Homilias JOÃO PAULO II 1514


MISSA DA MEIA NOITE


Natal, 24 de Dezembro de 2000

1. «Hoje nasceu o nosso Salvador» (Ref. Salmo resp.)


Ressoa nesta noite, antigo e sempre novo o anúncio do Natal do Senhor.Ressoa para quem está alerta, como os pastores de Belém há dois mil anos; ressoa para quem aderiu ao apelo do Advento e permanecendo atento, está pronto a acolher a mensagem feliz que canta a liturgia: «Hoje nasceu o nosso Salvador».

Vigia o povo cristão; vigia o mundo inteiro, nesta noite de Natal que se une àquela memorável noite do ano passado, quando foi aberta a Porta Santa do Grande Jubileu, Porta da graça aberta de par em par para todos.

2. É como se a Igreja, em cada dia do Ano jubilar, jamais tivesse cessado de repetir: «Hoje nasceu o nosso Salvador». Este anúncio, que possui uma força inesgotável de renovação, ecoa nesta noite santa com particular vigor: é o Natal do Grande Jubileu, memória viva dos dois mil anos de Cristo, do seu nascimento prodigioso, que marcou o novo início da história. Hoje «o Verbo fez-Se homem e habitou entre nós» (Jn 1,14).

1515 «Hoje». Nesta noite, o tempo abre-se ao eterno, pois Vós, ó Cristo, nascestes entre nós vindo do alto. Do seio de uma Mulher, de todas a mais bendita, Vós viestes à luz, «Filho do Altíssimo». A vossa santidade santificou de uma vez por todas o nosso tempo: os dias, os séculos, os milénios. Com o vosso nascimento, fizestes do tempo um «hoje» de salvação.

3. «Hoje nasceu o nosso Salvador».

Celebramos nesta noite o mistério de Belém, o mistério de uma noite singular que está, de certa forma, no tempo e para além do tempo. No seio da Virgem nasceu um Menino, uma manjedoura serviu de berço para a Vida imortal.

Natal é a festa da vida, porque Vós, Jesus, vindo à luz como cada um de nós, abençoastes a hora do nascimento: uma hora que simbolicamente representa o mistério da existência humana, unindo a aflição à esperança, a dor à alegria. Tudo isto aconteceu em Belém: uma Mãe deu à luz; «veio ao mundo um homem» (
Jn 16,21), o Filho do homem. Mistério de Belém!

4. Com grande emoção interior, recordo os dias da minha peregrinação jubilar na Terra Santa. Volto com a mente àquela gruta onde tive a graça de permanecer em oração. Beijo em espírito aquela terra bendita onde germinou para o mundo a alegria imperecível.

Penso, com apreensão, nos Lugares santos e, especialmente, na cidade de Belém, onde, infelizmente, devido à difícil situação política, não poderão ter lugar, com a solenidade de costume, os sugestivos ritos do Santo Natal. Gostaria que nesta noite aquelas comunidades cristãs sentissem a plena solidariedade de toda a Igreja.

Estamos unidos convosco, caríssimos Irmãos e Irmãs, por uma oração particularmente intensa. Partilhamos o vosso temor pela sorte da toda a região médio-oriental. Queira o Senhor escutar a nossa invocação! Desta Praça, centro do mundo católico, ressoe uma vez mais, com renovado vigor, o anúncio dos anjos aos pastores: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do Seu agrado» (Lc 2,14).

A nossa confiança não pode vacilar, como também não pode faltar o assombro por aquilo que estamos a comemorar. Hoje nasce Aquele que dá a paz ao mundo.

5. «Hoje nasceu o nosso Salvador».

O Verbo chora numa manjedoura. Chama-se Jesus, que significa «Deus salva», porque Ele «salvará o povo dos seus pecados» (Mt 1,21).

Não é num palácio no que nasce o Redentor, que vem a instaurar o Reino eterno e universal. Nasce num estábulo e, permanecendo entre nós, acende no mundo o fogo do amor de Deus (cf. Lc Lc 12,49). Este fogo nunca mais se apagará.

1516 Possa este fogo arder nos corações como chama de caridade activa, que dê acolhimento e apoio a tantos irmãos provados pela necessidade e pelo sofrimento!

6. Senhor Jesus, que contemplamos na pobreza de Belém, fazei-nos testemunhas do vosso amor, daquele amor que Vos levou a despojar-Vos da glória divina, a fim de nascer entre os homens e morrer por nós.

Enquanto o Grande Jubileu entra na sua fase final, infundi em nós o Vosso Espírito, para que a graça da Encarnação suscite em todo o crente o empenho por uma correspondência mais generosa à vida nova recebida no Baptismo.

Fazei que a luz desta noite, mais brilhante que o dia, se difunda no futuro e oriente os passos da humanidade no caminho da paz.

Vós, o Príncipe da paz, Vós, o Salvador nascido hoje por nós, caminhai com a vossa Igreja, pela estrada que diante dela se abre no novo milénio.









                                                                       2001





NA CELEBRAÇÃO DO DIA MUNDIAL DA PAZ


1° de Janeiro de 2001


1. "Foram, então, à pressa, e encontraram Maria, José e o Recém-Nascido, deitado na manjedoura" (Lc 2,16).

