Homilias JOÃO PAULO II 1417


NA CELEBRAÇÃO DO DOMINGO DE RAMOS


E DA PAIXÃO DO SENHOR


Domingo, 16 de Abril de 2000










1. "Benedictus, qui venit in nomine Domini... Bendito Aquele que vem em nome do Senhor!" (Mt 21,9 cf. Sl Ps 118 [117], Ps 26).

Na onda destas palavras chega-nos o eco do entusiasmo com que os habitantes de Jerusalém receberam Jesus para a festa da Páscoa. Escutamo-las de novo cada vez que, durante a Missa, entoamos o "Sanctus". Depois de dizer: "Pleni sunt coeli et terra gloria tua", acrescentamos: "Benedictus, qui venit in nomine Domini. Hosanna in excelsis".

Neste hino, cuja primeira parte foi tirada do profeta Isaías (cf. 6, 3), exalta-se a Deus, "três vezes Santo". Depois, continua-se na segunda parte, exprimindo a alegria reconhecida da assembleia diante da realização das promessas messiânicas: "Bendito Aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto do céu!".

O pensamento dirige-se naturalmente para o povo da Aliança que, durante séculos e gerações, viveu na expectativa do Messias. Alguns queriam ver em João Baptista Aquele em quem se haveriam de cumprir as promessas. Porém, como sabemos, à pergunta explícita acerca da sua eventual identidade messiância, o Precursor respondeu com uma clara negação, remetendo a Jesus quantos o interrogavam.

Crescia no povo a persuasão de que os tempos já tivessem chegado, primeiro pelo testemunho de João Baptista e depois graças às palavras e aos sinais realizados por Jesus e, de maneira especial, em virtude da ressurreição de Lázaro, ocorrida alguns dias antes do ingresso em Jerusalém, do qual fala o Evangelho hodierno. Eis por que a multidão, quando Jesus chega à cidade cavalgando um jumento, O recebe com uma explosão de júbilo: "Bendito Aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto do céu!" (Mt 21,9).

1418 2. Os ritos do Domingo de Ramos reflectem a exultação do povo à espera do Messias mas, ao mesmo tempo, caracterizam-se em pleno sentido como Liturgia "da paixão". Com efeito, eles abrem-nos a perspectiva do drama já iminente, que acabamos de reviver na narração do evangelista Marcos. Também as outras leituras nos introduzem no mistério da paixão e morte do Senhor. As palavras do profeta Isaías, que alguns gostam de considerar como um profeta da Antiga Aliança, apresentam-nos a imagem de um condenado flagelado e esbofeteado (cf. 50, 6). O estribilho do salmo responsorial, "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?", faz-nos contemplar a agonia de Jesus na cruz (cf. Mc Mc 15,34).

Mas é o Apóstolo Paulo que, na segunda leitura, nos introduz na análise mais profunda do mistério pascal: Jesus "tinha a condição divina, mas não se apegou à sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a Si mesmo, assumindo a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a Si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz!" (Ph 2,6-8). Na austera Liturgia da Sexta-Feira Santa ouviremos novamente estas palavras, que assim prosseguem: "Por isso, Deus exaltou-O grandemente e deu-lhe o Nome que está acima de qualquer outro nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho no céu, na terra e sob a terra; e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai" (Ibid., vv. 9-11).

A humilhação e a exaltação: eis a chave para compreender o mistério pascal; eis a chave para penetrar na admirável economia de Deus, que se realiza nos eventos da Páscoa.

3. Por que nesta solene Liturgia estão presentes, como em todos os anos, muitos jovens? Com efeito, desde há diversos anos o Domingo de Ramos é a festa anual da juventude. Aqui em 1984, ano da Juventude, e num certo sentido ano jubilar dos jovens, teve início a peregrinação das Jornadas Mundiais da Juventude que, passando por Buenos Aires, Santiago de Compostela, Czestochowa, Denver, Manila e Paris, voltará a Roma no próximo mes de Agosto, para o Dia Mundial da Juventude do Ano Santo 2000.

Portanto, por que tantos jovens se encontram no Domingo de Ramos, aqui em Roma e em cada diocese? Sem dúvida, são muitos os motivos e as circunstâncias que podem explicar este facto.

