Populorum progressio PT 38

Organizações profissionais

38 Na obra do desenvolvimento, o homem, que na família encontra o seu modo de vida primordial, é muitas vezes ajudado por organizações profissionais. Se a razâo de ser destas organizações é promover os interesses dos seus membros, torna-se grande a sua responsabilidade perante a tarefa educativa que elas podem e devem realizar. Através das informações dadas e da formação que propõem, têm o poder de transmitir a todos o sentido do bem comum e das obrigações que ele impõe a cada homem.


Pluralismo legítimo

39 Toda a ação social implica uma doutrina, mas o cristão não pode admitir a que implique uma filosofia materialista e atéia que não respeite a orientação religiosa da vida para o seu último fim, nem a liberdade e a dignidade humana. Mas, garantidos estes valores, é admissível e, até certo ponto útil, um pluralismo de organizações profissionais e sindicais, contanto que ele proteja a liberdade e provoque a emulação. E com toda a nossa alma que prestamos homenagem a quem quer que, por este meio, trabalha servindo desinteressadamente os seus irmãos.


Promoção cultural

40 Além de organizações profissionais, funcionam também instituições culturais, cujo papel não é de menos valor para o bom êxito do desenvolvimento. "O futuro do mundo está ameaçado, afirma gravemente o Concílio, se na nossa época não surgirem homens dotados de sabedoria". E acrescenta: "numerosos países, pobres em bens materiais, mas ricos em sabedoria, podem trazer aos outros inapreciável contribuição".(40) Rico ou pobre, cada país possui uma civilização recebida dos antepassados: instituições exigidas para a vida terrestre e manifestações superiores - artísticas, intelectuais e religiosas - da vida do espírito. Quando estas últimas possuem verdadeiros valores humanos, grande erro é sacrificá-los àquelas. Um povo que nisso consentisse perderia o melhor de si mesmo, sacrificaria, julgando encontrar vida, a razão da sua própria vida. O ensinamento de Cristo vale também para os povos: "De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se vem a perder a sua alma?"(41)

40. Ibid., n.
GS 15, § 3.
41. Mt 16,26.


Tentação materialista

41 Nunca será demais defender os países pobres desta tentação que lhes vem dos povos ricos que apresentam, muitas vezes, não só o exemplo do seu êxito numa civilização técnica e cultural, mas também o modelo de uma atividade, aplicada sobretudo à conquista da prosperidade material. Esta não impede, par si mesma, a atividade do espírito. Pelo contrário, "o espírito, mais liberto da escravidão das coisas, pode facilmente elevar-se ao culto e contemplação do Criador".(42) No entanto, "a civilização atual, não pelo que tem de essencial, mas pelo fato de estar muito ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil o acesso a Deus".(43) Naquilo que lhes é proposto, os povos em via de desenvolvimento devem saber escolher: criticar e eliminar os falsos bens que levariam a uma diminuição do ideal humano, e aceitar os valores verdadeiros e benéficos, para os desenvolver, juntamente com os seus, segundo a própria índole.

42. Gaudium et Spes, n.
GS 57,4.
43. Ibid., n. GS 19 § 2.


PARA UM HUMANISMO TOTAL



Conclusão

42 É necessário promover um humanismo total.(44) Que vem ele a ser senão o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens? Poderia aparentemente triunfar um humanismo limitado, fechado aos valores do espírito e a Deus, fonte do verdadeiro humanismo. O homem pode organizar a terra sem Deus, mas "sem Deus só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é humanismo desumano".(45) Não há, portanto, verdadeiro humanismo, senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a idéia exata do que é a vida humana. O homem, longe de ser a norma última dos valores, só se pode realizar a si mesmo, ultrapassando-se. Segundo a frase, tão exata de Pascal: "O homem ultrapassa infinitamente o homem".(46)

44. Cf., por exemplo, J. Maritain, L'humanisme intégral, Paris, Aubier,1936.
45. H. de Lubac S. J., Le Brame de l'humanisme athée, 3ª ed., Paris, Spes, 1945, p.10.
46. Pensées, ed. Brunschviecg, n. 434. Cf. M. Zundeil, L'homme passe l'homme, Le Caire, Editions du Lien,1944.




