Lumen fidei PT 22


CAPÍTULO II - SE NÃO ACREDITARDES, NÃO COMPREENDEREIS

(cf. Is 7,9)



Fé e verdade

23 Se não acreditardes, não compreendereis (cf. Is 7,9): foi assim que a versão grega da Bíblia hebraica — a tradução dos Setenta, feita em Alexandria do Egipto — traduziu as palavras do profeta Isaías ao rei Acaz, fazendo aparecer como central, na fé, a questão do conhecimento da verdade. Entretanto, no texto hebraico, há uma leitura diferente; aqui o profeta diz ao rei: « Se não o acreditardes, não subsistireis ». Existe aqui um jogo de palavras com duas formas do verbo ‘amàn: « acreditardes » ( ta’aminu)e « subsistireis » ( te’amenu). Apavorado com a força dos seus inimigos, o rei busca a segurança que lhe pode vir de uma aliança com o grande império da Assíria; mas o profeta convida-o a confiar apenas na verdadeira rocha que não vacila: o Deus de Israel. Uma vez que Deus é fiável, é razoável ter fé n’Ele, construir a própria segurança sobre a sua Palavra. Este é o Deus que Isaías chamará mais adiante, por duas vezes, o Deus-Amen, o « Deus fiel » (cf. Is 65,16), fundamento inabalável de fidelidade à aliança. Poder-se-ia pensar que a versão grega da Bíblia, traduzindo « subsistir » por « compreender », tivesse realizado uma mudança profunda do texto, passando da noção bíblica de entrega a Deus à noção grega de compreensão. E no entanto esta tradução, que aceitava certamente o diálogo com a cultura helenista, não é alheia à dinâmica profunda do texto hebraico; a firmeza que Isaías promete ao rei passa, realmente, pela compreensão do agir de Deus e da unidade que Ele dá à vida do homem e à história do povo. O profeta exorta a compreender os caminhos do Senhor, encontrando na fidelidade de Deus o plano de sabedoria que governa os séculos. Esta síntese entre o « compreender » e o « subsistir » é expressa por Santo Agostinho, nas suas Confissões, quando fala da verdade em que se pode confiar para conseguirmos ficar de pé: « Estarei firme e consolidar-me-ei em Ti, (…) na tua verdade ».[17] Vendo o contexto, sabemos que este Padre da Igreja quer mostrar que esta verdade fidedigna de Deus é, como resulta da Bíblia, a sua presença fiel ao longo da história, a sua capacidade de manter unidos os tempos, recolhendo a dispersão dos dias do homem. [18]

[17] Confessiones, XI, 30, 40: PL 32, 825.
[18] Cf. ibid.: o. c., 825-826.

24 Lido a esta luz, o texto de Isaías faz-nos concluir: o homem precisa de conhecimento, precisa de verdade, porque sem ela não se mantém de pé, não caminha. Sem verdade, a fé não salva, não torna seguros os nossos passos. Seria uma linda fábula, a projecção dos nossos desejos de felicidade, algo que nos satisfaz só na medida em que nos quisermos iludir; ou então reduzir-se-ia a um sentimento bom que consola e afaga, mas permanece sujeito às nossas mudanças de ânimo, à variação dos tempos, incapaz de sustentar um caminho constante na vida. Se a fé fosse isso, então o rei Acaz teria razão para não jogar a sua vida e a segurança do seu reino sobre uma emoção. Mas não é! Precisamente pela sua ligação intrínseca com a verdade, a fé é capaz de oferecer uma luz nova, superior aos cálculos do rei, porque vê mais longe, compreende o agir de Deus, que é fiel à sua aliança e às suas promessas.


