Pastores gregis PT 9

« Chamou os que Ele quis »

(Mc 3,13)

10 Uma grande multidão seguia Jesus, quando Ele decidiu subir ao monte e chamar para junto de Si os Apóstolos. Muitos eram os discípulos, mas escolheu somente Doze deles para a tarefa específica de Apóstolos (cf. Mc Mc 3,13-19). Na aula sinodal, muitas vezes ecoou o dito de Santo Agostinho: « Para vós sou Bispo, convosco sou cristão ».45

Dom oferecido pelo Espírito à Igreja, o Bispo por um lado é, antes de tudo e como qualquer outro cristão, filho e membro da Igreja. Desta santa Mãe, recebeu ele o dom da vida divina no sacramento do Baptismo e a primeira iniciação na fé. Com todos os outros fiéis, partilha a dignidade insuperável de filho de Deus, que há-de ser vivida na comunhão e em espírito de grata fraternidade. Por outro lado o Bispo, em virtude da plenitude do sacramento da Ordem, é, diante dos fiéis, mestre, santificador e pastor, encarregado de agir em nome e vez de Cristo.

É claro que não se trata de duas realidades simplesmente sobrepostas, mas íntima e reciprocamente relacionadas, ordenadas uma para outra, porque ambas haurem da riqueza de Cristo, único e sumo Sacerdote. O Bispo torna-se « pai », exactamente porque é plenamente « filho » da Igreja. Isto leva-nos a considerar a relação entre sacerdócio comum dos fiéis e sacerdócio ministerial: dois modos de participação no único sacerdócio de Cristo, no qual estão presentes duas dimensões que se unem no acto supremo do sacrifício da cruz.

Isto vai reflectir-se na relação que vigora entre o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial na Igreja. É que embora se diferenciem essencialmente entre si, o facto de estarem mutuamente orientados um para o outro46 cria uma reciprocidade que estrutura harmoniosamente a vida da Igreja, como lugar de actualização histórica da salvação realizada por Cristo. Tal reciprocidade encontra-se precisamente na pessoa do Bispo, que é e permanece um baptizado mas constituído no sumo sacerdócio. Esta realidade mais profunda do Bispo é o fundamento do seu « estar entre » os outros fiéis e estar « perante » eles.

Assim no-lo recorda o Concílio Vaticano II num belo texto: « Portanto, ainda que, na Igreja, nem todos sigam pelo mesmo caminho, todos são, contudo, chamados à santidade, e a todos coube a mesma fé pela justiça de Deus (cf. 2P 1,1). Ainda que, por vontade de Cristo, alguns são constituídos doutores, dispensadores dos mistérios e pastores em favor dos demais, reina, porém, igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à actuação, comum a todos os fiéis, em favor da edificação do corpo de Cristo. A distinção que o Senhor estabeleceu entre os ministros sagrados e o restante Povo de Deus, contribui para a união, já que os pastores e os demais fiéis estão ligados uns aos outros por uma vinculação comum: os pastores da Igreja, imitando o exemplo do Senhor, prestem serviço uns aos outros e aos fiéis; e estes dêem alegremente a sua colaboração aos pastores e doutores ».47

O ministério pastoral recebido na consagração, que põe o Bispo « perante » os outros fiéis, exprime-se num « ser para » os outros fiéis, que não o desenraiza do seu « estar com » eles. Isto vale quer para a sua santificação pessoal, que há-de procurar e realizar no exercício do seu ministério, quer para o estilo de actuação do próprio ministério em todas as funções em que se concretiza.

A reciprocidade, que existe entre sacerdócio comum dos fiéis e sacerdócio ministerial e se encontra no próprio ministério episcopal, manifesta-se numa espécie de « circularidade » entre as duas formas de sacerdócio: circularidade entre o testemunho de fé de todos os fiéis e o testemunho de fé autêntica do Bispo nos seus actos magisteriais; circularidade entre a vida santa dos fiéis e os meios de santificação que o Bispo lhes oferece; por último, circularidade entre a responsabilidade pessoal do Bispo pelo bem da Igreja a ele confiada e a corresponsabilidade de todos os fiéis relativamente ao bem da mesma.