SEGUNDA PARTE

PARA UM DESENVOLVIMENTO SOLIDÁRIO DA HUMANIDADE


Introdução

43 O desenvolvimento integral do homem não pode realizar-se sem o desenvolvimento solidário da humanidade. Dizíamos em Bombaim: "O homem deve encontrar o homem, as nações devem encontrar-se como irmãos e irmãs, como alhos de Deus. Nesta compreensão e amizade mútuas, nesta comunhão sagrada, devemos começar também a trabalhar juntos para construir o futuro comum da humanidade".(47) Por isso, sugeríamos a busca de meios de organização e de cooperação, concretos e práticos, para pôr em comum os recursos disponíveis e realizar, assim, uma verdadeira comunhão entre todas as nações.

47. Alocução aos representantes das religiões não-cristãs, 3 de dezembro 1964, AAS 57 (1965), p.132.



Fraternidade dos povos

44 Este dever diz respeito, em primeiro lugar, aos mais favorecidos. As suas obrigações enraízam-se na fraternidade humana e sobrenatural, apresentando-se sob um tríplice aspecto: o do dever de solidariedade, ou seja, o auxílio que as nações ricas devem prestar aos países em via de desenvolvimento; o do dever de justiça social, isto é, a retificação das relações comerciais defeituosas, entre povos fortes e povos fracos; o do dever de caridade universal, quer dizer, a promoção, para todos, de um mundo mais humano e onde todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros. O futuro da civilização mundial está dependente da solução deste grave problema.



1. ASSISTÊNCIA AOS FRACOS


Luta contra a fome

45 "Se um irmão ou uma irmã estiverem nus, diz são Tiago, e precisarem do alimento cotidiano e algum de vós lhes disser: ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos, sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará?".(48) Hoje ninguém pode ignorar que, em continentes inteiros, são inumeráveis os homens e as mulheres torturados pela fome, inumeráveis as crianças subalimentadas, a ponto de morrer uma grande parte delas em tenra idade e o crescimento físico e o desenvolvimento mental de muitas outras correrem perigo. E todos sabem que regiões inteiras estão, por este mesmo fato condenadas ao mais triste desânimo.

48.
Jc 2,15-16.


Hoje

46 Já se fizeram ouvir apelos angustiados. O de João XXIII foi calorosamente atendido (49). Nós próprio o repetimos na nossa mensagem de Natal, em 1963, (50) e novamente, a favor da Índia, em 1966 (51). A campanha contra a fome, iniciada pela Organização Internacional da Alimentação e Agricultura (FAO) e estimulada pela Santa Sé, provocou dedicações generosas. A nossa Caritas Internacional está por toda a parte em ação e numerosos católicos, sob o impulso dos nossos irmãos no episcopado, dão e dão-se sem medida, para ajudar os que necessitam, alargando progressivamente o âmbito do seu próximo.

49. Cf. Mater et Magistra, AAS 53, (1961), p.
MM 440ss.
50. Cf. AAS 56 (1964), pp. 57-58.
51. Cf. Encicliche e Discorsi di Paolo Vl, vol. IX, Roma, ed. Paoline,1966, pp. 132-136.