25 Lembrar esta ligação da fé com a verdade é hoje mais necessário do que nunca, precisamente por causa da crise de verdade em que vivemos. Na cultura contemporânea, tende-se frequentemente a aceitar como verdade apenas a da tecnologia: é verdadeiro aquilo que o homem consegue construir e medir com a sua ciência; é verdadeiro porque funciona, e assim torna a vida mais cómoda e aprazível. Esta verdade parece ser, hoje, a única certa, a única partilhável com os outros, a única sobre a qual se pode conjuntamente discutir e comprometer-se; depois haveria as verdades do indivíduo, como ser autêntico face àquilo que cada um sente no seu íntimo, válidas apenas para o sujeito mas que não podem ser propostas aos outros com a pretensão de servir o bem comum. A verdade grande, aquela que explica o conjunto da vida pessoal e social, é vista com suspeita. Porventura não foi esta — perguntam-se — a verdade pretendida pelos grandes totalitarismos do século passado, uma verdade que impunha a própria concepção global para esmagar a história concreta do indivíduo? No fim, resta apenas um relativismo, no qual a questão sobre a verdade de tudo — que, no fundo, é também a questão de Deus — já não interessa. Nesta perspectiva, é lógico que se pretenda eliminar a ligação da religião com a verdade, porque esta associação estaria na raiz do fanatismo, que quer emudecer quem não partilha da crença própria. A este respeito, pode-se falar de uma grande obnubilação da memória no nosso mundo contemporâneo; de facto, a busca da verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso « eu » pequeno e limitado; é uma questão relativa à origem de tudo, a cuja luz se pode ver a meta e também o sentido da estrada comum.


Conhecimento da verdade e amor

26 Nesta situação, poderá a fé cristã prestar um serviço ao bem comum relativamente à maneira correcta de entender a verdade? Para termos uma resposta, é necessário reflectir sobre o tipo de conhecimento próprio da fé. Pode ajudar-nos esta frase de Paulo: « Acredita-se com o coração » (Rm 10,10). Este, na Bíblia, é o centro do homem, onde se entrecruzam todas as suas dimensões: o corpo e o espírito, a interioridade da pessoa e a sua abertura ao mundo e aos outros, a inteligência, a vontade, a afectividade. O coração pode manter unidas estas dimensões, porque é o lugar onde nos abrimos à verdade e ao amor, deixando que nos toquem e transformem profundamente. A fé transforma a pessoa inteira, precisamente na medida em que ela se abre ao amor; é neste entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento própria da fé, a sua força de convicção, a sua capacidade de iluminar os nossos passos. A fé conhece na medida em que está ligada ao amor, já que o próprio amor traz uma luz. A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para ver a realidade.


27 É conhecido o modo como o filósofo Ludwig Wittgenstein explicou a ligação entre a fé e a certeza. Segundo ele, acreditar seria comparável à experiência do enamoramento, concebida como algo de subjectivo, impossível de propor como verdade válida para todos.[19] De facto, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não teria nada a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade, mas ao mundo inconstante dos sentimentos.

Mas, será esta verdadeiramente uma descrição adequada do amor? Na realidade, o amor não se pode reduzir a um sentimento que vai e vem. É verdade que o amor tem a ver com a nossa afectividade, mas para a abrir à pessoa amada, e assim iniciar um caminho que faz sair da reclusão no próprio eu e dirigir-se para a outra pessoa, a fim de construir uma relação duradoura; o amor visa a união com a pessoa amada. E aqui se manifesta em que sentido o amor tem necessidade da verdade: apenas na medida em que o amor estiver fundado na verdade é que pode perdurar no tempo, superar o instante efémero e permanecer firme para sustentar um caminho comum. Se o amor não tivesse relação com a verdade, estaria sujeito à alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo. Diversamente, o amor verdadeiro unifica todos os elementos da nossa personalidade e torna-se uma luz nova que aponta para uma vida grande e plena. Sem a verdade, o amor não pode oferecer um vínculo sólido, não consegue arrancar o « eu » para fora do seu isolamento, nem libertá-lo do instante fugidio para edificar a vida e produzir fruto.

