Homilias JOÃO PAULO II 1292


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA



EM MEMÓRIA DE TODOS OS MÁRTIRES DA HISTÓRIA


Bydgoszcz, 7 de Junho de 1999



1. «Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5,10).

Acabámos de ouvir as palavras pronunciadas por Cristo no sermão da montanha. A quem se referem elas? Em primeiro lugar a Cristo mesmo. Ele é pobre, manso, pacificador, misericordioso e também perseguido por causa da justiça. Esta bem-aventurança põe-nos de maneira particular diante dos eventos da Sexta-Feira Santa. Cristo que é condenado à morte como um malfeitor, e sucessivamente crucificado. No Calvário parecia abandonado por Deus e à mercê do escárnio dos homens.

1293 Então, o Evangelho que Cristo anunciava foi submetido a uma prova radical: «É o Rei de Israel... desça agora da cruz e acreditaremos nele» (Mt 27,42); assim gritavam quantos foram testemunhas daquele acontecimento. Cristo não desce da cruz porque é fiel ao seu Evangelho. Sofre a injustiça humana. Com efeito, somente desta forma pode realizar a justificação do homem. Queria que antes de mais nada se verificassem n'Ele as palavras do sermão da montanha: «Felizes vós, se fordes insultados e perseguidos, e se [os homens] disserem todos os tipos de calúnia contra vós, por causa de mim. Ficai alegres e contentes, porque será grande para vós a recompensa no céu. Do mesmo modo perseguiram os profetas que vieram antes de vós» (Mt 5,11-12).

Cristo é o grande profeta. N'Ele cumprem-se as profecias, porque todas indicavam a Ele. Ao mesmo tempo, é n'Ele que se manifesta a profecia definitiva. É Ele que padece a perseguição por causa da justiça, plenamente consciente de que precisamente esta perseguição abre à humanidade as portas da vida eterna. Doravante, àqueles que acreditarem n'Ele deverá pertencer o reino dos céus.

2. Dou graças a Deus porque ao longo do percurso da minha peregrinação se encontra Bydgoszcz, o maior centro urbano da Arquidiocese de Gniezno. Saúdo todos vós, que viestes para participar nesta Celebração eucarística. De maneira especial, saúdo D. Henryk, Pastor da Igreja que está em Gniezno, que em Bydgoszcz tem a sua sede, e é também o Pastor de Bydgoszcz. Saúdo depois os Bispos Auxiliares. Exprimo a minha alegria pela presença aqui dos Cardeais hóspedes: de Berlim, de Colónia, de Viena, o Cardeal Kozlowiecki da África, e também dos Cardeais, Arcebispos e Bispos polacos. Saúdo cordialmente o Metropolita de Lviv. Cumprimento o clero, as pessoas consagradas e inclusive os peregrinos que vieram de outras regiões da Polónia, bem como aqueles que não podem estar presentes nesta Santa Missa, de maneira especial os enfermos.

Há dois anos em Gniezno, foi-me concedido agradecer ao Senhor, único Deus na Santíssima Trindade, a dádiva da fidelidade de Santo Adalberto até ao supremo sacrifício do martírio e os bem-aventurados frutos, trazidos por aquela morte, não só à nossa Pátria mas também à Igreja inteira. Nessa ocasião, eu disse: «Santo Adalberto está sempre connosco. Ele permaneceu na Gniezno dos Piast e na Igreja universal, circundado pela glória do martírio. E da perspectiva do milénio parece falar-nos hoje com as palavras de São Paulo: 'Comportai-vos como pessoas dignas do Evangelho de Cristo. Para que deste modo, indo vê-los ou estando longe, eu ouça dizer que estais firmes num só espírito, lutando juntos numa só alma pela fé do Evangelho, e que não tendes medo dos vossos adversários' (Ph 1,27-28)... Hoje relemos uma vez mais, depois de mil anos, este testamento de Paulo e de Adalberto. Pedimos que as suas palavras se cumpram também na nossa geração. Com efeito, foi-nos concedida a graça não só de acreditar n'Ele, mas também de sofrer por Ele, dado que empreendemos a mesma luta de que Adalberto nos deixou o testemunho (cf. Fl Ph 1,29-30)» (Homilia de 3 de Junho de 1997; ed. port. de L'Osservatore Romano de 14.6.97, pág. 7, n. 7).

Quero reler esta mensagem à luz da bem-aventurança evangélica que compreende aqueles que estão dispostos a ser «perseguidos» por causa da justiça. Jamais faltaram tais confessores de Cristo em terra polaca. Eles também não faltaram na cidade à margem do rio Brda. Nos últimos decénios deste século, Bydgoszcz distinguiu-se com o particular sinal da «perseguição por causa da justiça». Com efeito, aqui nos últimos dias da II guerra mundial os nazistas realizaram as primeiras execuções públicas dos defensores da cidade. O antigo Mercado de Bydgoszcz é o seu símbolo. Outro lugar trágico é o chamado «Vale da Morte», em Fordon. Nesta ocasião, como deixar de evocar D. Michal Kozal que, antes de ser consagrado Bispo Auxiliar de Wloclawek, era um zeloso pastor em Bydgoszcz. Ele foi martirizado em Dachau, testemunhando uma inquebrantável fidelidade a Cristo. Muitas pessoas ligadas a esta cidade e a esta terra sofreram uma morte análoga nos campos de concentração. Só Deus conhece com precisão os lugares do seu suplício e do seu sofrimento. De qualquer modo, a minha geração recorda o chamado «domingo de Bydgoszcz», de 1939.