Hoje, Oitava de Natal, com estas palavras a liturgia anima-nos a caminhar com renovado e consciente ardor rumo a Belém para adorar o Menino divino, que nasceu para nós. Convida-nos a seguir os passos dos pastores que, ao entrarem na gruta, reconhecem naquele pequeno ser humano, que "nasceu de uma mulher, submetido à Lei" (Ga 4,4), o Omnipotente que se fez um de nós. Ao lado dele, José e Maria são silenciosas testemunhas do prodígio do Natal. Eis o mistério que hoje também nós contemplamos com admiração: nasceu-nos o Senhor. Maria deu "à luz o Rei que governa o céu e a terra pelos séculos dos séculos" (cf. Sedúlio).

Ficamos extasiados diante da cena que o Evangelista nos narra. De modo particular, detemo-nos para contemplar os pastores. Como simples e alegres modelos da busca humana, especialmente no contexto do grande Jubileu, eles põem em evidência quais devem ser as condições interiores para o encontro com Jesus.

A serena ternura do Menino, a surpreendente pobreza em que Ele se encontra, a humilde simplicidade de Maria e de José transformam a vida dos pastores: assim, eles tornam-se mensageiros de salvação, evangelistas ante litteram. São Lucas escreve: "Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam visto e ouvido, conforme o anjo lhes tinha anunciado" (2, 20). Partiram felizes e enriquecidos por um acontecimento que tinha transformado a sua existência. Nas suas palavras encontra-se o eco de uma alegria interior, que se faz cântico: "Voltaram, glorificando e louvando a Deus".

1517 2. Neste Ano jubilar, também nós nos colocámos a caminho para encontrar Cristo, Redentor do homem. Atravessando a Porta Santa, experimentámos a sua presença misteriosa, graças à qual ao homem se dá a possibilidade de passar do pecado à graça, da morte à vida. O Filho de Deus, que por nós se fez homem, permitiu-nos ouvir o poderoso chamamento à conversão e ao amor.

Quantos dons e quantas ocasiões extraordinárias o grande Jubileu ofereceu aos fiéis! Na experiência do dom recebido e concedido, na recordação dos mártires, na escuta do brado dos pobres do mundo e nos testemunhos repletos de fé que nos foi transmitida pelos nossos irmãos crentes de todos os tempos, também nós entrevimos a presença salvífica de Deus na história.

Quase tocámos com a mão o seu amor que renova a face da terra. Daqui a alguns dias concluir-se-á este especial tempo de graça. Como aos pastores que acorreram para o adorar, Cristo pede aos fiéis, aos quais concedeu a alegria do Seu encontro, uma corajosa disponibilidade a partir de novo para anunciar o seu Evangelho, antigo e sempre novo.

Convida-os a vivificar a história e as culturas dos homens com a sua mensagem salvífica.

3. "Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus" (
Lc 2,20). Também nós, encorajados e enriquecidos da graça jubilar, iniciamos este novo ano que o Senhor nos dá. As palavras da primeira Leitura, que renovam a bênção do Criador, nos sirvam de conforto: "Javé te abençoe e guarde! Javé te mostre o seu rosto brilhante e tenha piedade de ti! Javé te mostre o seu rosto e te conceda a paz!" (Nb 6,24-26). O Senhor nos conceda a sua paz, a paz não como fruto de compromissos humanos, mas como surpreendente efeito do seu olhar benévolo sobre nós. Eis a paz que invocamos hoje, celebrando o XXXIV Dia Mundial da Paz.

É com imenso afecto que saúdo os ilustres Senhores Embaixadores do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, presentes nesta solene liturgia. Saúdo de forma especial o dilecto Bispo D. François Nguyên Van Thuân, Presidente do Pontifício Conselho "Justiça e Paz" e, juntamente com ele, os colaboradores no Dicastério que tem a tarefa específica de representar a solicitude do Papa e da Sé Apostólica para a promoção de um mundo mais justo e harmonioso. Saúdo as Autoridades e quantos quiseram intervir neste encontro de oração pela paz. Desejaria voltar a propor espiritualmente a todos a Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, durante o qual abordei um tema particularmente actual, o "Diálogo entre as culturas para uma civilização do amor e da paz".

4. Hoje, neste sugestivo quadro litúrgico, renovo a cada pessoa de boa vontade o premente apelo a percorrer com confiança e tenacidade a vereda do diálogo. Só assim as riquezas específicas, que caracterizam a história e a vida dos homens e dos povos, não se perderão mas, pelo contrário, poderão concorrer para a construção de uma nova era de fraterna solidariedade. O esforço de todos vise promover uma autêntica cultura da solidariedade e da justiça, intimamente "ligada ao valor da paz, objectivo primário de toda a sociedade, sobretudo da comunidade nacional e internacional" (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2001, n. 18).

Isto é ainda mais necessário no actual contexto mundial, que se tornou complexo devido à difundida mobilidade humana, à comunicação global e ao encontro nem sempre fácil entre as diversas culturas. Ao mesmo tempo, deve-se reafirmar com vigor a urgência de defender a vida, que é um bem fundamental da humanidade, uma vez que "não se pode invocar a paz e desprezar a vida" (Ibid., n. 19).

Dirigimos ao Senhor a nossa oração, para que o respeito destes valores fundamentais, património de todas as culturas, contribua para a edificação da almejada civilização do amor e da paz. Obtenha-nos isto Cristo, Príncipe da Paz, a quem contemplamos na pobreza do presépio.

