Homilias JOÃO PAULO II 1393


PEREGRINAÇÃO JUBILAR AO MONTE SINAI

HOMILIA DE JOÃO PAULO II

NA MISSA CELEBRADA

NO PALÁCIO DOS DESPORTOS


Cairo, 25 de Fevereiro de 2000


1. "Do Egipto chamei o Meu Filho" (Mt 2,15).

O Evangelho de hoje recorda-nos a fuga da Sagrada Família para o Egipto, onde veio buscar refúgio. "Um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, e disse-lhe: "Levanta-te, toma o Menino e Sua Mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o Menino para O matar"" (Mt 2,13). Desta maneira, Cristo "que se fez homem a fim de tornar o homem capaz de receber a divindade" (Santo Atanásio de Alexandria, Contra os arianos, 2, 59), quis refazer o percurso que foi o do chamamento divino, o caminho que o seu povo tinha empreendido, a fim de que todos os seus membros se tornassem filhos no Filho. "E ele (José) levantou-se, de noite, tomou o Menino e Sua mãe e partiu para o Egipto, permanecendo ali até à morte de Herodes.

Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta: "Do Egipto chamei o Meu Filho"" (Mt 2,14-15). A Providência conduzia Jesus pelos caminhos que outrora os israelitas tinham percorrido rumo à terra prometida, sob o sinal do cordeiro pascal, celebrando a Páscoa. Também Jesus, o Cordeiro de Deus, foi chamado do Egipto pelo Pai, para cumprir em Jerusalém a Páscoa da aliança nova e irrevogável, a Páscoa definitiva, a Páscoa que dá ao mundo a salvação.

1394 2. "Do Egipto chamei o Meu Filho". Assim fala o Senhor, que fez sair o seu povo da condição de escravidão (cf. Êx Ex 20,2), para concluir com ele no Monte Sinai uma aliança. A festa da Páscoa permanece para sempre a lembrança desta libertação. Ela comemora este evento, que continua presente na memória do povo de Deus. Quando partiram para a sua longa caminhada, sob a guia de Moisés, os israelitas não pensavam que a sua peregrinação através do deserto até à terra prometida devesse durar quarenta anos. O próprio Moisés, que conduzira o seu povo fora do Egipto e o guiara durante todo aquele tempo, não entrou na terra prometida. Antes de morrer, contemplou-a do alto do monte Nebo e depois confiou o povo a Josué, seu sucessor.

3. Enquanto os cristãos celebram o bimilenário do nascimento de Jesus, devemos fazer esta peregrinação aos lugares em que teve início e se desenvolveu a história da salvação, história de amor irrevogável entre Deus e os homens, presença do Senhor da história no tempo e na vida dos homens. Viemos ao Egipto, percorrendo aquele caminho ao longo do qual Deus guiou o seu povo, tendo à frente Moisés, para o conduzir à terra prometida. Pomo-nos a caminho, iluminados pelas palavras do livro do Êxodo: abandonando a nossa condição de escravidão, vamos ao Monte Sinai, onde Deus estabeleceu a sua aliança com a casa de Jacob, por meio de Moisés, em cujas mãos depositou as tábuas do Decálogo. Como é magnífica esta aliança! Ela mostra-nos que Deus não cessa de se dirigir ao homem para lhe comunicar a vida em abundância. Põe-nos na presença de Deus e é a expressão do seu profundo amor pelo seu povo. Convida o homem a voltar-se para Deus, a deixar-se tocar pelo seu amor e a realizar as aspirações à felicidade que ele traz em si. Se acolhermos em espírito as tábuas dos dez mandamentos, nós viveremos plenamente da lei que Deus pôs nos nossos corações e teremos parte na salvação que a Aliança, concluída no Monte Sinai entre Deus e o seu povo, revelou e que o Filho de Deus nos oferece mediante a redenção.

4. Nesta terra do Egipto, que tenho a alegria de visitar pela primeira vez, a mensagem da nova Aliança foi transmitida, de geração em geração, através da venerável Igreja copta, herdeira da pregação e da acção apostólica do evangelista São Marcos que, segundo a tradição, sofreu o martírio em Alexandria. Neste dia elevamos a Deus uma ardente acção de graças pela rica história desta Igreja e pelo generoso apostolado dos seus fiéis que, ao longo dos séculos, às vezes até ao derramamento do sangue, foram as ardorosas testemunhas do amor do Senhor.