45 Sermo 340, 1: PL 38, 1483: « Vobis enim sum episcopus; vobiscum sum christianus ».
46 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 10.
47 Ibid., LG 32.



CAPÍTULO II

A VIDA ESPIRITUAL DO BISPO


« Constituiu Doze para andarem com Ele » (MC 3,14)

11 (Mc 3,14)
Pelo mesmo acto de amor com que livremente os constituiu Apóstolos, Jesus chama os Doze a compartilhar a sua própria vida. Também esta partilha, que é comunhão de sentimentos e desejos, é uma exigência inscrita na participação deles na própria missão de Cristo. Não se devem reduzir as funções do Bispo a uma tarefa meramente organizacional. Precisamente para evitar este risco, tanto os documentos preparatórios do Sínodo como muitas intervenções na assembleia dos padres sinodais insistiram sobre o que comporta, na vida pessoal do Bispo e no exercício do ministério que lhe está confiado, a realidade do episcopado como plenitude do sacramento da Ordem, nos seus fundamentos teológicos, cristológicos e pneumatológicos.

À santificação objectiva, que por obra de Cristo tem lugar no sacramento mediante a comunicação do Espírito, deve corresponder a santidade subjectiva, na qual o Bispo, com o apoio da graça, há-de crescer cada vez mais através do exercício do ministério. A transformação ontológica realizada pela consagração como conformação a Cristo, requer um estilo de vida que manifeste o « andar com Ele ». Por isso, na aula do Sínodo, várias vezes se insistiu sobre a caridade pastoral como fruto quer do carácter impresso pelo sacramento quer da graça própria deste. Lá se disse que a caridade é como a alma do ministério do Bispo, que fica envolvido num dinamismo de pro-existentia pastoral, que o impele a viver, como Cristo Bom Pastor, para o Pai e para os outros, na entrega diária de si mesmo.

É sobretudo no exercício do seu ministério, inspirado pela imitação da caridade do Bom Pastor, que o Bispo é chamado a santificar-se e a santificar, tendo como princípio unificador a contemplação do rosto de Cristo e o anúncio do evangelho da salvação.48 Por conseguinte, a sua espiritualidade recebe orientações e estímulos, por um lado, dos sacramentos do Baptismo e da Confirmação e, por outro, da própria Ordenação episcopal que o empenha a viver, na fé, na esperança e na caridade, o seu ministério de evangelizador, liturgista e guia da comunidade. E assim a espiritualidade do Bispo há-de ser também uma espiritualidade eclesial, porque tudo na sua vida está orientado para a amorosa edificação da Santa Igreja.

Isto exige no Bispo uma atitude de serviço marcada por força de ânimo, coragem apostólica e confiante abandono à acção interior do Espírito. Portanto esforçar-se-á por assumir um estilo de vida em que imite a kénosis de Cristo servo, pobre e humilde, de modo que o exercício do ministério pastoral seja nele um reflexo coerente de Jesus, Servo de Deus, e o leve a aproximar-se como Ele de todos, do maior ao mais pequeno. Enfim, verifica-se mais uma vez, numa espécie de reciprocidade, que o exercício fiel e amoroso do ministério santifica o Bispo e torna-o, no plano subjectivo, cada vez mais conforme à riqueza ontológica de santidade que o sacramento nele colocou.

No entanto, a santidade pessoal do Bispo não se limita apenas ao nível subjectivo, já que, na sua eficácia, reverte sempre em benefício dos fiéis confiados à sua solicitude pastoral. Na prática da caridade, enquanto conteúdo do ministério pastoral recebido, o Bispo torna-se sinal de Cristo e adquire aquela credibilidade moral de que precisa o exercício da autoridade jurídica para poder incidir eficazmente sobre o ambiente. De facto, se o múnus episcopal não assenta sobre o testemunho da santidade manifestada na caridade pastoral, na humildade e na simplicidade de vida, acaba por se reduzir a um papel quase só funcional e perde inevitavelmente credibilidade junto do clero e dos fiéis.