Amanhã

47 Mas isto não basta, como não bastam os investimentos realizados, privados ou públicos, as dádivas e empréstimos concedidos. Não se trata apenas de vencer a fome, nem tampouco de afastar a pobreza. O combate contra a miséria, embora urgente e necessário, não é suficiente. Trata-se de construir um mundo em que todos os homens, sem exceção de raça, religião ou nacionalidade, possam viver uma vida plenamente humana, livre de servidões que lhe vêm dos homens e de uma natureza mal domada; um mundo em que a liberdade não seja uma palavra vã e em que o pobre Lázaro possa sentar-se à mesa do rico,(52) Isto exige, da parte deste último, grande generosidade, muitos sacrifícios e esforço contínuo. Compete a cada um examinar a própria consciência, que agora fala com voz nova para a nossa época. Estará o rico pronto a dar do seu dinheiro, para sustentar as obras e missões organizadas em favor dos mais pobres? Estará disposto a pagar mais impostos, para que os poderes públicos intensifiquem os esforços pelo desenvolvimento? A comprar mais caro os produtos importados, para remunerar com maior justiça o produtor? E, se é jovem, a deixar a pátria, sendo necessário, para ir levar ajuda ao crescimento das nações novas?

52. Cf.
Lc 16,19-31.


Dever de solidariedade

48 O dever de solidariedade é o mesmo, tanto para as pessoas como para os povos: "é dever muito grave dos povos desenvolvidos ajudar os que estão em via de desenvolvimento".(53) É necessário pôr em prática este ensinamento do Concílio. Se é normal que uma população seja a primeira a beneficiar dos dons que a Providência lhe concedeu como fruto do seu trabalho, é também certo que nenhum povo tem o direito de reservar as suas riquezas para seu uso exclusivo. Cada povo deve produzir mais e melhor, para dar aos seus um nível de vida verdadeiramente humano e, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento solidário da humanidade. Perante a indigência crescente dos países subdesenvolvidos, deve considerar-se normal que um país evoluído dedique uma parte da sua produção a socorrer as suas necessidades; é também normal que forme educadores, engenheiros, técnicos e sábios, que ponham a ciência e a competência ao seu serviço.

53. Gaudium et Spes, n.
GS 86, § 3.


Supérfluo

49 Repetimos, mais uma vez: o supérfluo dos países ricos deve pôr-se ao serviço dos países pobres. A regra que existia outrora em favor dos mais próximos, deve aplicar-se hoje à totalidade dos necessitados do mundo inteiro. Aliás, serão os ricos os primeiros a beneficiar-se com isto. De outro modo, a sua avareza continuada provocaria os juízos de Deus e a cólera dos pobres, com conseqüências imprevisíveis. Concentradas no seu egoísmo, as civilizações atualmente florescentes lesariam os seus mais altos valores, sacrificando a vontade de ser mais, ao desejo de ter mais. E aplicar-se-ia a parábola do homem rico, cujas propriedades tinham produzido muito e que não sabia onde guardar a colheita: "Deus disse-lhe: néscio, nesta mesma noite virão reclamar a tua alma". (54)

54.
Lc 12,20.


Programas

50 Para atingirem a sua plena eficácia, estes esforços não podem ficar dispersos e isolados e, menos ainda, opostos por razões de prestígio ou de poder: a situação atual exige programas bem organizados. Um programa é, efetivamente, mais e melhor que um auxílio ocasional, deixado à benevolência de cada um. Supõe, como acima dissemos, estudos aprofundados, fixação de objetivos, determinação de meios e conjugação de esforços, para que possa responder às necessidades presentes e às exigências previsíveis. Mais ainda, ultrapassa as perspectivas do crescimento econômico e do progresso social: dá sentido e valor à obra que se pretende realizar. Ordenando o mundo, valoriza o homem.


Fundo mundial

51 É necessário ir ainda mais longe. Pedíamos, em Bombaim, a organização de um grande Fundo mundial, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para vir em auxílio dos mais deserdados.(55) O que é válido para a luta imediata contra a miséria vale também no que respeita ao desenvolvimento. Só uma colaboração mundial, de que um fundo comum seria, ao mesmo tempo, símbolo e instrumento, permitiria superar as rivalidades estéreis e estabelecer um diálogo fecundo e pacífico entre todos os povos.