Agradeço com afecto a Sua Beatitude Stephanos II Gathas, Patriarca copta católico de Alexandria, as palavras de acolhimento que me dirigiu; elas testemunham a fé viva e a fidelidade da vossa comunidade à Igreja de Roma. Saúdo cordialmente os Patriarcas e os Bispos que participam nesta liturgia eucarística, assim como os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e todos os fiéis que vieram acompanhar-me nesta etapa da minha peregrinação jubilar. Saúdo também com deferência as Autoridades e todas as pessoas que desejaram unir-se a esta celebração. Temos a Igreja copta ortodoxa, o seu venerado Patriarca, Papa Shenouda III, nosso irmão, e todos os Bispos e fiéis desta Igreja. Apresento os meus melhores votos a Sua Santidade Petrus VII, Patriarca do Egipto greco-ortodoxo, e a todos os membros da sua Igreja.

A vossa presença aqui à volta do Sucessor de Pedro é um sinal da unidade da Igreja, cuja cabeça é Cristo. Que a fraternidade entre todos os discípulos do Senhor, tão bem manifestada aqui, seja um encorajamento a prosseguirdes nos esforços por constituir comunidades unidas no amor, fermentos de concórdia e de reconciliação! Deste modo, encontrareis a força e o conforto, em particular nos momentos de dificuldade ou de dúvida, para dardes a Cristo, na terra dos vossos ancestrais, um testemunho cada vez mais ardente. Com o Apóstolo Paulo, dou graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, orando por vós a cada instante, a fim de crescerdes na fé, permanecerdes firmes na esperança e difundirdes em toda a parte a caridade de Cristo (cf. Cl Col 1,3-5).

5. Neste ano jubilar, ao recordarmo-nos de que Cristo "é a Cabeça do Corpo, que é a Igreja" (Col 1,18), devemos procurar sempre com mais ardor progredir de maneira decisiva nos caminhos da unidade querida por Ele para os seus discípulos, num espírito de confiança e de fraternidade.

Assim, o nosso testemunho comum dará glória a Deus e será cada vez mais crível aos olhos dos homens. Oro ao Pai celeste para que com todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que saúdo aqui com respeito, se desenvolvam relações tranquilas e fraternas, na caridade e na boa vontade.

Esse clima de diálogo e de proximidade ajudará a encontrar soluções para os problemas que ainda dificultam a plena comunhão. Ele favorecerá também o respeito das sensibilidades próprias a cada comunidade, assim como a sua maneira específica de exprimir a fé em Cristo e de celebrar os sacramentos, que as Igrejas devem reciprocamente reconhecer como sendo administrados no nome do mesmo Senhor. Ao celebrarmos nesta peregrinação a Páscoa do Senhor, possamos nós viver o Pentecostes no qual todos os discípulos, reunidos com a Mãe de Deus, acolhem o Espírito Santo, que nos reconcilia com o Senhor e é o princípio de unidade e de força para a missão, fazendo de nós um só corpo, imagem do mundo que há-de vir!

6. Desde as origens, a vida espiritual e intelectual desenvolveu-se de maneira notável na Igreja no Egipto. Podemos evocar aqui os ilustres fundadores do monaquismo cristão, António, Pacómio e Macário, e muitos outros Patriarcas, confessores, pensadores e doutores que são a glória da Igreja universal. Ainda hoje, os mosteiros continuam a ser centros vivos de oração, de estudo e de meditação, na fidelidade à antiga tradição cenobítica e anacorética da Igreja copta, recordando que o contacto fiel e prolongado com o Senhor é o fermento da transformação das pessoas e da sociedade inteira. Deste modo, a vida com Deus faz resplandecer a luz sobre os nossos rostos humanos e ilumina o mundo com uma luz nova, a viva chama do amor.

Ao acolherem hoje este impulso espiritual e apostólico que lhes foi transmitido pelos Pais na fé, que os jovens sejam atentos à chamada do Senhor que os convida a caminhar no seu seguimento, e respondam com generosidade, aceitando empenhar-se no sacerdócio e na vida consagrada activa ou contemplativa! Mediante o testemunho da sua vida de homens e de mulheres totalmente dedicada a Deus e aos próprios irmãos, fundada sobre uma experiência espiritual intensa, as pessoas consagradas manifestem o amor sem limites do Senhor pelo mundo!