Porém, parece que a motivação mais profunda, subjacente a todas as outras, pode ser identificada naquilo que a hodierna Liturgia nos revela: o misterioso desígnio de salvação do Pai celeste, que se realiza na humilhação e exaltaçao do seu Filho unigénito, Jesus Cristo. Aqui está a resposta aos interrogativos e às inquietudes fundamentais de cada homem e mulher e, de modo especial, dos jovens.

"Por nós Cristo tornou-se obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso, Deus exaltou-O". Como estas palavras estao próximas da nossa existencia! Prezados jovens, é da dramaticidade da vida que começais a viver a experiência. E interrogais-vos acerca do sentido da existência, da vossa relação convosco mesmos, com os outros e com Deus. Ao vosso coração sequioso de verdade e de paz, aos vossos inúmeros interrogativos e problemas, às vezes até mesmo repletos de angústia, Cristo Servo sofredor e humilhado, submisso até à morte de cruz e exaltado na glória à direita do Pai, oferece-se a Si mesmo como única resposta válida. De facto, não há outra resposta tão simples, completa e convincente.

4. Caríssimos jovens, obrigado pela vossa participação nesta solene Liturgia. Com o seu ingresso em Jerusalém, Cristo dá início ao caminho de amor e de sofrimento da Cruz. Olhai para Ele com renovado impulso de fé. Segui-O! Ele não promete felicidades ilusórias; pelo contrário, a fim de poderdes alcançar a autêntica maturidade humana e espiritual, convida-vos a seguir o seu exemplo exigente, fazendo vossas as suas opções comprometedoras.

Maria, a fiel discípula do Senhor, vos acompanhe neste itinerário de conversão e de progressiva intimidade com o seu Filho divino que, como recorda o tema da Jornada Mundial da Juventude, "A Palavra fez-se Homem e habitou entre nós" (Jn 1,14). Jesus fez-se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza, assumiu as nossas culpas para que fussemos redimidos pelo seu sangue derramado na cruz. Sim, por nós Cristo tornou-se obediente até à morte, e morte de cruz.

"Glória e louvor a Vós, ó Cristo!".



SANTA MISSA CRISMAL E BÊNÇÃO DOS ÓLEOS NA


BASÍLICA DE SÃO PEDRO




Quinta-feira Santa, 20 de abril de 2000




1419 1. "Àquele que... nos fez reis e sacerdotes para Deus, Seu Pai, glória e poder para todo o sempre" (Ap 1,5-6).

Escutamos estas palavras do Livro do Apocalipse na hodierna solene Missa Crismal, que precede o Sagrado Tríduo pascal. Antes de celebrar os mistérios centrais da salvação, toda a comunidade diocesana se reúne hoje de manhã em redor do próprio Pastor para a bênção dos santos Óleos, que da salvação são instrumentos nos diversos sacramentos: Baptismo, Confirmação, Ordem, Unção dos enfermos. Estes sinais da graça divina derivam a sua eficácia do mistério pascal, da morte e ressurreição de Cristo. Eis por que a Igreja coloca este rito no limiar do Tríduo Sagrado, no dia em que, com supremo acto sacerdotal, o Filho de Deus feito homem Se ofereceu ao Pai, em resgate pela humanidade inteira.

2. "Fez-nos reis e sacerdotes". Entendemos esta expressão a dois níveis. O primeiro, como recorda também o Concílio Vaticano II, em referência a todos os baptizados, que "são consagrados para serem casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais" (Lumen gentium LG 10). Todo o cristão é sacerdote. Trata-se aqui do sacerdócio chamado "comum", que empenha os baptizados em viver o carácter de oferenda em relação a Deus, na participação na Eucaristia e nos sacramentos, no testemunho duma vida santa, na abnegação e na caridade concreta (cf. ibid.).