O Primaz do milénio, o Servo de Deus, Cardeal Stefan Wyszynski, sabia ler de modo perspicaz a eloquência destes acontecimentos. Depois de muitas tentativas, tendo obtido em 1973 das autoridades comunistas de então a autorização para construir em Bydgoszcz a primeira igreja depois da II guerra mundial, conferiu-lhe o anómalo título dos «Santos Mártires Irmãos Polacos». Desta forma, o Primaz do Milénio queria expressar a convicção de que a terra de Bydgoszcz, provada pela «perseguição por causa da justiça», é um lugar propício para tal templo. Este comemora todos os polacos anónimos que, no decurso da história ultramilenária do cristianismo polaco, deram a própria vida pelo Evangelho de Cristo e pela Pátria, a começar por Santo Adalberto. É significativo também o facto de que o padre Jerzy Popieluszko tenha partido precisamente deste templo para a sua última viagem. Nesta história inscrevem-se as palavras proferidas durante a recitação do rosário: «Deus concedeu-vos não só a graça de acreditar em Cristo, mas também de sofrer por Ele» (Ph 1,29).

3. «Felizes os que são perseguidos por causa da justiça».

A quem se referem ainda estas palavras? A muitos homens aos quais, durante a história da humanidade, foi dado sofrer a perseguição por causa da justiça. Sabemos que os primeiros três séculos depois de Cristo foram assinalados por perseguições às vezes terríveis, especialmente sob alguns imperadores romanos, de Nero a Diocleciano. E não obstante elas tenham cessado desde os tempos do Édito de Milão, apresentaram-se contudo nas várias épocas históricas, em numerosas partes da terra.

Também o nosso século escreveu um longo martirológio. Eu mesmo, no decurso dos vinte anos do meu Pontificado, elevei à glória dos altares inumeráveis grupos de mártires: japoneses, franceses, vietnamitas, espanhóis e mexicanos. E quantos houve no período da II guerra mundial e sob o sistema totalitário comunista! Eles sofreram e deram a própria vida nos campos de extermínio hitleristas ou então soviéticos. Daqui a poucos dias em Varsóvia, proceder-se-á à beatificação dos 108 mártires que, nos campos de concentração, entregaram a sua vida pela fé.

Agora chegou o momento de recordar todas aquelas vítimas e de lhes prestar a devida homenagem. Eles são «mártires muitas vezes desconhecidos, como que 'militi ignoti' da grande causa de Deus» - como escrevi na Carta apostólica Tertio millennio adveniente (n. 37). E é justo que se fale deles em terra polaca, porque esta experimentou uma particular participação no martirológio contemporâneo. É bom que se fale deles em Bydgoszcz! Todos deram o testemunho de fidelidade a Cristo, não obstante os sofrimentos que fazem horrorizar pela sua crueldade. O seu sangue foi derramado na nossa terra e fecundou-a para o crescimento da messe. Ele continua a produzir o cêntuplo na nossa Nação, que persiste na fidelidade a Cristo e ao Evangelho.

Perseveramos, sem deixarmos de lhes ser fiéis. Damos graças a Deus, porque eles saíram vitoriosos das suas batalhas: «Deus (...) provou-os como o ouro no crisol e aceitou-os como holocausto perfeito» (Sg 3,6). Eles constituem para nós um modelo a seguir. Do seu sangue deveríamos haurir a força para o sacrifício da nossa vida, que devemos oferecer a Deus todos os dias. Eles são para nós um exemplo a fim de, como eles, darmos um corajoso testemunho de fidelidade à Cruz de Cristo.

1294 4. «Felizes vós, se fordes insultados e perseguidos (...) por causa de mim» (Mt 5,11).

Àqueles que O seguem, Cristo não promete uma vida fácil. Pelo contrário, anuncia que ao viverem o Evangelho deverão tornar-se um sinal de contradição. Se Ele mesmo sofreu a perseguição, esta será perpetrada também contra os seus discípulos: «Tende cuidado com os homens - Ele anuncia - porque eles vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas» (Mt 10,17).

Prezados Irmãos e Irmãs! Unido a Cristo mediante a graça do santo Baptismo, cada cristão se tornou membro da Igreja e «já não pertence a si mesmo» (cf. 1Co 6,19), mas àquele que morreu e ressuscitou por nós. A partir desse momento, ele entra num particular vínculo comunitário com Cristo e com a sua Igreja. Portanto, tem a tarefa de professar diante dos homens a fé recebida de Deus através da Igreja. Consequentemente, como cristãos somos chamados a dar testemunho de Cristo. Por vezes isto exige um grandioso sacrifício da parte do homem, a oferecer todos os dias e, porventura, também durante a vida inteira. Esta firme perseverança ao lado de Cristo e do seu Evangelho, esta disponibilidade a enfrentar «sofrimentos por causa da justiça» são com frequência actos de heroísmo e podem adquirir formas de autêntico martírio, que se realiza diariamente e em cada instante da vida do homem, gota a gota, até ao derradeiro «tudo está consumado».