7. É este amor gratuito e sem exclusão que quer traduzir o empenho da Igreja católica junto do povo egípcio nos sectores da educação, da saúde, das obras caritativas. A presença activa da Igreja na formação intelectual e moral da juventude é uma longa tradição do Patriarcado copta católico e do Vicariato latino. Mediante a educação dos jovens para os valores humanos, espirituais e morais essenciais, no respeito da consciência de cada um, as instituições educativas católicas desejam oferecer o seu contributo à promoção da pessoa, de modo particular da mulher e da família; elas querem também favorecer relações amistosas com os muçulmanos, a fim de que os membros de cada uma das comunidades se esforcem com sinceridade por se compreenderem mutuamente e promoverem juntas, em favor de todos os homens, a justiça social, os valores morais, a paz, o respeito e a liberdade.

1395 É um dever para todos os cidadãos participar activamente, em espírito de solidariedade, na edificação social, na consolidação da paz entre as comunidades e na gestão honesta do bem comum. Para realizar esta obra comum que deve aproximar os membros de uma mesma nação, é justo que todos, cristãos e muçulmanos, no respeito pelas diferentes opiniões religiosas, ponham as suas competências ao serviço da colectividade, a todos os níveis da vida social.

8. Ao unirmo-nos ao caminho de fé de Moisés, no decurso da peregrinação jubilar que realizamos nestes dias, somos convidados a prosseguir o nosso caminho rumo à montanha do Senhor, a abandonar as nossas escravidões para marcharmos pelo caminho de Deus. "E Deus, vendo assim as nossas boas disposições e constatando que Lhe atribuímos o que realizamos [...], dar-nos-á em contrapartida o que Lhe é próprio, os dons espirituais, divinos e celestes" (São Macário, Homilias espirituais, 25, 20). Para cada um de nós, o Horeb, "monte da fé", é chamado a tornar-se "o lugar do encontro e de um pacto recíproco, de certo modo o "monte do amor"" (Carta sobre a peregrinação aos lugares relacionados com a história da salvação, 6). Foi ali que o povo se empenhou em viver, aderindo plenamente à vontade divina, e que Deus lhe assegurou a sua benevolência eterna. Este mistério de amor realiza-se em plenitude na Páscoa da nova Aliança, no dom que o Pai faz do seu Filho para a salvação da humanidade inteira.

Recebamos hoje de modo renovado a lei divina, como um tesouro precioso! Tornemo-nos, como Moisés, homens e mulheres que, ao mesmo tempo, intercedem junto do Senhor e transmitem aos homens a lei que é uma chamada à verdadeira vida, que liberta dos ídolos e torna toda a existência infinitamente bela e preciosa! Por sua parte, os jovens esperam com impaciência que façamos com que descubram o rosto de Deus, que lhes mostremos a via a seguir, o caminho do encontro pessoal com Deus e os actos humanos dignos da nossa filiação divina, um caminho sem dúvida que exige esforço, mas o único caminho de libertação que satisfará o seu desejo de felicidade. Quando estivermos com Deus no monte da oração, deixemo-nos impregnar da sua luz, a fim de o nosso rosto resplandecer com a glória de Deus e convidar os homens a viverem desta felicidade divina, que é a vida em plenitude!

"Do Egipto chamei o Meu Filho". Oxalá todo o homem ouça o apelo de Deus da Aliança e descubra a alegria de ser filho!

Saúdo todos os irmãos e irmãs da Igreja no Sudão, alguns dos quais estão presentes aqui. Oro por vós!

Shukran! Shukran!

Obrigado! Obrigado!





PEREGRINAÇÃO JUBILAR AO MONTE SINAI

HOMILIA DE JOÃO PAULO II

NA MISSA CELEBRADA

NO MOSTEIRO DE SANTA CATARINA


26 de Fevereiro de 2000


Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. Neste ano do Grande Jubileu a nossa fé impele-nos a tornar-nos peregrinos na esteira de Deus. Contemplamos a via que Ele percorreu no tempo, revelando ao mundo o mistério magnífico do seu amor fiel por toda a humanidade. Hoje, com grande alegria e profunda emoção, o Bispo de Roma é peregrino no Monte Sinai, atraído por este monte santo que se ergue como monumento majestoso àquilo que Deus aqui revelou. Aqui revelou o seu nome! Aqui deu a sua Lei, os Dez Mandamentos da Aliança!