A outro nível, a afirmação de que Deus "nos fez reis e sacerdotes" refere-se aos sacerdotes ordenados como ministros, isto é, chamados a formar e a reger o povo sacerdotal e a oferecer em seu nome o sacrifício eucarístico a Deus, fazendo as vezes de Cristo (cf. ibid.). A Missa "crismal" faz, assim, solene memória do único Sacerdócio de Cristo e exprime a vocação sacerdotal da Igreja, em particular do Bispo e dos presbíteros unidos a ele. Isto ser-nos-á recordado daqui a pouco pelo Prefácio: Cristo "não só comunica o sacerdócio real a todo o povo dos remidos, mas com afecto de predilecção escolhe alguns dentre os irmãos e, mediante a imposição das mãos, fá-los participantes do seu ministério de salvação".

3. "O Espírito Santo está sobre Mim, porque Me ungiu e Me enviou..." (Lc 4,18).
Queridos sacerdotes, estas palavras referem-se a nós de maneira directa. Com a ordenação presbiteral fomos chamados a compartilhar a mesma missão de Cristo, e hoje renovamos juntos os comuns compromissos sacerdotais. Com viva emoção, fazemos memória do dom recebido de Cristo, que nos chamou a uma especial participação no seu Sacerdócio.

Com a bênção dos Óleos e, em particular, do santo Crisma, queremos dar graças pela unção sacramental, que se tornou a nossa parte de herança (cf. Sl Ps 15,5). É um sinal de força interior, que o Espírito Santo concede a todo o homem chamado por Deus a particulares tarefas no serviço do seu Reino.

"Ave sanctum oleum: oleum catechumenorum, oleum infirmorum, oleum ad sanctum crisma". Enquanto damos graças em nome de quantos receberão estes santos sinais, oremos ao mesmo tempo a fim de que o poder sobrenatural que age através desses sinais não cesse de actuar também na nossa vida. O Espírito Santo, que pousou sobre cada um de nós, encontre em cada um a devida disponibilidade para cumprir a missão para a qual fomos "ungidos" no dia da nossa Ordenação.

4. "Louvor a Vós, ó Cristo, rei de eterna glória". Vós viestes ao meio de nós para proclamar o ano de graça do Senhor (cf. Lc Lc 4,19).

Como recordei na Carta enviada aos Sacerdotes para a celebração hodierna, o Sacerdócio de Cristo está intrinsecamente unido ao mistério da Encarnação, cujo bimilenário celebramos neste Ano jubilar. "Está inscrito na sua identidade de Filho encarnado, de homem-Deus" (n. 7). Eis por que esta sugestiva liturgia da Quinta-Feira Santa constitui, de certo modo, como que uma conatural celebração jubilar para nós, embora o Jubileu dos Sacerdotes neste Ano Santo esteja previsto para o próximo dia 18 de Maio.

A existência terrena de Cristo, a sua "passagem" na história, desde que foi concebido no seio da Virgem Maria até à sua subida à direita do Pai, constitui um único evento sacerdotal e sacrifical, inteiramente sob a "unção" do Espírito Santo (cf. Lc Lc 1,35 Lc 3,22).

1420 Neste dia encontramos de modo especial Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, e cruzamos espiritualmente esta Porta Santa, que de par em par abre a todo o homem a plenitude do amor salvífico. Assim como Cristo foi dócil à acção do Espírito na condição de homem e de servo obediente, assim também o baptizado e, de modo particular, o ministro ordenado devem sentir-se empenhados em realizar a própria consagração sacerdotal no humilde e fiel serviço a Deus e aos irmãos.

Iniciemos com estes sentimentos o Tríduo pascal, ápice do Ano litúrgico e do grande Jubileu. Disponhamo-nos a realizar a intensa peregrinação pascal seguindo os passos de Jesus que sofre, morre e ressurge. Sustentados pela fé de Maria, sigamos Cristo sacerdote e vítima, "que nos ama e com o Seu sangue nos lavou dos nossos pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus, Seu Pai" (
Ap 2,5-6).

Sigamo-l'O e juntos proclamemos: "Louvor a Vós, ó Cristo, rei de eterna glória".

Vós, ó Cristo, sois o mesmo ontem, hoje e sempre. Amém!



MISSA "IN CENA DOMINI" E CERIMÓNIA DO "LAVA-PÉS"




Quinta-feira Santa, 20 de Abril de 2000






1. "Tenho ardentemente desejado comer convosco esta páscoa, antes de padecer" (Lc 22,15).
Com estas palavras, Cristo faz conhecer o significado profético da Ceia pascal, que está para celebrar com os discípulos no Cenáculo de Jerusalém.