Um crente «sofre por causa da justiça» quando, em permuta da sua fidelidade a Deus, experimenta humilhações, é ultrajado, escarnecido no próprio ambiente, incompreendido até mesmo pelas pessoas que lhe são mais queridas. Quando se expõe ao contraste, corre o risco da impopularidade e outras desagradáveis consequências. Todavia, está sempre pronto a todo o sacrifício, porque «é preciso obedecer antes a Deus do que aos homens» (Ac 5,29).

Além do martírio público, que se realiza externamente e diante dos olhos de muitos, com frequência se verifica o martírio escondido nos segredos do íntimo humano; o martírio do corpo e o martírio do espírito. O martírio da nossa vocação e da nossa missão. O martírio da luta pessoal e da superação do próprio ego. Na Bula de proclamação do Grande Jubileu do Ano 2000, Incarnationis mysterium, escrevi entre outras coisas: «O fiel que tiver considerado seriamente a sua vocação cristã, dentro da qual o martírio aparece como uma possibilidade preanunciada já na Revelação, não pode excluir esta perspectiva do horizonte da própria vida» (n. 13).

Para o homem, o martírio é sempre uma provação grande e radical. A suprema prova do ser homem, a prova da dignidade do homem diante de Deus mesmo. Sim, trata-se de uma grandiosa provação para o homem, que se realiza diante dos olhos de Deus mesmo, mas também perante o mundo que se esqueceu de Deus. Desta prova, o homem sai vitorioso quando se deixa sustentar pela força da Graça e se torna uma sua eloquente testemunha.

Não se encontra acaso diante de uma análoga prova a mãe que decide de se oferecer em sacrifício, para salvar a vida do próprio filho? Como foram numerosas, e ainda o são, as mães heróicas na nossa sociedade! Agradecemos-lhes o exemplo de amor, que não se subtrai perante o supremo sacrifício.

Não se encontra porventura diante de uma prova deste género o fiel que salvaguarda o direito à liberdade religiosa e à liberdade de consciência? Penso aqui em todos aqueles irmãos e irmãs que, durante as perseguições contra a Igreja, deram testemunho da fidelidade a Deus. Basta recordar a história recente da Polónia e as dificuldades e perseguições a que foram submetidos a Igreja na Polónia e os crentes em Deus. Foi uma grande prova para as consciências humanas, um genuíno martírio da fé, que exigiu a sua confissão diante dos homens.

Tratou-se de um período de prova muitas vezes demasiado dolorosa. Por isso, considero um particular dever da nossa geração na Igreja recolher todos os testemunhos que falam daqueles que deram a sua vida por Cristo. O nosso século possui um martirológio especial, que ainda não foi escrito na sua integridade. É preciso indagar sobre este martirológio, é necessário confirmá-lo e escrevê-lo, assim como a Igreja dos primeiros séculos escreveu os seus martirológios. Este testemunho dos mártires dos primeiros séculos é hoje a nossa força. Peço a todos os Episcopados que dediquem a devida atenção a esta causa.

O nosso século XX tem um grande martirológio em muitos países, em várias regiões da terra. Ao entrarmos no Terceiro Milénio, devemos cumprir o nosso dever em relação àqueles que deram um grande testemuno de Cristo no nosso século. Em relação a numerosas pessoas, verificaram-se plenamente as palavras do Livro da Sabedoria: «Deus (...) provou-os como o ouro no crisol e aceitou-os como holocausto perfeito» (3, 6). Hoje queremos prestar-lhes homenagem porque não temeram enfrentar esta prova e nos indicaram o caminho a percorrer rumo ao novo milénio. Eles constituem para nós um grande exemplo. Com a sua vida, demonstram que o mundo tem necessidade deste género de «temerários de Deus» que atravessam a terra, como Cristo, Adalberto, Estanislau ou Maximiliano Maria Kolbe e muitos outros. O mundo precisa de pessoas que tenham a coragem de amar e não recuem diante de qualquer sacrifício, na esperança de que no futuro este dê frutos abundantes.

5. «Ficai alegres e contentes, porque será grande para vós a recompensa no céu» (Mt 5,11).

1295 Eis o Evangelho das oito bem-aventuranças. Todos aqueles homens - distantes e próximos, de outras nações e nossos compatriotas dos séculos distantes e do nosso século - tendo sido perseguidos por causa da justiça, se uniram a Cristo. Enquanto estamos a celebrar a Eucaristia, que torna presente o sacrifício da cruz levado a cabo no Calvário, queremos incluir nele todas as pessoas que como Ele foram perseguidas por causa da justiça. A elas pertence o Reino dos Céus, pois já receberam de Deus a sua recompensa.

Com a oração abraçamos também aqueles que continuam a ser submetidos à prova. Cristo disse-lhes: «Ficai alegres e contentes», porque participastes não só no meu sofrimento, mas também na minha glória e na minha ressurreição.

Verdadeiramente, «ficai alegres e contentes» todos vós que estais prontos a sofrer por causa da justiça, porque será grande para vós a recompensa no céu, na casa de Deus!

Amém.





VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA

DURANTE A BEATIFICAÇÃO

DO SERVO DE DEUS WINCENTY FRELICHOWSKI


Torun, 7 de junho de 1999



1. «Coração de Jesus, nossa paz e reconciliação, tem piedade de nós».

Inclinamo-nos com fé diante do grande mistério de amor do Divino Coração e desejamos prestar-lhe honra e glória. Ave, Jesus, ave, Coração Divino do Filho do homem, que tanto amou os homens.

