Homilias JOÃO PAULO II 1676


VIAGEM APOSTÓLICA À POLÓNIA

400° ANIVERSÁRIO DA DEDICAÇÃO DO SANTUÁRIO

DE KALWARIA ZEBRZYDOWSKA


JOÃO PAULO II
Santuário de Kalwaria Zedrzydowska

Segunda-feira 19 de agosto de 2002


"Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia
Salve, vida, doçura
e esperança nossa!".

Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Venho hoje a este Santuário como peregrino, como eu fazia quando era criança e na minha juventude. Apresento-me diante de Nossa Senhora de Kalwaria como quando vinha de Cracóvia para lhe confiar os problemas da Arquidiocese e daqueles que Deus tinha confiado aos meus cuidados pastorais. Venho aqui e, como naquela época, repito: Salve! Salve! Rainha, Mãe de Misericórdia!

Quantas vezes experimentei que a Mãe do Filho de Deus dirige os seus olhos misericordiosos para as preocupações do homem atormentado e obtém-lhe a graça de resolver os problemas difíceis e ele, com poucas forças, fica admirado com a força e com a sabedoria da Providência Divina. Porventura não o conheceram gerações inteiras de peregrinos, que vem aqui desde há quatrocentos anos? Sim, sem dúvida. Se nao fosse assim, nao se realizaria hoje esta celebração.

1677 Hoje, vós não estaríeis aqui, caríssimos, que percorreis os Caminhos de Kalwaria, seguindo as pegadas da Paixão e da Cruz de Cristo e o itinerário da compaixão e da glória da sua Mãe. Este lugar, de maneira admirável, ajuda o coração e a mente a penetrar o mistério daquele vínculo que uniu o Salvador que sofria e sua Mãe que o confortava. No centro deste mistério de amor, quem vem aqui encontra-se a si próprio, a sua vida, o seu dia-a-dia, a sua debilidade e, ao mesmo tempo, a força da fé e da esperança: aquela força que surge da convicção de que a Mãe nunca abandona o filho na desventura, mas condu-lo ao seu Filho e confia-o à sua misericórdia.

2. "Junto da cruz de Jesus estavam Sua mãe, a irmã de Sua mãe, Maria, mulher de Cléofas e Maria de Magdala" (
Jn 19,25). Aquela que estava unida ao Filho por vínculos de sangue e de amor materno, lá, aos pés da Cruz, vivia esta união no sofrimento. Só ela, apesar do sofrimento do coração de mãe, sabia que esse sofrimento tinha um sentido. Ela tinha confiança confiança apesar de tudo que se estava a realizar a antiga promessa: "Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça, ao tentares mordê-la no calcanhar" (Gn 3,15). E a sua confiança teve a sua confirmação, quando o Filho agonizante se dirigiu a ela: "Mulher!".

Podia ela naquele momento, aos pés da Cruz, pensar que dali a pouco, passados três dias, a promessa de Deus se realizaria? Isto será para sempre um segredo do seu coração. Mas sabemos uma coisa: ela, a primeira entre todos os seres humanos, participou na glória do Filho ressuscitado. Ela como cremos e professamos foi elevada ao céu em corpo e alma para viver a união na glória, para rejubilar ao lado do Filho com os frutos da Misericórdia Divina e obtê-los àqueles que nela procuram refúgio.

3. O vínculo misterioso do amor. Como o exprime, este lugar, de maneira maravilhosa! A história afirma que no início do século XVII Mikolaj Zebrzydowski, o fundador do Santuário, lançou as bases para construir a capela do Gólgota, seguindo o modelo da igreja da Crucifixão de Jerusalém. Deste modo, desejava, acima de qualquer outra coisa, fazer com que o mistério da paixão e da morte de Cristo estivesse próximo de si próprio e dos outros. Todavia, mais tarde, ao projectar a construção do caminho da Paixão do Senhor, do Cenáculo ao Sepulcro de Cristo, levado pela devoção mariana e pela inspiração de Deus quis colocar naquele caminho capelas que recordavam os acontecimentos de Maria. E assim surgiram outros caminhos e uma nova prática religiosa que, de certa forma, completam a Via Sacra: a celebração chamada Caminho da Compaixão da Mãe de Deus e de todas as mulheres que sofreram com ela. Há quatro séculos, sucedem-se gerações de peregrinos que voltam a percorrer aqui as pegadas do Redentor e de sua Mãe, obtendo abundantemente aquele amor que resistiu ao sofrimento e à morte, e na glória do céu encontrou a sua coroação.