Com a primeira leitura, tirada do Livro do Êxodo, a Liturgia pôs em evidência o facto de a Páscoa de Jesus se inscrever no contexto daquela da Antiga Aliança. Com ela os Israelitas faziam memória da ceia consumada pelos seus pais, no momento do êxodo do Egipto, e da libertação da escravidão. O texto sagrado prescrevia que um pouco do sangue do cordeiro fosse posto nas duas ombreiras e na verga da porta das casas. E acrescentava como devia ser comido o cordeiro, isto é: "Tereis os rins cingidos, as sandálias nos pés e o bordão na mão... apressadamente... Passarei nesta noite através do Egipto e ferirei de morte todos os primogénitos... O sangue servirá de sinal nas casas em que residis. Vendo o sangue, passarei adiante, e não sereis atingidos pelo flagelo destruidor" (Ex 12,11-13).

O sangue do cordeiro obtém para os filhos e filhas de Israel a libertação da escravidão do Egipto, sob a guia de Moisés. A recordação de um evento tão extraordinário tornou-se ocasião de festa para o povo, que estava grato ao Senhor pela liberdade readquirida, dom divino e empenho humano sempre actual: "Conservareis a recordação desse dia, comemorando-o com uma solenidade em honra do Senhor" (Ibid., 12, 14). É a Páscoa do Senhor! A Páscoa da Antiga Aliança!

2. "Tenho ardentemente desejado comer convosco esta páscoa, antes de padecer" (Lc 22,15). No Cenáculo, Cristo, obediente às prescrições da Antiga Aliança, consuma a ceia pascal com os Apóstolos, mas dá a este rito um novo conteúdo. Escutámos São Paulo falar a respeito disto na segunda leitura, tirada da primeira Carta aos Coríntios. Neste texto, considerado a mais antiga descrição da Ceia do Senhor, recorda-se que Jesus, "na noite em que foi entregue tomou o pão e, depois de dar graças, o partiu e disse: "Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em Minha memória". Do mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice e disse: "Este cálice é a Nova Aliança no Meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em Minha memória". Com efeito, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha" (cf. 1Co 11,23-26).

Palavras solenes com as quais se transmite para sempre a memória da instituição da Eucaristia. Neste dia, recordamo-las todos os anos, retornando espiritualmente ao Cenáculo. É com particular emoção que as revivo nesta tarde, porque conservo nos olhos e no coração as imagens do Cenáculo, onde tive a alegria de celebrar a Eucaristia, por ocasião da recente peregrinação jubilar na Terra Santa. A emoção torna-se ainda mais forte, porque este é o ano do Jubileu bimilenário da Encarnação. Nesta perspectiva, a celebração que estamos a viver adquire uma profundidade particular. Com efeito, no Cenáculo, Jesus deu um novo conteúdo às antigas tradições e antecipou os eventos do dia sucessivo, quando o Corpo imaculado do Cordeiro de Deus haveria de ser imolado e o seu Sangue derramado para a redenção do mundo. A Encarnação acontecera em vista precisamente deste evento, em vista da Páscoa de Cristo, da Páscoa da Nova Aliança!

1421 3. "Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha" (1Co 11,26). O Apóstolo exorta-nos a fazer constante memória deste mistério. Ao mesmo tempo, convida-nos a viver cada dia a nossa missão de testemunhas e anunciadores do amor do Crucificado, à espera do seu retorno glorioso.

Mas como fazer memória deste evento salvífico? Como viver à espera de que Cristo retorne?

Antes de instituir o Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue, Cristo, inclinado e de joelhos, na atitude do escravo, lava os pés aos discípulos no Cenáculo. Revemo-l'O enquanto realiza este acto, que na cultura hebraica é precisamente dos servos e das pessoas mais humildes da família.