Dou graças a Deus porque hoje me é concedido visitar a jovem Diocese de Torun e louvar, juntamente convosco, o Sacratíssimo Coração do Salvador. Agradeço com alegria à Divina Providência o dom dum novo beato, o sacerdote e mártir Stefan Wincenty Frelichowski, testemunha heróica do amor do qual um pastor é capaz. Saúdo cordialmente todos os presentes nesta função do mês de Junho. Saúdo de modo particular o Bispo Andrzej, Pastor da Igreja de Torun, o Bispo Auxiliar Jan, o clero, as pessoas consagradas e todo o Povo de Deus desta terra.

Saúdo Torun, cidade querida ao meu coração e à bonita Pomerânia, nas margens do Vístula. Sinto-me feliz por poder ter vindo à vossa bonita cidade, tornada famosa por Nicolau Copérnico. Torun é conhecida também graças aos esforços empreendidos no decurso da história em favor da paz. Foi precisamente aqui que se conseguiu por duas vezes concluir os tratados de paz, que passaram à história com o nome de Paz de Torun. Também nesta cidade teve lugar o encontro dos representantes dos católicos, dos luteranos e dos calvinistas de toda a Europa, que recebeu o nome de Colloquium Charitativum, isto é, «Colóquio Fraterno». Adquirem aqui uma eloquência particular as palavras do Salmista: «Por amor dos meus irmãos e dos meus amigos exclamarei: 'a paz esteja contigo'. Por amor da casa do Senhor, nosso Deus, exclamarei: 'o bem esteja contigo'» (Ps 121 [122], 8-9).

2. «Coração de Jesus, nossa paz e reconciliação».

Eis o Coração do Redentor - sinal do seu amor invencível e fonte inexaurível duma verdadeira paz. N'Ele «habita corporalmente toda a plenitude da divindade» (Col 2,9). A paz trazida à terra por Cristo, provém precisamente desta Plenitude e deste Amor. É dom de um Deus que ama, que amou o homem no Coração do Filho unigénito. «Ele é a nossa paz» (cf. Fl Ph 2,14) - exclama São Paulo. Sim, Jesus é a paz, é a nossa reconciliação. Foi Ele quem aniquilou a inimizade, que surgiu depois do pecado do homem, e reconciliou todos os homens com o Pai, mediante a morte na Cruz. No Gólgota o Coração de Cristo foi trespassado por uma lança em sinal de total dom de si, daquele amor oblativo e salvífico com o qual Ele «nos amou até ao fim» (cf. Jo Jn 13,1), lançando as bases da amizade de Deus com os homens.

1296 Eis por que a paz de Cristo é diferente da que o mundo imagina. No Cenáculo, antes da sua morte, ao dirigir-se aos Apóstolos, Cristo diz claramente: «Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jn 14,27). Enquanto os homens pensavam na paz antes de tudo a nível temporal e exterior, Cristo diz que ela brota da ordem sobrenatural, é o resultado da união com Deus no amor.

A Igreja vive incessantemente do Evangelho da paz. Anuncia-o a todos os povos e a todas as nações. Indica de maneira incansável as vias da paz e da reconciliação. Introduz a paz abatendo os muros de preconceitos e de hostilidades entre os homens. Fá-lo antes de mais, através do Sacramento da Penitência e da Reconciliação: levando a graça da divina misericórdia e do perdão, chega às próprias raízes das angústias humanas, cura as consciências feridas pelo pecado, de modo que o homem sinta conforto interior e se torne portador de paz. A Igreja compartilha também a paz que ela mesma experimenta todos os dias na Eucaristia. A Eucaristia é o auge da nossa paz. Nela realiza-se o sacrifício da reconciliação com Deus e com os irmãos, ecoa a palavra de Deus que anuncia a paz, eleva-se sem jamais cessar a oração: «Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós». Na Eucaristia recebemos o dom do próprio Cristo, que se oferece e se torna a nossa paz. Então, com uma particular clareza experimentamos o facto de que o mundo não pode dar esta paz, porque não a conhece (cf. Jo Jn 14,27).

Louvemos hoje a paz de nosso Senhor Jesus Cristo; a paz que Ele concedeu a quantos se encontrarão com Ele, durante a sua vida terrena. A paz com a qual saudou jubilosamente os discípulos depois da ressurreição.

3. «Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9).

Assim nos diz Cristo no sermão da Montanha. Do profundo do seu Coração que ama, exprime o desejo da nossa felicidade. Cristo sabe que a maior felicidade é a união com Deus, que torna o homem um filho Seu. Entre as várias vias que levam à plenitude da felicidade, ele indica também a que passa através das obras em favor da paz e da sua partilha com o próximo. Os homens de paz são dignos do nome de filhos de Deus. Jesus chama bem-aventuradas as pessoas deste género.