Ao longo destes séculos, os peregrinos vieram acompanhados fielmente pelos Padres Franciscanos, chamados "Bernardinos", encarregados da assistência espiritual do Santuário de Kalwaria. Hoje quero exprimir-lhes a minha gratidão por esta predilecção a Cristo que sofreu e por sua Mãe que confortou; uma predilecção que derramou com fervor e dedicação nos corações dos peregrinos. Caríssimos Padres e Irmaos "Bernardinos", queira o bom Deus abençoar-vos neste ministério, agora e no futuro!

4. Em 1641 o Santuário de Kalwaria foi enriquecido por um dom particular. A Providência dirigiu para Kalwaria os passos de Estanislau Paskowski de Brzezie, para que confiasse aos Padres "Bernardinos" a imagem da Mãe Santíssima, que já se tornou famosa devido às suas graças quando estava na capela de família. Desde entao, e sobretudo a partir do dia da coroação, realizada em 1887 pelo Bispo de Cracóvia, Albin Sas Dunajewski com a aprovação do Papa Leão XIII, os peregrinos acabam a sua peregrinação pelos seus caminhos. No início, vinham aqui de todas as partes da Polónia, mas também da Lituânia, da Rus', da Eslováquia, da Boémia, da Hungria, da Morávia e da Alemanha. Afeiçoaram-se a ela particularmente os habitantes da Silésia, que ofereceram a coroa a Jesus, e a partir do dia da coroação participam todos os anos na procissão no dia da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria.

Como foi importante este lugar para a Polónia dividida pelas separações! Exprimiu isto D. Dunajewski, que depois se tornou Cardeal, durante a coroação, rezando do seguinte modo: "Neste dia Maria foi elevada ao céu e lá foi coroada. Na data comemorativa do aniversário deste dia, todos os Santos colocam as suas coroas aos pés da sua Rainha, e hoje também o povo polaco leva as coroas de ouro, para que, pelas mãos do Bispo, sejam colocadas na cabeça de Maria nesta imagem milagrosa. Recompensa-nos disto, ó Mae, para que sejamos um só entre nós e contigo". Assim rezava pela unificação da Polónia dividida. Hoje, depois dela se ter tornado uma unidade territorial e nacional, as palavras daquele Pastor nao perdem a sua actualidade, aliás, adquirem um novo significado. É preciso repeti-las hoje, pedindo a Maria que nos obtenha a unidade da fé, a unidade do espírito e do pensamento, a unidade das famílias e a unidade social. Por isso hoje rezo juntamente convosco: faz, ó Mãe de Kalwaria, com "que sejamos um só entre nós e contigo".

5. "Então, nossa Advogada
dirige para nós o teu olhar
misericordioso.
E mostra-nos, depois deste exílio
1678 Jesus, o fruto bendito do teu ventre.
Ó clemente, ó pia
ó doce Virgem Maria!".
Dirige, ó Senhora das graças,
o teu olhar para este povo
que permaneceu fiel ao longo
dos séculos a ti e ao teu Filho.
Dirige o olhar para esta nação
que sempre teve esperança
no teu amor de Mae.
Dirige para nós o olhar
1679 os teus olhos misericordiosos
obtém-nos aquilo
de que os teus filhos mais precisam.
Abre os corações dos abastados
às necessidades
dos pobres e dos que sofrem.
Faz com que os desempregados
encontrem um trabalho.
Ajuda os que estao desesperados
a encontrar uma casa.
Concede às famílias o amor
1680 que faz vencer todas as dificuldades.
Indica aos jovens o caminho
e as perspectivas para o futuro.
Abraça as crianças com o manto
da tua protecção
para que não sejam escandalizadas.
Anima as comunidades religiosas
com a graça da fé, da esperança
e da caridade.
Faz com que os sacerdotes
percorram as pegadas do teu Filho
1681 oferecendo todos os dias
a vida pelo seu rebanho.
Obtém aos Bispos a luz
do Espírito Santo, para que guiem
a Igreja nestas terras
para o Reino do teu Filho
por um único caminho direito.
Mãe Santíssima, Nossa Senhora
de Kalwaria, obtém também
para mim as forças do corpo
e do espírito, para que possa
1682 realizar até ao fim a missão que
me foi confiada pelo Ressuscitado.
A ti confio todos os frutos
da minha vida e do meu ministério.
A ti confio o destino da Igreja;
A ti entrego a minha nação

Em ti confio e declaro mais uma vez:

Totus tuus, Maria!
Totus Tuus. Amen.

