Homilias JOÃO PAULO II 1548


DURANTE A MISSA CRISMAL NA


BASÍLICA DE SÃO PEDRO


1549
Quinta-feira, 12 de abril de 2001





1. "Spiritus Domini super me, eo quod unxerit Dominus me O Espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor me ungiu" (
Is 61,1).

Nestes versículos, tirados do Livro de Isaías, está contido o tema condutor da Missa do Crisma. A nossa atenção concentra-se sobre a unção, dado que daqui a pouco serão benzidos o Óleo dos Catecúmenos, o Óleo dos Enfermos e o Crisma.

Vivemos esta manhã uma festa particular no sinal do "óleo da alegria" (Ps 44,8). É festa do povo de Deus, que hoje fixa o olhar no mistério da unção, que marca a vida de cada cristão, a partir do dia do Baptismo.

É festa, de maneira especial, de todos nós, caríssimos e venerados Irmãos no Sacerdócio, ordenados presbíteros para o serviço do povo cristão. Agradeço-vos cordialmente pela vossa numerosa presença: à volta do altar da Confissão de São Pedro. Vós representais o presbitério romano e, num certo sentido, o presbitério do mundo.

Celebramos a Missa crismal na vigília do Tríduo pascal, centro e auge do Ano litúrgico. Este sugestivo rito tira a sua luz, por assim dizer, do Cenáculo, isto é, do mistério de Cristo Sacerdote, que na Última Ceia se consagra a si próprio, antecipando o sacrifício cruento do Gólgota. É da Mesa eucarística que desce a sagrada unção. O Espírito divino difunde o seu perfume místico em toda a casa (cf. Jo Jn 12,3), ou seja, na Igreja, e torna sobretudo os sacerdotes partícipes da mesma consagração de Jesus (cf. Colecta).

2. "Misericordias Domini in aeternum cantabo Cantarei para sempre as maravilhas do Senhor" (Rito do Salmo responsorial).

Interiormente renovados pela experiência jubilar, há pouco concluída, entrámos no terceiro milénio levando no coração e nos lábios as palavras do Salmo: "Cantarei para sempre as maravilhas do Senhor". Cada baptizado é chamado a louvar e testemunhar o amor misericordioso de Deus com a santidade de vida, e assim também cada comunidade cristã. "Esta é a vontade de Deus escreve o apóstolo Paulo a vossa santificação" (1Th 4,3). E o Concílio Vaticano II esclarece: "Todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade" (Lumen gentium, LG 40).

Esta verdade fundamental, que deve ser interpretada como prioridade pastoral, diz respeito antes de tudo a nós, Bispos e a vós, caríssimos sacerdotes. Antes de interpelar o nosso "agir", interpela o nosso "ser". "Sede santos diz o Senhor porque Eu sou santo" (Lv 19,2); mas poder-se-ia acrescentar: sede santos, para que o povo que Deus vos confiou seja santo. A santidade do rebanho não deriva sem dúvida da do Pastor, mas é decerto favorecida, incentivada e alimentada por ela.

Escrevi na Carta, que envio todos os anos aos sacerdotes por ocasião da Quinta-Feira Santa: este "dia especial da nossa vocação, chama-nos a reflectir principalmente sobre o nosso "ser", e particularmente sobre o nosso caminho de santidade. É daí que brota também o dinamismo apostólico" (n. 6).

Quis acentuar o facto de que a vocação sacerdotal é "mistério de misericórdia" (ibid., 7). Como Pedro e Paulo, sabemos que somos indignos de um dom tão grande. Por isso, perante Deus não deixamos de sentir admiração e reconhecimento pela gratuidade com que nos escolheu, pela confiança que tem em nós, pelo perdão que nunca nos recusa (cf. ibid., 6).

1550 3. Caríssimos Irmãos e Irmãs, com este espírito renovaremos daqui a pouco as promessas sacerdotais. É um rito que adquire plenitude de valor e de significado precisamente como expressão do caminho de santidade, ao qual o Senhor nos chamou pelo caminho do sacerdócio. É um caminho que cada um percorre de maneira muito pessoal, conhecida somente por Deus, que perscruta e conhece os corações. Contudo, na liturgia de hoje, a Igreja oferece-nos a confortadora oportunidade de nos unirmos, de nos apoiarmos uns aos outros no momento em que repetimos com uma só vós: "Sim, quero".