55. Cf. Mensagem ao mundo, em 4 de dezembro de 1964, Cf. AAS 57 (1965), p.135.



Suas vantagens

52 Podem manter-se, sem dúvida, acordos bilaterais ou multilaterais: estes acordos permitirão substituir as relações de dependência e os ressentimentos vindos de uma era colonial, por boas relações de amizade, mantidas num pé de igualdade jurídica e política. Mas incorporados num programa de colaboração mundial, ficariam isentos de qualquer suspeita. A desconfiança dos beneficiados seria assim atenuada. Temeriam menos certas manifestações a que se chamou neocolonialismo, dissimulados em auxílio financeiro ou assistência técnica, sob a forma de pressões políticas e domínios econômicos, tendo em vista defender ou conquistar uma hegemonia dominadora.


Sua urgência


53 Por outro lado, quem não vê que um tal fundo facilitaria a reconversão de certos esbanjamentos que são fruto do medo ou do orgulho? Quando tantos povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, tantos homens permanecem mergulhados na ignorância, tantas escolas, hospitais e habitações, dignas deste nome, ficam por construir, torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento público ou privado, qualquer gasto de ostentaçâo nacional ou pessoal, qualquer recurso exagerado aos armamentos. Sentimo-nos na obrigação de o denunciar. Dignem-se ouvir-nos os responsáveis, antes que se torne demasiado tarde.


Diálogo a estabelecer

54 Quer dizer que é indispensável estabelecer entre todos aquele diálogo, para o qual apelávamos com os nossos votos, na nossa primeira Encíclica Ecclesiam suam.(56) Este mesmo diálogo, entre aqueles que fornecem os meios e os que deles se beneficiam, permitirá avaliar os subsídios, não só quanto à generosidade e disponibilidade de uns, mas também em função dos bens reais e das possibilidades de emprego de outros. Então, os países em via de desenvolvimento já não correrão o risco de ficarem sobrecarregados de dívidas, cuja amortização e juros absorvem o melhor dos seus lucros. Os juros e a duração dos empréstimos podem ser organizados de maneira suportável a uns e a outros, equilibrando os donativos gratuitos, os empréstimos sem juros ou à taxa mínima, com a duração das amortizações. Podem dar-se garantias aos que fornecem os meios financeiros, sobre a maneira como serão empregados, segundo o plano combinado e com uma eficácia razoável, pois não se trata de favorecer preguiçosos e parasitas. E os beneficiados podem exigir que não se intrometam na sua própria política, nem perturbem a sua estrutura social. Como Estados soberanos, compete-lhes conduzir os seus próprios negócios, determinar a sua política e orientar-se livremente para a sociedade que preferirem. Portanto, é uma colaboração voluntária, uma participação eficaz de uns como os outros, numa idêntica dignidade, que deve estabelecer-se para a construção de um mundo mais humano.

56. Cf. AAS 56 (1964), pp. 639ss.



Sua necessidade

55 A tarefa pode parecer impossível nas regiões onde a preocupação da subsistência cotidiana monopoliza toda a existência das famílias, incapazes de conceber um trabalho que seja suscetível de preparar um futuro menos miserável. É, contudo, a estes homens e a estas mulheres, que é necessário ajudar, levar à realização do seu próprio desenvolvimento e a adquirirem progressivamente os meios para o atingir. Certamente, esta obra comum será impossível sem um esforço combinado, constante e corajoso. Fique, no entanto, cada um bem persuadido de que estão em jogo a vida dos povos pobres, a paz civil dos países em via de desenvolvimento, e a paz do mundo.



2. EQÜIDADE NAS RELAÇÕES COMERCIAIS

56 Ainda que fossem consideráveis, seriam ilusórios os esforços feitos para ajudar, no plano financeiro e técnico, os países em via de desenvolvimento, se os resultados fossem parcialmente anulados pelo jogo das relações comerciais entre países ricos e países pobres. A confiança destes últimos ficaria abalada, se tivessem a impressão de que uma das mãos lhes tira o que a outra lhe dá.