Inúmeros foram os que vieram a este lugar antes de nós! Aqui o Povo de Deus acampou (cf. Êx Ex 19,2); aqui o profeta Elias encontrou refúgio, numa caverna (cf. 1R 19,9); aqui o corpo da mártir Catarina encontrou o repouso eterno; aqui multidões de peregrinos, ao longo dos séculos, escalaram aquela que São Gregório de Nissa definiu a "montanha do desejo" (Vida de Moisés, II, 232); aqui gerações de monges velaram e oraram. Nós seguimos com humildade as suas pegadas, no "solo santo" onde o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob ordenou a Moisés que libertasse o seu povo (cf. Êx Ex 3,5-8).

1396 2. Deus revela-se de modos misteriosos, como o fogo que não se consome, segundo uma lógica que desafia tudo aquilo que conhecemos e que esperamos. É o Deus que ao mesmo tempo está próximo e distante; está no mundo, mas não é do mundo. É o Deus que vem ao nosso encontro, mas que não será possuído. Ele é "EU SOU AQUELE QUE SOU", o abismo divino no qual essência e existência são uma só coisa! É o Deus que é o Ser em si mesmo! Diante desse mistério, como podemos deixar de "tirar as sandálias", como Ele ordena, e não adorá-l'O neste solo sagrado?

Aqui, no Monte Sinai, a verdade de "quem é Deus" tornou-se fundamento e garantia da Aliança. Moisés entra na "obscuridão luminosa" (Vida de Moisés, II, 164), e neste lugar foi-lhe dada a lei escrita "pelo dedo de Deus" (
Ex 31,18). O que é esta lei? É a lei da vida e da liberdade!
Junto do Mar Vermelho o povo experimentara uma grande libertação. Tinha visto a força e a fidelidade de Deus, descobrira que Ele é o Deus que, na realidade, torna livre o seu povo, como havia prometido. Contudo, agora no cume do Sinai, este mesmo Deus sela o seu amor estreitando a Aliança, à qual jamais renunciará. Se o povo observar a Sua lei, conhecerá a liberdade para sempre. O Êxodo e a Aliança não são simplesmente eventos do passado, eles são o destino eterno de todo o Povo de Deus!

3. O encontro entre Deus e Moisés neste Monte conserva no coração da nossa religião o mistério da obediência que nos torna livres, que encontra o seu cumprimento na obediência perfeita de Cristo na Encarnação e na Cruz (cf. Fl Ph 2,8 He 5,8-9). Também nós seremos verdadeiramente livres se aprendermos a obedecer como fez Jesus (cf. Hb He 5,8).

Os Dez Mandamentos não são a imposição arbitrária de um Senhor tirânico. Eles foram escritos na pedra, mas antes de tudo foram impressos no coração do homem como Lei moral universal, válida em todos os tempos e lugares. Hoje como sempre, as Dez Palavras da lei fornecem a única base autêntica para a vida dos indivíduos, das sociedades e nações; hoje como sempre, elas são o único futuro da família humana.Salvam o homem da força destruidora do egoísmo, do ódio e da mentira. Evidenciam todas os falsos bens que o arrastam para a escravidão: o amor de si mesmo até à exclusão de Deus, a avidez do poder e do prazer que subverte a ordem da justiça e degrada a nossa dignidade humana e a do nosso próximo. Se nos afastarmos desses falsos ídolos e seguirmos a Deus que torna livre o seu povo e permanece com ele, então emergiremos como Moisés, depois de quarenta dias na montanha, "resplandecentes de glória" (São Gregório de Nissa, Vida de Moisés, II, 230), abrasados pela luz de Deus!

Observar os Mandamentos significa ser fiéis a Deus, mas significa também ser fiéis a nós mesmos, à nossa autêntica natureza e às nossas mais profundas aspirações. O vento que ainda hoje sopra do Sinai recorda-nos que Deus deseja ser honrado nas suas criaturas e no crescimento delas: Gloria Dei, homo vivens. Neste sentido, aquele vento traz um convite insistente ao diálogo entre os seguidores das grandes religiões monoteístas, no seu serviço à família humana. Sugere que em Deus podemos encontrar o ponto do nosso encontro: em Deus, o Omnipotente e Misericordioso, Criador do universo e Senhor da História, que no final da nossa existência terrena nos julgará com justiça perfeita.

4. A leitura do Evangelho que acabámos de escutar, sugere que o Sinai encontra o seu cumprimento noutra montanha, o Monte da Transfiguração, onde Jesus aparece aos seus Apóstolos resplandecente da glória de Deus. Moisés e Elias estão com Ele para testemunhar que a plenitude da revelação de Deus se encontra em Cristo glorificado.