Esta solidariedade fraterna não pode deixar de se tornar empenho concreto a carregar os pesos uns dos outros, nas circunstâncias ordinárias da vida e do ministério. De facto, se é verdade que ninguém se pode tornar santo em lugar de outro, é de igual modo verdade que todos podem e devem tornar-se santos com e para os outros, segundo o modelo de Cristo.

Não se alimenta porventura a santidade pessoal daquela espiritualidade de comunhão, que deve preceder e acompanhar sempre as iniciativas concretas de caridade? (cf. Novo millennio ineunte, 43). Para educar para ela os fiéis, é-nos pedido, a nós Pastores, que demos dela um testemunho coerente. Neste sentido, a Missa crismal assume uma extraordinária eloquência. De facto, entre as celebrações do Ano litúrgico, esta manifesta em maior medida o vínculo de comunhão existente entre o Bispo e os presbíteros entre si: é um sinal que o povo cristão espera e aprecia com fé e afecto.

4. "Vos autem sacerdotes Domini vocabimini, ministri Dei nostri dicetur vobis Sereis chamados sacerdotes do Senhor, e nomeados Ministros do nosso Deus" (
Is 61,6).

Assim se dirige o profeta Isaías aos Israelitas, profetizando os tempos messiânicos, nos quais todos os membros do povo de Deus iriam receber a dignidade sacerdotal, profética e real por obra do Espírito Santo. Tudo isto se realizou em Cristo com a nova Aliança. Jesus transmite aos seus discípulos a unção recebida do Pai, isto é, o "baptismo no Espírito Santo" que o constitui Messias e Senhor. Comunica-lhes o próprio Espírito; o seu mistério de salvação espera assim a sua eficácia até aos confins da terra.

Hoje, caríssimos Irmãos no Sacerdócio, agradecemos a unção sacramental que recebemos, e renovamos, ao mesmo tempo, o empenho de difundir sempre e em toda a parte o bom perfume de Cristo (cf. Oração depois da comunhão).

Ajude-nos a Mãe de Cristo, Mãe dos sacerdotes, à qual as Ladainhas se dirigem com o título de "Vas spirituale". Maria nos obtenha, frágeis vasos de barro, que sejamos repletos da unção divina. Ela nos ajude a nunca nos esquecermos de que o Espírito do Senhor nos "enviou para anunciar a boa nova aos povos". Dóceis ao Espírito de Cristo, seremos ministros fiéis do seu Evangelho. Sempre. Amen!



NA SOLENE COMEMORAÇÃO DA CEIA DO SENHOR


12 de Abril de 2001







1. "In supremae nocte Cenae /recumbens cum fratribus... Na noite da Última Ceia / Estando à mesa com os seus... / com as suas próprias mãos / Ele mesmo deu o alimento aos Doze".
É com estas palavras que o belo hino do "Pange lingua" apresenta a Última Ceia, em que Jesus nos deixou o admirável Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue. As leituras há pouco proclamadas ilustram o seu sentido profundo. Elas formam como que um tríptico: apresentam a instituição da Eucaristia, a sua prefiguração no Cordeiro pascal, a sua tradução existencial no amor e no serviço fraterno.

Foi o apóstolo Paulo, na primeira Carta aos Coríntios, a recordar-nos o que Jesus fez "na noite em que foi entregue". À narração do facto histórico, Paulo juntou o seu comentário: " sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha". (1Co 11,26). A mensagem do Apóstolo é clara: a comunidade que celebra a Ceia do Senhor actualiza a Páscoa. A Eucaristia não é simples memória de um rito passado, mas a viva representação do gesto supremo do Salvador. A comunidade cristã não pode deixar de se sentir impelida a fazer profecia do mundo novo, inaugurado na Páscoa. Contemplando, esta tarde, o mistério de amor que a Última Ceia nos recorda, permaneçamos, também nós, em comovida e silenciosa adoração.

1551 2. "Verbum caro / panem verum verbo carne efficit... O Verbo encarnado / transforma com a sua palavra / o verdadeiro pão na sua carne...".