5. "Maria, porém, conservava estes factos e meditava sobre eles no seu coração" (Lc 2,19).
Hoje a Igreja celebra a Solenidade de Maria, Mãe de Deus. Depois de a ter apresentado como Aquela que oferece o Menino à solícita busca dos pastores, o Evangelista Lucas dá-nos um ícone de Maria, simples e ao mesmo tempo majestoso. Maria é a mulher de fé, que reservou um lugar a Deus no seu coração, nos seus projectos, no seu corpo e na sua experiência de esposa e de mãe. Ela é a crente capaz de captar, na extraordinária vicissitude do Filho, o advento da "plenitude dos tempos" (Ga 4,4) em que Deus, escolhendo os caminhos simples da existência humana, decidiu comprometer-se pessoalmente na obra de salvação.

1518 A fé leva a Virgem Santíssima a percorrer veredas desconhecidas e imprevisíveis, continuando a conservar tudo no seu coração, ou seja, na intimidade do seu espírito, para corresponder com renovada adesão a Deus e ao seu desígnio de amor.

6. No início deste novo ano, é a Ela que dirigimos a nossa oração.

Ajuda-nos também a nós, ó Maria, a reconsiderar a nossa existência sempre com espírito de fé. Auxilia-nos a saber salvaguardar espaços de silêncio e de contemplação na frenética vida quotidiana. Faz com que nos orientemos sempre para as exigências da paz genuína, dom da Natividade de Cristo.

A ti, neste primeiro dia de 2001, confiamos as expectativas e as esperanças de toda a humanidade: "À vossa protecção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus: não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita!" (Liturgia das Horas).

Virgem Mãe de Deus, intercede por nós junto do teu Filho, para que o seu rosto resplandeça no caminho do novo milénio e cada homem possa viver na justiça e na paz. Amém!



FECHAMENTO DA PORTA SANTA




Solenidade da Epifania do Senhor

Sábado, 6 de Janeiro de 2001


1. «Virão adorar-Vos, Senhor, todos os povos da terra!».

Esta aclamação, repetida no Salmo Responsorial, exprime muito bem o significado da Solenidade da Epifania que hoje celebramos. Ao mesmo tempo ilustra o rito do encerramento da Porta Santa, que ocorre neste dia.

«Virão adorar-vos, Senhor...»: é uma visão que nos aponta para o futuro, faz-nos olhar para longe. Evoca-se a antiga profecia messiânica, que se cumprirá plenamente quando Cristo Nosso Senhor voltar gloriosamente no fim da história. Porém, ela teve já um primeiro cumprimento histórico e ao mesmo tempo profético, quando os Reis Magos vieram a Belém trazendo os seus dons. Foi o início da manifestação de Cristo - precisamente a sua “epifania” - aos representantes dos povos do mundo.

É uma profecia que se vai actuando gradualmente ao longo do tempo, à medida que o anúncio evangélico penetra no coração dos homens e se radica em todas as regiões da terra. Por acaso não foi o Grande Jubileu uma espécie de “epifania”? Vindo aqui a Roma, ou indo em peregrinação a qualquer outro lugar em tantas Igrejas jubilares, inumeráveis pessoas seguiram, de alguma forma, o rasto dos Magos, à procura de Cristo. A Porta Santa nada mais é senão o símbolo deste encontro com Ele. Cristo é a verdadeira “Porta Santa”, que nos dá acesso à casa do Pai e nos introduz na intimidade da vida divina.

1519 2. «Virão adorar-Vos, Senhor, todos os povos da terra!».

Sobretudo aqui, no centro da catolicidade, o grande afluxo de peregrinos vindos de todos os continentes ofereceu este ano uma imagem eloquente da marcha dos povos para Cristo. Eram pessoas das mais distintas categorias, movidas pelo desejo de contemplar a rosto de Cristo e alcançar sua misericórdia.

“Cristo, ontem e hoje / Princípio e fim / Alfa e Ómega. / A Ele pertence o tempo / e a eternidade. / A Ele a glória e o poder / para sempre” (Liturgia da Vigília Pascal). Sim, este é o hino que o Jubileu, no sugestivo horizonte da passagem para um novo milénio, quis elevar a Cristo, Senhor da história, dois mil anos após o seu nascimento. Hoje encerra-se oficialmente este ano extraordinário, mas ficam os dons

espirituais que nele foram concedidos; continua aquele grande “ano de graça” inaugurado por Cristo na sinagoga de Nazaré (cf. Lc
Lc 4,18-19) e que durará até ao fim dos tempos.

Ao encerrar-se hoje, com a Porta Santa, um “símbolo” de Cristo, permanece mais do que nunca aberto o Coração de Cristo. Ele continua dizendo à humanidade necessitada de esperança e de sentido: «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e aliviar-vos-ei» (Mt 11,28). Para além das numerosas celebrações e iniciativas que o caracterizaram, a grande herança que o Jubileu nos deixa é a experiência viva e consoladora do “encontro com Cristo”.

3. Hoje, desejamos dar voz ao agradecimento e louvor de toda a Igreja. Por isso, no termo desta celebração, cantaremos um solene Te Deum de acção de graças. O Senhor realizou maravilhas por nós, e cumulou-nos de misericórdia. Hoje, devemos fazer nosso o sentimento de alegria experimentado pelos Magos, quando iam a caminho de Cristo: «Ao ver a estrela, sentiram grande alegria» (Mt 2,10). Devemos imitá- los, sobretudo, quando depositam aos pés do Deus-Menino não só os seus dons, mas as suas vidas.