Saudação

Eis que se está para concluir agora a minha peregrinação na Polónia, em Cracóvia. Estou contente porque a coroação desta visita se realiza precisamente em Kalwaria, aos pés de Maria. Desejo mais uma vez confiar-vos à sua protecção todos vós aqui reunidos, a Igreja na Polónia e todos os concidadãos. O seu amor seja fonte de graças abundantes para o nosso País e os seus habitantes.

1683 Quando visitei este santuário em 1979 pedi-vos que rezásseis por mim, enquanto for vivo e depois da minha morte. Hoje agradeço-vos a vós e a todos os peregrinos de Kalwaria estas orações, o apoio espiritual que recebo continuamente. E continuo a pedir-vos: não deixeis de rezar repito-o mais uma vez enquanto eu for vivo e depois da minha morte. E eu, como sempre, corresponderei à vossa benevolência recomendando-vos a todos a Cristo misericordioso e à sua Mãe.



HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

DURANTE A SANTA MISSA NAS EXÉQUIAS DO

CARDEAL LUCAS MOREIRA NEVES


Quarta-feira, 11 de Setembro de 2002

1. "In laudem gloriae gratiae suae" Ef 1, 6). As palavras do Apóstolo Paulo, que acabámos de escutar na segunda Leitura, constituem como que uma síntese imediata e eficaz de toda a existência do nosso venerado Irmão, o saudoso Cardeal Lucas Moreira Neves, a quem estamos prestes a dar o último adeus. Ele mesmo escolheu estas palavras de São Paulo como incipit do seu próprio testamento espiritual, redigido na Quinta-Feira Santa de 2000, reconhecendo nelas a inspiração e a iluminação interior que o tinham acompanhado em toda a sua existência. Com efeito, ele escrevia: "In laudem gloriae... estas palavras de São Paulo... que há quase sessenta anos me servem de iluminação espiritual, me inspirem também no momento de me apresentar diante de Deus. Desejo ardentemente que, nesse momento, se concentre e encontre o seu ponto culminante toda a minha acção graças à Santíssima Trindade".


2. Depois de ter entrado ainda em tenra idade na Ordem dos Padres Pregadores, ele conservou durante a vida inteira um profundo apego à sua vocação e à sua identidade de filho espiritual de São Domingos. No seu testamento, ele confiava: "Amei com paixão esta vocação", acrescentando: "Espero morrer, conservando a plena fidelidade ao essencial da vocação dominicana". A sua vocação religiosa enriqueceu-se e expressou-se magnificamente num intenso ministério sacerdotal, primeiro ao lado dos estudantes católicos, depois na animação do "Movimento familiar cristão", assim como no meio dos intelectuais, dos jornalistas e sobretudo dos artistas de teatro e de cinema.

Como Bispo Auxiliar de São Paulo, foi estimado pelas suas perspicazes qualidades de mente e de coração, pela sua sensibilidade pastoral, pela sua inesgotável caridade para com os pobres, em particular para com os "seus" meninos de rua... Em virtude destes seus dotes, foi chamado a assumir cargos cada vez mais importantes.

A Igreja, o laicado, o sacerdote, o múnus petrino, os jovens nas associações e nos movimentos eclesiais foram alguns dos temas que estavam mais a peito do Cardeal Moreira Neves, aprofundados e expostos em numerosas ocasiões. A este propósito, como deixar de recordar o Curso de Exercícios Espirituais, que ele pregou no Vaticano em 1982, unanimemente estimado pela profunda índole espiritual e eclesial que o penetrava?

3. Enriquecido com o serviço levado a cabo na Cúria Romana, em favor de toda a comunidade católica, Lucas Moreira Neves regressou ao seu querido Brasil como Arcebispo da Sede Primacial de São Salvador da Bahia. Depois de o ter incluído no Colégio Cardinalício, em Junho de 1998 chamei-o a Roma para lhe confiar o cargo de Prefeito da Congregação para os Bispos, ofício este que desempenhou até Setembro de 2000 quando, por motivos de saúde, pediu a renúncia.