É o prodígio que nós, secerdotes, tocamos em cada dia com as nossas mãos na santa Missa. A Igreja continua a repetir as palavras de Jesus, e sabe que está comprometida a fazê-lo até ao fim do mundo. Em virtude destas palavras realiza-se uma mudança admirável: permanecem as espécias eucarísticas, mas o pão e o vinho tornam-se, segundo a feliz expressão do Concílio de Trento, "verdadeira, real e substancialmente" o Corpo e o Sangue do Senhor.

O pensamento sente-se confuso frente a tão sublime mistério. Muitas interrogações se apresentam ao coração do crente, que todavia encontra paz na palavra de Cristo: "Et si sensus deficit / ad firmandum cor sincerum sola fides sufficit Se o sentido se perde / a fé basta por si só a um coração sincero". Sustentados por esta fé, por esta luz que ilumina os nossos passos mesmo na noite da dúvida e da dificuldade, nós podemos proclamar: "Tantum ergo Sacramentum / veneremur cernui A um Sacramento assim tão grande / prostrados, adoremos".

3. A instituição da Eucaristia põe-nos em relação com o rito pascal da primeira Aliança, que nos é descrito na página do Êxodo, há pouco proclamada: Fala-se do cordeiro "sem defeito, macho, e com um ano de idade" (12, 6), por cujo sacrifício o povo seria libertado do extermínio: "O sangue servirá de sinal nas casas em que residis: vendo o sangue, passarei adiante, e não sereis atingidos pelo flagelo destruidor" (12, 13).

O hino de S. Tomás comenta: "Et anticum documentum / novo cedat ritui ceda agora a antiga Lei / ao Sacrifício novo". Justamente, por isso, os textos bíblicos da Liturgia desta tarde orientam o nosso olhar para o novo Cordeiro, que com o sangue livremente derramado sobre a Cruz estabeleceu uma nova e eterna Aliança. Eis a Eucaristia, presença sacramental da carne imolada e do sangue derramado do novo Cordeiro. Nela são oferecidos a toda a humanidade a salvação e o amor. Como não nos deixarmos fascinar por este Mistério? Façamos nossas as palavras de S. Tomás de Aquino: "Praestet fides suplementum sensuum defectui Que a fé supra o defeito dos sentidos". Sim, a fé conduz-nos à contemplação e à adoração!

4. É neste ponto que o nosso olhar se dirige para o terceiro elemento do tríptico que forma a liturgia de hoje. Devemo-lo à narração do evangelista João, que nos apresenta a imagem perturbante do lavar dos pés. Com este gesto, Jesus recorda aos discípulos de todos os tempos que a Eucaristia pede que sejamos testemunhas no serviço do amor para com os irmãos. Ouvimos as palavras do Mestre divino: "Ora, se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros" (
Jn 13,14). É um novo estilo de vida que provém do gesto de Jesus: "Dei-vos o exemplo, para que, como Eu vos fiz, façais vós também" (Jn 13,15).

O lavar dos pés apresenta-se como um acto paradigmático, que na morte na cruz e na ressurreição de Cristo encontra a chave da sua leitura e a sua máxima explicitação. Neste acto de serviço humilde, a fé da Igreja vê o êxito natural de cada celebração eucarística. A autêntica participação na Missa não pode deixar de gerar o amor fraterno seja em cada crente, seja em toda a comunidade eclesial.

5. "Amou-os até ao fim" (Jn 13,1). A Eucaristia constitui o sinal perene do amor de Deus, amor que sustenta o nosso caminho para a plena comunhão com o Pai, através do Filho, no Espírito. É um amor que ultrapassa o coração do homem. Parando esta tarde para adorar o Santíssimo Sacramento, e meditando o mistério da Última Ceia, sentimo-nos mergulhados no oceano de amor que que brota do coração de Deus. Façamos nosso, com espírito agradecido o hino de acção de graças do povo redimido:

"Genitori Genitoque / laus et iubilatio... Ao Pai e ao Filho / louvor e júbilo / salvação, poder, bênção: / Àquele que procede de ambos /seja dada igual glória e honra!" Amen!



NA VIGÍLIA PASCAL

Sábado Santo, 14 de abril de 2001




1. «Por que motivo procurais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui; ressuscitou!» (Lc 24,5-6).