Neste Ano jubilar, a Igreja procurou com maior diligência desempenhar, para os seus filhos e para a humanidade, a função da estrela que orientou os passos dos Magos. A Igreja não vive para si própria, mas para Cristo. Ela quer ser a «estrela» que serve de ponto de referência, ajudando a encontrar o caminho que leva a Ele.

Na teologia patrística, gostavam de falar da Igreja como “mysterium lunae”, para ressaltar que ela, à semelhança da lua, não brilha com luz própria, mas reflecte a Cristo, o seu Sol. Apraz-me recordar que a Constituição dogmática sobre a Igreja do Concílio Vaticano II inicia precisamente com este pensamento: “A luz dos povos é Cristo”, “lumen gentium”! E os Padres conciliares continuavam exprimindo o seu ardente desejo de “iluminar com a luz de Cristo que resplandece no rosto da Igreja, todos os homens” (n. 1).

Mysterium lunae: o Grande Jubileu fez com que a Igreja vivesse uma intensa experiência desta sua vocação. Foi Cristo que ela apresentou neste ano de graça, evocando mais uma vez as palavras de Pedro: «Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna!» (Jn 6,68).

4. «Virão adorar-Vos, Senhor, todos os povos da terra!». Esta universalidade da chamada dos povos a Cristo manifestou-se este ano de modo ainda mais visível. Encontraram-se nesta Praça pessoas de todos os continentes e de todas as línguas. Daqui se elevou um cântico a tantas vozes, como sinfonia de louvor e anúncio de fraternidade.

Não poderia certamente neste momento lembrar os inúmeros encontros que vivemos. Vêm-me à memória as crianças que inauguraram o Jubileu com a sua irrefreável alegria, e os jovens que conquistaram Roma com o seu entusiasmo e a seriedade do seu testemunho. Penso nas famílias, que propuseram uma mensagem de fidelidade e de comunhão tão necessária ao nosso mundo, nos idosos, nos enfermos e nos deficientes que souberam oferecer um testemunho eloquente de esperança cristã. Tenho diante dos olhos o Jubileu daqueles que, no mundo da cultura e da ciência, com dedicação quotidiana se entregam à busca da verdade.

1520 A peregrinação que, há dois mil anos, registou a vinda dos Magos do Oriente até Belém à procura de Cristo recém-nascido, foi repetida este ano por milhões e milhões de discípulos de Cristo, que vieram não com “ouro, incenso e mirra”, mas trazendo o próprio coração rico de fé e necessitado de misericórdia.

5. Por isso, a Igreja hoje rejubila, vibrando com o apelo de Isaías: «Levanta-te e resplandece, chegou a tua luz... As nações caminharão à tua luz» (60,1.3). Não há, neste sentimento de alegria, qualquer vão triunfalismo. Como poderíamos cair nesta tentação, precisamente no fim de um ano tão intensamente penitencial? O Grande Jubileu ofereceu-nos uma ocasião providencial para realizar “a purificação da memória”, pedindo perdão a Deus pelas infidelidades dos filhos da Igreja nestes dois mil anos.

Diante de Cristo crucificado lembrámos que, não obstante a graça superabundante que faz “santa” a Igreja, nós, seus filhos, estamos amplamente marcados pelo pecado, e anuviamos o rosto da Esposa de Cristo: portanto, nenhuma auto-exaltação, mas uma grande consciência dos nossos limites e das nossas debilidades. Não podemos, porém, deixar de vibrar de alegria, daquela alegria interior a que o profeta nos convida, rica de gratidão e de louvor, pois se baseia na consciência dos dons recebidos e na certeza do amor perene de Cristo.

6. Agora é tempo de olhar para a frente, e a narração dos Magos pode, de certo modo, indicar-nos um roteiro espiritual. Primeiramente, eles dizem-nos que, quando se encontrou Cristo, é necessário saber deter-se e viver profundamente a alegria da intimidade com Ele. «Entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, adoraram-n’O» (
Mt 2,11); doravante as suas vidas são entregues àquele Menino, pelo qual tinham enfrentado as asperezas da viagem e as insídias dos homens. O cristianismo nasce, e continuamente regenera-se, a partir desta contemplação da glória de Deus que resplandece no rosto de Cristo.

Um rosto a ser contemplado, quase vislumbrando nos seus olhos os “traços” do Pai e deixando-se envolver pelo amor do Espírito. A grande peregrinação jubilar lembrou-nos esta dimensão trinitária fundamental da vida cristã: em Cristo encontramos também o Pai e o Espírito. A Trindade é a origem e a consumação. Tudo principia da Trindade, tudo retorna à Trindade.

E no entanto, como aconteceu com os Magos, esta imersão na contemplação do mistério não nos impede de caminhar, antes obriga-nos a partir para um novo trecho de caminho onde seremos anunciadores e testemunhas. «Regressaram à sua terra por outro caminho» (Mt 2,12). Os Magos foram, de certo modo, os primeiros missionários. O encontro com Cristo não os deteve em Belém, mas lançou-os pelas estradas do mundo. Ocorre partir de Cristo e, por isso mesmo, partir da Trindade.