No Monte da Transfiguração, Deus fala de uma nuvem, como fez no Sinai. Contudo, agora Ele diz: "Este é o Meu Filho muito amado: Escutai-O!" (Mc 9,7). Ordena-nos que escutemos o Seu Filho, porque "ninguém conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho O quiser revelar" (Mt 11,27). Desse modo, aprendemos que o verdadeiro nome de Deus é PAI! O nome que supera todos os outros nomes: ABBÁ! (cf. Gl Ga 4,6). Em Jesus aprendemos que o nosso verdadeiro nome é FILHO, FILHA! Aprendemos que o Deus do Êxodo e da Aliança torna livre o seu Povo porque é constituído de filhos e filhas, criados não para a escravidão, mas para "a liberdade da glória dos filhos de Deus" (Rm 8,21).

Por isso, quando São Paulo escreve que nós, "mediante o corpo de Cristo, morremos para a lei" (Rm 7,4), não deseja dizer que a Lei do Senhor tenha passado. Quer significar que os Dez Mandamentos agora se fazem ouvir através da voz do Filho predilecto. A pessoa que se tornou livre mediante Jesus Cristo é consciente de estar ligada não exteriormente por uma multidão de prescrições, mas interiormente pelo amor que se arraigou de modo profundo no seu coração. Os Dez Mandamentos são a lei da liberdade: não a liberdade de seguir as nossas paixões cegas, mas a liberdade de amar, de escolher aquilo que é bom em qualquer situação, mesmo quando fazê-lo seja um peso. Não obedecemos a uma lei impessoal; aquilo que se pede é que nos sujeitemos com amor ao Pai mediante Jesus Cristo, no Espírito Santo (cf. Rm Rm 6,14 Ga 5,18). Ao revelar-se a Si mesmo no Monte e tendo entregue a sua Lei, Deus revelou o homem ao homem. O Sinai está no centro da verdade sobre o homem e sobre o seu destino.

5. Na busca desta verdade, os monges deste Mosteiro montaram a sua tenda à sombra do Sinai. O Mosteiro da Transfiguração e de Santa Catarina tem todos os sinais do tempo e do tumulto humano, mas constitui um indómito testemunho do amor e da sabedoria divinos. Durante séculos, monges de todas as tradições cristãs viveram e oraram juntos neste mosteiro, escutando a Palavra, na qual habita a plenitude da sabedoria e do amor do Pai. Precisamente neste Mosteiro São João Clímaco escreveu A Escada do Paraíso, uma obra-prima espiritual que continua a inspirar monges e monjas, do Oriente e do Ocidente, de geração em geração. Tudo aquilo que se realizou sob a poderosa protecção da Grande Mãe de Deus. Já no terceiro século os cristãos egípcios se dirigiam a Ela com palavras repletas de confiança: sob a tua protecção encontramos refúgio, ó Santa Mãe de Deus! Sub tuum praesidium confugimus, sancta Dei Genitrix! No decurso dos séculos, este Mosteiro foi um excepcional lugar de encontro para pessoas de diferentes Igrejas, tradições e culturas. Oro para que no novo milénio o Mosteiro de Santa Catarina seja um farol luminoso, que chama as Igrejas a conhecerem-se melhor reciprocamente e a redescobrirem a importância aos olhos de Deus daquilo que nos une a Cristo.

6. Estou grato aos numerosos fiéis da Diocese de Ismayliah, guiados pelo Bispo Macários, que se uniram a mim nesta peregrinação ao Monte Sinai. O Sucessor de Pedro agradece-vos a solidez da vossa fé. Deus vos abençoe, a vós e às vossas famílias!

1397 O Mosteiro de Santa Catarina permaneça um oásis espiritual para os membros de todas as Igrejas em busca da glória do Senhor, que habita no Sinai (cf. Êx Ex 24,16). A visão desta glória impele-nos a exclamar repletos de alegria:

"Nós Vos damos graças, Pai Santo,
pelo vosso santo nome,
que fizestes habitar nos nossos corações" (Didaqué, X).

Amém!





NA MISSA DE BEATIFICAÇÃO DE 44 SERVOS DE DEUS


Domingo, 5 de Março de 2000




1. "Louvo-te, meu Deus Salvador, glorificando o teu nome porque... foste o meu apoio e me libertaste" (Si 51,1-2).