48 Cf. Propositio 8.


Vocação à santidade na Igreja do nosso tempo

12 Uma imagem bíblica, que parece particularmente adequada para ilustrar a figura do Bispo como amigo de Deus, pastor e guia do povo, é a figura de Moisés. Fixando-o, o Bispo pode tirar inspiração do seu ser e agir de pastor, escolhido e enviado pelo Senhor, seguindo corajosamente à frente do seu povo a caminho da terra prometida, intérprete fiel da palavra e da lei do Deus vivo, mediador da Aliança, insistente e confiante na oração pela sua gente. Tal como Moisés que, depois do colóquio com o Senhor na montanha santa, voltou para o meio do seu povo com o rosto resplandecente (cf. Ex 34,29-30), assim também o Bispo só poderá mostrar entre os seus irmãos os sinais de ser pai, irmão e amigo, se tiver entrado na nuvem obscura e luminosa do mistério do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Iluminado pela luz da Santíssima Trindade, o Bispo será sinal da bondade misericordiosa do Pai, imagem viva da caridade do Filho, transparência humana do Espírito, consagrado e enviado para guiar o Povo de Deus pelas sendas do tempo na sua peregrinação para a eternidade.

Os padres sinodais puseram em evidência a importância do empenho espiritual na vida, no ministério e no caminho do Bispo. Eu próprio assinalei esta prioridade em sintonia com as exigências da vida da Igreja e o apelo do Espírito Santo, que nestes anos tem recordado a todos o primado da graça, a generalizada exigência de espiritualidade, a urgência de testemunhar a santidade.

O apelo à espiritualidade deriva da referência à acção do Espírito Santo na história da salvação. Esta sua presença é activa e dinâmica, profética e missionária. O dom da plenitude do Espírito Santo, que o Bispo recebe na Ordenação Episcopal, é um significativo e premente apelo para favorecer a acção d'Ele na comunhão eclesial e na missão universal.

Celebrada depois do Grande Jubileu do ano 2000, a assembleia sinodal assumiu desde o início o projecto duma vida santa, que eu mesmo indiquei à Igreja inteira: « O horizonte para que deve tender todo o caminho pastoral é a santidade. (...) Terminado o Jubileu, volta-se ao caminho ordinário, mas apontar a santidade permanece de forma mais evidente uma urgência da pastoral ».49 A recepção entusiasta e generosa deste meu apelo para se colocar em primeiro lugar a vocação à santidade foi a atmosfera em que se desenrolaram os trabalhos sinodais e o clima que, de certa forma, unificou as intervenções e reflexões dos padres participantes. Estes sentiam ecoar nos seus corações a seguinte advertência de S. Gregório Nazianzeno: « Temos de começar por nos purificar, antes de purificarmos os outros; temos de ser instruídos, para podermos instruir; temos de nos tornar luz para alumiar, de nos aproximar de Deus para podermos aproximar d'Ele os outros, ser santos para santificar ».50

Por este motivo, várias vezes ressoou, na assembleia sinodal, o convite a individuar com clareza a especificidade « episcopal » do caminho de santidade do Bispo. Esta terá de ser sempre uma santidade vivida com o povo e para o povo, numa comunhão que se torne estímulo e mútua edificação na caridade. E não se trata de exigências secundárias ou marginais; de facto, é precisamente a vida espiritual do Bispo que favorece a fecundidade da sua obra pastoral. Porventura não é na meditação assídua do mistério de Cristo, na contemplação apaixonada do seu Rosto, na imitação generosa da vida do Bom Pastor que se encontra o fundamento de qualquer pastoral eficaz? Se é verdade que o nosso tempo se caracteriza por contínuo movimento e frequente agitação, com o risco de cair-se facilmente no « fazer por fazer », então o Bispo deve ser o primeiro a mostrar, com o exemplo da sua vida, que é preciso restabelecer o primado do « ser » sobre o « fazer » e, mais ainda, o primado da graça, que, segundo a perspectiva cristã da vida, é também princípio essencial para uma « programação » do ministério pastoral.51

49 Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), NM 30: AAS 93 (2001), 287.
50 Discurso II, 71: PG 35, 479.
51 Cf. João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), NM 15 NM 31: AAS 93 (2001), 276 e 288.