Se o amor tem necessidade da verdade, também a verdade precisa do amor; amor e verdade não se podem separar. Sem o amor, a verdade torna-se fria, impessoal, gravosa para a vida concreta da pessoa. A verdade que buscamos, a verdade que dá significado aos nossos passos, ilumina-nos quando somos tocados pelo amor. Quem ama, compreende que o amor é experiência da verdade, compreende que é precisamente ele que abre os nossos olhos para verem a realidade inteira, de maneira nova, em união com a pessoa amada. Neste sentido, escreveu São Gregório Magno que o próprio amor é um conhecimento, [20] traz consigo uma lógica nova. Trata-se de um modo relacional de olhar o mundo, que se torna conhecimento partilhado, visão na visão do outro e visão comum sobre todas as coisas. Na Idade Média, Guilherme de Saint Thierry adopta esta tradição, ao comentar um versículo do Cântico dos Cânticos no qual o amado diz à amada: « Como são lindos os teus olhos de pomba! » (
Ct 1,15). [21] Estes dois olhos — explica Saint Thierry — são a razão crente e o amor, que se tornam um único olhar para chegar à contemplação de Deus, quando a inteligência se faz « entendimento de um amor iluminado ». [22]

[19] Cf. G. H. von Wright (coord.), Vermischte Bemerkungen / Culture and Value (Oxford 1991), 32-33 e 61-64.
[20] Cf. Homiliae in Evangelia, II, 27, 4: PL 76, 1207 (« amor ipse notitia est »).
[21] Cf. Expositio super Cantica Canticorum, XVIII, 88: CCL, Continuatio Mediaevalis, 87, 67.
[22] Ibid., XIX, 90: o. c., 87, 69.

28 Esta descoberta do amor como fonte de conhecimento, que pertence à experiência primordial de cada homem, encontra uma expressão categorizada na concepção bíblica da fé. Israel, saboreando o amor com que Deus o escolheu e gerou como povo, chega a compreender a unidade do desígnio divino, desde a origem à sua realização. O conhecimento da fé, pelo facto de nascer do amor de Deus que estabelece a Aliança, é conhecimento que ilumina um caminho na história. É por isso também que, na Bíblia, verdade e fidelidade caminham juntas: o Deus verdadeiro é o Deus fiel, Aquele que mantém as suas promessas e permite, com o decorrer do tempo, compreender o seu desígnio. Através da experiência dos profetas, no sofrimento do exílio e na esperança de um regresso definitivo à Cidade Santa, Israel intuiu que esta verdade de Deus se estendia mais além da própria história, abraçando a história inteira do mundo a começar da criação. O conhecimento da fé ilumina não só o caminho particular de um povo, mas também o percurso inteiro do mundo criado, desde a origem até à sua consumação.


A fé como escuta e visão

29 Justamente porque o conhecimento da fé está ligado à aliança de um Deus fiel, que estabelece uma relação de amor com o homem e lhe dirige a Palavra, é apresentado pela Bíblia como escuta, aparece associado com o ouvido. São Paulo usará uma fórmula que se tornou clássica: « fides ex auditu — a fé vem da escuta » (Rm 10,17). O conhecimento associado à palavra é sempre conhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lhe abre livremente e a segue obedientemente. Por isso, São Paulo falou da « obediência da fé » (cf. Rm 1,5 Rm 16,26). [23] Além disso, a fé é conhecimento ligado ao transcorrer do tempo que a palavra necessita para ser explicitada: é conhecimento que só se aprende num percurso de seguimento. A escuta ajuda a identificar bem o nexo entre conhecimento e amor.

A propósito do conhecimento da verdade, pretendeu-se por vezes contrapor a escuta à visão, a qual seria peculiar da cultura grega. Se a luz, por um lado, oferece a contemplação da totalidade a que o homem sempre aspirou, por outro, parece não deixar espaço à liberdade, pois desce do céu e chega directamente à vista, sem lhe pedir que responda. Além disso, parece convidar a uma contemplação estática, separada do tempo concreto em que o homem goza e sofre. Segundo esta concepção, haveria oposição entre a abordagem bíblica do conhecimento e a grega, a qual, na sua busca duma compreensão completa da realidade, teria associado o conhecimento com a visão.