Tu, Senhor, foste o meu apoio! Sinto ressoar no coração estas palavras do Livro de Ben Sirá, enquanto contemplo os prodígios que Deus realizou na existência destes irmãos e irmãs na fé, que conquistaram a palma do martírio. Hoje tenho a alegria de os elevar à honra dos altares, apresentando-os à Igreja e ao mundo como um luminoso testemunho do poder de Deus na fragilidade da pessoa humana.

Tu, Deus, libertaste-me! Assim proclamam André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro e 28 Companheiros, Sacerdotes diocesanos, leigos e leigas; Nicolau Bunkerd Kitbamrung, Sacerdote diocesano; Maria Stella Adelaide Mardosewicz e 10 coirmãs, Religiosas professas da Congregação da Sagrada Família de Nazaré; Pedro Calugsod e André de Phú Yên, Leigos catequistas.

Sim, o Omnipotente foi o seu válido sustento no período da prova e agora experimentam a alegria da recompensa eterna. Estes dóceis servos do Evangelho, cujos nomes estão inscritos para sempre no céu, não obstante tenham vivido em momentos históricos distantes entre si e em contextos culturais muito diversos, são associados por uma idêntica experiência de fidelidade a Cristo e à Igreja. O que os une é a mesma e incondicional confiança no Senhor, e a mesma e profunda paixão pelo Evangelho.

Louvo-te, meu Deus Salvador! Com a oferta da sua vida pela causa de Cristo estes novos Beatos, os primeiros do Ano jubilar, proclamam que Deus é "Pai" (cf. ibid., v. 10), é "protector" e "ajuda" (ibid., v. 2); é o nosso Salvador, que acolhe a súplica de quantos confiam n'Ele de todo o coração (ibid., v. 11).

1398 2. São estes os sentimentos que invadem o nosso coração, ao evocarmos a significativa lembrança da celebração dos 500 Anos da Evangelização do Brasil, que acontece neste ano. Naquele imenso País, não foram poucas as dificuldades de implantação do Evangelho. A presença da Igreja foi-se afirmando lentamente, mediante a obra missionária de várias Ordens e Congregações religiosas e de Sacerdotes do clero diocesano. Os mártires que hoje são beatificados saíram, no fim do século XVII, das comunidades de Cunhaú e Uruaçu, no Rio Grande do Norte. André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro, Presbíteros, e 28 Companheiros leigos pertencem a essa geração de mártires que regou o solo pátrio, tornando-o fértil para a geração dos novos cristãos. Eles são as primícias do trabalho missionário, os Protomártires do Brasil. A um deles, Mateus Moreira, estando ainda vivo, foi-lhe arrancado o coração pelas costas, mas ele ainda teve forças para proclamar a sua fé na Eucaristia, dizendo: "Louvado seja o Santíssimo Sacramento".

Hoje, uma vez mais, ressoam aquelas palavras de Cristo, evocadas no Evangelho: "Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma" (
Mt 10,28). O sangue de católicos indefesos, muitos deles anónimos crianças, velhos e famílias inteiras servirá de estímulo para fortalecer a fé das novas gerações de brasileiros, lembrando sobretudo o valor da família como autêntica e insubstituível formadora da fé e geradora de valores morais.

3. "Vou louvar para sempre o teu Nome e cantar-te hinos de agradecimento" (Si 51,10). A vida sacerdotal do Padre Nicolau Bunkerd Kitbamrung foi um autêntico hino de louvor ao Senhor. Como homem de oração, o Padre Nicolau sobressaiu da doutrina da fé, na busca de quem estava desorientado e na caridade para com os pobres. Enquanto procurava constantemente tornar Cristo conhecido àqueles que nunca ouviram o Seu nome, o Padre Nicolau enfrentou as dificuldades da missão nas montanhas e na Birmânia. Todos conheciam o vigor da sua fé, quando ele perdoou as pessoas que falsamente o acusavam, privando-o da liberdade e causando-lhe mil sofrimentos. Na prisão, o Padre Nicolau encorajou os seus companheiros de cela, ensinou o catecismo e administrou os sacramentos. O seu testemunho de Cristo exemplificou as palavras de São Paulo: "Somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade, mas não somos vencidos por qualquer obstáculo; somos perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados. Sem cessar e por toda a parte levamos no nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo" (2Co 4,8-10). Através da intercessão do Beato Nicolau, a Igreja na Tailândia seja abençoada e revigorada no trabalho de evangelização e de serviço.