No início Pedro recusa-se, mas o Mestre convence-o, e enfim também ele se deixa lavar os pés juntamente com os outros discípulos. Logo depois, porém, retomando as vestes e tendo-se posto de novo à mesa, Jesus explica o sentido deste seu gesto: "Vós chamais-Me Mestre e Senhor, e dizeis bem, visto que o sou. Ora, se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros" (Jn 13,12-14). São palavras que, unindo o mistério eucarístico ao serviço do amor, podem ser consideradas preliminares à instituição do Sacerdócio ministerial.
Com a instituição da Eucaristia, Jesus comunica aos Apóstolos a participação ministerial no seu sacerdócio, o sacerdócio da Aliança nova e eterna, em virtude da qual Ele, e somente Ele, é sempre e em toda a parte artífice e ministro da Eucaristia. Os Apóstolos tornaram-se, por sua vez, ministros deste excelso mistério da fé, destinado a perpetuar-se até ao fim do mundo. Tornaram-se contemporaneamente servidores de todos aqueles que vierem a participar em tão grande dom e mistério.

A Eucaristia, o supremo Sacramento da Igreja, está unida ao sacerdócio ministerial, nascido também ele no Cenáculo, como dom do grande amor d'Aquele que, "sabendo que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai (...) que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por eles" (Jn 13,1).

A Eucaristia, o sacerdócio e o novo mandamento do amor! É este o memorial vivo que contemplamos na Quinta-Feira Santa.

"Fazei isto em memória de Mim": eis a Páscoa da Igreja! A nossa Páscoa!







NA VIGÍLIA PASCAL


Sábado Santo, 22 de Abril de 2000

1. "Tendes à vossa disposição a guarda; ide e guardai-O como entenderdes" (Mt 27,65)


O túmulo de Jesus é fechado e sigilado. Para guardá-lo, foram colocados alguns soldados, como fora pedido pelos sumos sacerdotes e fariseus, a fim de que ninguém pudesse furtar o corpo (cf. Mt Mt 27,62-64). Este é o acontecimento que dá início a liturgia da Vigília Pascal.

1422 Vigiavam junto ao túmulo os que tinham querido a morte de Cristo, considerando-O um "impostor" (Mt 27,62). Seu desejo era que Ele e sua mensagem fossem sepultados para sempre.

Não longe dali, vigiava Maria e, junto a ela, os Apóstolos e algumas mulheres. Conservavam estampada no coração a imagem desconcertante dos recentes acontecimentos.

2. Vigia esta noite a Igreja em cada canto da terra, e revive as etapas fundamentais da história da salvação. A solene liturgia que estamos a realizar é a expressão deste "vigilar" que, de certa modo, leva àquele mesmo Deus citado no Livro do Êxodo: "Essa noite, durante a qual o Senhor velara para os fazer sair do Egipto, será de vigia [...], de geração em geração, em honra do Senhor" (12,42).

Com o seu amor providente a fiel, que ultrapassa o tempo e o espaço, Deus vigia o mundo. Assim canta o Salmista: "Não dorme, nem dormita / quem guarda Israel. / O Senhor é o teu guarda [...] O Senhor te guarda de todo o mal [...] agora e para sempre" (Ps 120,4-5 Ps 120,8).

A passagem do segundo para o terceiro milénio que estamos vivendo é também custodiada no mistério do Pai. Ele "age continuamente" (Jn 5,17) para a salvação do mundo e, mediante o Filho feito homem, guia o seu povo da escravidão à liberdade, da morte à vida. Toda a "obra" do Grande Jubileu do Ano Dois Mil está, por assim dizer, inscrita nesta noite de vigília, que leva à conclusão a Noite de Natal do Senhor. Belém e o Calvário evocam o mesmo mistério de Deus, que "de tal modo amou o mundo que lhe deu o Seu Filho único, para que todo o que n'Ele crer tenha a vida eterna" (Jn 3,16).

3. Nesta Noite Santa, a Igreja enquanto está a vigiar, debruça-se sobre os textos da Sagrada Escritura, que descrevem o desígnio divino do Génesis ao Evangelho e que, graças aos ritos litúrgicos do fogo e da água, conferem a esta celebração singular uma dimensão cósmica. Nesta noite, todo o universo criado está chamado a vigiar, junto ao túmulo de Cristo. Diante dos nossos olhos descortina-se a história da salvação, da criação à redenção, do êxodo à Aliança no Sinai, da antiga à nova e eterna Aliança. Nesta Noite Santa, cumpre-se o eterno projecto de Deus sobre a história do homem e do cosmo.