O caminho espiritual do Bispo

13 Um Bispo só pode considerar-se verdadeiro ministro da comunhão e da esperança para o povo santo de Deus, quando caminhar na presença do Senhor. Na realidade, não é possível estar ao serviço dos homens, sem primeiro serem « servos de Deus ». E não podem ser servos de Deus, se não forem « homens de Deus ». Por isso, na homilia da abertura do Sínodo, afirmei: « O Pastor deve ser homem de Deus; a sua vida e o seu ministério estão inteiramente sob a sua glória divina, recebendo luz e vigor do mistério sublime de Deus ».52

Para o Bispo, a vocação à santidade está inscrita no próprio acontecimento sacramental que deu origem ao seu ministério, ou seja, a Ordenação Episcopal. O antigo Eucológio de Serapião formula a invocação ritual da consagração nestes termos: « Deus de verdade, fazei do vosso servidor um Bispo vigoroso, um Bispo santo na sucessão dos santos Apóstolos ».53 Todavia, dado que a Ordenação Episcopal não infunde a perfeição das virtudes, « o Bispo é chamado a prosseguir o seu caminho de perfeição com maior intensidade para chegar à estatura de Cristo, Homem perfeito ».54

A própria índole cristológica e trinitária do seu mistério e ministério exige do Bispo um caminho de santidade, que consiste no crescimento incessante para uma maturidade espiritual e apostólica cada vez mais profunda, marcada pelo primado da caridade pastoral; caminho este vivido evidentemente em união com o seu povo, num itinerário que é simultaneamente pessoal e comunitário à semelhança da própria vida da Igreja. Mas neste caminho, o Bispo torna-se, em íntima comunhão com Cristo e atenta docilidade ao Espírito, testemunha, modelo, promotor e animador. Assim o exprime também a lei canónica: « O Bispo diocesano, lembrado da obrigação que tem de dar exemplo de santidade na caridade, humildade e simplicidade de vida, esforce-se com todo o empenho por promover a santidade, segundo a vocação própria de cada um, e já que é o principal dispensador dos mistérios de Deus, empenhe-se sempre em que os fiéis confiados aos seus cuidados cresçam na graça pela celebração dos sacramentos e conheçam e vivam o mistério pascal ».55

O caminho espiritual do Bispo, como aliás o de todo o fiel cristão, tem sem dúvida a sua raiz na graça sacramental do Baptismo e da Confirmação. Esta graça irmana-o com todos os fiéis, pois, como observa o Concílio Vaticano II, « os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade ».56 Aqui se aplica de modo especial a afirmação bem conhecida de Santo Agostinho, cheia de realismo e sabedoria sobrenatural: « Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou Bispo; convosco sou cristão. Aquilo é um dever; isto, uma graça. O primeiro é um perigo; o segundo, salvação ».57 Em virtude da caridade pastoral, porém, o encargo torna-se serviço, e o perigo transforma-se em oportunidade de crescimento e maturação. O ministério episcopal não é fonte de santidade apenas para os outros, mas é já motivo de santificação para aquele que deixa passar, através do próprio coração e vida, a caridade de Deus.

Os padres sinodais compendiaram algumas exigências deste caminho. Antes de mais nada, recordaram o carácter baptismal e crismal que, desde o princípio da existência cristã e por meio das virtudes teologais, torna capaz de acreditar em Deus, esperar n'Ele e amá-Lo. O Espírito Santo, por sua vez, infunde os seus dons, favorecendo o crescimento no bem através do exercício das virtudes morais que concretizam, também a nível humano, a vida espiritual.58 Em virtude do Baptismo recebido, o Bispo, como todo o cristão, participa da espiritualidade que se baseia na incorporação em Cristo e se exprime em segui-Lo segundo o Evangelho. Por isso, partilha a vocação de todos os fiéis à santidade. Consequentemente deve cultivar uma vida de oração e fé profunda, colocando em Deus toda a sua confiança, dando testemunho do Evangelho em dócil obediência às sugestões do Espírito Santo e conservando uma particular e filial devoção à Virgem Maria, que é mestra perfeita de vida espiritual.59