Precisamente nestes longos anos, marcados pela doença, a sua cooperação incessante para o bem dos irmãos fez-se ainda mais apostólica e, num certo sentido, tornou-se mais eficaz em virtude da íntima união com o Senhor Jesus. É o próprio Cardeal que o confessa, com um tom mais reservado, como se estivesse consciente de revelar um dos pontos mais íntimos e delicados da sua alma. "Custa-me muito fazê-lo, do ponto de vista natural, da simples razão humana, mas numa perspectiva de fé e de obediência à adorável Vontade de Deus, dou graças também pela doença". Depois, explica o motivo mais profundo desta sua atitude de fé: "Consola-me a certeza de que, com este sofrimento, entrei em comunhão com a Paixão de Cristo, experimentei na vida uma parte do Purgatório e colaborei, mais do que com qualquer pregação, para a redenção dos irmãos".

4. É exactamente esta visão de fé que nos ajuda a viver de maneira mais intensa o triste momento do desapego da vida terrena do nosso amado Irmão. O sofrimento pela perda da sua veneranda pessoa, grande dádiva para a Igreja e para a sociedade civil, é mitigado pela esperança na ressurreição, fundada na própria palavra de Jesus, escutada no Evangelho. "Esta é a vontade de meu Pai: que todo o homem que vê o Filho e nele acredita tenha a vida eterna; e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia" (Jn 6,40). Diante do mistério da morte, para o homem que não tem fé tudo pareceria perder-se irremediavelmente. Deste modo, é a palavra de Cristo que ilumina o caminho da vida e dá valor a cada um dos seus momentos. Jesus Cristo é o Senhor da vida e veio "para que nada se perca daquilo que Ele lhe confiou" (cf. Jo Jn 6,39).

Foi precisamente neste horizonte de fé que o nosso dilecto Irmão viveu toda a sua própria existência, totalmente consagrado a Deus e ao serviço dos irmãos, de forma especial dos mais pobres, tornando-se assim testemunha daquela fé corajosa que sabe confiar cegamente em Deus.

5. "Scio quod Redemptor meus vivit" (Jb 19,25). No grande silêncio que envolve o mistério da morte, eleva-se cheia de esperança a voz do antigo crente: Job implora a salvação do Vivo, em quem toda a vicissitude humana encontra o seu sentido e o seu termo.

1684 "Videbo Deum meum. Quem visurus sum ergo ipse, et oculi mei conspecturi sunt" (Ibid., vv. 26-27), afirma o texto sagrado, deixando entrever, no final da peregrinação terrestre, o Rosto misericordioso do Senhor. É para esta procura do Rosto de Deus que se volta o derradeiro pensamento do Cardeal Moreira Neves, que quis concluir o seu próprio testamento espiritual, expressando um desejo extremo: "Sobre o meu túmulo, gostaria que se escrevesse somente o trecho do Salmo: "Vultum tuum, Domine, quaesivi"". Assim, na luz da fé, nós cremos que o nosso venerando e estimado Irmão já agora contempla, revelado na alegria do Paraíso, aquele Rosto misericordioso de Cristo, que ele procurou com esperança durante a sua vida inteira.

É o que pedimos, de maneira especial, a Maria Santíssima, Rainha da Esperança, enquando confiamos à terra os restos mortais do Cardeal Lucas Moreira Neves. Queira a Virgem Santa acolhê-lo nos seus braços maternais e introduzi-lo na contemplação do Rosto sagrado do seu Filho Jesus, no coro festivo dos anjos e dos santos, para toda a eternidade. Amen!



HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

NAS EXÉQUIAS DO CARDEAL

FRANÇOIS-XAVIER NGUYÊN VAN THUÂN


Sexta-feira, 20 de Setembro de 2002




1. "A sua esperança está repleta de imortalidade" (cf. Sb Sg 3,4).

Estas consoladoras palavras do Livro da Sabedoria convidam-nos a elevar, à luz da esperança, a nossa oração de sufrágio pela alma eleita do saudodo Cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuân, que levou toda a sua vida precisamente sob o sinal da esperança.

Sem dúvida, a sua morte amargura todos quantos o conheceram e amaram: os seus familiares, em particular a sua mãe, a quem renovo a expressão da minha afectuosa proximidade. Em seguida, penso na querida Igreja que está no Vietname, que o gerou para a fé; e penso inclusivamente em todo o povo vietnamita, que o venerando Purpurado recordou de maneira expressa no testamento espiritual, afirmando que sempre o amou. Chora a morte do Cardeal a Santa Sé, a cujo serviço ele dedicou os seus últimos anos, primeiro como Vice-Presidente e depois como Presidente do Pontifício Conselho "Justiça e Paz".

