazei-o com a unanimidade que nasce do amor pelo homem e pelo amor da Pátria.

No fim deste século, é preciso «um grande acto e uma grande obra», — assim escrevia, certa vez, Stanislaw Wyspia nski (Przy wielkim czynie i przy wielkim dziele) — para impregnar a civilização em que vivemos com o espírito de justiça e de amor. Há necessidade de «um grande acto e de uma grande obra», a fim de que a cultura contemporânea se abra amplamente à santidade, a fim de cultivar a dignidade humana, ensinar o contacto com a beleza. Construamos sobre o Evangelho, para podermos, juntamente com as sucessivas gerações de Polacos que vivem numa Pátria livre e próspera, dar graças a Deus com o Salmista:

«Cada dia, [Senhor], Vos bendirei. Invocarei o Vosso nome pelos séculos sem fim. Mui grande é o Senhor, e digno de louvor, a sua grandeza é insondável. Uma geração transmitirá à outra o louvor das Vossas obras, anunciando as Vossas proezas» (Sl 144[145], 2-4).

6. «A minha alma glorifica ao Senhor »! Durante o Congresso Eucarístico Internacional na Baixa Silésia, juntamente com Maria demos graças pela Eucaristia — fonte do amor social. A expressão dessa unidade seja a coroação da imagem milagrosa de Nossa Senhora das Graças, de Krzeszów.

O Santuário de Krzeszów foi fundado por Ana, viúva de Henrique, o Piedoso, um ano depois da batalha de Legnica. Já no século XIII, diante da imagem da Mãe Santíssima, se reuniam multidões de peregrinos. E já naquela época o santuário era chamado Domus Gratiae Mariae. Verdadeiramente era a Casa da Graça, distribuída com generosidade pela Mãe de Deus, aonde chegavam em grande número os peregrinos de vários países, especialmente os Boémios, os Alemães, os Sérvios da Lusácia e os Polacos. Muito nos alegra também hoje o facto de a Mãe de Deus ter reunido numerosos peregrinos destas nações confinantes entre si.

Que este sinal da imposição das coroas sobre a cabeça de Maria e do Menino Jesus seja expressão da nossa gratidão pelos benefícios divinos, que tão copiosos receberam e sempre recebem os devotos de Maria, que se apressam em vir à Casa da Graça, de Krzeszów. Seja também sinal do convite, por nós dirigido a Jesus e Maria, a reinarem nos nossos corações e na vida da nossa Nação. A fim de que todos nos tornemos templo de Deus e corajosas testemunhas do Seu amor pelos homens.



Na conclusão desta Santa Missa em Legnica, João Paulo II improvisou um breve discurso de saudação, assim se expressando:

Agradeço à Divina Providência este esplêndido encontro eucarístico, iluminado pelo sol. Desejo saudar todos os habitantes da terra de Legnica. A maior parte de vós chegou aqui depois da guerra. Apesar das muitas dificuldades cultivastes a vida religiosa e a cultura polaca. Hoje, exprimo a todos vós a gratidão por esta atitude caracterizada por fé profunda e sincero amor para com a Pátria.

Saúdo os ex-deportados para a Sibéria e as suas famílias que estão aqui presentes. No território da diocese de Legnica vivem muitas pessoas que, haurindo força da fé, viveram a experiência da Sibéria e as pesadas provas dos anos da guerra, do período depois da guerra e dos terríveis campos de concentração. Só graças à fé sobrevivestes às terríveis condições da «terra desumana», sobre a qual vos coube viver, às vezes também durante longos anos. O Bom Deus vos recompense pelos vossos sofrimentos e dê aos mortos o repouso eterno.

Saúdo os ex-prisioneiros do campo de concentração de Gross-Rosen (Rogoznica). Este campo encontra-se no território da hodierna diocese de Legnica. Em condições difíceis, especialmente nas minas, de onde era extraído o granito, trabalharam naquele campo homens de várias nacionalidades, e entre eles também polacos: sacerdotes e leigos. Muitos morreram. É bom que vos recordeis daquele lugar em que o homem foi profundamente degradado, mas no qual também se manifestou a grandeza do espírito humano.