4. Deus foi verdadeiro "apoio e protecção" também para as mártires de Nowogródek, a Beata Maria Stella Mardosewicz e 10 coirmãs, Religiosas professas da Congregação da Sagrada Família de Nazaré. Ele ajudou-as durante toda a vida e depois no momento da terrível provação, quando esperaram a morte a noite inteira; foi-o sobretudo ao longo do caminho rumo ao lugar de execução e, por fim, ao instante do fuzilamento.

Onde é que elas encontraram a força para se entregarem a si mesmas em troca da salvação dos condenados à prisão de Nowogródek? Onde hauriram a audácia para aceitar com coragem a condenação a uma morte tão cruel e injusta? Deus tinha-as preparado lentamente para esse momento da maior prova. A semente da graça lançada no dia do santo Baptismo e depois cultivado com grande cuidado e responsabilidade, afundou as raízes e deu o fruto mais belo, que é o dom da vida. Cristo disse: "Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos" (Jn 15,13). Sim, não há amor maior do que este: estar pronto a dar a vida pelos irmãos.

Agradeço-vos, ó Beatas mártires de Nowogródek, o testemunho do amor, o exemplo de heroísmo cristão e a confiança na força do Espírito Santo. "Foi Cristo que vos escolheu e destinou para dardes fruto na vossa vida e para que o vosso fruto permaneça" (cf. Jo Jn 15,16). Sois a maior herança da Congregação da Sagrada Família de Nazaré. Sois a herança da inteira Igreja de Cristo para todos os tempos!

5. "Todo aquele que der testemunho de mim diante dos homens, também Eu darei testemunho dele perante o meu Pai que está no céu" (Mt 10,32). Desde a sua infância, Pedro Calugsod declarou-se inabalavelmente em favor de Cristo e respondeu com generosidade à sua chamada.

Os jovens de hoje podem haurir encorajamento e força do exemplo de Pedro, cujo amor a Jesus o inspirou a consagrar os anos da sua juventude à doutrina da fé como leigo catequista. Deixando a família e os amigos, Pedro aceitou de bom grado o convite que o Padre Diego de San Vitores lhe propusera, de partir com ele para a missão junto dos Chamorros. Num espírito de fé, caracterizado pela vigorosa devoção eucarística e mariana, Pedro assumiu o exigente trabalho que se lhe pedira, enfrentando com coragem os inumeráveis obstáculos e dificuldades que encontrava. Diante do perigo iminente, Pedro não abandonou o Padre Diego mas, como um "bom soldado de Cristo", preferiu morrer ao lado do missionário. Hoje, o Beato Pedro Calugsod intercede pelos jovens, em particular por aqueles da sua pátria filipina, enquanto os desafia. Jovens amigos, não hesiteis em seguir o exemplo de Pedro, que "agradou a Deus, e Deus amou-o" (Sg 4,10) e, tendo alcançado a perfeição em tão breve tempo, viveu uma vida plena (cf. ibid., v. 13).

6. "Todo aquele que der testemunho de mim diante dos homens, também Eu darei testemunho dele perante o meu Pai que está no céu" (Mt 10,32). André de Phú Yên, no Vietnã, fez suas estas palavras do Senhor com uma intensidade heróica. Desde o dia em que recebeu o Baptismo, quando tinha 16 anos, dedicou-se ao desenvolvimento de uma profunda vida espiritual. No meio das dificuldades, às quais se submetem as pessoas que aderem à fé cristã, viveu como fiel testemunha de Cristo ressuscitado, anunciando incessantemente o Evangelho aos seus irmãos no seio da associação de catequistas denominada "Casa de Deus". Por amor ao Senhor, dedicou todas as forças ao serviço da Igreja, assistindo os sacerdotes na sua missão e perseverando até à dádiva do próprio sangue, para permanecer fiel ao amor d'Aquele que se tinha consagrado totalmente. As palavras que repetia, ao caminhar com decisão ao longo da via do martírio, são a expressão daquilo que animava toda a sua existência: "Paguemos o amor com o amor ao nosso Deus, e a vida com a vida".

Hoje o Beato André, Protomártir do Vietnã, é apresentado como modelo à Igreja do seu País. Todos os discípulos de Cristo encontrem nele a força e o apoio na provação, tendo o cuidado de confirmar a sua intimidade com o Senhor, o seu conhecimento do mistério cristão, a sua fidelidade à Igreja e o seu sentido de missão!