Deste modo, a espiritualidade do Bispo há-de ser uma espiritualidade de comunhão vivida em sintonia com todos os outros baptizados, filhos juntamente com ele do único Pai no céu e da única Mãe na terra, a santa Igreja. Como todos os crentes em Cristo, ele tem necessidade de nutrir a sua vida espiritual com a palavra viva e eficaz do Evangelho e com o pão vivo da sagrada Eucaristia, alimento de vida eterna. Devido à sua fragilidade humana, também o Bispo é chamado a recorrer, com frequência e ritmo regular, ao sacramento da Penitência para obter o dom daquela misericórdia de que foi feito ministro também. Assim, consciente da sua fraqueza humana e dos próprios pecados, cada Bispo, juntamente com os seus sacerdotes, viva antes de mais nada em proveito próprio o sacramento da Reconciliação, como uma exigência profunda e uma graça incessantemente almejada, para dar novo impulso ao próprio empenho de santificação no exercício do ministério. Deste modo, ele exprime, visivelmente também, o mistério duma Igreja em si mesma santa, mas composta também de pecadores necessitados de ser perdoados.

Unido a todos os sacerdotes, mas obviamente em especial comunhão com os sacerdotes do presbitério diocesano, o Bispo esforçar-se-á por percorrer um caminho específico de espiritualidade. Na realidade, é chamado à santidade ainda por um novo título, que deriva das Ordens Sacras. Por isso, o Bispo vive de fé, esperança e caridade, enquanto é ministro da palavra do Senhor, da santificação e do progresso espiritual do Povo de Deus. Deve ser santo, porque tem de servir a Igreja como mestre, santificador e guia. Enquanto tal, deve também amar profunda e intensamente a Igreja. Todo o Bispo é configurado a Cristo para amar a Igreja com o amor de Cristo esposo, e para ser ministro da sua unidade na Igreja, isto é, para fazer da Igreja « um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo ».60

A espiritualidade específica do Bispo, como diversas vezes assinalaram os padres sinodais, fica ainda mais enriquecida com o suplemento de graça inerente à plenitude do sacerdócio que lhe é conferida no momento da Ordenação. Enquanto pastor do rebanho e servidor do Evangelho de Jesus Cristo na esperança, o Bispo deve espelhar e quase fazer transparecer em si mesmo a própria pessoa de Cristo, Pastor supremo. No Pontifical Romano, este dever é explicitamente referido nos seguintes termos: « Recebe a mitra e brilhe em ti o esplendor da santidade, para que, ao aparecer o Príncipe dos pastores, mereças receber a coroa imperecível da glória ».61

Por isso, o Bispo tem necessidade constante da graça de Deus, que reforça e aperfeiçoa a sua natureza humana. Ele pode afirmar com o apóstolo Paulo: « A nossa capacidade vem de Deus. Ele é que nos fez capazes de sermos ministros de uma nova aliança » (
2Co 3,5-6). Há, pois, que sublinhá-lo: o ministério apostólico é uma fonte de espiritualidade para o Bispo, que daí deve haurir os recursos espirituais que o façam crescer na santidade e lhe permitam descobrir a acção do Espírito Santo no Povo de Deus confiado às suas solicitudes pastorais.62

Nesta perspectiva, o caminho espiritual do Bispo coincide com a própria caridade pastoral, que justamente deve ser considerada a alma do seu apostolado, tal como o é também do apostolado do presbítero e do diácono. Não se trata apenas de uma existentia, mas de uma pro-existentia, isto é, de uma vida que se inspira no modelo supremo, Cristo Senhor, consumando-se inteiramente na adoração do Pai e no serviço dos irmãos. A este propósito, afirma justamente o Concílio Vaticano II que os pastores, à imagem de Cristo, hão-de desempenhar santa e zelosamente, com humildade e fortaleza, o próprio ministério, o qual, « assim cumprido, também para eles será um sublime meio de santificação ».63 Nenhum Bispo pode ignorar que, no vértice da santidade, permanece Cristo Crucificado em sua suprema doação ao Pai e aos irmãos no Espírito Santo. Por isso, a configuração a Cristo e a participação nos seus sofrimentos (cf. 1P 4,15) torna-se a estrada mestra da santidade do Bispo no meio do seu povo.