1038 Estão aqui ainda os trabalhadores das minas e os operários das usinas de aço, de Wa³brzych e arredores, e da região das minas de cobre. Saúdo-vos a todos, irmãos e irmãs, assim como todo o mundo do trabalho da terra de Legnica. Deus esteja convosco! Desejo saudar de modo particular os nossos hóspedes. Entre eles estão o Secretário de Estado, o Cardeal Primaz, o Arcebispo de Wroclaw, o Card. Maida, de Detroit nos Estados Unidos, o Card. Vlk, de Praga, o Card. Meisner, de Colónia, o Card. Macharski, de Cracóvia, e muitos outros Bispos da Polónia e do mundo.

A todos agradeço a solidariedade demonstrada para com a Igreja de Legnica. Particulares felicitações a D. Adam Kozlowiecki, da Zâmbia, por ocasião do 60° aniversário de sacerdócio. Estão aqui muitos outros grupos organizados da inteira diocese de Legnica. A todos envio uma palavra de saudação.

Agradeço às Autoridades do Voívodato e da cidade e todos os que prepararam a celebração deste dia. Que Nossa Senhora das Graças, cuja imagem hoje coroámos, vele sobre a vossa fé e sustenha cada um de vós e toda a jovem diocese de Legnica, no cumprimento das tarefas que a Divina Providência vos confia no nosso tempo.

Deus vos recompense pela profunda experiência eucarística de hoje.

Deus abençoe todos vós!





VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA



NA ESPLANADA DA IGREJA


DOS PRIMEIROS MÁRTIRES


Gorzów, 2 de Junho de 1997




1. «Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?» (Rm 8,35). É a pergunta feita por São Paulo na Carta aos Romanos. Hoje, repetimo-la na liturgia, por ocasião da visita à Igreja de Gorzów Wielkopolski. No espírito deste amor, saúdo cordialmente todo o Povo de Deus da diocese. Saúdo o Bispo Adam, Pastor desta Igreja, e os seus Bispos Auxiliares, o clero, e também os peregrinos provenientes das dioceses vizinhas e do estrangeiro. É-me grato poder orar hoje juntamente convosco, celebrando esta Liturgia da Palavra. Dou graças à Divina Providência por este encontro. Agradeço aos Cardeais, Arcebispos e Bispos que participam no nosso encontro.

A vossa comunidade tem como padroeiros alguns mártires que — ao lado de Santo Adalberto — são as mais antigas testemunhas de Cristo na terra polaca. A tradição da Igreja conservou a recordação destes eremitas, cujos nomes são: Bento, João, Mateus, Isaac e Cristino. Eles viveram aqui, nas vossas terras, nos tempos de Boleslau, o Valoroso. Assim como a morte por martírio de Santo Adalberto, assim também o martírio deles foi descrito na crónica de São Bruno de Querfurt, apóstolo e bispo missionário que, nos tempos de Boleslau, o Valoroso, realizou uma obra de evangelização nos territórios da Polónia ocidental e ao norte. São chamados Irmãos polacos, embora entre eles existissem estrangeiros. Dois deles vieram à Polónia da Itália, para implantar aqui a vida monástica segundo a regra de São Bento. A morte deles por martírio, ao lado daquela de Santo Adalberto, põe-se num certo sentido no limiar do milénio do cristianismo nas nossas terras.

2. Os mártires são excepcionais testemunhas do Deus Altíssimo, Pai e Filho e Espírito Santo. O texto da Carta aos Romanos, há pouco lida, recorda-nos o mistério trinitário do qual tem início a redenção do mundo. Deus, escreve o Apóstolo, «não poupou o próprio Filho, mas O entregou por todos nós»; com base nesta constatação, Paulo depois pergunta: «Como não havia de nos dar também, com Ele, todas as coisas» (8, 32). Na verdade, Jesus Cristo, que por nós morreu e no terceiro dia ressuscitou, está à direita de Deus e intercede por nós. Precisamente deste amor de Cristo nada nos poderá separar (cf. Rm Rm 8,34-35). Estamos a Ele unidos mediante a fé. E esta fé no poder redentor da morte e da ressurreição de Cristo é a fonte da vitória: «Em todas as coisas nós obtemos a plena vitória, graças Àquele que nos amou» (cf. Rm Rm 8,37). O Seu amor redentor une-nos a Deus. Ele é a fonte da nossa justificação. Dele haurimos a certeza da vitória anunciada pelo Apóstolo.