Mas tal suposta oposição não é corroborada de forma alguma pelos dados bíblicos: o Antigo Testamento combinou os dois tipos de conhecimento, unindo a escuta da Palavra de Deus com o desejo de ver o seu rosto. Isto tornou possível entabular diálogo com a cultura helenista, um diálogo que pertence ao coração da Escritura. O ouvido atesta não só a chamada pessoal e a obediência, mas também que a verdade se revela no tempo; a vista, por sua vez, oferece a visão plena de todo o percurso, permitindo situar-nos no grande projecto de Deus; sem tal visão, disporíamos apenas de fragmentos isolados de um todo desconhecido.

[23] « A Deus que revela é devida a "obediência da fé" (Rm 16,26 cf. Rm 1,5 2Co 10,5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus, oferecendo a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade e prestando voluntário assentimento à sua revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do entendimento, e dá a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade. Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons » (Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum DV 5).

30 A conexão entre o ver e o ouvir, como órgãos do conhecimento da fé, aparece com a máxima clareza no Evangelho de João, onde acreditar é simultaneamente ouvir e ver. A escuta da fé verifica-se segundo a forma de conhecimento própria do amor: é uma escuta pessoal, que distingue e reconhece a voz do Bom Pastor (cf. Jn 10,3-5); uma escuta que requer o seguimento, como acontece com os primeiros discípulos que, « ouvindo [João Baptista] falar desta maneira, seguiram Jesus » (Jn 1,37). Por outro lado, a fé está ligada também com a visão: umas vezes, a visão dos sinais de Jesus precede a fé, como sucede com os judeus que, depois da ressurreição de Lázaro, « ao verem o que Jesus fez, creram n’Ele » (Jn 11,45); outras vezes, é a fé que leva a uma visão mais profunda: « Se acreditares, verás a glória de Deus » (Jn 11,40). Por fim, acreditar e ver cruzam-se: « Quem crê em Mim (...) crê n’Aquele que Me enviou; e quem Me vê a Mim, vê Aquele que me enviou » (Jn 12,44-45). O ver, graças à sua união com o ouvir, torna-se seguimento de Cristo; e a fé aparece como um caminho do olhar em que os olhos se habituam a ver em profundidade. E assim, na manhã de Páscoa, de João — que, ainda na escuridão perante o túmulo vazio, « viu e começou a crer » (Jn 20,8) — passa-se a Maria Madalena — que já vê Jesus (cf. Jn 20,14) e quer retê-Lo, mas é convidada a contemplá-Lo no seu caminho para o Pai — até à plena confissão da própria Madalena diante dos discípulos: « Vi o Senhor! » (Jn 20,18).

Como se chega a esta síntese entre o ouvir e o ver? A partir da pessoa concreta de Jesus, que Se vê e escuta. Ele é a Palavra que Se fez carne e cuja glória contemplámos (cf. Jn 1,14). A luz da fé é a luz de um Rosto, no qual se vê o Pai. De facto, no quarto Evangelho, a verdade que a fé apreende é a manifestação do Pai no Filho, na sua carne e nas suas obras terrenas; verdade essa, que se pode definir como a « vida luminosa » de Jesus.[24] Isto significa que o conhecimento da fé não nos convida a olhar uma verdade puramente interior; a verdade que a fé nos descerra é uma verdade centrada no encontro com Cristo, na contemplação da sua vida, na percepção da sua presença. Neste sentido e a propósito da visão corpórea do Ressuscitado, São Tomás de Aquino fala de oculata fides (uma fé que vê) dos Apóstolos:[25] viram Jesus ressuscitado com os seus olhos e acreditaram, isto é, puderam penetrar na profundidade daquilo que viam para confessar o Filho de Deus, sentado à direita do Pai.

[24] Cf. Heinrich Schlier, « Meditationen über den Johanneischen Begriff der Wahrheit », in: Besinnung auf das Neue Testament. Exegetische Aufsätze und Vorträge 2 (Friburgo, Basel, Viena 1959), 272.
[25] Cf. Summa theologiae, III 55,2, ad 1.