Também neste momento parece que ele está a dirigir a todos o seu persuasivo convite à esperança. Quando durante o ano de 2000, lhe pedi que preparasse as meditações para os Exercícios Espirituais da Cúria Romana, ele escolheu como tema: "Testemunhas da esperança".

Agora que o Senhor o provou "como o ouro no cadinho" e o julgou agradável "como um holocausto", podemos verdadeiramente dizer que "a sua esperança estava repleta de imortalidade" (cf. Sb Sg 3,4 Sb Sg 3,6). Ou seja, estava cheia de Cristo, vida e ressurreição daqueles que nele confiam.

2. Espera em Deus! Foi com este convite a confiar no Senhor, que o estimado Purpurado deu início às meditações dos Exercícios Espirituais. As suas exortações ficaram impressas na minha memória, em virtude da profundidade das suas reflexões, enriquecidas com contínuas recordações pessoais, em grande parte relativas aos treze anos que foi obrigado a passar na prisão. Ele narrava que, precisamente no cárcere, tinha compreendido que o fundamento da vida cristã consiste em "escolher unicamente a Deus", abandonando-se de maneira integral nas suas mãos paternas.

À luz da sua experiência pessoal, ele acrescentava que nós somos chamados a anunciar a todas as pessoas o "Evangelho da Esperança"; em seguida, especificava: somente com a radicalidade do sacrifício é possível cumprir esta vocação, apesar da subsistência das provações mais duras.

Depois, dizia que "valorizar cada uma das dores, como um dos inúmeros rostos de Jesus crucificado, e uni-lo ao seu significa entrar na sua própria dinâmica de sofrimento-amor; quer dizer participar na sua luz, na sua força e na sua paz; significa voltar a encontrar em nós mesmos uma renovada e mais completa presença de Deus" (Testimoni della Speranza, Roma 2001, pág. 124).

1685 3. Poderíamos perguntar de onde é que ele tirava a paciência e a coragem, que sempre o caracterizaram. A este propósito, ele confessava que a sua vocação sacerdotal estava vinculada de maneira misteriosa mas concreta ao sangue dos mártires que morreram durante o século passado, enquanto anunciavam o Evangelho no Vietname. Com efeito, ele observava que "os mártires nos ensinaram a dizer "sim": um "sim" incondicional e sem limites ao amor do Senhor; todavia, também um "não" às tentações, às conivências e à injustiça, talvez com a finalidade de salvar a sua própria vida" (Ibid. , pp. PP 139-140). E o Purpurado acrescentava que não se tratava de heroísmo, mas de fidelidade amadurecida, voltando o olhar para Jesus, modelo de cada testemunha e de todos os mártires. Uma herança a ser acolhida em cada dia, ao longo de uma vida cheia de amor e de mansidão.

4. Enquanto damos o nosso derradeiro adeus a este heróico arauto do Evangelho de Cristo, damos graças ao Senhor por nos ter concedido, nele, um luminoso exemplo de coerência cristã, até ao martírio. Assim, foi com impressionante simplicidadeele que ele fez a seguinte afirmação sobre si mesmo: "No abismo dos meus sofrimentos... jamais cessei de amar a todos, sem excluir ninguém do meu coração" (Ibid., pág. 124).

O seu segredo era uma confiança indómita em Deus, alimentada pela oração e pelo sofrimento aceite com amor. Na prisão, ele celebrava em cada dia a Eucaristia com três gotas de vinho e uma gota de água na palma da sua mão. Este era o seu altar, a sua catedral. O Corpo de Cristo era o seu "remédio". Por isso, narrava com emoção: "Todas as vezes eu tinha a oportunidade de estender as minhas mãos e de me cravar na Cruz juntamente com Jesus, de beber com Ele o cálice mais amargo. Em cada dia, recitando as palavras da consagração, eu confirmava com todo o meu coração e com toda a minha alma um novo pacto, uma aliança eterna entre mim e Jesus, mediante o seu Sangue que se misturava ao meu" (Ibid., pág. 168).

5. "Mihi vivere Christus est!" (Ph 1,21). Fiel até à morte, o Cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuân, fez sua a expressão do Apóstolo Paulo, que acabámos de escutar. Ele conservou a serenidade e até mesmo a alegria, durante a sua prolongada e dolorosa hospitalização. Nos últimos dias, quando já era incapaz de falar, permanecia com o olhar fixo no Crucifixo posto à sua frente.

Rezava em silêncio, enquanto consumava o seu extremo sacrifício, como coroação de uma existência assinalada pela heróica configuração com Cristo na Cruz. Bem se lhe adaptam as palavras proclamadas por Jesus, na iminência da sua Páscoa: "Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto" (Jn 12,24).