7. Isto mesmo se espera de nós, caríssimos Irmãos e Irmãs, como fruto do Jubileu que hoje se encerra.

Em função deste compromisso que nos aguarda, assinarei dentro de pouco a Carta Apostólica “Novo millennio ineunte”, na qual proponho algumas linhas de reflexão que podem ajudar toda a comunidade cristã a “partir” com renovado ardor depois do empenho jubilar. Não se trata, evidentemente, de organizar, no futuro próximo, outras iniciativas de vastas proporções. Torna-se ao trabalho de sempre, que não é de forma alguma um descanso. Mas é necessário auferir da experiência jubilar os ensinamentos úteis para dar ao novo empenho uma inspiração e uma orientação eficazes.

8. Confio estas linhas de reflexão às Igrejas particulares, como uma “herança” do Grande Jubileu, para que as valorizem no âmbito da sua programação pastoral. Antes de mais, é urgente conservar o impulso à contemplação de Cristo, que nos foi dado pela experiência deste ano. No rosto humano do Filho de Maria, reconhecemos o Verbo feito carne, na plenitude da sua divindade e da sua humanidade. Os mais insígnes artistas - no Oriente e no Ocidente - debruçaram-se sobre o mistério daquele Rosto. Ele é sobretudo o Rosto que o Espírito, divino “iconógrafo”, desenha nos corações daqueles que O contemplam e O amam. Ocorre “partir de Cristo”, com o impulso do Pentecostes, com entusiasmo renovado. Partir d’Ele, inicialmente no empenho quotidiano da santidade, pondo-nos em atitude de oração e à escuta da sua palavra. Depois, partir d’Ele para testemunhar o Amor, pela prática da vida cristã marcada pela comunhão, pela caridade, pelo testemunho do mundo. Este é o programa que apresento nesta Carta Apostólica. Este poderia ficar reduzido somente a uma palavra: “Jesus Cristo!”.

No início do meu Pontificado e depois muitas vezes, bradei aos filhos da Igreja e ao mundo: “Abri, escancarai as portas a Cristo”. Desejo repeti-lo também, no fim deste Jubileu, no início deste novo milénio.

9. «Virão adorar-Vos, Senhor, todos os povos da terra!». Esta profecia está já realizada na Jerusalém celestial, onde todos os justos do mundo, e especialmente muitas Testemunhas de fé, se congregam misteriosamente; naquela cidade santa, não há mais sol, porque o seu sol é o Cordeiro. Lá os anjos e os santos unem a sua voz para cantar os louvores de Deus.

1521 A Igreja peregrina sobre a terra, na sua liturgia, no seu anúncio do Evangelho, no seu testemunho, faz ecoar cada dia aquele canto celestial. O Senhor permita que, neste movo milénio, ela cresça sempre mais em santidade, para ser na história verdadeira “epifania” do rosto misericordioso e glorioso de Cristo Nosso Senhor. Assim seja!



PALAVRAS DO SANTO PADRE


NA SOLENIDADE DA


EPIFANIA DO SENHOR



TE DEUM


6 de Janeiro de 2001




Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Com o cântico solene do Te Deum, daqui a pouco elevaremos a Deus a nossa acção de graças pelo inestimável dom que o Ano Santo constituiu para a Igreja e a humanidade.

Unem-se a nós na acção de graças as Dioceses do mundo inteiro, que viveram com intensidade este Jubileu, em constante comunhão com a Igreja de Roma. Não se podem esquecer a cordial participação de cristãos de outras Igrejas e Comunidades eclesiais, bem como a adesão por parte dos seguidores de outras Religiões na alegria dos cristãos por ocasião deste acontecimento extraordinário.

2. Neste momento, sinto a necessidade de expressar sentimentos de sincero reconhecimento às instituições e aos responsáveis do Governo italiano, da Região do Lácio, da Província e do Município de Roma, pelo compromisso generoso em benefício do bom êxito do Jubileu.
Agradeço ao Comité Central para o Grande Jubileu e àqueles que colaboraram nas suas várias comissões e articulações. Estou grato às pessoas responsáveis pelas sagradas liturgias e pelos tempos de oração; e àqueles que prestaram aos peregrinos o precioso serviço da escuta e das confissões.

Transmito um caloroso obrigado às Forças da Ordem, aos operadores dos serviços de hospitalidade, de informação e de assistência médica; à Agência romana para o Jubileu e aos cerca de setenta mil voluntários de todas as idades e proveniências, que se intercalaram sem interrupção ao longo de todo o Ano jubilar; às famílias que acolheram os peregrinos nas suas casas, especialmente os jovens. São deveras muitos aqueles que ofereceram a sua contribuição: nenhum deles se sinta excluído deste meu cordial e profundo agradecimento.

Além disso, não posso deixar de agradecer a quem contribuiu espiritualmente para o bom êxito do Jubileu: penso nas monjas e nos monges de clausura, assim como nas inumeráveis pessoas, de forma especial os idosos e os enfermos que, incessantemente, rezaram e ofereceram os seus sofrimentos pelo Jubileu. De modo particular, gostaria de agradecer aos doentes que em cada mês se encontraram na Basílica de Santa Maria Maior e a quantos se uniram a eles, oriundos de toda a Itália.

A todos, obrigado de coração!

Saudações


1522 Estimados peregrinos de expressão francesa, dirijo-vos uma cordial saudação. No termo do grande Jubileu, desejo que as vossas iniciativas jubilares dêem frutos de graça para vós, as vossas famílias e as vossas comunidades diocesanas. Estou convicto de que tudo quanto realizastes fará aumentar a fé no vosso país e contribuirá para melhorar a vida. Concedo a todos vós uma afectuosa Bênção apostólica.