«Bem-aventurados os pacificadores». É justamente digno desta qualificação o Pe. Stefan Wincenty Frelichowski, elevado hoje à glória dos altares. Com efeito, toda a sua vida é quase um espelho no qual se reflecte o esplendor daquela filosofia de Cristo, segundo a qual a verdadeira felicidade alcança apenas aqueles que, em união com Deus, se tornam homens de paz, são pacificadores e levam a paz aos outros. Este sacerdote de Torun, que desempenhou o serviço pastoral durante menos de oito anos, deu um testemunho legível do seu doar-se a Deus e aos homens. Vivendo de Deus, desde os primeiros anos do sacerdócio, com a riqueza do seu carisma sacerdotal ia onde quer que houvesse necessidade de levar a graça da salvação. Captava os segredos do ânimo humano e adaptava os métodos da pastoral às necessidades de cada homem que encontrava. Ele tinha aprendido esta capacidade na escola do escutismo, na qual adquirira uma particular sensibilidade às necessidades do próximo e desenvolvia-a constantemente no espírito da palavra do Bom Pastor que procura as ovelhas tresmalhadas e está disposto a dar a própria vida para as salvar (cf. Jo Jn 10,1-21). Como sacerdote, tinha sempre a consciência de ser testemunha duma grande Causa, e ao mesmo tempo servia os homens com uma profunda humildade. Graças à bondade, à mansidão e à paciência conduziu muitos a Cristo, mesmo nas trágicas circunstâncias da guerra e da invasão.

No drama da guerra ele inscrevia num certo sentido uma sequência de capítulos do serviço da paz. O chamado Forte VII, Stutthof, Grenzdorf, Oranienburgo-Sachsenhausen, por fim Dachau, são as progressivas estações da sua via dolorosa, na qual permaneceu sempre o mesmo: intrépido no cumprimento do ministério sacerdotal. Levava-o especialmente aos que tinham maior necessidade, aos que em massa morriam de tifo, doença da qual também ele por fim foi vítima. Ofereceu a sua vida sacerdotal a Deus e aos homens, levando a paz às vítimas da guerra. Compartilhava a paz de maneira generosa com os outros, porque a sua alma hauria a força da paz de Cristo. E foi uma força tão grande, que até a morte como mártir não conseguiu extingui-la.

4. Queridos Irmãos e Irmãs, sem a renovação interior e sem o empenho de derrotar o mal e o pecado no coração, e sobretudo sem o amor, o homem não conquistará a paz interior. Ela só é capaz de sobreviver quando está enraizada nos valores mais nobres, quando se baseia em normas morais e está aberta a Deus. Ao contrário não pode resistir, se foi edificada no terreno movediço da indiferença religiosa e dum árido pragmatismo. A paz interior, no coração do homem e na vida da sociedade, provém da ordem moral, da ordem ética, do cumprimento dos mandamentos de Deus.

Partilhemos com o próximo esta paz de Deus, como fazia o beato sacerdote e mártir Wincenty Frelichowski. Desta forma, tornar-nos-emos um rebento de paz no mundo, na sociedade, no ambiente em que vivemos e trabalhamos. Dirijo-me com este apelo a todos sem nenhuma excepção, de maneira particular a vós, queridos sacerdotes. Sede testemunhas do amor misericordioso de Deus. Anunciai com alegria o Evangelho de Cristo, concedendo o perdão de Deus no Sacramento da Reconciliação. Mediante o vosso serviço procurai aproximar todos a Cristo, dador da paz.

Dirijo estas palavras também a vós, queridos pais, que sois os primeiros educadores dos vossos filhos. Sede para eles a imagem do amor e do perdão divino, procurando com todas as forças construir uma família unida e solidária. Família, precisamente a ti foi confiada uma missão de primordial importância: deves participar na edificação da paz, do bem que é indispensável para o progresso e para o respeito da vida humana.

Peço a vós, educadores, que estais chamados a inculcar nas jovens gerações os valores autênticos da vida: ensinai às crianças e aos jovens a tolerância, a compreensão e o respeito por cada homem; educai as jovens gerações num clima de verdadeira paz. É um direito delas. É vosso dever.

1297 Vós, jovens, que tendes no coração grandes aspirações, aprendei a viver na concórdia e no respeito recíproco, ajudando-vos com solidariedade uns aos outros. Mantende nos vossos corações a aspiração pelo bem e o desejo da paz (cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1.1.1997, n. 8).

As sociedades e as nações têm necessidade de homens de paz, autênticos semeadores da concórdia e do respeito recíproco. Que os homens encham os próprios corações com a paz de Cristo e a levem aos outros, às casas, aos escritórios e às instituições, aos lugares de trabalho e ao mundo inteiro. A história e os nossos dias demonstram que o mundo não pode dar a paz. O mundo é muitas vezes impotente. Por isto, é preciso indicar-lhe Jesus Cristo, que mediante a morte na Cruz deixou a Sua paz aos homens, garantindo-nos a sua presença para sempre (cf. Jo
Jn 14,7-31). Quanto sangue inocente foi derramado no século XX na Europa e em todo o mundo, porque alguns sistemas políticos e sociais abandonaram os princípios de Cristo que garantem uma paz justa. Quanto sangue inocente se está a derramar diante dos nossos olhos. Os trágicos acontecimentos no Kossovo demonstraram isto e estão a demontrá-lo de maneira dolorosa. Somos testemunhas do modo como o povo invoca a almejada paz.

Pronuncio estas palavras numa terra que, na sua história, conheceu os trágicos efeitos da falta de paz, tornando-se vítima de guerras cruéis e arrasadoras. A recordação da segunda guerra mundial está sempre presente, as feridas daquele cataclisma da história terão necessidade de muito tempo para serem completamente curadas. Que, deste lugar, o brado de paz alcance todos no mundo inteiro! Quero repetir as palavras que pronunciei na Mensagem Pascal Urbi et Orbi: «A paz é possível, a paz é obrigatória, a paz é responsabilidade primária de todos! Possa a aurora do terceiro milénio ver o despontar duma nova era em que o respeito por cada homem e a solidariedade fraterna entre os povos derrotem, com a guia de Deus, a cultura do ódio, da violência e da morte».