1552 Estas palavras de dois homens «com vestes resplandecentes» reacendem a confiança nas mulheres que foram ao sepulcro, ao raiar do dia. Tinham vivido os acontecimentos trágicos que culminaram na crucifixão de Cristo no Calvário; tinham conhecido a tristeza e a confusão. Mas não tinham abandonado o seu Senhor, na hora da provação.

Às escondidas, dirigem-se ao lugar onde Jesus tinha sido sepultado, para vê-Lo uma vez mais e abraçá-Lo pela última vez. Fazem-no impelidas pelo amor; aquele mesmo amor que as tinha levado a segui-Lo pelos caminhos da Galileia e da Judeia até ao Calvário.

Mulheres felizardas! Não sabiam ainda que aquela era a madrugada do dia mais importante da história. Não podiam saber que elas, elas mesmas, haveriam de ser as primeiras testemunhas da ressurreição de Jesus.

2. «Encontraram a pedra deslocada da frente do túmulo» (24, 2).

Assim o diz o evangelista Lucas, e acrescenta que, «ao entrarem, não acharam o corpo do Senhor Jesus» (24, 3). Num momento só, tudo muda. Jesus «não está aqui, ressuscitou». Este anúncio, que mudou em alegria a tristeza daquelas piedosas mulheres, ressoa com inalterável eloquência na Igreja, durante esta Vigília pascal.

Singular Vigília duma noite singular. Mãe de todas as Vigílias, é a vigília durante a qual a Igreja inteira permanece à espera junto do túmulo do Messias, sacrificado na Cruz. A Igreja espera e reza, ouvindo novamente as Escrituras que repercorrem toda a história da salvação.

Nesta noite, porém, não são as trevas que predominam, mas o fulgor duma luz inesperada, que irrompe com o anúncio desconcertante da ressurreição do Senhor. A espera e a oração tornam-se então um cântico de júbilo: «Exultet iam angelica turba caelorum...» - «Exulte de alegria a multidão dos Anjos...».

Inverte-se completamente a perspectiva da história: a morte cede a passagem à vida. Vida que não morrerá mais. Daqui a pouco cantaremos, no Prefácio, que Cristo «morrendo destruiu a morte e ressuscitando restaurou a vida». Eis a verdade que proclamamos por palavras, e sobretudo com a nossa existência. Aquele que as mulheres julgavam morto, está vivo. A experiência delas torna-se a nossa.

3. Ó Vigília recheada de esperança, que exprimes em plenitude o sentido do mistério! Ó Vigília rica de símbolos, que manifestas o coração mesmo da nossa existência cristã! Nesta noite, tudo se resume prodigiosamente num nome: o nome de Cristo ressuscitado.

Ó Cristo, como não agradecer-Vos pelo dom inefável que nos concedeis nesta noite? O mistério da vossa morte e ressurreição transvasa-se para a água baptismal, que acolhe o homem antigo e carnal e purifica-o conferindo-lhe a própria juventude divina.

Daqui a pouco, seremos imersos no vosso mistério de morte e ressurreição, ao renovar as promessas baptismais; nele serão imersos especialmente os catecúmenos que receberão o Baptismo, o Crisma e a Eucaristia.

1553 4. Queridos Irmãos e Irmãs catecúmenos, de todo o coração vos saúdo e, em nome da Comunidade eclesial, vos acolho com afecto fraterno. Vindes de nações diversas: Japão, Itália, China, Albânia, Estados Unidos da América e Perú.

A vossa presença nesta Praça exprime a multiplicidade das culturas e dos povos que abriram o seu coração ao Evangelho. Nesta noite, também para vós, como aliás para todo o baptizado, a morte cede a passagem à vida. O pecado é apagado e começa uma existência inteiramente nova. Perseverai até ao fim na fidelidade e no amor. E, ao enfrentardes as provas, não temais, porque, «uma vez ressuscitado dos mortos, Cristo já não pode morrer; a morte já não tem domínio sobre Ele» (
Rm 6,9).

5. É verdade, Irmãos e Irmãs queridos, Jesus está vivo, e nós vivemos por Ele. Para sempre. Eis o dom desta noite, que desvendou definitivamente ao mundo a força de Cristo, Filho da Virgem Maria, que nos foi dada por Mãe aos pés da Cruz.

Esta Vigília introduz-nos num dia que não conhece ocaso. Dia da Páscoa de Cristo, que inaugura para a humanidade uma nova primavera de esperança.