52 N. 5: AAS 94 (2002), 111.
53 Sacramentarium Serapionis, 28: Ed. F. X. Funk, II, 191.
54 João Paulo II, Homilia na Missa de abertura da X Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (30 de Setembro de 2001), 5: AAS 94 (2002), 111.
55 Código de Direito Canónico, cân. CIC 387; cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. CIO 197.
56 Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 40.
57 Sermo 340, 1: PL 38, 1483.
58 Cf. Catecismo da Igreja Católica, CEC 1804 CEC 1839.
59 Cf. Propositio 7.
60 S. Cipriano, De oratione dominica, 23: PL 4, 535; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 4.
61 Rito da Ordenação do Bispo: Entrega da mitra.
62 Cf. Propositio 7.
63 Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 41.


Maria, Mãe da esperança e mestra de vida espiritual

14 Há-de servir de sustentáculo à vida espiritual do Bispo também a presença materna da Virgem Maria, invocada pela Igreja como Mater spei et spes nostra. Assim, o Bispo acalentará uma devoção autêntica e filial a Maria, sentindo-se chamado a assumir o seu fiat, a viver e actualizar em cada dia a entrega que Jesus fez de Maria, quando Ela estava de pé junto à Cruz, ao Discípulo e do Discípulo amado a Maria (cf. Jo Jn 19,26-27). De igual modo, o Bispo é chamado a reproduzir a oração unânime e perseverante dos discípulos e apóstolos do Filho com a Virgem Mãe, quando se preparavam para o Pentecostes. Neste ícone da Igreja nascente, exprime-se o vínculo indissolúvel entre Maria e os sucessores dos Apóstolos (cf. Ac 1,14).

Por conseguinte, o Bispo encontrará na santa Mãe de Deus uma mestra na escuta e cumprimento solícito da Palavra de Deus, no discipulado fiel ao único Mestre, na firmeza da fé, na esperança jubilosa e na ardente caridade. À semelhança de Maria, « memória » da encarnação do Verbo na primeira comunidade cristã, o Bispo será guardião e transmissor da Tradição viva da Igreja, em comunhão com todos os outros Bispos, em união e sob a autoridade do Sucessor de Pedro.

A sólida devoção mariana do Bispo adoptará como referência constante a Liturgia, onde a Virgem tem uma presença particular na celebração dos mistérios da salvação e é, para toda a Igreja, modelo exemplar de escuta e de oração, de oferta e de maternidade espiritual. Mais ainda, será missão do Bispo fazer com que a Liturgia se revele sempre « como “forma exemplar”, fonte de inspiração, ponto constante de referência e meta última » para a piedade mariana do Povo de Deus.64 Sem negar este princípio, o Bispo alimentará a sua piedade mariana, pessoal e comunitária, também com as práticas de piedade aprovadas e recomendadas pela Igreja, especialmente com a reza daquele compêndio do Evangelho que é o santo Rosário. Experimentado nesta oração, toda ela centrada na contemplação dos factos salvíficos da vida de Cristo, a que esteve intimamente associada a sua santa Mãe, cada Bispo é convidado a ser também solícito promotor da mesma.65

64 Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e orientações (17 de Dezembro de 2001), n. 184.
65 Cf. João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariae (16 de Outubro de 2002), RVM 43: AAS 95 (2003), 35-36.


Confiar-se à Palavra

15 A assembleia do Sínodo dos Bispos indicou alguns meios necessários para alimentar e fazer crescer a própria vida espiritual.66 Entre eles, ocupa o primeiro lugar a leitura e a meditação da Palavra de Deus. Cada Bispo deverá sempre confiar-se, e sentir-se tal, « a Deus e à palavra da sua graça que tem o poder de construir o edifício e de conceder parte na herança com todos os santificados » (Ac 20,32). Por isso, antes de ser transmissor da Palavra, o Bispo, com os seus sacerdotes e como qualquer fiel, antes como a própria Igreja,67 deve ser ouvinte da Palavra. Deve de certo modo estar « dentro » da Palavra, para deixar-se guardar e nutrir dela como de um ventre materno. O Bispo repete com Santo Inácio de Antioquia: « Confio no Evangelho como na Carne de Cristo ».68 Por isso, cada Bispo recorde-se sempre da conhecida advertência de S. Jerónimo, retomada aliás pelo Concílio Vaticano II: « A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo ».69 Com efeito, não há primado da santidade sem escuta da Palavra de Deus, que é guia e alimento da santidade.