4. Na Vigília pascal, mãe de todas as vigílias, todo homem pode reconhecer também a própria pessoal história da salvação, que tem como ponto fundamental a renascimento em Cristo, através do Baptismo.

De modo particular, esta é a vossa experiência caríssimos Irmãos e Irmãs, que dentro de pouco recebereis os Sacramentos da iniciação cristã: o Baptismo, o Crisma e a Eucaristia.

Sois de diversos países do mundo: do Japão, da China, do Camerum, da Albânia e da Itália.
A variedade das vossas nações de origem põe em evidência a universalidade da salvação que Cristo nos trouxe. Dentro de pouco, caríssimos, sereis inseridos no intimidade do mistério do amor de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Possa a vossa existência tornar-se um canto de louvor à Santíssima Trindade, e um testemunho de amor sem fronteiras.

5. "Ecce lignum Crucis, in quo salus mundi pependi: venite adoremus!". Assim cantou ontem a Igreja, mostrando o madeiro da Cruz "em que foi suspendido Cristo, Salvador do mundo". "Foi crucificado, morto e sepultado", recitamos no Credo.

1423 O sepulcro! Eis o lugar onde O tinham depositado (cf. Mc Mc 16,6). Espiritualmente, encontra-se ali a inteira Comunidade eclesial de toda a parte do mundo. Nós também estamos ali com as três mulheres que vão ao sepulcro antes da aurora, para ungir o corpo sem vida de Jesus (cf. Mc Mc 16,1). Sua pressa é a nossa pressa. Com elas, descobrimos que a enorme pedra sepulcral foi retirada e o corpo já não se encontra ali. "Não está aqui" anuncia o anjo, mostrando o sepulcro vazio e as faixas funerárias no chão. A morte já não tem domínio sobre Ele (cf. Rm 6,9).

Cristo ressuscitou! Anuncia, no fim desta noite de Páscoa, a Igreja, que ontem tinha proclamado a morte de Cristo sobre a Cruz. É anúncio de verdade e de vida.

"Surrexit Dominus de sepulcro, qui pro nobis pependit in ligno. Alleluia!". Ressuscitou do sepulcro o Senhor que, por nós, foi pregado na cruz.

Sim, Cristo realmente ressuscitou e nós somos testemunhas.

Dizemo-lo ao mundo aos gritos, para que a nossa alegria chegue a muitos outros corações, acendendo neles a luz da esperança que não defrauda.

Cristo ressuscitou, aleluia!



RITO DE CANONIZAÇÃO DE MARIA FAUSTINA KOWALSKA




NA CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA


30 de Abril de 2000



1. "Confitemini Domino quoniam bonus, quoniam in aeternum misericordia eius".

"Louvai o Senhor, porque Ele é bom, porque é eterno o Seu amor" (Ps 118,1).Assim canta a Igreja na Oitava de Páscoa, como que recolhendo dos lábios de Cristo estas palavras do Salmo, dos lábios de Cristo ressuscitado, que no Cenáculo traz o grande anúncio da misericórdia divina e confia aos apóstolos o seu ministério: "A paz seja convosco! Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós... Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos" (Jn 20,21-23).

Antes de pronunciar estas palavras, Jesus mostra as mãos e o lado. Isto é, indica as feridas da Paixão, sobretudo a chaga do coração, fonte onde nasce a grande onda de misericórdia que inunda a humanidade. Daquele Coração a Irmã Faustina Kowalska, a Beata a quem de agora em diante chamaremos Santa, verá partir dois fachos de luz que iluminam o mundo: "Os dois raios, explicou-lhe certa vez o próprio Jesus representam o sangue e a água" (Diário, Libreria Editrice Vaticana, pág. 132).