Distorção crescente

57 As nações altamente industrializadas exportam sobretudo produtos fabricados, enquanto as economias pouco desenvolvidas vendem apenas produtos agrícolas e matérias primas. Aqueles, graças ao progresso técnico, aumentam rapidamente de valor e encontram um mercado satisfatório. Pelo contrário, os produtos primários provenientes dos países em via de desenvolvimento sofrem grandes e repentinas variações de preços, muito aquém da subida progressiva dos outros. Daqui surgem grandes dificuldades para as nações pouco industrializadas, quando contam com as exportações para equilibrar a sua economia e realizar o seu plano de desenvolvimento. Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos.


Para além do liberalismo

58 Quer dizer que a regra da livre troca já não pode, por si mesma, reger as relações internacionais. As suas vantagens são evidentes quando os países se encontram mais ou menos nas mesmas condições de poder econômico: constitui estímulo ao progresso e recompensa do esforço. Por isso os países industrialmente desenvolvidos vêem nela uma lei de justiça. Já o mesmo não acontece quando as condições são demasiado diferentes de país para país: os preços "livremente" estabelecidos no mercado podem levar a conseqüências iníquas. Devemos reconhecer que está em causa o princípio fundamental do liberalismo, como regra de transações comerciais.


Justiça dos contratos ao nível dos povos

59 Continua a valer o ensinamento de Leão XIII, na encíclica Rerum novarum: em condições demasiado diferentes, o consentimento das partes não basta para garantir a justiça do contrato, e a regra do livre consentimento permanece subordinada às exigências do direito natural. (57) O que era verdade do justo salário individual, também o é dos contratos internacionais: uma economia de intercâmbio já não pode apoiar-se sobre a lei única da livre concorrência, que freqüentes vezes leva à ditadura econômica. A liberdade das transações só é eqüitativa quando sujeita às exigências da justiça social.

57. Cf. Acta Leonis XIII, t. XI (1892), p.131.



Medidas a tomar

60 Foi o que já compreenderam os próprios países desenvolvidos, que se esforçam por estabelecer no interior da sua economia, por meios apropriados, um equilíbrio que a concorrência, entregue a si mesma, tende a comprometer. Assim, muitas vezes sustentam a sua agricultura à custa de sacrifícios impostos aos setores econômicos mais favorecidos. E também, para manterem as relações comerciais que se estabelecem entre países e países, particularmente em regime de mercado comum, adotam políticas financeiras, fiscais e sociais, que se esforçam por restituir às indústrias concorrentes, desigualmente prósperas, possibilidades semelhantes.


Convenções internacionais

61 Mas não se podem usar nisto dois pesos e duas medidas. O que vale para a economia nacional, o que se admite entre países desenvolvidos, vale também para as relações comerciais entre países ricos e países pobres. Sem o abolir, é preciso, ao contrário, manter o mercado de concorrência dentro dos limites que o tornam justo e moral e, portanto, humano. No comércio entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas, as situações são demasiado discordantes e as liberdades reais demasiado desproporcionadas. A justiça social exige do comércio internacional, para ser humano e moral, que restabeleça, entre as duas partes, pelo menos certa igualdade de possibilidades. É um objetivo a atingir a longo prazo. Mas, para o alcançar, é preciso, desde já, criar uma igualdade real nas discussões e negociações. Também neste campo se sente a utilidade de convenções internacionais num âmbito suficientemente vasto: estabeleceriam normas gerais, capazes de regular certos preços, garantir certas produções e sustentar certas indústrias nascentes. Não há quem duvide de que tal esforço comum, no sentido de maior justiça nas relações comerciais entre os povos, traria aos países em via de desenvolvimento um auxílio positivo, cujos efeitos seriam não só imediatos, mas também duradouros.