«Haec dies quam fecit Dominus: exsultemus et laetemur in ea» - «Este é o dia que o Senhor fez; exultemos e alegremo-nos nele». Aleluia!



NA CELEBRAÇÃO DA MISSA NO "DOMINGO DA DIVINA MISERICÓRDIA"


Domingo, 22 de abril de 2001



"Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último. O que vive; conheci a morte, mas eis-Me aqui vivo pelos séculos dos séculos" (Ap 1,17-18).

Ouvimos na segunda leitura, tirada do livro do Apocalipse, estas palavras confortadoras. Elas convidam-nos a dirigir o olhar para Cristo, para experimentar a sua presença tranquilizadora. A cada um, seja qual for a condição em que se encontre, até a mais complexa e dramática, o Ressuscitado responde: "Não temas!"; morri na cruz, mas agora "vivo pelos séculos dos séculos"; "Eu sou o Primeiro e o Último. O que vive".

"O Primeiro", isto é, a fonte de cada ser e a primícia da nova criação: "O Último", o fim definitivo da história; "O que vive", a fonte inexaurível da Vida que derrotou a morte para sempre. No Messias crucificado e ressuscitado reconhecemos os traços do Anjo imolado no Gólgota, que implora o perdão para os seus algozes e abre para os pecadores penitentes as portas do céu; entrevemos o rosto do Rei imortal que já tem "as chaves da Morte e do Inferno" (Ap 1,18).


2. "Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterno o Seu amor" (Ps 117,1). Façamos nossa a exclamação do Salmista, que cantamos no Salmo responsorial: porque é eterno o amor do Senhor! Para compreendermos profundamente a verdade destas palavras, deixemo-nos conduzir pela liturgia ao centro do acontecimento da salvação, que une a morte e a ressurreição de Cristo à nossa existência e à história do mundo. Este prodígio de misericórdia mudou radicalmente o destino da humanidade. É um prodígio em que se abre em plenitude o amor do Pai que, pela nossa redenção, não se poupa nem sequer perante o sacrifício do seu Filho unigénito.

Em Cristo humilhado e sofredor, crentes e não-crentes podem admirar uma solidariedade surpreendente, que o une à nossa condição humana para além de qualquer medida imaginável. Também depois da ressurreição do Filho de Deus, a Cruz "fala e não cessa de falar de Deus Pai, que é absolutamente fiel ao seu eterno amor para com o homem... Crer neste amor significa acreditar na misericórdia" (Dives in misericordia, DM 7).

1554 Desejamos dar graças ao Senhor pelo seu amor, que é mais forte do que a morte e do que o pecado. Ele revela-se e torna-se actuante como misericórdia na nossa existência quotidiana e convida todos os homens a serem, por sua vez, "misericordiosos" como o Crucificado. Não é porventura amar a Deus e amar o próximo e até os "inimigos", seguindo o exemplo de Jesus, o programa de vida de cada baptizado e de toda a Igreja?

3. Com estes sentimentos, celebramos o segundo Domingo de Páscoa, que desde o ano passado, ano do Grande Jubileu, também é chamado "Domingo da Divina Misericórdia". É para mim uma grande alegria poder unir-me a todos vós, queridos peregrinos e devotos provenientes de várias nações para comemorar, à distância de um ano, a canonização da Irmã Faustina Kowalska, testemunha e mensageira do amor misericordioso do Senhor. A elevação às honras dos altares desta humilde Religiosa, filha da minha Terra, não significa um dom só para a Polónia, mas para a humanidade inteira. De facto, a mensagem da qual ela foi portadora constitui a resposta adequada e incisiva que Deus quis oferecer às interrogações e às expectativas dos homens deste nosso tempo, marcado por grandes tragédias. Jesus, um dia disse à Irmã Faustina: "A humanidade não encontrará paz, enquanto não tiver confiança na misericórdia divina" (Diário, pág. 132). A Misericórdia divina! Eis o dom pascal que a Igreja recebe de Cristo ressuscitado e oferece à humanidade no alvorecer do terceiro milénio.