É-me grato saudar as pessoas de língua inglesa, participantes neste acto conclusivo do grande Jubileu: as abundantes graças e bênçãos deste Ano Santo continuem a sensibilizar as vossas vidas e verdadeiramente cumulem os vossos lares, famílias e amigos, bem como o mundo inteiro, com os incessantes frutos da fé, da esperança e do amor!

Saúdo de coração os peregrinos provenientes dos países de língua alemã. Hoje fechou-se a Porta Santa, mas o acesso ao Cristo vivo permanece sempre aberto. Assim, o termo do grande Jubileu é contemporaneamente um importante início: Cristo deseja que recomeçemos. Como penhor disto, acompanhe-vos a Bênção permanente de Deus.

É com afecto que saúdo os peregrinos de língua espanhola. O encontro especial com Cristo, exigido por este grande Jubileu, e as graças alcançadas ao longo dele inspirem toda a vossa vida nos anos vindouros, fazendo de todos testemunhas do amor e da misericórdia de Deus.
Amados Irmãos e Irmãs de expressão portuguesa, o Jubileu foi realmente um ano de graça no Senhor. Levai aos vossos lares a certeza da paz e da misericórdia de Cristo, nossa Páscoa, e vivei com a firme esperança no Ressuscitado, porque Ele vos espera na Casa do Pai. Deus vos abençoe!

Desejo a todos os meus Compatriotas que os dons espirituais que nos foram concedidos durante o grande Jubileu perdurem e dêem frutos abundantes na vida pessoal, familiar e social. Cristo, "único Salvador do mundo", enriqueça a todos com a sua Bênção e vos conduza pelos caminhos do novo milénio.



HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

NA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA NA CAPELA SISTINA

Domingo, 7 de Janeiro de 2001




Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. A solenidade de hoje, que encerra o tempo de Natal, oferece-nos a oportunidade de irmos, como peregrinos ideais, às margens do Jordão para participar num misterioso acontecimento: o Baptismo de Jesus por parte de João Baptista. Ouvimos a narração evangélica: "Jesus, depois de baptizado, estava a rezar. Então o céu abriu-se, e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como pomba. E do céu veio uma voz: "Tu és o Meu Filho amado! Em Ti encontro o Meu agrado"" (Lc 3,21-22).

Por conseguinte, Jesus manifesta-se como o "Cristo", o Filho unigénito, objecto da predilecção do Pai. E desta forma Ele inicia a sua vida pública. Esta "manifestação" do Senhor dá continuidade à da Noite Santa na humildade do presépio e ao encontro de ontem com os Magos que adoram no Menino o Rei prenunciado pelas antigas Escrituras.

2. Também este ano tenho a alegria de administrar, numa ocasião tão significativa, o sacramento do Baptismo a alguns recém-nascidos. Saúdo os pais, os padrinhos e as madrinhas, e todos os familiares que os acompanharam.

1523 Daqui a pouco estas crianças tornar-se-ão membros vivos da Igreja. Serão ungidos com o óleo dos Catecúmenos, sinal humilde da fortaleza de Cristo, que lhes é dada para lutar contra o mal. Sobre eles será infundida a água benta, sinal eficaz da purificação interior mediante o dom do Espírito Santo. Receberão depois a unção com o Crisma, que indica que desta forma são consagrados à imagem de Jesus, o Ungido do Pai. A vela acesa no círio pascal é símbolo da luz da fé que os pais, os padrinhos e madrinhas deverão continuamente preservar e alimentar, com a vivificante graça do Espírito.

Dirijo-me portanto a vós, queridos pais, padrinhos e madrinhas. Tendes hoje a alegria de oferecer a estes meninos o dom mais bonito e precioso: a vida nova em Jesus, Salvador de toda a humanidade.

A vós, pais e mães, que já colaborastes com o Senhor ao gerar estes pequeninos, Ele pede uma ulterior colaboração. Pede-vos que ajudeis a acção da sua Palavra salvífica mediante o empenho da educação destes novos cristãos. Estai sempre dispostos a desempenhar fielmente esta tarefa.

Também de vós, padrinhos e madrinhas, Deus espera uma colaboração particular, que se exprime no apoio dado aos pais ao educar estes meninos de acordo com os ensinamentos do Evangelho.

3. O Baptismo cristão, corroborado pelo sacramento da Confirmação, torna todos os crentes, cada um nas modalidades típicas da sua vocação específica, co-responsáveis da grande missão da Igreja. Cada um no seu âmbito, com a própria identidade, em comunhão com os outros e com a Igreja, deve sentir-se solidário com o único Redentor do género humano.

Isto recorda-nos quanto acabamos de viver no Ano jubilar. Nele a vitalidade da Igreja mostrou-se aos olhos de todos. Para o cristão permanece, como herança deste acontecimento extraordinário, a tarefa de confirmar a própria fé no contexto ordinário da vida quotidiana.

Confiamos à Virgem Santa estas pequeninas criaturas que dão os seus primeiros passos na vida. Pedimos-lhe que ajude a nós, em primeiro lugar, a caminhar de modo coerente com o Baptismo que um dia recebemos. Pedimos-lhe depois, que estes pequeninos revestidos com as vestes brancas, sinal da nova dignidade de filhos de Deus, sejam ao longo de toda a sua vida autênticos cristãos e testemunhas corajosas do Evangelho. Louvado seja Jesus Cristo!