Somente com o sacrifício de si mesmo é que o cristão contribui para a salvação do mundo. E foi assim para o nosso venerável Irmão Cardeal. Ele deixa-nos, mas o seu exemplo permanece. A fé garante-nos que ele não morreu, mas que entrou no dia eterno que não conhece ocaso.

6. "Santa Maria... rogai por nós... na hora da nossa morte". Na prisão, quando lhe era impossível rezar, ele recorria a Maria: "Mãe, vedes que me encontro no limite extremo e não consigo recitar qualquer prece. Então... colocando tudo das vossas mãos, simplesmente repetirei: "Ave Maria!"" (Ibid., pág. 253).

No testamento espiritual, depois de ter pedido perdão, o extinto Cardeal assegura que continua a amar a todos. Assim, afirma: "Parto com serenidade e não conservo ódio por ninguém. Ofereço todos os sofrimentos que passei, a Maria Imaculada e a São José".

O testamento termina com esta tríplice recomendação: "Amai a Virgem Santa e tende confiança em São José; sede fiéis à Igreja; permanecei unidos e sede caridosos para com todos". Esta é a síntese da sua existência.

Agora ele possa ser recebido, juntamente com José e Maria, na alegre contemplação celestial do Rosto glorioso de Cristo que, na terra, ele procurou ardentemente como a sua única esperança.

Amen!





DURANTE A CELEBRAÇÃO DAS VÉSPERAS


NO VII CENTENÁRIO DO NASCIMENTO


DA CO-PADROEIRA DA EUROPA


SANTA BRÍGIDA


1686
4 de Outubro de 2002


1. "Entre vós, eu não quis saber outra coisa, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado" (1Co 2,2). As palavras do Apóstolo Paulo, que ressoaram durante esta Celebração ecuménica, tiveram um eco singular na actividade e na experiência mística de Santa Brígida da Suécia, de quem comemoramos o VII centenário de nascimento. Nas diversas etapas da sua existência, que a viram primeiro esposa, mãe e educadora, depois viúva e, enfim, fundadora de um novo caminho de vida consagrada, a Santa inspirou-se constantemente no mistério da paixão e da morte de Jesus Cristo. Os seus olhos não se cansaram de contemplar o rosto do Crucificado.


Recordamo-la esta tarde, ao darmos graças ao Senhor por uma tão ilustre e santa filha da nobre terra da Suécia, ligada à cidade de Roma, e singular testemunha das profundas raízes cristãs da civilização europeia.

2. É com grande prazer que vos dirijo as cordiais saudações também a vós, queridos Irmãos e Irmãs que participais nesta solene Liturgia vespertina em honra de Santa Brígida. O meu pensamento dirige-se, de maneira especial, a todos os Irmãos no Episcopado, ao Clero, aos Religiosos e às Religiosas hoje aqui presentes.

É num espírito de fraternidade e de amizade que saúdo os ilustres representantes das Igrejas luteranas. A vossa presença neste momento de oração constitui uma causa de profunda alegria. Exprimo a esperança de que o nosso encontro conjunto em nome do Senhor ajude a fomentar o diálogo ecuménico e a apressar o caminho para a plena unidade cristã.

Desejo transmitir uma saudação especial a Suas Majestades, o Rei e a Rainha da Suécia, aqui representados pela sua Filha, a Princesa Vitória.

Saúdo com respeito as outras Autoridades religiosas e civis aqui presentes, assim como os organizadores, os oradores e os participantes no Simpósio sobre "O caminho da beleza, para um mundo mais justo e digno", por ocasião da comemoração dos 700 anos do nascimento de Santa Brígida. A minha saudação afectuosa dirige-se também às queridas Irmãs da Ordem do Santíssimo Salvador de Santa Brígida, reunidas em companhia da Abadessa-Geral.

3. Aqui, junto dos túmulos dos Apóstolos e nos lugares santificados pelo sangue dos mártires, Santa Brígida passou muitas horas em oração, durante o período que viveu em Roma. Aqui, ela encontrou a força e a constância que a tornaram capaz de assumir aquele extraordinário compromisso caritativo, missionário e social, que fez dela uma das pessoas mais notáveis da sua época.

Contemplando o Senhor crucificado e em íntima união com a sua Paixão ela conseguiu, com determinação profética, cumprir a missão que Cristo lhe tinha confiado para o bem da Igreja e da sociedade do seu tempo.