31 Só assim, através da encarnação, através da partilha da nossa humanidade, podia chegar à plenitude o conhecimento próprio do amor. De facto, a luz do amor nasce quando somos tocados no coração, recebendo assim, em nós, a presença interior do amado, que nos permite reconhecer o seu mistério. Compreendemos agora por que motivo, para João, a fé seja, juntamente com o escutar e o ver, um tocar, como nos diz na sua Primeira Carta: « O que ouvimos, o que vimos (…) e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida… » (1Jn 1,1). Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos e, através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma, transformando o nosso coração, permitiu-nos — e permite-nos — reconhecê-Lo e confessá-Lo como Filho de Deus. Pela fé, podemos tocá-Lo e receber a força da sua graça. Santo Agostinho, comentando a passagem da hemorroíssa que toca Jesus para ser curada (cf. Lc 8,45-46), afirma: « Tocar com o coração, isto é crer ». [26] A multidão comprime-se ao redor de Jesus, mas não O alcança com aquele toque pessoal da fé que reconhece o seu mistério, o seu ser Filho que manifesta o Pai. Só quando somos configurados com Jesus é que recebemos o olhar adequado para O ver.

[26] Sermo 229/L, 2: PLS 2, 576 (« Tangere autem corde, hoc est credere »).

O diálogo entre fé e razão

32 A fé cristã, enquanto anuncia a verdade do amor total de Deus e abre para a força deste amor, chega ao centro mais profundo da experiência de cada homem, que vem à luz graças ao amor e é chamado ao amor para permanecer na luz. Movidos pelo desejo de iluminar a realidade inteira a partir do amor de Deus manifestado em Jesus e procurando amar com este mesmo amor, os primeiros cristãos encontraram no mundo grego, na sua fome de verdade, um parceiro idóneo para o diálogo. O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no decurso dos séculos até aos nossos dias. O Beato João Paulo II, na sua carta encíclica Fides et ratio, mostrou como fé e razão se reforçam mutuamente. [27] Depois de ter encontrado a luz plena do amor de Jesus, descobrimos que havia, em todo o nosso amor, um lampejo daquela luz e compreendemos qual era a sua meta derradeira; e, simultaneamente, o facto de o nosso amor trazer em si uma luz ajuda-nos a ver o caminho do amor rumo à plenitude da doação total do Filho de Deus por nós. Neste movimento circular, a luz da fé ilumina todas as nossas relações humanas, que podem ser vividas em união com o amor e a ternura de Cristo.

[27] Cf. n.
FR 73: AAS (1999), 61-62.

33 Na vida de Santo Agostinho, encontramos um exemplo significativo deste caminho: a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão. Por um lado, acolhe a filosofia grega da luz com a sua insistência na visão: o seu encontro com o neoplatonismo fez-lhe conhecer o paradigma da luz, que desce do alto para iluminar as coisas, tornando-se assim um símbolo de Deus. Desta maneira, Santo Agostinho compreendeu a transcendência divina e descobriu que todas as coisas possuem em si uma transparência, isto é, que podiam reflectir a bondade de Deus, o Bem; assim se libertou do maniqueísmo, em que antes vivia, que o inclinava a pensar que o bem e o mal lutassem continuamente entre si, confundindo-se e misturando-se, sem contornos claros. O facto de ter compreendido que Deus é luz deu à sua existência uma nova orientação, a capacidade de reconhecer o mal de que era culpado e voltar-se para o bem.

Mas, por outro lado, na experiência concreta de Agostinho, que ele próprio narra nas suas Confissões, o momento decisivo no seu caminho de fé não foi uma visão de Deus para além deste mundo, mas a escuta, quando no jardim ouviu uma voz que lhe dizia: « Toma e lê »; ele pegou no tomo com as Cartas de São Paulo, detendo-se no capítulo décimo terceiro da Carta aos Romanos.[28]Temos aqui o Deus pessoal da Bíblia, capaz de falar ao homem, descer para viver com ele e acompanhar o seu caminho na história, manifestando-Se no tempo da escuta e da resposta.