2. Sangue e água! O pensamento corre rumo ao testemunho do evangelista João que, quando um soldado no Calvário atingiu com a lança o lado de Cristo, vê jorrar dali "sangue e água" (cf. Jo Jn 19,34). E se o sangue evoca o sacrifício da cruz e o dom eucarístico, a água, na simbologia joanina, recorda não só o baptismo, mas também o dom do Espírito Santo (cf. Jo Jn 3,5 Jn 4,14 Jn 7,37-39).
1424 A misericórdia divina atinge os homens através do Coração de Cristo crucificado: "Minha filha, dize que sou o Amor e a Misericórdia em pessoa", pedirá Jesus à Irmã Faustina (Diário, pág. 374). Cristo derrama esta misericórdia sobre a humanidade mediante o envio do Espírito que, na Trindade, é a Pessoa-Amor. E porventura não é a misericórdia o "segundo nome" do amor (cf. Dives in misericordia, DM 7), cultuado no seu aspecto mais profundo e terno, na sua atitude de cuidar de toda a necessidade, sobretudo na sua imensa capacidade de perdão?

É deveras grande a minha alegria, ao propor hoje à Igreja inteira, como dom de Deus para o nosso tempo, a vida e o testemunho da Irmã Faustina Kowalska. Pela divina Providência a vida desta humilde filha da Polónia esteve completamente ligada à história do século XX, que há pouco deixámos atrás. De facto, foi entre a primeira e a segunda guerra mundial que Cristo lhe confiou a sua mensagem de misericórdia. Aqueles que recordam, que foram testemunhas e participantes nos eventos daqueles anos e nos horríveis sofrimentos que daí derivaram para milhões de homens, bem sabem que a mensagem da misericórdia é necessária.

Jesus disse à Irmã Faustina: "A humanidade não encontrará paz, enquanto não se voltar com confiança para a misericórdia divina" (Diário, pág. 132). Através da obra da religiosa polaca, esta mensagem esteve sempre unida ao século XX, último do segundo milénio e ponte para o terceiro. Não é uma mensagem nova, mas pode-se considerar um dom de especial iluminação, que nos ajuda a reviver de maneira mais intensa o Evangelho da Páscoa, para o oferecer como um raio de luz aos homens e às mulheres do nosso tempo.

3. O que nos trarão os anos que estão diante de nós? Como será o futuro do homem sobre a terra? A nós não é dado sabê-lo. Contudo, é certo que ao lado de novos progressos não faltarão, infelizmente, experiências dolorosas. Mas a luz da misericórdia divina, que o Senhor quis como que entregar de novo ao mundo através do carisma da Irmã Faustina, iluminará o caminho dos homens do terceiro milénio.

Assim como os Apóstolos outrora, é necessário porém que também a humanidade de hoje acolha no cenáculo da história Cristo ressuscitado, que mostra as feridas da sua crucifixão e repete: A paz seja convosco! É preciso que a humanidade se deixe atingir e penetrar pelo Espírito que Cristo ressuscitado lhe dá. É o Espírito que cura as feridas do coração, abate as barreiras que nos separam de Deus e nos dividem entre nós, restitui ao mesmo tempo a alegria do amor do Pai e a da unidade fraterna.

4. É importante, então, que acolhamos inteiramente a mensagem que nos vem da palavra de Deus neste segundo Domingo de Páscoa, que de agora em diante na Igreja inteira tomará o nome de "Domingo da Divina Misericórdia". Nas diversas leituras, a liturgia parece traçar o caminho da misericórdia que, enquanto reconstrói a relação de cada um com Deus, suscita também entre os homens novas relações de solidariedade fraterna. Cristo ensinou-nos que "o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado a "ter misericórdia" para com os demais. "Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mt 5,7)" (Dives in misericordia, DM 14). Depois, Ele indicou-nos as múltiplas vias da misericórdia, que não só perdoa os pecados, mas vai também ao encontro de todas as necessidades dos homens. Jesus inclinou-se sobre toda a miséria humana, material e espiritual.

A sua mensagem de misericórdia continua a alcançar-nos através do gesto das suas mãos estendidas rumo ao homem que sofre. Foi assim que O viu e testemunhou aos homens de todos os continentes a Irmã Faustina que, escondida no convento de Lagiewniki em Cracóvia, fez da sua existência um cântico à misericórdia: Misericordias Domini in aeternum cantabo.