5. Recebamos com grande reconhecimento o testemunho da vida do beato Wincenty Frelichowski, o herói do nosso tempo, sacerdote e homem de paz, como uma chamada à nossa geração. Quero confiar o dom desta beatificação, de modo particular, à Igreja de Torun, a fim de que guarde e difunda a memória das grandes obras de Deus, realizadas na breve vida deste sacerdote. Confio este dom sobretudo aos sacerdotes desta diocese e de toda a Polónia. O Pe. Frelichowski escrevera no início do seu caminho sacerdotal: «Devo ser um sacerdote segundo o Coração de Cristo». Se esta beatificação é uma grande acção de graças a Deus pelo seu sacerdócio, é também um louvor a Deus pelas maravilhas da sua graça, que se realizam pelas mãos de todos os sacerdotes, e também através das vossas. Desejo dirigir-me a toda a família dos escuteiros polacos, à qual o novo beato estava profundamente ligado. Que o vosso padroeiro se torne mestre de nobreza de ânimo e intercessor de paz e de reconciliação.

Celebra-se daqui a poucos dias o centenário da consagração da humanidade ao Sacratíssimo Coração de Jesus. Isto foi feito em todas as dioceses por obra do Papa Leão XIII, que, para esta finalidade, publicou a Encíclica Annum sacrum.Nela escreveu: «O Divino Coração é símbolo e imagem viva do amor infinito de Jesus Cristo, que nos solicita a corresponder-lhe com o amor» (n. 2). Há pouco renovámos juntos o acto de consagração ao Sacratíssimo Coração de Jesus. Desta forma, exprimimos a máxima homenagem, e também a nossa fé em Cristo, Redentor do homem. Ele é «o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim» (Ap 21,6), a Ele pertence este mundo e o seu destino.

Hoje, enquanto adoramos o Sacratíssimo Coração, oramos com fervor pela paz. Antes de mais pela paz nos nossos corações, mas também pela paz nas nossas famílias, na nossa nação e em todo o mundo.

Coração de Jesus, nossa paz e reconciliação, tende piedade de nós!



VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA


Elk, 8 de junho de 1999


1. «Desce depressa, Zaqueu, porque hoje preciso de ficar em tua casa» (Lc 19,5).

São Lucas, no Evangelho que acabámos de ouvir, mostra-nos o encontro de Jesus com um homem muito rico, chamado Zaqueu, chefe dos publicanos. Por ser de estatura baixa, subiu a uma árvore para ver Cristo. Então ouviu as palavras do Mestre: «Desce depressa, Zaqueu, porque hoje preciso de ficar em tua casa». Jesus tinha observado o gesto de Zaqueu: interpretou o seu desejo e antecipou o convite. Suscitou até a admiração de alguém o facto de Jesus ir visitar um pecador. Zaqueu, feliz com a visita «aceitou cheio de alegria» (cf. Lc Lc 19,6), isto é, abriu desta forma generosamente a porta da sua casa e do seu coração ao encontro com o Salvador.

2. Queridos Irmãos e Irmãs, saúdo de coração quantos se encontram aqui nesta Santa Missa. Saúdo os Bispos; saúdo de modo particular D. Wojciech, Pastor da Diocese de Elk, e o Bispo Auxiliar, D. Edward, e também o Clero aqui presente em grande número, as pessoas consagradas e o Povo de Deus. Saúdo esta linda terra e os seus habitantes. É-me muito querida porque a visitei várias vezes, também em busca de repouso, especialmente nos magníficos lagos da vossa terra.

1298 Naquela época eu tinha a possibilidade de admirar a riqueza da natureza deste recanto da minha Pátria e de gozar da paz dos lagos e dos bosques. Vós mesmos sois herdeiros do rico passado desta terra, formado no decurso dos séculos por várias tradições e culturas. Põe isto em evidência a presença desta celebração em redor do altar de Deus, não só dos Bispos polacos, mas também dos Bispos de outros países. Agradeço-lhes terem vindo a Elk. Saúdo também os estudantes dos seminários maiores, e os peregrinos provenientes das dioceses limítrofes e do estrangeiro, de maneira particular da Bielo-Rússia, da Rússia e da Lituânia. Peço-vos que leveis a minha saudação a todos aqueles nossos irmãos e irmãs, que hoje se unem espiritualmente a nós.

Saúdo de coração a comunidade lituana, que habita no território da Diocese de Elk, a qual se encontra nesta Santa Missa, e também os peregrinos provenientes da Lituânia. Saúdo de modo particular o Presidente da República da Lituânia, Senhor Valdas Adamkus e quantos o acompanham. Saúdo os Bispos, os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e também os estudantes dos seminários maiores. Por vosso intermédio desejo saudar os habitantes da terra lituana. Com o pensamento e com o coração volto com frequência à visita que fiz ao vosso País em Setembro de 1993: naquela data, todos juntos demos graças a Deus e à Mãe da Misericórdia, no Santuário da Porta da Aurora, pela inabalável fidelidade ao Evangelho em tempos difíceis para a vossa nação.