Esta certeza da vitória tiveram-na os primeiros mártires na terra polaca. Tiveram- na os mártires da Igreja de todos os tempos. Contudo, enquanto admiramos o testemunho deles, pelo qual se de demonstra que «o amor é mais forte que a morte» (cf. Cânt Ct 8,6), no coração de cada um de nós nasce espontânea a pergunta: bastar-me-iam a fé, a esperança e a caridade que possuo, para dar um testemunho tão heróico? Parece que a resposta vem da oração litúrgica que há pouco recitei: «Ó Deus, Vós santificastes o alvorecer da fé na nação polaca, com o sangue dos santos mártires Bento, João, Mateus, Isaac e Cristino; sustentai com a Vossa graça a nossa debilidade, a fim de que, imitando os mártires que por Vós não hesitaram morrer, Vos professamos corajosamente com a nossa vida ». É Deus Aquele que, com a Sua graça, sustenta a nossa debilidade. Ele, com o poder do Seu espírito, fortalece-nos, a fim de sermos capazes de, com coragem, dar um testemunho de fé.

3. «Em todas as coisas obtemos a plena vitória, graças Àquele que nos amou» (cf. Rm Rm 8,37). Irmãos e Irmãs, lá onde não é requerido o testemunho do sangue, ainda mais legível deverá ser o testemunho da vida quotidiana. Devemos testemunhar Deus com as palavras e com as obras em toda a parte, em cada ambiente: na família, nos lugares de trabalho, nos escritórios e nas escolas. Nos lugares onde o homem fadiga e onde repousa. É preciso confessar a Deus mediante a fervorosa participação na vida da Igreja; através da solicitude por quem é débil e por quem sofre, e também assumindo a responsabilidade pelas questões públicas, em espírito de solicitude pelo futuro da nação, edificado sobre a verdade do Evangelho. Uma atitude deste género exige uma fé amadurecida, um empenho pessoal. Exige que se realize com factos concretos. Às vezes, uma atitude assim deve ser paga com o heroísmo de uma abnegação total. Também nos nossos tempos e na nossa vida não temos, porventura, experimentado várias formas de humilhações, para mantermos a fidelidade a Cristo e, desse modo, conservarmos a dignidade cristã? Todo o cristão é chamado, sempre e onde quer que a Providência o coloque, a reconhecer Cristo diante dos homens (cf. Mt Mt 10,32).

1039 Como não recordar aqui o testemunho de fidelidade à tradição e à Igreja, que dáveis em tempos para vós muito difíceis? Muitos de vós trazem no coração as dolorosas experiências da segunda guerra mundial. Depois da guerra, nestes territórios recomeçáveis, num certo sentido, uma nova vida, vindos de várias partes da Polónia, e até de fora dos seus confins. Desarraigados dos vossos territórios de origem, conservastes entretanto as raízes da fé. No difícil período das transformações estivestes próximos da Igreja, que procurava vir ao encontro das vossas necessidades espirituais e materiais, como uma boa mãe solícita pelos próprios filhos. Exprimo a minha gratidão ao clero e às religiosas, que não hesitaram deixar as dioceses de origem, para empreenderem aqui um serviço generoso. Juntos ajudáveis a construir a casa comum, não somente a material, mas antes de tudo aquela espiritual, nos corações dos homens. Nos momentos difíceis éreis o sustento deste povo, trazendo-lhe a luz da fé e indicando Cristo como única fonte de esperança. Não posso aqui citar todos os nomes, mas quero pelo menos recordar com gratidão o saudoso D. Wilhelm Pluta, grande Pastor desta diocese. Num certo sentido, foi ele que pôs os fundamentos desta diocese, em tempos muito difíceis para o nosso país. Durante longos anos governou a Igreja de Gorzów, antes como Administrador, e depois como seu primeiro Bispo. Hoje, certamente ele está aqui connosco. Agradeço-te, Bispo Wilhelm, tudo o que fizeste pela Igreja nestas terras. Agradeço-te a tua fadiga, a tua coragem, a tua sabedoria e a tua grande religiosidade. Agradeço-te também tudo o que fizeste pela Igreja na Polónia.