4. O Evangelho, que há pouco foi proclamado, ajuda-nos a compreender plenamente o sentido e o valor deste dom. O evangelista João faz-nos partilhar a emoção sentida pelos Apóstolos no encontro com Cristo depois da sua ressurreição. A nossa atenção detém-se no gesto do Mestre, que transmite aos discípulos receosos e admirados a missão de serem ministros da Misericórdia divina. Ele mostra as mãos e o lado com os sinais da paixão e comunica-lhes: "Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós" (
Jn 20,21). Imediatamente a seguir, "soprou sobre eles e disse-lhes: recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoardos, àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos" (Jn 20,22-23). Jesus confia-lhes o dom de "perdoar os pecados", dom que brota das feridas das suas mãos, dos seus pés e sobretudo do seu lado trespassado. Dali sai uma vaga de misericórdia para toda a humanidade.

Revivemos este momento com grande intensidade espiritual. Também hoje o Senhor nos mostra as suas chagas gloriosas e o seu coração, fonte ininterrupta de luz e de verdade, de amor e de perdão.

5. O Coração de Cristo! O seu "Sagrado Coração" deu tudo aos homens: a redenção, a salvação, a santificação. Deste Coração superabundante de ternura Santa Faustina Kowalska viu sair dois raios de luz que iluminavam o mundo. "Os dois raios segundo quanto o próprio Jesus lhe disse representam o sangue e a água" (Diário, pág. 132). O sangue recorda o sacrifício do Gólgota e o mistério da Eucaristia; a água, segundo o rico simbolismo do evangelista João, faz pensar no baptismo e no dom do Espírito Santo (cf. Jo Jn 3,5 Jn 4,14).

Através do mistério deste coração ferido, não cessa de se difundir também sobre os homens e as mulheres da nossa época o fluxo reparador do amor misericordioso de Deus. Quem aspira à felicidade autêntica e duradoura, unicamente nele pode encontrar o seu segredo.

6. "Jesus, confio em Ti". Esta oração, querida a tantos devotos, exprime muito bem a atitude com que também nós desejamos abandonar-nos confiantes nas tuas mãos, ó Senhor, nosso único Salvador.

Arde em Ti o desejo de seres amado, e quem se sintoniza com os sentimentos do teu coração aprende a ser construtor da nova civilização do amor. Um simples acto de abandono é o que basta para superar as barreiras da escuridão e da tristeza, da dúvida e do desespero. Os raios da tua divina misericórdia dão nova esperança, de maneira especial, a quem se sente esmagado pelo peso do pecado.

Maria, Mãe da Misericórdia, faz com que conservemos sempre viva esta confiança no teu Filho, nosso Redentor. Ajuda-nos também tu, Santa Faustina, que hoje recordamos com particular afecto. Juntamente contigo queremos repetir, fixando o nosso olhar frágil no rosto do divino Salvador: "Jesus, confio em Ti". Hoje e sempre. Amen.



CERIMÓNIA DE BEATIFICAÇÃO DE CINCO SERVOS DE DEUS


Domingo, 29 de Abril de 2001

1. "Ao surgir a manhã, Jesus apresentou-se na praia" (Jn 21,4). No alvorecer do dia, o Ressuscitado apareceu aos Apóstolos, que voltavam de uma noite de trabalho inútil no Lago de Tiberíades. O Evangelista especifica que nessa noite eles "não apanharam nada" (Ibid., v. 3), acrescentando que nada tinham para comer. Ao convite de Jesus: "Lançai a rede para o lado direito do barco e haveis de encontrar" (Ibid., v. 6), eles obedeceram sem hesitar. A sua resposta foi imediata, e grande a recompensa, pois em seguida a rede que ficara vazia de noite, "mal a podiam arrastar, devido à grande quantidade de peixes" (Ibidem).


1555 Como deixar de ver neste episódio, que São João narra no epílogo do seu Evangelho, um sinal eloquente daquilo que o Senhor continua a realizar na Igreja e no coração dos fiéis que confiam n'Ele sem reservas? Os cinco Servos de Deus, que neste dia tive a alegria de elevar às honras dos altares, constituem singulares testemunhas da extraordinária dádiva que Cristo ressuscitado concede a cada baptizado: o dom da santidade.