7. "Não tenhais medo!" (Mt 10,31). Este é o convite de Cristo. Esta é também a exortação dos novos Beatos, que permaneceram firmes no seu amor a Deus e aos irmãos inclusive no meio das provas. O convite apresenta-se-nos como um encorajamento no Ano jubilar, tempo de conversão e de profunda renovação espiritual. Não nos atemorizem as provações e as dificuldades; não nos desanimem os obstáculos ao fazermos opções corajosas e coerentes com o Evangelho!

1399 O que podemos temer, se Cristo está connosco? Por que duvidar, se permanecemos ao lado de Cristo e assumimos o compromisso e a responsabilidade de ser seus discípulos? A celebração do Jubileu nos consolide nesta decidida vontade de seguir o Evangelho. Os novos Beatos servem-nos de exemplo e oferecem-nos a sua ajuda.

Maria, Rainha dos Mártires, que aos pés da Cruz compartilhou até ao fim o sacrifício do Filho, nos sustenha no corajoso testemunho da fé!



RITO DA BÊNÇÃO E IMPOSIÇÃO DAS CINZAS

NA BASÍLICA DE SANTA SABINA


Quarta-feira, 8 de Março de 2000


1. "Ó Deus, criai em mim um coração puro / e renovai no meu peito um espírito firme. / Não me rejeiteis para longe da vossa face, / não retireis de mim o vosso santo espírito" (Ps 51 [50], 12-13).

É assim que hoje, Quarta-Feira de Cinzas, reza o Salmista, o Rei David: Rei de Israel grande e poderoso, mas ao mesmo tempo frágil e pecador. No início destes quarenta dias de preparação para a Páscoa, a Igreja deposita as suas palavras nos lábios de todos aqueles que participam na austera Liturgia da Quarta-Feira de Cinzas.

"Criai em mim um coração puro... não retireis de mim o vosso santo espírito". Ouviremos ecoar esta invocação no nosso coração, enquanto daqui a pouco nos aproximaremos do altar do Senhor para receber, segundo uma antiquíssima tradição, as cinzas sobre a cabeça. Trata-se de um gesto rico de referências espirituais, um importante sinal de conversão e de renovação interior. Se for considerado em si mesmo, é um rito litúrgico simples, e contudo mais profundo do que nunca pelo conteúdo penitencial que exprime: com ele a Igreja recorda ao homem crente e pecador a sua fragilidade diante do mal e, sobretudo, a sua total dependência da infinita majestade de Deus.
A Liturgia prevê que o celebrante, ao impor as cinzas sobre a cabeça dos fiéis, pronuncie as palavras: "Recorda-te que és pó, e pó te hás-de tornar", ou então, "Converte-te e acredita no Evangelho".

2. "Recorda-te que... pó te hás-de tornar".

Desde o princípio a existência terrestre está inserida na perspectiva da morte. O nosso corpo é mortal, ou seja, assinalado pela inevitável perspectiva da morte. Vivemos com esta meta diante de nós: cada dia que passa nos aproximamos dela com progressão irrefreável. E a morte tem em si um pouco da aniquilação. Com a morte, parece que tudo termina para nós. E eis que, precisamente perante esta desconsoladora perspectiva, o homem consciente do seu pecado eleva um brado de esperança ao céu: "Ó Deus, criai em mim um coração puro, e renovai no meu peito um espírito firme. Não me rejeiteis para longe da vossa face, não retireis de mim o vosso santo espírito".

Também hoje o fiel, que se sente ameaçado pelo mal e pela morte, assim invoca a Deus, pois sabe que lhe é reservado um destino de vida eterna. Sabe que não é apenas um corpo condenado à morte por causa do pecado, mas que possui também uma alma imortal. Por isso, dirige-se a Deus Pai, que tem o poder de criar a partir de nada; a Deus Filho unigénito que, fazendo-se homem para a nossa salvação, morreu por nós e agora, ressuscitado, vive na glória; a Deus Espírito imortal, que chama à existência e volta a dar a vida.

"Criai em mim um coração puro, e renovai no meu peito um espírito firme". A Igreja inteira faz sua esta oração do Salmista. Trata-se de palavras proféticas, que penetram no nosso espírito neste dia singular, primeiro no itinerário quaresmal que nos há-de levar à celebração da Páscoa do Grande Jubileu do Ano 2000.


Homilias JOÃO PAULO II 1393