Uma grande contribuição para o desenvolvimento da vida religiosa nestes territórios foi dada pelo vosso Seminário Maior, de onde saíram plêiades de sacerdotes tão esperados e tão necessários aqui. Hoje, tudo isto produz uma messe abundante. Damos graças à Divina Providência porque hoje a Igreja na vossa diocese se desenvolve tão vigorosa. Esta terra, no seu alvorecer, foi banhada pelo sangue dos santos mártires Irmãos polacos, os quais, como chamas ardentes, guiam hoje a vossa Igreja rumo aos tempos novos. Os tempos novos, o terceiro Milénio que se está a aproximar, continuarão a requerer o vosso testemunho. Diante de vós novas tarefas apresentar-se-ão. Não tenhais medo de as assumir.

As tarefas que Deus põe diante de nós estão à medida de cada um de nós. Não superam as nossas possibilidades. Deus vem em nossa ajuda nos momentos da nossa debilidade. Só Ele a conhece verdadeiramente. Conhece-a melhor que nós próprios, e entretanto não nos repudia. Ao contrário, no Seu amor misericordioso, inclina-Se sobre o homem, a fim de o confortar. Este conforto o homem recebe-o através do contacto vivo com Deus. Quereria chamar a vossa particular atenção para este aspecto. No meio das habituais ocupações humanas, não podemos perder o contacto com Cristo. Temos necessidade de momentos especiais, destinados exclusivamente à oração. A oração é indispensável, tanto na vida pessoal como no apostolado. Não pode haver testemunho cristão autêntico, sem antes termos sido corroborados pela oração. Ela é fonte de inspiração, de energia, de coragem diante das dificuldades e dos obstáculos; é fonte da perseverança e da capacidade de tomar iniciativas com forças renovadas.

A vida de oração nutre-se, antes de tudo, da participação na liturgia da Igreja. Para que se possa desenvolver, a vida interior requer a participação na Santa Missa e a frequência do Sacramento da Reconciliação. Deste modo toda a existência é permeada por Cristo: por Ele mesmo, pela Sua graça. Com efeito, foi Ele que disse: «Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue fica em Mim e Eu nele» (
Jn 6,56). A Eucaristia é o alimento espiritual no qual, de modo particular, haurimos a força espiritual no caminho do testemunho e podemos produzir fruto abundante. Por isso é tão importante a participação na Santa Missa dominical. Nem as preocupações familiares, nem outras questões deveriam permanecer fora do âmbito da vida espiritual. Todas as actividades humanas adquirem em Cristo um significado mais profundo, tornando-se testemunho autêntico. Enraizada no espírito de oração, a alma abre-se, por consequência, ao Deus infinito e eterno. Quer servir este Deus e d’Ele receber a força e a luz para que o seu agir seja cristão. Graças à fé, reconhecemos na nossa vida a actuação do plano divino do amor, descobrimos a solicitude constante do Pai, que está nos céus.