A estátua de mármore colocada fora da Basílica do Vaticano, perto da entrada geralmente chamada "Porta da Oração", exprime de maneira oportuna o ardor da sua vida e da sua espiritualidade. Santa Brígida é representada numa atitude de oração, com o livro aberto das suas "Revelações", com um cajado e um alforge de peregrino, extasiada na contemplação de Cristo crucificado.

4. Quero esclarecer outro aspecto da personalidade desta grande missionária da fé, que desejei proclamar co-Padroeira da Europa: esta foi a sua concreta e profunda aspiração à unidade dos cristãos. Numa época complexa e não fácil da história eclesial e europeia, esta discípula invicta do Senhor não cessou de trabalhar pela coesão e pelo progresso autêntico da unidade dos crentes.

1687 Apraz-me reiterar aqui quanto desejei recordar, recentemente, às Irmãs Brigidinas, no contexto de uma especial Mensagem comemorativa do VII Centenário do seu nascimento. Santa Brígida escrevi "como mulher de unidade, propõe-se-nos como testemunha de ecumenismo. A sua personalidade harmoniosa inspira a vida da Ordem, que faz remontar a ela as suas origens na direcção de um ecumenismo espiritual e, ao mesmo tempo, activo" (n. 6). Trata-se de uma herança espiritual a viver e de um compromisso conjunto a continuar com alegre generosidade. Porém, dado que a unidade da Igreja constitui uma graça do Espírito, estamos conscientes de que é necessário sobretudo implorá-la constantemente na oração e depois edificá-la com tenacidade incansável, cada um oferecendo a sua própria contribuição pessoal.

5. Caríssimos Irmãos e Irmãs, celebra-se hoje a solenidade de São Francisco de Assis. São do conhecimento de todos a admiração e a devoção desta Terciária franciscana pelo "Pobrezinho de Assis". Entre as numerosas peregrinações que ela pôde realizar aos principais santuários da sua época, sobressai a que realizou a Assis, durante o Verão de 1352. Tratou-se de uma visita que lhe deixou uma lembrança indelével na mente e no coração.

Ajudem-nos estes dois Santos, que tanta influência exerceram na vida da Igreja e na história do Continente europeu para sermos, como eles, corajosas testemunhas de Cristo e da sua perene mensagem de salvação. Interceda por nós Maria, de quem Santa Brígida foi sempre muito devota, a fim de podermos contribuir com eficácia para a instauração do Reino de Deus e a construção da civilização do amor.



HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

DURANTE A CANONIZAÇÃO

DO BEATO JOSÉ MARIA ESCRIVÁ


FUNDADOR DO OPUS DEI


Domingo, 6 de Outubro de 2002





1. "Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8,14). Estas palavras do Apóstolo Paulo, que acabaram de ressoar na nossa assembleia, ajudam-nos a compreender melhor a significativa mensagem da Canonização de José Maria Escrivá de Balaguer. Ele deixou-se orientar pelo Espírito, convencido de que só assim se pode cumprir plenamente a vontade de Deus.

Esta verdade cristã fundamental era um tema frequente da sua pregação. Com efeito, ele não cessava de convidar os seus filhos espirituais a invocar o Espírito Santo, para fazer com que a vida interior, ou seja, a vida de relação com Deus, e a vida familiar, profissional e social, totalmente feita de pequenas coisas terrestres, não fossem separadas, mas constituíssem uma única existência "santa e plena de Deus". "Encontramos Deus invisível escrevia nas coisas mais visíveis e materiais" (Colóquios com Mons. Escrivá, n. 114).

Este seu ensinamento é actual e urgente também nos dias de hoje. Em virtude do Baptismo que o insere em Cristo, o fiel é chamado a ter uma relação incessante e vital com o Senhor. É chamado a ser santo e a colaborar para a salvação da humanidade.

2. "O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no Jardim do Éden, para que o cultivasse e guardasse" (Gn 2,15). O Livro do Génesis, que escutámos na primeira Leitura, recorda-nos que o Criador confiou a terra ao homem, para que a "cultivasse" e "guardasse". Trabalhando nas várias realidades deste mundo, os fiéis contribuem para realizar este projecto divino universal. O trabalho e qualquer outra actividade que se leva a cabo, com a ajuda da Graça, transformam-se em meios de santificação quotidiana.