Bem-aventurados aqueles que tornam fecundo este dom misterioso, deixando que o Espírito Santo conforme a sua existência com Cristo morto e ressuscitado! Bem-aventurados sois vós que, como astros luminosos, brilhais hoje no firmamento da Igreja: Manuel González García, Bispo, Fundador da Congregação das Missionárias Eucarísticas de Nazaré; Carlos Manuel Cecílio Rodríguez Santiago, Leigo; Maria Ana Blondin, Virgem, Fundadora da Congregação das Irmãs de Santa Ana; Catarina Volpicelli, Virgem, Fundadora das Servas do Sagrado Coração; e Catarina Cittadini, Virgem, Fundadora das Irmãs Ursulinas de Somasca.

Cada um de vós, voltando-se para Cristo, fez do Evangelho a regra da sua existência. Assim, tornastes-vos seus discípulos fiéis, pois hauristes essa novidade de vida, que foi inaugurada pelo mistério da sua ressurreição, na fonte inexaurível do seu amor.

2. "O discípulo predilecto de Jesus disse a Pedro: "É o Senhor"" (Ibid., v. 7). No Evangelho escutámos que, após o milagre realizado, um discípulo reconhece Jesus. Depois, também os outros o farão. Ao apresentar-nos Jesus, que "se aproximou, tomou o pão e o deu" (Ibid., v. 13), a passagem evangélica indica-nos como e quando podemos encontrar-nos com Cristo ressuscitado: na Eucaristia, onde Jesus está realmente presente sob as espécies do pão e do vinho. Seria triste se, depois de tanto tempo, esta presença amorosa do Salvador ainda fosse desconhecida pela humanidade.

Tal foi a grande paixão do novo Beato Manuel Gongález García, Bispo de Málaga e em seguida de Palência. A experiência vivida em Palomares do Rio, diante de um santuário abandonado, marcou-o para toda a vida, e desde então passou a dedicar-se à propagação da devoção à Eucaristia, proclamando a frase que mais tarde quis que fosse o seu epitáfio: "Aqui está Jesus! Aqui está Ele! Não O deixeis abandonado!". Fundador das Missionárias Eucarísticas de Nazaré, o Beato Manuel González é um modelo de fé eucarística, cujo exemplo continua a falar também à Igreja contemporânea.

3. "Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-lhe "Quem és Tu?", por saberem que era o Senhor" (Ibid., v. 12). Quando os discípulos O reconhecem junto do lago de Tiberíades, consolida-se a sua certeza de que Cristo ressuscitou e está presente no meio dos seus. Há dois milénios, a Igreja não se cansa de anunciar e repetir esta verdade fundamental da fé.

A experiência do mistério pascal renova todas as coisas pois, como cantamos na proclamação pascal: "Afasta os pecados, lava as culpas, devolve a inocência aos que caíram e a alegria aos que estão tristes". Este espírito animou toda a existência de Carlos Manuel Rodríguez Santiago, primeiro porto-riquenho elevado à glória dos altares. O novo Beato, iluminado pela fé na ressurreição, compartilhava com todos o profundo significado do Mistério pascal, repetindo frequentemente: "Nós vivemos para esta noite", a noite da Páscoa. O seu fecundo e generoso apostolado consistia sobretudo em esforçar-se para que a Igreja em Porto Rico adquirisse consciência do grandioso acontecimento da nossa salvação.

Carlos Manuel Rodríguez pôs em evidência a chamada universal à santidade de todos os cristãos e a importância de que cada um dos baptizados lhe corresponda de maneira consciente e responsável. O seu exemplo ajude toda a Igreja de Porto Rico a ser fiel, vivendo com coerência firme os valores e os princípios cristãos recebidos na evangelização dessa Ilha.

4. Fundadora das Irmãs de Santa Ana, Maria Ana Blondin é o modelo de uma existência consagrada ao amor e imbuída do mistério pascal. Esta jovem camponesa do Canadá proporá ao seu Bispo a fundação de uma congregação religiosa para a educação das crianças pobres dos campos, com vista a pôr fim ao analfabetismo. Num grande espírito de abandono à Providência, de quem amará "o cuidado totalmente maternal", ela aceitará com humildade as decisões da Igreja e, até à sua morte, levará a cabo trabalhos modestos para o bem das suas coirmãs. As provações jamais alterarão o seu grande amor a Cristo e à Igreja, nem o seu cuidado pela formação de verdadeiras educadoras da juventude. Forjada por uma vida de humildade e de escondimento, Maria Ana Blondin encontrava a força interior na contemplação da Cruz, mostrando-nos que a vida de intimidade com Cristo é o modo mais seguro de dar misteriosamente frutos e de cumprir a missão desejada por Deus. Possa o seu exemplo despertar nas religiosas do seu Instituto e em numerosos jovens o gosto de servir a Deus e aos homens, em particular à juventude, a quem é importante oferecer os instrumentos de um autêntico desenvolvimento espiritual, moral e intelectual!