Obstáculos a vencer: nacionalismo

62 Existem ainda outros obstáculos à formação de um mundo mais justo e mais estruturado numa solidariedade universal: queremos falar do nacionalismo e do racismo. Comunidades recentemente elevadas à independência política, é natural que se mostrem ciosas de uma unidade nacional ainda frágil, e se esforcem por protegê-la. É também normal que nações de cultura antiga se sintam orgulhosas do patrimônio que lhes legou a história. Mas estes sentimentos legítimos devem ser sublimados pela caridade universal, que engloba todos os membros da família humana. O nacionalismo isola os povos, contrariando o seu verdadeiro bem. E seria particularmente nocivo onde a fraqueza das economias nacionais exige, pelo contrário, um pôr em comum esforços, conhecimentos e meios financeiros, para se realizarem os programas de desenvolvimento e aumentarem os intercâmbios comerciais e culturais.


Racismo

63 O racismo não é apanágio exclusivo das nações jovens, onde ele se dissimula por vezes sob aparências de rivalidades de clãs e de partidos políticos, com notável detrimento da justiça e perigo da paz civil. Durante a era colonial o racismo grassou, com freqüência, entre colonos e indígenas, impedindo o recíproco e fecundo entendimento e provocando, ressentimentos após injustiças reais. E continua ainda a ser obstáculo à colaboração entre nações desfavorecidas, e fermento de divisão e ódio, mesmo dentro dos próprios Estados quando, contrariamente aos direitos imprescritíveis da pessoa humana, indivíduos e famílias se vêem injustamente submetidos a um regime de exceção por motivo de raça ou de cor.


Para um mundo solidário

64 Aflige-nos profundamente tal situação, tão carregada de ameaças para o futuro. No entanto, não perdemos a esperança: sobre as incompreensões e os egoísmos, acabarão por prevalecer uma necessidade mais viva de colaboração e um sentido mais agudo de solidariedade. Esperamos que os países, cujo desenvolvimento é menos avançado, saibam aproveitar-se dos seus vizinhos para organizar uns com os outros, em áreas territoriais mais extensas, zonas de desenvolvimento combinado, estabelecendo programas comuns, coordenando os investimentos, repartindo as possibilidades de produção e organizando os intercâmbios. Esperamos também que as organizações multilaterais e internacionais encontrem, por meio da necessária reorganização, os caminhos que permitam aos povos ainda em via de desenvolvimento, sair das situações difíceis, em que parecem estar embaraçados, e descobrir, na fidelidade ao seu caráter próprio, os meios do progresso social e humano.


Povos artífices do seu destino

65 A isto temos de chegar: a que a solidariedade mundial, cada vez mais eficiente, permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino. Demasiadas vezes o passado esteve marcado por relações de força entre as nações: virá um dia em que as relações internacionais hão de possuir o cunho de respeito mútuo e de amizade, de interdependência na colaboração e de promoção comum sob a responsabilidade de cada indivíduo. Os povos mais novos ou mais fracos reclamam a sua parte ativa na construção de um mundo melhor, mais respeitador dos direitos e da vocação de cada um. É reclamação legítima: a todos compete ouvi-la e satisfazê-la.



3. A CARIDADE UNIVERSAL

66 O mundo está doente. O seu mal reside menos na dilapidação dos recursos ou no seu açambarcamento, por parte de poucos, do que na falta de fraternidade entre os homens e entre os povos.


Dever do acolhimento

67 Não é demasiado insistir sobre o dever do acolhimento - dever de solidariedade humana e de caridade cristã - que incumbe, tanto às famílias como às organizações culturais dos países que recebem. E necessário, sobretudo para os jovens, multiplicar os lares e as casas de acolhimento. Isto, em primeiro lugar, para os defender da solidão, do sentimento de abandono, e da miséria, que inutilizam toda a energia moral; também para os defender da situação malsã em que se encontram forçados a comparar a extrema pobreza da sua pátria com o luxo e desperdício que muitas vezes os rodeiam; mais ainda, para os pôr ao abrigo de doutrinas subversivas e de tentações agressivas, que os assaltam à simples lembrança de tanta "miséria imerecida"; (58) e enfim, sobretudo em vista de, por meio do calor de um acolhimento fraterno, lhes comunicar o exemplo de uma vida sã, a estima da caridade cristã autêntica e eficaz, e o apreço dos bens espirituais.