Durante a Eucaristia, celebrada no Monte das Cruzes, agradeci-vos «este grande testemunho dado a Deus e ao homem (...) dado à vossa história e a todos os povos da Europa e da terra». Então eu disse: «Que este Monte permaneça um testemunho no final do segundo milénio depois de Cristo, e como anúncio do novo milénio, o terceiro milénio, da redenção e da salvação que não se encontra noutra parte: só na Cruz e na Ressurreição do nosso Redentor (...). Esta é a mensagem que, deste lugar místico da história lituana, deixo a todos. Faço-a a todos. Espero que seja sempre contemplada e vivida» (L'Osserv. Rom. port. de 19.09.1993, pág. 4).

Queridos Irmãos e Irmãs lituanos, à distância de seis anos queria mais uma vez recordar-vos e repetir-vos estas palavras. Hoje recomendo a vossa pátria a Nossa Senhora da Porta da Aurora e a São Casimiro, Padroeiro da Lituânia. Junto do seu túmulo, na catedral de Vilna, rezei ardentemente por toda a vossa nação e agradeci a Deus por ter podido ir lá e realizar o ministério pastoral. Invoco a intercessão também da Rainha Santa Edviges, cuja memória litúrgica a Igreja celebra hoje, e também do beato Arcebispo Jurgis Matulaitis, incansável e intrépido pastor da Igreja de Vilna. A fé seja sempre a força da vossa nação, e o testemunho do amor por Cristo dê frutos espirituais. Edificai sobre a fé o futuro da vossa Pátria, a vossa vida, a vossa identidade lituana e cristã, para o bem da Igreja, da Europa e da humanidade.

3. «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres» (
Lc 19,8). Desejo voltar à leitura do Evangelho de São Lucas: «a luz do mundo» (cf. Jo Jn 8,12), levou a sua luz à casa de Zaqueu, e de modo particular ao seu coração. Graças à proximidade de Jesus, das suas palavras e do seu ensinamento começa a ter cumprimento a transformação do coração deste homem. Quando se encontrava diante da porta da sua casa, Zaqueu declara: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres; e, se defraudei alguém em qualquer coisa, devolver-lhe-ei quatro vezes mais» (Lc 19,8).

No exemplo de Zaqueu vemos como Cristo ilumina as trevas da consciência humana. À sua luz alargam-se os horizontes da existência: um homem começa a dar-se conta dos outros e das suas necessidades. Nasce o sentido do vínculo com o próximo, a consciência da dimensão social do homem e, por conseguinte, o sentido da justiça. «O fruto da luz consiste na bondade, na justiça e na verdade» (Ep 5,9), ensina São Paulo. Dar-se conta da existência de outro ser humano, do próximo, constitui um dos principais frutos duma conversão sincera. O homem abandona o seu egoísta «ser para si mesmo» e torna-se altruísta, sente a necessidade de «ser para os outros», de ser para os irmãos.

Tal dilatação do coração no encontro com Cristo é o penhor da salvação, como mostra a continuação do diálogo com Zaqueu: «Jesus disse-lhe: 'veio hoje a salvação a esta casa... o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido'» (Lc 19,9-10).

Também hoje, a descrição que Lucas faz do acontecimento que se verificou em Jericó, não perdeu a sua actualidade. Traz consigo a exortação por parte de Cristo, que «para nós foi feito... sabedoria, justiça, santificação e redenção» (1Co 1,30). E como outrora perante Zaqueu, também neste momento Cristo se apresenta diante do homem do nosso século. Parece que apresenta a cada um separadamente a proposta: «hoje preciso de ficar em tua casa» (Lc 19,5).

Queridos Irmãos e Irmãs, este «hoje» é importante. Constitui uma solicitação. Na vida há questões de tal forma importantes e urgentes que não podem ser diferidas nem adiadas. Devem ser enfrentadas hoje. O Salmista exclama: «Ouvi hoje a sua voz: 'não endureçais os vossos corações'» (Sl 94[95], 8). «O clamor dos pobres» (Jb 34,28) de todo o mundo ergue-se incessantemente desta terra e chega até Deus. É o brado das crianças, das mulheres, dos idosos, dos refugiados, de quem sofreu injustiças, das vítimas da guerra, dos desempregados. Os pobres estão também entre nós: os desabrigados, os pedintes, os famintos, os desprezados, os que são esquecidos pelas pessoas mais caras e pela sociedade, os degredados e os humilhados, as vítimas dos vários vicíos.

Muitos deles procuram até esconder a sua miséria humana, mas é preciso saber reconhecê-los. Há também pessoas que sofrem nos hospitais, as crianças órfãs ou os jovens que vivem as dificuldades e os problemas da sua idade.

«Existem perduráveis situações de miséria que não podem deixar de tocar a consciência do cristão, e de lhe lembrar o dever que tem de enfrentá-las urgentemente, de modo tanto pessoal como comunitário. (...) Ainda hoje diante de nós se abrem espaços enormes onde a caridade de Deus se deve tornar presente por meio da obra dos cristãos» - como escrevi na última Mensagem para a Quaresma (nn. 3 e 4). Por conseguinte, o «hoje» de Cristo deveria ressoar com todo o vigor em cada coração e torná-lo sensível às obras de misericórdia. «O clamor e o brado dos pobres» exigem de nós uma resposta concreta e generosa. Exigem a disponibilidade para servir o próximo. Somos convidados por Cristo. Somos chamados constantemente. Cada um duma forma diferente. Com efeito, em vários lugares o homem sofre e chama o homem. Tem necessidade da sua presença, da sua ajuda. Como é importante esta presença do coração humano e da solidariedade humana!