Confiar-se à Palavra de Deus e guardá-la, como a Virgem Maria que foi Virgo audiens,70 comporta pôr em prática alguns auxílios que a tradição e a experiência espiritual da Igreja nunca deixaram de sugerir. Trata-se, em primeiro lugar, da leitura pessoal frequente e do estudo atento e assíduo da Sagrada Escritura. Um Bispo será externamente vão pregador da Palavra, se primeiro não a tiver ouvido dentro.71 Sem o contacto frequente com a Sagrada Escritura, seria também ministro pouco credível da esperança, se é verdade – como recorda S. Paulo – que, « pela constância e consolação que provêm das Escrituras, possuímos a esperança » (Rm 15,4). Permanece válido, portanto, o que escreveu Orígenes: « São estas as duas actividades do Pontífice: ou aprender de Deus, lendo as Escrituras divinas e meditando-as repetidamente, ou ensinar o povo. Mas, ensine aquilo que ele mesmo aprendeu de Deus ».72

O Sínodo lembrou a importância que tem a lectio e a meditatio da Palavra de Deus na vida dos Pastores e no seu ministério ao serviço da comunidade. Como escrevi na carta apostólica Novo millennio ineunte, « é necessário que a escuta da Palavra se torne um encontro vital, segundo a antiga e sempre válida tradição da lectio divina: esta permite ler o texto bíblico como palavra viva que interpela, orienta, plasma a existência ».73 No período da meditação e da lectio, o coração, que já acolheu a Palavra de Deus, abre-se à contemplação do agir de Deus e, consequentemente, à conversão dos pensamentos e da vida a Ele, acompanhada pela súplica do seu perdão e da sua graça.

66 Cf. Propositio 8.
67 Cf. Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), EN 59: AAS 68 (1976), 50.
68 Carta aos Filadélfios, 5: PG 5, 700.
69 Commentariorum in Isaiam, Prol: PL 24, 17; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, DV 25.
70 Paulo VI, Exort. ap. Marialis cultus (2 de Fevereiro de 1974), 17: AAS 66 (1974), 128.
71 Cf. Santo Agostinho, Sermo 179, 1: PL 38, 966.
72 Homilias sobre o Levítico, VI: PG 12, 474/C.
73 N. NM 39: AAS 93 (2001), 294.


Alimentar-se da Eucaristia

16 Da mesma forma que o mistério pascal está no centro da vida e missão do Bom Pastor, assim a Eucaristia constitui o centro da vida e missão do Bispo, e também de cada sacerdote.

Pela celebração diária da santa Missa, oferece-se a si próprio juntamente com Cristo. Quando esta celebração se realiza na Catedral ou noutras igrejas, sobretudo paroquiais, com o concurso e a participação activa dos fiéis, então o Bispo aparece à vista de todos como o que verdadeiramente é, ou seja, Sacerdos et Pontifex, porque age em nome de Cristo e com a força do seu Espírito, e como o hiereus, o sacerdote santo, ocupado na realização dos sagrados mistérios do altar, que anuncia e explica através da pregação.74

O amor do Bispo pela sagrada Eucaristia manifesta-se também quando, durante o dia, dedica uma parte razoavelmente longa do próprio tempo à adoração diante do Sacrário. Aqui abre ao Senhor a sua alma, para ficar completamente permeada e moldada pela caridade comunicada na Cruz pelo grande Pastor das ovelhas, que por elas derramou o seu sangue e deu a própria vida. A Ele ergue também a sua oração, continuando a interceder pelas ovelhas que lhe foram confiadas.

74 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Sobre a Hierarquia Eclesiástica, III: PG 3, 512; S. Tomás de Aquino, Summa theologiae,
II-II 184,5.


A oração e a Liturgia das Horas

17 O segundo meio indicado pelos padres sinodais é a oração, e de modo especial a que se eleva ao Senhor na celebração da Liturgia das Horas, que é especificamente e sempre uma oração da comunidade cristã em nome de Cristo e sob a guia do Espírito.