58. Cf. Ibid., p. 98.



Drama dos jovens estudantes

68 Confrange pensar que muitos jovens, vindos a países avançados para aprender a ciência, a competência e a cultura, que os hão de tornar mais aptos para servir a sua pátria, adquirem certamente uma formação de alta qualidade mas, com freqüência, perdem ao mesmo tempo a estima dos valores espirituais que, muitas vezes, eram tidos como patrimônio precioso nas civilizações que os viram crescer.


Trabalhadores emigrados

69 Deve-se o mesmo acolhimento aos trabalhadores emigrados que, economizando para aliviar um pouco a família que na sua terra natal ficou na miséria, vivem em condições por vezes desumanas.


Sentido social

70 A nossa segunda recomendação dirige-se àqueles que são trazidos pelos seus negócios a países recentemente abertos à industrialização: industriais, comerciantes, chefes ou representantes de empresas maiores. Se no seu próprio país não se mostram faltos de sentido social, por que hão de regressar aos princípios desumanos do individualismo quando trabalham em países menos desenvolvidos? A posição elevada que têm deve, pelo contrário, estimulá-los a serem iniciadores do progresso social e da promoção humana, precisamente onde se encontram por causa dos seus negócios. Até mesmo o sentido que possuem, de organização, lhes devia sugerir os meios de valorizar o trabalho indígena, de formar operários qualificados, de preparar engenheiros e quadros, de dar lugar à iniciativa destes, de os introduzir progressivamente nos cargos mais elevados, preparando-os assim a participar, num futuro próximo, nas responsabilidades da direção. Que pelo menos as relações entre chefes e súditos sejam sempre baseadas na justiça e regidas por contratos regulares de obrigações recíprocas. Que ninguém, seja qual for a sua situação, se mantenha injustamente entregue às arbitrariedades.


Missão de desenvolvimento

71 Alegramo-nos ao ver aumentar cada vez mais o número de técnicos enviados, em missão de desenvolvimento, quer por instituições internacionais ou bilaterais, quer por organismos privados: "Não procedam como dominadores, mas como auxiliares e cooperadores".(59) Um povo depressa compreende se, os que vêm em seu auxílio, o fazem com ou sem amizade, para aplicar técnicas, somente, ou para dar ao homem todo o valor que lhe compete. A mensagem que trazem corre o risco de não ser aceita, se não é revestida de amor fraterno.

59. Gaudium et Spes, n.
GS 85, § 2.


Qualidades dos peritos

72 À competência técnica necessária é preciso juntar sinais autênticos de amor desinteressado. Livres de qualquer superioridade nacionalista e de qualquer aparência de racismo, os peritos devem aprender a trabalhar em íntima colaboração com todos. A competência não lhes confere superioridade em todos os domínios. A civilização que os formou contém, certamente, elementos de humanismo universal, mas não é única nem exclusiva e não pode ser importada sem adaptação. Os agentes destas missões tomem a peito descobrir não só a história mas também as características e as riquezas culturais do país que os acolhe. Estabelecer-se-á, deste modo, uma aproximação que fecundará uma e outra civilização.


Diálogo das civilizações

73 Entre as civilizações, como entre as pessoas, o diálogo sincero torna-se criador de fraternidade. A busca do desenvolvimento há de aproximar os povos nas realizações, fruto de esforço comum, se todos, desde os governos e seus representantes até ao mais humilde dos técnicos, estiverem animados de amor fraterno e movidos pelo desejo sincero de construir uma civilização de solidariedade mundial. Então, abrir-se-á um diálogo centrado no homem e não nas mercadorias ou nas técnicas. E será fecundo, na medida em que trouxer aos povos, que dele beneficiam, os meios para se educarem e espiritualizarem; na medida em que os técnicos se fizerem educadores; e na medida em que o ensino dado tiver características espirituais e morais tão elevadas, que possa garantir um desenvolvimento, não só econômico mas também humano. Terminada a assistência, permanecerão as relações assim estabelecidas. Quem pode deixar de reconhecer quanto estas hão de contribuir para a paz do mundo?