Mas, este encontro com o Deus da Palavra não levou Santo Agostinho a rejeitar a luz e a visão, mas integrou ambas as perspectivas, guiado sempre pela revelação do amor de Deus em Jesus. Deste modo, elaborou uma filosofia da luz que reúne em si a reciprocidade própria da palavra e abre um espaço à liberdade própria do olhar para a luz: tal como à palavra corresponde uma resposta livre, assim também a luz encontra como resposta uma imagem que a reflecte. Deste modo, associando escuta e visão, Santo Agostinho pôde referir-se à « palavra que resplandece no interior do homem ».[29] A luz torna-se, por assim dizer, a luz de uma palavra, porque é a luz de um Rosto pessoal, uma luz que, ao iluminar-nos, nos chama e quer reflectir-se no nosso rosto para resplandecer a partir do nosso íntimo. Por outro lado, o desejo da visão do todo, e não apenas dos fragmentos da história, continua presente e cumprir-se-á no fim, quando o homem — como diz o Santo de Hipona — poderá ver e amar;[30] e isto, não por ser capaz de possuir a luz toda, já que esta será sempre inexaurível, mas por entrar, todo inteiro, na luz.

[28] Cf. Confessiones, VIII, 12, 29: PL 32, 762.
[29] De Trinitate, XV, 11, 20: PL 42, 1071.
[30] Cf. De civitate Dei, XXII, 30, 5: PL 41, 804.

34 A luz do amor, própria da fé, pode iluminar as perguntas do nosso tempo acerca da verdade. Muitas vezes, hoje, a verdade é reduzida a autenticidade subjectiva do indivíduo, válida apenas para a vida individual. Uma verdade comum mete-nos medo, porque a identificamos — como dissemos atrás — com a imposição intransigente dos totalitarismos; mas, se ela é a verdade do amor, se é a verdade que se mostra no encontro pessoal com o Outro e com os outros, então fica livre da reclusão no indivíduo e pode fazer parte do bem comum. Sendo a verdade de um amor, não é verdade que se impõe pela violência, não é verdade que esmaga o indivíduo; nascendo do amor pode chegar ao coração, ao centro pessoal de cada homem; daqui resulta claramente que a fé não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro. O crente não é arrogante; pelo contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la nós, é ela que nos abraça e possui. Longe de nos endurecer, a segurança da fé põe-nos a caminho e torna possível o testemunho e o diálogo com todos.

Por outro lado, enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência.


A fé e a busca de Deus

35 A luz da fé em Jesus ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e oferece a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões. A Carta aos Hebreus fala-nos do testemunho dos justos que, antes da Aliança com Abraão, já procuravam a Deus com fé; lá se diz, a propósito de Henoc, que « tinha agradado a Deus », sendo isso impossível sem a fé, porque « quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que O procuram » (He 11,5 He 11,6). Deste modo, é possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de um Deus que cuida dele e que Se pode encontrar. Que outra recompensa poderia Deus oferecer àqueles que O buscam, senão deixar-Se encontrar a Si mesmo? Ainda antes de Henoc, encontramos a figura de Abel, de quem se louva igualmente a fé, em virtude da qual foram agradáveis a Deus os seus dons, a oferenda dos primogénitos dos seus rebanhos (cf. He 11,4). O homem religioso procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências diárias da sua vida, no ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo o movimento do universo. Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por aqueles que O buscam de coração sincero.

Imagem desta busca são os Magos, guiados pela estrela até Belém (cf. Mt 2,1-12). A luz de Deus mostrou-se-lhes como caminho, como estrela que os guia ao longo duma estrada a descobrir. Deste modo, a estrela fala da paciência de Deus com os nossos olhos, que devem habituar-se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, o homem religioso deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para encontrar o Deus que não cessa de nos surpreender. Este respeito de Deus pelos olhos do homem mostra-nos que, quando o homem se aproxima d’Ele, a luz humana não se dissolve na imensidão luminosa de Deus, como se fosse um estrela absorvida pela aurora, mas torna-se tanto mais brilhante quanto mais perto fica do fogo gerador, como um espelho que reflecte o resplendor. A confissão de Jesus, único Salvador, afirma que toda a luz de Deus se concentrou n’Ele, na sua « vida luminosa », em que se revela a origem e a consumação da história.[31] Não há nenhuma experiência humana, nenhum itinerário do homem para Deus que não possa ser acolhido, iluminado e purificado por esta luz. Quanto mais o cristão penetrar no círculo aberto pela luz de Cristo, tanto mais será capaz de compreender e acompanhar o caminho de cada homem para Deus.