ENCERRAMENTO DA SEMANA DE ORAÇÃO PELA UNIDADE DOS CRISTÃOS




Basílica de São Paulo fora dos Muros

25 de Janeiro de 2001




1. "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jn 14,6). Estas palavras do Evangelho de João iluminaram, como uma lâmpada, a Semana de oração pela unidade dos cristãos que hoje se conclui; elas resplandecem como uma espécie de programa para o novo milénio, em que entrámos.

Sinto-me feliz por dirigir uma deferente e cordial saudação aos Delegados das Igrejas e Comunidades eclesiais, que aceitaram o meu convite e hoje estão aqui presentes para participar desta celebração ecuménica da Palavra, com a qual desejamos concluir de maneira solene os dias dedicados a uma oração mais intensa pela grande causa que é muito querida a todos nós.
1524 Através dos Membros das Delegações aqui reunidas desejo fazer chegar aos responsáveis e aos fiéis das respectivas Confissões, juntamente com a minha saudação, um fraterno abraço de paz.

2. "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". O coração do homem, como o dos discípulos de Jesus, muitas vezes fica perturbado perante os acontecimentos imprevisíveis da existência (cf. Jo
Jn 14,1). Muitos, sobretudo jovens, interrogam-se acerca do caminho que devem percorrer. Na tempestade de palavras com que hoje em dia são assaltados, perguntam qual é a verdade, a direcção justa, como se pode vencer com a vida o poder da morte.

São interrogações fundamentais, que exprimem o despertar em muitas pessoas de uma saudade da dimensão espiritual da existência. A estas perguntas Jesus já respondeu quando afirmou: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". Hoje a tarefa dos cristãos é propor de novo, com a força do seu testemunho, este anúncio decisivo. Só desta forma a humanidade contemporânea poderá descobrir que Cristo é o poder e a sabedoria de Deus (cf. 1Co 1,24), que unicamente n'Ele se pode encontrar a plenitude de qualquer aspiração humana (cf. Gaudium et spes, GS 45).

3. O movimento ecuménico do século XX teve o grande mérito de reafirmar claramente a necessidade deste testemunho. Depois de séculos de separação, de incompreensões, de indiferença e, infelizmente, de oposições, voltou a surgir nos cristãos a consciência de que a fé em Cristo os une, e de que ela é uma força capaz de superar o que os divide (cf. Carta Encíclica Ut unum sint, UUS 20). Pela graça do Espírito Santo, com o Concílio Vaticano II, a Igreja católica empenhou-se de maneira irreversível em percorrer o caminho da busca ecuménica (cf. Ibid., 3).

Não se devem e não se podem diminuir as diferenças ainda existentes entre nós. O verdadeiro empenho ecuménico não procura compromissos e não faz concessões no que se refere à Verdade. Sabe-se que as separações entre os cristãos são contrárias à vontade de Cristo; sabe-se que elas são um escândalo, que enfraquece a voz do Evangelho. O seu esforço não é ignorá-las, mas superá-las.

Ao mesmo tempo, a consciência do que ainda falta para a plena comunhão faz com que apreciemos em maior medida o que já partilhamos. De facto, apesar dos mal-entendidos e dos numerosos problemas que ainda impedem que nos sintamos plenamente unidos, elementos importantes de santificação e de verdade da única Igreja de Cristo, mesmo fora das fronteiras visíveis da Igreja católica, impelem para a plena unidade (cf. Lumen gentium, LG 8,15); (Unitatis redintegratio, UR 3). Com efeito, para além dos limites da Igreja católica não existe o vazio eclesial (cf. Ut unum sint, UUS 13). Pelo contrário, existem muitos frutos do Espírito como, por exemplo, a santidade e o testemunho de Cristo, que por vezes chegou à efusão do sangue, que levam à admiração e à gratidão (cf. Unitatis redintegratio, UR 4 Ut unum sint, 12, 15).

Os diálogos que se desenvolveram, do Concílio Vaticano II em diante, originaram uma nova consciência da herança e da missão comum dos cristãos, e deram resultados muito significativos. Sem dúvida não atingimos a meta, mas demos importantes passos em frente. De estranhos e, muitas vezes, adversários como éramos, aproximámo-nos e tornámo-nos amigos. Descobrimos a fraternidade cristã. Sabemos que o nosso Baptismo nos insere no único Corpo de Cristo, numa comunhão que, não sendo ainda plena, contudo é real (cf. Ut unum sint, UUS 41 s.). Temos todas as razões para louvar o Senhor e para lhe agradecer.

4. Com sentimentos de profundo reconhecimento, repasso na mente o Ano jubilar. Ele registou, no empenho ecuménico, sinais verdadeiramente proféticos e impressionantes (cf. Novo millennio ineunte, 12).

Permanece vivo na memória o encontro nesta Basílica, no dia 18 de Janeiro de 2000, quando pela primeira vez uma Porta foi aberta na presença de Delegados das Igrejas e Comunidades eclesiais de todo o mundo. Aliás, o Senhor ainda me concedeu mais: pude passar o limiar daquela Porta, símbolo de Cristo, ladeado pelo representante do meu Irmão do Oriente, o Patriarca Bartolomeu e pelo próprio Primaz da Comunhão Anglicana. Por um instante - um instante muito breve! - caminhámos juntos. Como foi encorajadora aquela breve caminhada, sinal da providência de Deus ao longo do caminho que falta percorrer! Encontrámo-nos juntos com os representantes de numerosas Igrejas e Comunidades eclesiais em 7 de Maio, em frente do Coliseu, para a comemoração das Testemunhas da fé do século XX: sentimos aquela celebração como uma semente de vida para o futuro (cf. Novo millennio ineunte, 7, 41).