Apelo aos jovens

74 Muitos jovens já responderam com ardor e prontidão ao apelo de Pio XII, a favor do laicado missionário.(60) Numerosos são também os que espontaneamente se puseram à disposição de organismos, oficiais ou privados, de colaboração com os povos em fase de desenvolvimento. Alegramo-nos por saber que, em algumas nações, o "serviço militar" pode tornar-se, em parte, "serviço social", unicamente "serviço". Abençoamos estas iniciativas e a boa vontade daqueles que a elas respondem. Oxalá todos os que seguem a Cristo, ouçam o seu apelo: "Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e vestistes-me, enfermo e visitastes-me, prisioneiro e viestes ver-me".(61) Ninguém pode ficar indiferente à sorte dos seus irmãos ainda mergulhados na miséria, atormentados pela ignorância e vítimas da insegurança. Como o coração de Cristo, também o coração do cristão deve compadecer-se desta miséria: "tenho compaixão deste povo". (62)

60. Cf. Encíclica Fidei Donum, 21 de abril 1957, AAS 49 (1957), p. 246.
61.
Mt 25,35-36.
62. Mc 8,2.


Oração e ação

75 Ao Onipotente há de elevar-se fervorosa a oração de todos, para que a humanidade, depois de tomar consciência de tão grandes males, se aplique com inteligência e firmeza a exterminá-los. A esta oração deve corresponder, em cada um, o compromisso decidido de se empenhar, segundo as suas possibilidades e forças, na luta contra o subdesenvolvimento. Dêem-se as mãos fraternalmente, as pessoas, os grupos sociais e as nações, o forte ajudando o fraco a crescer, oferecendo-lhe toda a sua competência, entusiasmo e amor desinteressado. Mais do que qualquer outro, aquele que está animado de verdadeira caridade é engenhoso em descobrir as causas da miséria, encontrar os meios de a combater e vencê-la resolutamente. Artífice da paz, "prosseguirá o seu caminho, ateando a alegria, e derramando a luz e a graça no coração dos homens, por toda a terra, fazendo-lhes descobrir, para lá de todas as fronteiras, rostos de irmãos, rostos de amigos".(63)

63. Alocução de João XXIII, por ocasião do prêmio Balzan em 10 de maio de 1963, AAS 55 (1963), p. 455.




DESENVOLVIMENTO É O NOVO NOME DA PAZ


Conclusão

76 As excessivas disparidades econômicas, sociais e culturais provocam, entre os povos, tensões e discórdias, e pôem em perigo a paz. Como dizíamos aos Padres conciliares, no regresso da nossa viagem de paz à ONU, "a condição das populações em fase de desenvolvimento deve ser objeto da nossa consideração, ou melhor, a nossa caridade para com todos os pobres do mundo, e eles são legiões infinitas, deve tornar-se mais atenta, mais ativa e mais generosa".(64) Combater a miséria e lutar contra a injustiça, é promover não só o bem-estar mas também o progresso humano e espiritual de todos e, portanto, o bem comum da humanidade. A paz não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equil'brio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca de uma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens. (65)

64. AAS 57 (1965), p. 896.
65. Cf. Encíclica Pacem in Terris, 11 de abril 1963, AAS 55 (1963), p.
PT 301.


Sair do isolamento

77 São os povos os autores e primeiros responsáveis do próprio desenvolvimento. Mas não o poderão realizar isolados. Fases deste caminho do desenvolvimento que leva à paz, são os acordos regionais entre os povos fracos a fim de se apoiarem mutuamente, as relações mais amplas para se entre-ajudarem e as convenções mais audazes, entre uns e outros, para estabelecerem programas comuns.



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