"A vida habitual do cristão que tem fé costumava afirmar José Maria Escrivá quer trabalhe quer descanse, quer reze quer durma, em todos os momentos, é uma vida em que Deus está sempre presente" (Meditações, 3 de Março de 1954). Esta visão sobrenatural da existência abre um horizonte extraordinariamente rico de perspectivas salvíficas, porque também no contexto, só aparentemente monótono das normais vicissitudes terrestres, Deus se torna próximo de nós, enquanto nós podemos contribuir para o seu desígnio de salvação. Assim, é mais fácil compreender aquilo que afirma o Concílio Vaticano II, ou seja, que "a mensagem cristã não afasta os homens da construção do mundo [...] impõe-lhes, ao contrário, um dever" (Gaudium et spes, GS 34).

Elevar o mundo a Deus e transformá-lo a partir de dentro: eis o ideal que o Santo Fundador vos indica, queridos Irmãos e Irmãs, que hoje vos alegrais com a sua elevação à glória dos altares. Ele continua a recordar-vos a necessidade de não vos deixar amedrontar por uma cultura materialista, que ameaça dissolver a identidade mais genuína dos discípulos de Cristo. Ele gostava de repetir, com determinação, que a fé cristã se opõe ao conformismo e à inércia interior.

Seguindo os seus passos difundi na sociedade, sem distinção de raça, de classe, de cultura ou de idade, a consciência de que todos nós somos chamados à santidade. Esforçai-vos por ser santos, em primeiro lugar vós mesmos, cultivando um estilo evangélico de humildade, de serviço, de abandono na Providência e de escuta constante da voz do Espírito. Desta forma, sereis o "sal da terra" (cf. Mt Mt 5,13) e "a vossa luz brilhará diante dos homens, para que eles vejam as boas obras que fazeis e louvem o vosso Pai que está nos céus" (Ibid., v. 16).

1688 4. Sem dúvida, para quem procura servir a causa do Evangelho com fidelidade, não faltam incompreensões nem dificuldades. Com a força misteriosa da Cruz, o Senhor purifica e modela quantos Ele chama a segui-lo; porém, na Cruz o Santo gostava de repetir encontramos luz, paz e alegria: Lux in Cruce, requies in Cruce, gaudium in Cruce!

Desde que, no dia 7 de Agosto de 1931, durante a celebração da Santa Missa, ressoaram na sua alma as palavras de Jesus: "Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a mim" (
Jn 12,32), José Maria Escrivá compreendeu mais claramente que a missão dos baptizados consiste em elevar a Cruz acima de toda a realidade humana, e sentiu surgir no seu interior a apaixonante vocação a evangelizar todos os ambientes. Assim, foi sem hesitação que acolheu o convite dirigido por Jesus ao Apóstolo Pedro, e que acaba de ressoar nesta Praça: "Duc in altum!". Transmitiu-o a toda a sua Família espiritual, para que oferecesse à Igreja uma válida contribuição de comunhão e de serviço apostólico. No dia de hoje, este convite alarga-se a todos nós: "Avança para águas mais profundas diz-nos o Mestre divino e lança as redes para a pesca" (Lc 5,4).

5. Porém, para desempenhar uma missão tão comprometedora, é necessário um incessante crescimento interior, alimentado pela oração. São José Maria Escrivá foi um mestre no exercício da oração, que ele considerava como uma "arma" extraordinária para redimir o mundo. Assim, recomendava sempre: "Em primeiro lugar, a oração; depois, a expiação; e em terceiro lugar, mas somente "em terceiro lugar", a acção" (Caminho, n. 82). Não se trata de um paradoxo, mas de uma verdade perene: a fecundidade do apostolado depende sobretudo da oração e de uma vida sacramental intensa e constante. Em última análise, este é o segredo da santidade e do verdadeiro êxito dos Santos.

Caríssimos Irmãos e Irmãs, o Senhor vos ajude a viver esta exigente herança ascética e missionária. Sustente-vos Maria, que o Santo Fundador invocava como Spes nostra, Sedes Sapientiae, Ancilla Domini!

Nossa Senhora faça de cada um de nós uma autêntica testemunha do Evangelho, pronto a oferecer em todo o lugar uma generosa contribuição para a edificação do Reino de Cristo. Sirvam-nos de estímulo o exemplo e o ensinamento de São José Maria a fim de podermos também nós, no termo da nossa peregrinação terrestre, participar na ditosa herança celestial. No Céu, juntamente com os Anjos e com todos os Santos, havemos de contemplar o rosto de Deus e de cantar a sua glória por toda a eternidade!






Homilias JOÃO PAULO II 1676