Aderi com alegria à iniciativa do Patriarca ecuménico, Bartolomeu I, de celebrar o milénio com um dia de oração e de jejum, na vigília da Transfiguração, no dia 6 de Agosto de 2000. Penso também com sentimentos de comoção interior nos encontros ecuménicos que pude ter durante a minha peregrinação ao Egipto, ao Monte Sinai e, sobretudo, à Terra Santa.

Recordo ainda com gratidão a visita da Delegação que me enviou o Patriarca ecuménico para a festa dos Santos Pedro e Paulo, e a visita do Patriarca Supremo e Catholicos de todos os Arménios, Karekin II. Nem posso esquecer as pessoas de tantos representantes das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, que encontrei em Roma nestes últimos meses.

1525 5. O Jubileu chamou também a nossa atenção, de maneira salutar, para as dolorosas separações que ainda existem. Não seria honesto encobri-las ou ignorá-las. Contudo, elas não devem transformar-se em acusações recíprocas ou provocar desânimo. O sofrimento devido às incompreensões ou mal-entendidos deve ser superado com a oração e a penitência, com gestos de amor, com a investigação teológica. As questões que ainda estão abertas não devem ser sentidas como um obstáculo ao diálogo, mas como um convite ao confronto franco e amigo. Volta a pergunta: Quanta est nobis via? (Quanto caminho falta?) Não nos é concedido sabê-lo, mas anima-nos a esperança de sermos guiados pela presença do ressuscitado e pela força inexaurível do seu Espírito, capaz de surpresas sempre novas (cf. Novo millennio ineunte, 12).

Fortalecidos por esta certeza, olhemos para o novo milénio. Ele está diante de nós como uma enorme extensão de água na qual devemos lançar as redes (cf. Lc
Lc 5,6 s). O meu pensamento dirige-se, sobretudo, aos jovens que edificarão o novo século e poderiam mudar o seu rumo. O nosso testemunho concorde é um dever em relação a eles.

6. Nesta perspectiva, a purificação da memória é uma tarefa fundamental. No segundo milénio estivemos opostos e divididos, condenámo-nos e combatemo-nos reciprocamente. Devemos esquecer as sombras e as feridas do passado e orientar-nos para a hora de Deus que vem (cf. Fil Ph 3,13).

Purificar a memória significa também construir uma espiritualidade de comunhão (Koinônia), à imagem da Trindade, que encarna e manifesta a própria essência da Igreja (cf. Novo millenio ineunte, NM 42). Devemos viver concretamente a comunhão que, apesar de não ser plena, já existe entre nós. Deixando para trás as incompreensões, devemos encontrar-nos, conhecer-nos melhor, aprender a amar-nos reciprocamente, colaborar fraternalmente juntos na medida do possível.

Contudo, o diálogo da caridade não seria sincero sem o diálogo da verdade. A superação das nossas diferenças requer uma séria busca teológica. Não podemos passar por cima das diferenças; não podemos modificar o depósito da fé. Mas podemos, sem dúvida, procurar aprofundar a doutrina da Igreja à luz das Sagradas Escrituras e dos Santos Padres, e explicá-la de forma que ela hoje seja compreensível.

Contudo, não nos é concedido "fazer a unidade". Ela é dom do Senhor. Por conseguinte, devemos rezar, como fizemos ao longo desta semana, para que nos seja concedido o Espírito da unidade. A Igreja católica, em cada celebração eucarística reza: "Senhor, não olheis para os nossos pecados, mas para a fé da vossa Igreja, e dai-lhe a unidade e a paz segundo a vossa vontade". A oração pela unidade encontra-se em cada Eucaristia. Ela é a alma de todo o movimento ecuménico (cf. Ut unum sint, UUS 21).

7. O novo ano que acabou de se iniciar é um tempo propício como nunca para testemunharmos juntos que Cristo é "o Caminho, a Verdade e a Vida". Teremos a oportunidade de o fazer, e já se delineiam ocasiões promissoras. Por exemplo, em 2001, todos os cristãos celebrarão a Ressurreição de Cristo na mesma data. Isto deveria encorajar-nos a encontrar um consenso para uma data comum para esta festa. A vitória de Cristo sobre a morte e sobre o ódio inspirou também a iniciativa do Conselho Ecuménico das Igrejas de dedicar os próximos dez anos a pôr termo à violência.

É grande a minha expectativa para as viagens que me levarão à Síria e à Ucrânia. O meu desejo é que elas contribuam para a reconciliação e a paz entre os cristãos. Far-me-ei mais uma vez peregrino, pelos caminhos do mundo a fim de testemunhar Cristo "Caminho, Verdade e Vida".
A vossa presença nesta celebração, caríssimos Delegados das Igrejas e Comunidades eclesiais, encoraja-me neste empenho, que sinto como parte essencial do meu ministério. Prossigamos juntos, com renovado impulso, no caminho para a plena unidade! Cristo caminha connosco.

A Ele a glória nos séculos dos séculos. Amen.





Homilias JOÃO PAULO II 1514