5. "Digno é o Cordeiro, que foi imolado, de receber... a honra, a glória e o louvor" (
Ap 5,12). Estas palavras, tiradas do Livro do Apocalipse e proclamadas na segunda Leitura, correspondem também à experiência mística da Beata Catarina Volpicelli. Na sua vida, totalmente consagrada ao Coração do Cordeiro imolado, distinguem-se três aspectos significativos: uma profunda espiritualidade eucarística, uma indómita fidelidade à Igreja e uma surpreendente generosidade apostólica.

A Eucaristia, por ela sempre adorada e transformada no centro da sua vida, a ponto de formular o voto de vítima expiatória, foi para ela escola de dócil e amorosa obediência a Deus. Ao mesmo tempo, foi nascente de amor terno e misericordioso ao próximo: nos mais pobres e marginalizados, amava o seu Senhor, prolongadamente contemplado no Santíssimo Sacramento.

1556 Da Eucaristia ela soube haurir sempre o ardor missionário que a levou a expressar a sua vocação na Igreja, submetida com docilidade aos Pastores e profeticamente comprometida na promoção do laicado e de novas formas de vida consagrada. Sem limitar os espaços da sua actividade, nem dar origem a instituições específicas, queria como ela mesma gostava de afirmar encontrar a solidão nas ocupações e um trabalho fecundo na solidão. Foi a primeira "zeladora" do Apostolado da Oração na Itália e deixa em herança, de forma especial às Servas do Sagrado Coração, uma singular missão apostólica que deve continuar a haurir incessantemente da fonte do Mistério eucarístico.

6. "Senhor, Tu sabes que te amo" (
Jn 21,15 cf. vv. Jn 16-17). A tríplice declaração de amor que segundo a página evangélica de hoje Pedro dirige ao Senhor, leva-nos a pensar em Catarina Cittadini. Durante a sua existência nada fácil, a nova Beata manifestou um amor incondicional ao Senhor. Esta sua profunda capacidade de amar, sustentada por um grande equilíbrio afectivo, é posta em evidência por quantos a puderam conhecer. Órfã desde a mais tenra idade, tornou-se então ela mesma mãe amorosa para as órfãs. E depois quis que as suas filhas espirituais fossem "mães" na escola e no contacto com as crianças.

Catarina esforçava-se por "ser de Cristo, a fim de levar a Cristo". Também para ela, o segredo foi a Eucaristia. Às suas primeiras colaboradoras, recomendava que cultivassem uma intensa vida espiritual na oração e, sobretudo, um contacto vital com Jesus eucarístico. Este conselho espiritual é hoje mais actual do que nunca, inclusivamente para aquelas pessoas que são chamadas a ser mestres na fé e que, nesta época de grandes transformações sociais, desejam transmitir os valores da cultura cristã às novas gerações!

7. "Nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo, que Deus tem concedido àqueles que lhe obedecem" (Ac 5,32). Façamos alegremente nossas as palavras que foram tiradas do Livro dos Actos dos Apóstolos e que ressoaram na nossa assembleia. Sim, somos testemunhas dos prodígios que Deus realiza em quantos "lhe obedecem".
Vislumbramos a verdade desta afirmação na vossa existência, ó novos Beatos que, a partir do dia de hoje, veneramos e invocamos como intercessores. A vossa heróica fidelidade ao Evangelho constitui uma prova da fecunda acção do Espírito Santo.

Ajudai-nos a percorrer, por nossa vez, o caminho da santidade, de maneira particular quando ele se torna cansativo. Sustentai-nos a fim de que conservemos o nosso olhar fixo n'Aquele que nos chamou. À vossa voz, à da Virgem Maria e à de todos os Santos, unamos também a nossa, para cantar: "Ao que está sentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas acções de graças, honra, glória e poder para todo o sempre" (Ap 5,13). Amen!







Homilias JOÃO PAULO II 1548