5. A canonização da Irmã Faustina tem uma eloquência particular: mediante este acto quero hoje transmitir esta mensagem ao novo milénio. Transmito-a a todos os homens para que aprendam a conhecer sempre melhor o verdadeiro rosto de Deus e o genuíno rosto dos irmãos.

Amor a Deus e amor aos irmãos são de facto inseparáveis, como nos recordou a primeira Carta de João: "Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e guardamos os Seus mandamentos" (5, 2). O Apóstolo recorda-nos nisto a verdade do amor, indicando-nos na observância dos mandamentos a medida e o critério.

Com efeito, não é fácil amar com um amor profundo, feito de autêntico dom de si. Aprende-se este amor na escola de Deus, no calor da sua caridade. Ao fixarmos o olhar n'Ele, ao sintonizarmo-nos com o seu coração de Pai, tornamo-nos capazes de olhar os irmãos com olhos novos, em atitude de gratuidade e partilha, de generosidade e perdão. Tudo isto é misericórdia!
Na medida em que a humanidade souber aprender o segredo deste olhar misericordioso, manifesta-se como perspectiva realizável o quadro ideal, proposto na primeira leitura: "A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia mas, entre eles, tudo era comum" (Ac 4,32). Aqui a misericórdia do coração tornou-se também estilo de relações, projecto de comunidade, partilha de bens. Aqui floresceram as "obras da misericórdia", espirituais e corporais. Aqui a misericórdia tornou-se um concreto fazer-se "próximo" dos irmãos mais indigentes.

1425 6. A Irmã Faustina Kowalska deixou escrito no seu Diário: "Sinto uma tristeza profunda, quando observo os sofrimentos do próximo. Todas as dores do próximo se repercutem no meu coração; trago no meu coração as suas angústias, de tal modo que me abatem também fisicamente.

Desejaria que todos os sofrimentos caíssem sobre mim, para dar alívio ao próximo" (pág. 365). Eis a que ponto de partilha conduz o amor, quando é medido segundo o amor de Deus!

É neste amor que a humanidade de hoje se deve inspirar, para enfrentar a crise de sentido, os desafios das mais diversas necessidades, sobretudo a exigência de salvaguardar a dignidade de cada pessoa humana. A mensagem de misericórdia divina é assim, implicitamente, também uma mensagem sobre o valor de todo o homem. Toda a pessoa é preciosa aos olhos de Deus; Cristo deu a vida por cada um; o Pai dá o seu Espírito a todos, oferecendo-lhes o acesso à Sua intimidade.

7. Esta mensagem consoladora dirige-se sobretudo a quem, afligido por uma provação particularmente dura ou esmagado pelo peso dos pecados cometidos, perdeu toda a confiança na vida e se sente tentado a ceder ao desespero. Apresenta-se-lhe o rosto suave de Cristo, chegando-lhe aqueles raios que partem do seu Coração e iluminam, aquecem e indicam o caminho, e infundem esperança. Quantas almas já foram consoladas pela invocação "Jesus, confio em Ti", que a Providência sugeriu através da Irmã Faustina! Este simples acto de abandono a Jesus dissipa as nuvens mais densas e faz chegar um raio de luz à vida de cada um.

"Jezu ufam tobie!"

8. Misericordias Domini in aeternum cantabo (
Ps 88 [89], 2). À voz de Maria Santíssima, "Mãe da misericórdia", à voz desta nova Santa, que na Jerusalém celeste canta a misericórdia juntamente com todos os amigos de Deus, unamos também nós, Igreja peregrinante, a nossa voz.

E tu, Faustina, dom de Deus ao nosso tempo, dádiva da terra da Polónia à Igreja inteira, obtém-nos a graça de perceber a profundidade da misericórdia divina, ajuda-nos a torná-la experiência viva e a testemunhá-la aos irmãos! A tua mensagem de luz e de esperança se difunda no mundo inteiro, leve à conversão os pecadores, amenize as rivalidades e os ódios, abra os homens e as nações à prática da fraternidade. Hoje, ao fixarmos contigo o olhar no rosto de Cristo ressuscitado, fazemos nossa a tua súplica de confiante abandono e dizemos com firme esperança:

Jesus Cristo, confio em Ti!

"Jezu, ufam tobie!".






Homilias JOÃO PAULO II 1417