A oração é em si mesma uma particular obrigação para um Bispo e para quantos « tiveram o dom da vocação a uma vida de especial consagração: esta, por sua natureza, torna-os mais disponíveis para a experiência contemplativa ».75 O Bispo não se pode esquecer que é sucessor daqueles Apóstolos que foram eleitos por Cristo primariamente « para andarem com Ele » (
Mc 3,14) e que, nos inícios da sua missão, fizeram uma solene declaração que é um programa de vida: « Quanto a nós, entregar-nos-emos assiduamente à oração e ao serviço da palavra » (Ac 6,4). Por isso, o Bispo só conseguirá ser um mestre de oração para os fiéis, se puder contar com a própria experiência pessoal de diálogo com Deus. Há-de poder a todo o momento repetir a Deus estas palavras do Salmista: « Na vossa palavra, pus a minha esperança » (Ps 119,114 118,114). É precisamente da oração que ele pode receber a esperança com que deve, por assim dizer, contagiar os fiéis. De facto, a oração é o lugar privilegiado, onde se manifesta e alimenta a esperança, porque aquela, na expressão de S. Tomás de Aquino, é a « intérprete da esperança ».76

A oração pessoal do Bispo há-de ser de modo muito especial uma oração tipicamente « apostólica », isto é, apresentada ao Pai como intercessão pelas necessidades do povo que lhe está confiado. Segundo o Pontifical Romano, esta é a última promessa do eleito ao episcopado, antes de se proceder à imposição das mãos: « Queres perseverar na oração a Deus Pai todo-poderoso em favor do povo santo e exercer o sumo sacerdócio com toda a fidelidade? ».77 De modo muito particular, o Bispo reza pela santidade dos seus sacerdotes, pelas vocações ao ministério ordenado e à vida consagrada, para que na Igreja se inflame cada vez mais o zelo missionário e apostólico.

Depois quanto à Liturgia das Horas, destinada a consagrar e orientar o arco inteiro da jornada por meio do louvor a Deus, como não recordar algumas expressões magníficas do Concílio? « Quando são os sacerdotes a cantar este admirável cântico de louvor, ou outros para tal deputados pela Igreja, ou os fiéis quando rezam juntamente com o sacerdote segundo as formas aprovadas, então é verdadeiramente a voz da Esposa que fala com o Esposo ou, melhor, a oração que Cristo, unido ao seu Corpo, eleva ao Pai. Todos os que rezam assim, cumprem, por um lado, a obrigação própria da Igreja, e, por outro, participam na imensa honra da Esposa de Cristo, porque estão em nome da Igreja, diante do trono de Deus, a louvar o Senhor ».78 Escrevendo sobre a oração do Ofício Divino, Paulo VI, meu predecessor de veneranda memória, afirmava que é « oração da Igreja local », na qual se exprime « a verdadeira natureza da Igreja orante ».79 Na consecratio temporis, que aLiturgia das Horas realiza, concretiza-se aquele laus perennis que é antecipação e prefiguração da Liturgia celeste, vínculo de união com os anjos e os santos que glorificam eternamente o nome de Deus. Assim, um Bispo apresenta-se e realiza-se como homem de esperança na medida em que se insere no dinamismo escatológico da oração do Saltério. Nos Salmos, ressoa a Vox sponsae que invoca o Esposo.

Por isso, cada Bispo ora com o seu povo e ora pelo seu povo. Todavia, ele é também edificado e auxiliado pela oração dos seus fiéis: sacerdotes, diáconos, pessoas de vida consagrada e leigos de todas as idades. No meio deles, o Bispo é educador e promotor da oração. Não só transmite o que contemplou, mas abre aos cristãos o próprio caminho da contemplação. O conhecido lemacontemplata aliis tradere torna-se assim contemplationem aliis tradere.

75 João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), NM 34: AAS 93 (2001), 290.
76 Summa theologiae, II-II 17,2.
77 Rito da Ordenação do Bispo: Promessa do eleito.
78 Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 84-85.
79 Const. ap. Laudis canticum (1 de Novembro de 1970): AAS 63 (1971), 532.



Pastores gregis PT 9