Configurando-se como caminho, a fé tem a ver também com a vida dos homens que, apesar de não acreditar, desejam-no fazer e não cessam de procurar. Na medida em que se abrem, de coração sincero, ao amor e se põem a caminho com a luz que conseguem captar, já vivem — sem o saber — no caminho para a fé: procuram agir como se Deus existisse, seja porque reconhecem a sua importância para encontrar directrizes firmes na vida comum, seja porque sentem o desejo de luz no meio da escuridão, seja ainda porque, notando como é grande e bela a vida, intuem que a presença de Deus ainda a tornaria maior. Santo Ireneu de Lião refere que Abraão, antes de ouvir a voz de Deus, já O procurava « com o desejo ardente do seu coração » e « percorria todo o mundo, perguntando-se onde pudesse estar Deus », até que « Deus teve piedade daquele que, sozinho, O procurava no silêncio ».[32] Quem se põe a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela sua ajuda, porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar os nossos olhos, quando caminhamos para a plenitude do amor.

[31] Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. Dominus Iesus (6 de Agosto de 2000), 15: AAS 92 (2000), 756.
[32] Demonstratio apostolicae praedicationis, 24: SC 406, 117.

Fé e teologia

36 Como luz que é, a fé convida-nos a penetrar nela, a explorar sempre mais o horizonte que ilumina, para conhecer melhor o que amamos. Deste desejo nasce a teologia cristã; assim, é claro que a teologia é impossível sem a fé e pertence ao próprio movimento da fé, que procura a compreensão mais profunda da auto-revelação de Deus, culminada no Mistério de Cristo. A primeira consequência é que, na teologia, não se verifica apenas um esforço da razão para perscrutar e conhecer, como nas ciências experimentais. Deus não pode ser reduzido a objecto; Ele é Sujeito que Se dá a conhecer e manifesta na relação pessoa a pessoa. A fé recta orienta a razão para se abrir à luz que vem de Deus, a fim de que ela, guiada pelo amor à verdade, possa conhecer Deus de forma mais profunda. Os grandes doutores e teólogos medievais declararam que a teologia, enquanto ciência da fé, é uma participação no conhecimento que Deus tem de Si mesmo. Por isso, a teologia não é apenas palavra sobre Deus, mas, antes de tudo, acolhimento e busca de uma compreensão mais profunda da palavra que Deus nos dirige: palavra que Deus pronuncia sobre Si mesmo, porque é um diálogo eterno de comunhão, no âmbito do qual é admitido o homem. [33] Assim, é própria da teologia a humildade, que se deixa « tocar » por Deus, reconhece os seus limites face ao Mistério e se encoraja a explorar, com a disciplina própria da razão, as riquezas insondáveis deste Mistério.

Além disso, a teologia partilha a forma eclesial da fé; a sua luz é a luz do sujeito crente que é a Igreja. Isto implica, por um lado, que a teologia esteja ao serviço da fé dos cristãos, vise humildemente preservar e aprofundar o crer de todos, sobretudo dos mais simples; e por outro, dado que vive da fé, a teologia não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos seus momentos internos constitutivos, enquanto o magistério assegura o contacto com a fonte originária, oferecendo assim a certeza de beber na Palavra de Cristo em toda a sua integridade.

[33] Cf. Boaventura, Breviloquium, Prol.: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), 201; In I librum sententiarum, Proem., q. 1, resp.:Opera Omnia, I (Quaracchi 1891), 7; Tomásde Aquino, Summa theologiae,
I 1,0.