Caros Irmãos e Irmãs, os Irmãos polacos mártires dão-nos o exemplo dessa vida. Foram precisamente eles, Bento, João, Mateus, Isaac e Cristino, no silêncio do seus eremitérios, que dedicaram muito tempo à oração e, deste modo, se prepararam para a grande missão que Deus, nos seus desígnios inescrutáveis, lhes tinha preparado: para darem o supremo testemunho d'Ele, para oferecerem a vida pelo Evangelho. Os Irmãos polacos — como os chamamos — mediante o seu tributo de sangue, oferecido a Deus no início da nossa nação e da Igreja nesta nação, queriam dizer, a todos aqueles que viriam depois, que para dar testemunho a Cristo é preciso preparar-se. O testemunho, com efeito, nasce, amadurece e enobrece-se na atmosfera de oração, daquele profundo e misterioso colóquio com Deus. De joelhos! Não se pode mostrar Cristo aos outros, se antes não se O encontrou na própria vida. Somente então o testemunho terá verdadeiro valor. Tornar-se-á rebento para a humanidade, sal da terra e luz que dispersa as trevas aos nossos irmãos em caminho pelas vias deste mundo.

«Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?». Assim exclama hoje para nós São Paulo. Que este brado penetre até ao fundo nos corações e nas mentes! Sede vigilantes, a fim de que nada vos separe deste amor: nenhum falso slogan, nenhuma ideologia errada, nenhuma condescendência com a tentação de ceder a compromisso com aquilo que não vem de Deus, ou com a busca do próprio proveito. Rejeitai tudo o que destrói e enfraquece a comunhão com Cristo. Sede fiéis aos mandamentos de Deus e aos compromissos do Baptismo.

4. «Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma» (Mt 10,28). São palavras de Cristo, tiradas do Evangelho de Mateus. A Igreja refere-as aos mártires, e no nosso contexto a Santo Adalberto e aos santos Irmãos polacos. O martírio é a mais alta expressão da fortaleza de um homem que, colaborando com a graça, se torna capaz de um testemunho heróico. No martírio a Igreja vê «um sinal preclaro» da sua santidade. Um sinal precioso para a Igreja e para o mundo, «porque ajuda a evitar o mais grave perigo que aflige o homem: o perigo da confusão do bem e do mal, que torna impossível construir e conservar a ordem moral dos indivíduos e das comunidades. São precisamente os mártires, e juntamente com eles todos os Santos da Igreja, graças ao exemplo eloquente e fascinante da sua vida, que constroem o sentido moral. Mediante o seu testemunho do bem, tornam-se censura para todos os que transgridem a lei» (cf. Veritatis splendor VS 93). Olhando para o exemplo dos mártires, não tenhais medo de dar testemunho. Não temais a santidade. Tende a coragem de aspirar à plena medida da humanidade. Exigi-o de vós mesmos, ainda que outros não o exigissem de vós!

O homem tem um natural temor não só do sofrimento e da morte, mas também das opiniões diferentes das suas, especialmente se são difundidas com meios de comunicação tão poderosos, que se tornam meios de pressão. Por isso, com frequência, ele prefere adaptar-se ao ambiente, à moda vigente, em vez de correr o risco de testemunhar a fidelidade ao Evangelho de Cristo. Os mártires recordam que a dignidade da pessoa humana não tem preço: trata-se de uma dignidade que «nunca é permitido aviltar ou contrariar, nem mesmo com boas intenções, sejam quais forem as dificuldades » ( Veritatis splendor VS 92). «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?» (Mc 8,36). Por isso repito com Cristo, mais uma vez: «Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma » (Mt 10,28). Não é a dignidade da consciência mais importante que qualquer proveito exterior? Os Irmãos polacos mártires, que recordamos hoje na liturgia, Santo Adalberto, Santo Estanislau, Santo André Bobola, São Maximiliano Maria Kolbe e os mártires de todos os tempos, todos testemunham a primazia da consciência e a sua indestrutível dignidade, a primazia do espírito sobre o corpo, a primazia da eternidade sobre a temporalidade. O que aconteceu aqui no início deste milénio do cristianismo, nos tempos de Boleslau, o Valoroso, encontrou muitas vezes um eco na história e, por último, também na história do nosso século. Quantos foram neste século aqueles, homens e mulheres, que de modo heróico deram testemunho de Cristo diante dos outros? Cremos que a morte que sofreram por serem fiéis à própria consciência, por serem fiéis a Cristo, encontrará uma resposta nos corações dos crentes: o testemunho deles fortalecerá os débeis e os pusilânimes, será a semente duma nova vitalidade da Igreja nesta terra dos Piast. Cristo assegura-nos que reconhecerá, diante do Pai celeste, todos aqueles que não hesitarem reconhecê- l’O diante dos homens (cf. Mt Mt 10,32-33), mesmo à custa de máximos sacrifícios. Cristo adverte-nos também contra a negação da fé e contra a renúncia a testemunhá-l’O diante dos outros.