1299 Não endureçamos os nossos corações quando ouvimos «o clamor dos pobres». Procuremos ouvir este brado. Procuremos agir e viver de maneira que na nossa Pátria não falte a ninguém o tecto debaixo do qual estar e o pão na mesa; que ninguém se sinta sozinho, e sem cuidados. Dirijo-me com este apelo a todos os meus concidadãos. Conheço quanto é feito na Polónia para prevenir a miséria e a indigência que se alastram.

A este ponto desejo ressaltar a actividade das secções diocesanas e paroquiais da Caritas da Igreja. De facto, elas empreendem várias iniciativas, entre outras durante o Advento e na Quaresma, dando desta forma ajuda às pessoas individualmente e a inteiros grupos sociais. Desempenham também actividades formativas e educativas. Esta ajuda muitas vezes ultrapassa as fronteiras da Polónia. Como são numerosos os centros de assistência social, os lares para a terceira idade, as cantinas, os centros caritativos, as casas para as mães solteiras, os institutos infantis, os centros recreativos, as estações de protecção ou os centros para os deficientes que surgiram ultimamente. São apenas alguns exemplos desta enorme obra samaritana.

Desejo rassaltar também o esforço por parte do Estado, das instituições privadas e das pessoas individualmente, ou dos chamados voluntários que nelas se empenham. É necessário mencionar aqui as iniciativas que têm por finalidade remediar o preocupante fenómeno do aumento da indigência em vários ambientes e regiões. É um concreto, real e visível contributo para o progresso da civilização do amor em terra polaca.

Devemos recordar sempre que o progresso económico do país deve ter em consideração a grandeza, a dignidade e a vocação do homem, que «foi criado à imagem e semelhança de Deus» (cf. Gn
Gn 1,26). O desenvolvimento e o progresso económico não pode ser feito em desvantagem do homem, limitando as suas exigências fundamentais. Deve ser um desenvolvimento no qual o homem é o sujeito, ou seja, o ponto de referência mais importante. O desenvolvimento e o progresso económico não podem ser perseguidos custe o que custar! Não seriam dignos do homem (cf. Sollicitudo rei socialis SRS 27). A Igreja de hoje anuncia e procura pôr em prática a opção preferencial pelos pobres. Não se trata unicamente dum sentimento fugaz, ou duma acção imediata, mas de uma real e perseverante vontade de agir em benefício daqueles que se encontram em necessidade e que muitas vezes são privados de esperança para um futuro melhor.

4. «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus» (Mt 5,3).

Desde o início da sua actividade messiânica, ao falar na sinagoga de Nazaré, Jesus disse: «O Espírito do Senhor está sobre de Mim, porque Ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres» (Lc 4,18).Considerava os pobres os mais privilegiados herdeiros do Reino. Isto significa que apenas «os pobres em espírito» estão em condições de receber o reino de Deus com todo o coração. O encontro de Zaqueu com Jesus mostra que também um homem rico pode tornar-se partícipe da bem-aventurança de Cristo para os pobres em espírito.

Pobre em espírito é aquele que está disposto a usar com generosidade a própria riqueza a favor de quem tem necessidade. Neste caso vê-se que não é apegado àquelas riquezas. Vê-se que compreende bem a sua finalidade essencial. De facto, os bens materiais existem para servir o próximo, sobretudo o que se encontra em necessidade. A Igreja admite a propriedade pessoal destes bens, se são usados para esta finalidade.

Hoje recordamos a Rainha Santa Edviges. É famosa a sua generosidade para com os pobres. Mesmo sendo rica, não se esquecia dos mendigos. Ela é para nós exemplo e modelo do modo como é preciso viver e pôr em prática o ensinamento de Cristo acerca do amor e da misericórdia e tornar-nos semelhantes Àquele que, como diz São Paulo, «sendo rico se fez pobre por nós, para que nos tornássemos ricos por meio da sua pobreza» (cf. 2Co 8,9).

«Bem-aventurados os pobres em espírito». É o brado de Cristo que hoje cada cristão, cada homem crente, deveria ouvir. Há tanta necessidade de homens pobres em espírito, isto é, abertos a acolher a verdade e a graça, abertos às maravilhas de Deus; de homens de coração grande, que não se deixem encantar pelo esplendor das riquezas deste mundo e não permitam que elas dominem os seus corações. São deveras fortes, porque repletos da riqueza da graça de Deus. Vivem na consciência de receber de Deus incessantemente e sem fim.

«Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e começa a andar!» (Ac 3,6) - com estas palavras os apóstolos Pedro e João respondem ao pedido do coxo de nascença. Ofereceram-lhe o sumo bem que poderia ter desejado. Pobres transmitiram ao pobre a maior riqueza: em nome de Cristo restituiram-lhe a saúde. Com isto confessaram a verdade que, através das gerações, faz parte dos confessores de Cristo.

Eis os pobres em espírito, sem possuírem ouro nem prata, graças a Cristo, têm um poder maior do que todas as riquezas do mundo podem dar.

1300 São deveras bem-aventurados e felizes estes homens, porque deles é o reino dos céus. Amém.



Homilias JOÃO PAULO II 1292