CAPÍTULO III - TRANSMITO-VOS AQUILO QUE RECEBI

(cf. 1Co 15,3)



A Igreja, mãe da nossa fé

37 Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom para si mesmo. Uma vez que é escuta e visão, a fé transmite-se também como palavra e como luz; dirigindo-se aos Coríntios, o apóstolo Paulo utiliza precisamente estas duas imagens. Por um lado, diz: « Animados do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso falamos » (2Co 4,13); a palavra recebida faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os outros, convidando-os a crer. Por outro, São Paulo refere-se também à luz: « E nós todos que, com o rosto descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem » (2Co 3,18); é uma luz que se reflecte de rosto em rosto, como sucedeu com Moisés cujo rosto reflectia a glória de Deus depois de ter falado com Ele: « [Deus] brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo » (2Co 4,6). A luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho, e assim se difunde chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e reflectir para outros a sua luz, da mesma forma que a luz do círio, na liturgia de Páscoa, acende muitas outras velas. A fé transmite-se por assim dizer sob a forma de contacto, de pessoa a pessoa, como uma chama se acende noutra chama. Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma semente tão fecunda que se torna uma grande árvore, capaz de encher o mundo de frutos.


38 A transmissão da fé, que brilha para as pessoas de todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em geração. Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina o nosso caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de Jesus. Como é possível isto? Como se pode estar seguro de beber no « verdadeiro Jesus » através dos séculos? Se o homem fosse um indivíduo isolado, se quiséssemos partir apenas do « eu » individual, que pretende encontrar em si mesmo a firmeza do seu conhecimento, tal certeza seria impossível; não posso, por mim mesmo, ver aquilo que aconteceu numa época tão distante de mim. Mas, esta não é a única maneira de o homem conhecer; a pessoa vive sempre em relação: provém de outros, pertence a outros, a sua vida torna-se maior no encontro com os outros; o próprio conhecimento e consciência de nós mesmos são de tipo relacional e estão ligados a outros que nos precederam, a começar pelos nossos pais que nos deram a vida e o nome. A própria linguagem, as palavras com que interpretamos a nossa vida e a realidade inteira chegam-nos através dos outros, conservadas na memória viva de outros; o conhecimento de nós mesmos só é possível quando participamos duma memória mais ampla. O mesmo acontece com a fé, que leva à plenitude o modo humano de entender: o passado da fé, aquele acto de amor de Jesus que gerou no mundo uma vida nova, chega até nós na memória de outros, das testemunhas, guardado vivo naquele sujeito único de memória que é a Igreja; esta é uma Mãe que nos ensina a falar a linguagem da fé. São João insistiu sobre este aspecto no seu Evangelho, unindo conjuntamente fé e memória e associando as duas à acção do Espírito Santo que, como diz Jesus, « há-de recordar-vos tudo » (Jn 14,26). O Amor, que é o Espírito e que habita na Igreja, mantém unidos entre si todos os tempos e faz-nos contemporâneos de Jesus, tornando-Se assim o guia do nosso caminho na fé.


39 É impossível crer sozinhos. A fé não é só uma opção individual que se realiza na interioridade do crente, não é uma relação isolada entre o « eu » do fiel e o « Tu » divino, entre o sujeito autónomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao « nós », verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja. Assim no-lo recorda a forma dialogada do Credo, que se usa na liturgia baptismal. O crer exprime-se como resposta a um convite, a uma palavra que não provém de mim, mas deve ser escutada; por isso, insere-se no interior de um diálogo, não pode ser uma mera confissão que nasce do indivíduo: só é possível responder « creio » em primeira pessoa, porque se pertence a uma comunhão grande, dizendo também « cremos ». Esta abertura ao « nós » eclesial realiza-se de acordo com a abertura própria do amor de Deus, que não é apenas relação entre o Pai e o Filho, entre « eu » e « tu », mas, no Espírito, é também um « nós », uma comunhão de pessoas. Por isso mesmo, quem crê nunca está sozinho; e, pela mesma razão, a fé tende a difundir-se, a convidar outros para a sua alegria. Quem recebe a fé, descobre que os espaços do próprio « eu » se alargam, gerando-se nele novas relações que enriquecem a vida. Assim o exprimiu vigorosamente Tertuliano ao dizer do catecúmeno que, tendo sido recebido numa nova família « depois do banho do novo nascimento », é acolhido na casa da Mãe para erguer as mãos e rezar, juntamente com os irmãos, o Pai Nosso.[34]

[34] Cf. De Baptismo, 20, 5: CCL 1, 295.


Lumen fidei PT 22