E a Igreja inteira haure hoje as graças, em virtude da mediação dos mártires. A Igreja inteira alegra-se pela sua corajosa profissão de fé, na qual encontra conforto a nossa debilidade. É para nós o sinal da esperança! «Quem poderá separar-nos do amor de Cristo... Porque estou certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, Nosso Senhor» (Rm 8,35 Rm 8,38-39).

Meus queridos, quando vejo esta grande assembleia do Povo de Deus da diocese de Gorzów, retornam-me à mente os tempos passados, mas não ainda muito distantes. Volta-me à mente o Milénio do Baptismo, que juntos celebrámos aqui, em 1966. E precisamente então todos nós, Bispos polacos, aprendemos a conhecer a nossa Pátria. Aprendemos a conhecer, uma após outra, todas as dioceses polacas. Cantámos em toda a parte o «Te Deum Laudamus».

Hoje desejo agradecer aqui esse particular dom que significou para mim o Milénio polaco.

1040 No dia 16 de Outubro de 1978, memória litúrgica de Santa Edviges da Silésia, durante o conclave, depois da minha eleição, o Primaz do Milénio disse-me: «Agora deves introduzir a Igreja no Terceiro Milénio». E por este motivo, meus queridos, vim à Polónia. Vim ao Congresso Eucarístico de Wroclaw. Vim para ir a Gniezno, às celebrações do Milénio de Santo Adalberto. Vim para pedir, nestes itinerários milenários, a graça de poder realizar essa missão que talvez a Divina Providência me confiou nas palavras do grande Primaz do Milénio. Meus queridos, os anos passam e deveis suplicar a Deus, de joelhos, a fim de que eu consiga realizá-la.

Saudação aos peregrinos no final da Santa Missa

Para concluir desejo exprimir a minha alegria por ter podido orar juntamente convosco. Agradeço à Divina Providência este encontro em Gorzów. Muitas recordações me ligam à vossa Diocese. Ela está imersa na belíssima natureza, que pude admirar durante os meus passeios a pé e, sobretudo, durante aqueles com o caiaque. Estas recordações permanecem para sempre no meu coração e na minha oração. A terra de Gorzów é muito bonita. Estou grato a esta terra porque foi sempre hospitaleira e cordial comigo.

Estes vínculos que me uniam então à vossa Diocese, renovam-se hoje enquanto olho para vós aqui reunidos em tão grande número, nesta grandiosa praça diante da igreja dos Irmãos polacos mártires.

Estas recordações renovam-se enquanto vejo entre os Bispos D. Jerzy Stroba, D. Ignacy Je¿ e D. Józef Michalik. Saúdo muitos sacerdotes que conheço, mas que me seria difícil citar por nome.

Saúdo todos aqueles que estão aqui presentes. Entre vós encontram-se também os ex-combatentes e os representantes das organizações dos ex-combatentes que vieram da Polónia e do estrangeiro. Agradecemos hoje a estes filhos da nossa Nação todos os sacrifícios oferecidos com magnanimidade, na defesa dos valores mais altos: da liberdade e da dignidade do homem.

Com particular afecto pensamos nos ex-deportados para a Sibéria, nas suas famílias, nos muitos deles que estão aqui presentes e naqueles que se encontram noutras partes da Polónia ou no estrangeiro.

Poder-se-iam recordar muitas outras coisas, mas é preciso terminar.

Deus abençoe toda a vossa terra à qual devo tanto.

Louvado seja Jesus Cristo!





Homilias JOÃO PAULO II 1036