Lumen fidei PT 40

Os sacramentos e a transmissão da fé

40 Como sucede em cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da sua memória. Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas antes que tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da Tradição Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo, que temos contacto vivo com a memória fundadora. E aquilo que foi transmitido pelos Apóstolos, como afirma o Concílio Ecuménico Vaticano II, « abrange tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé; e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita ». [35]

De facto, a fé tem necessidade de um âmbito onde se possa testemunhar e comunicar, e que o mesmo seja adequado e proporcionado ao que se comunica. Para transmitir um conteúdo meramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse um livro ou a repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros. Para se transmitir tal plenitude, existe um meio especial que põe em jogo a pessoa inteira: corpo e espírito, interioridade e relações. Este meio são os sacramentos celebrados na liturgia da Igreja: neles, comunica-se uma memória encarnada, ligada aos lugares e épocas da vida, associada com todos os sentidos; neles, a pessoa é envolvida, como membro de um sujeito vivo, num tecido de relações comunitárias. Por isso, se é verdade que os sacramentos são os sacramentos da fé,[36] há que afirmar também que a fé tem uma estrutura sacramental; o despertar da fé passa pelo despertar de um novo sentido sacramental na vida do homem e na existência cristã, mostrando como o visível e o material se abrem para o mistério do eterno.

[35] Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum,
DV 8.
[36] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 59.

41 A transmissão da fé verifica-se, em primeiro lugar, através do Baptismo. Poderia parecer que este sacramento fosse apenas um modo para simbolizar a confissão de fé, um acto pedagógico para quem precise de imagens e gestos, e do qual seria possível fundamentalmente prescindir. Mas não é assim, como no-lo recorda uma palavra de São Paulo: « Pelo Baptismo fomos sepultados com Cristo na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova » (Rm 6,4); nele, tornamo-nos nova criatura e filhos adoptivos de Deus. E mais adiante o Apóstolo diz que o cristão foi confiado a uma « forma de ensino » ( typos didachés), a que obedece de coração (cf. Rm 6,17): no Baptismo, o homem recebe também uma doutrina que deve professar e uma forma concreta de vida que requer o envolvimento de toda a sua pessoa, encaminhando-a para o bem; é transferido para um novo âmbito, confiado a um novo ambiente, a uma nova maneira comum de agir, na Igreja. Deste modo, o Baptismo recorda-nos que a fé não é obra do indivíduo isolado, não é um acto que o homem possa realizar contando apenas com as próprias forças, mas tem de ser recebida, entrando na comunhão eclesial que transmite o dom de Deus: ninguém se baptiza a si mesmo, tal como ninguém vem sozinho à existência. Fomos baptizados.


42 Quais são os elementos baptismais que nos introduzem nesta nova « forma de ensino »? Sobre o catecúmeno é invocado, em primeiro lugar, o nome da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. E deste modo se oferece, logo desde o princípio, uma síntese do caminho da fé: o Deus que chamou Abraão e quis chamar-Se seu Deus, o Deus que revelou o seu nome a Moisés, o Deus que, ao entregar-nos o seu Filho, nos revelou plenamente o mistério do seu Nome, dá à pessoa baptizada uma nova identidade filial. Desta forma, se evidencia o sentido da imersão na água que se realiza no Baptismo: a água é, simultaneamente, símbolo de morte, que nos convida a passar pela conversão do « eu » tendo em vista a sua abertura a um « Eu » maior, e símbolo de vida, do ventre onde renascemos para seguir Cristo na sua nova existência. Deste modo, através da imersão na água, o Baptismo fala-nos da estrutura encarnada da fé. A acção de Cristo toca-nos na nossa realidade pessoal, transformando-nos radicalmente, tornando-nos filhos adoptivos de Deus, participantes da natureza divina; e assim modifica todas as nossas relações, a nossa situação concreta na terra e no universo, abrindo-as à própria vida de comunhão d’Ele. Este dinamismo de transformação próprio do Baptismo ajuda-nos a perceber a importância do catecumenato, que hoje — mesmo em sociedades de antigas raízes cristãs, onde um número crescente de adultos se aproxima do sacramento baptismal — se reveste de singular relevância para a nova evangelização. É o itinerário de preparação para o Baptismo, para a transformação da vida inteira em Cristo.

Para compreender a ligação entre o Baptismo e a fé, pode ajudar-nos a recordação de um texto do profeta Isaías, que já aparece associado com o Baptismo na literatura cristã antiga: « Terá o seu refúgio em rochas elevadas, terá (…) água em abundância » (
Is 33,16).[37] Resgatado da morte pela água, o baptizado pode manter-se de pé sobre « rochas elevadas », porque encontrou a solidez à qual confiar-se; e, assim, a água de morte transformou-se em água de vida. O texto grego descrevia-a como água pistòs, água « fiel »: a água do Baptismo é fiel, podendo confiar-nos a ela porque a sua corrente entra na dinâmica de amor de Jesus, fonte de segurança para o nosso caminho na vida.

[37] Cf. Epistula Barnabae, 11, 5: SC 172, 162.

43 A estrutura do Baptismo, a sua configuração como renascimento no qual recebemos um nome novo e uma vida nova, ajuda-nos a compreender o sentido e a importância do Baptismo das crianças. Uma criança não é capaz de um acto livre que acolha a fé: ainda não a pode confessar sozinha e, por isso mesmo, é confessada pelos seus pais e pelos padrinhos em nome dela. A fé é vivida no âmbito da comunidade da Igreja, insere-se num « nós » comum. Assim, a criança pode ser sustentada por outros, pelos seus pais e padrinhos, e pode ser acolhida na fé deles que é a fé da Igreja, simbolizada pela luz que o pai toma do círio na liturgia baptismal. Esta estrutura do Baptismo põe em evidência a importância da sinergia entre a Igreja e a família na transmissão da fé. Os pais são chamados — como diz Santo Agostinho — não só a gerar os filhos para a vida, mas a levá-los a Deus, para que sejam, através do Baptismo, regenerados como filhos de Deus, recebam o dom da fé. [38] Assim, juntamente com a vida, é-lhes dada a orientação fundamental da existência e a segurança de um bom futuro; orientação esta, que será ulteriormente corroborada no sacramento da Confirmação com o selo indelével do Espírito Santo.

[38] Cf. De nuptiis et concupiscentia, I, 4, 5: PL 44, 413 (« Habent quippe intentionem generandi regenerandos, ut qui ex eis saeculi filii nascuntur in Dei filios renascantur »).

44 A natureza sacramental da fé encontra a sua máxima expressão na Eucaristia. Esta é alimento precioso da fé, encontro com Cristo presente de maneira real no seu acto supremo de amor: o dom de Si mesmo que gera vida. Na Eucaristia, temos o cruzamento dos dois eixos sobre os quais a fé percorre o seu caminho. Por um lado, o eixo da história: a Eucaristia é acto de memória, actualização do mistério, em que o passado, como um evento de morte e ressurreição, mostra a sua capacidade de se abrir ao futuro, de antecipar a plenitude final; no-lo recorda a liturgia com o seu hodie, o « hoje » dos mistérios da salvação. Por outro lado, encontra-se aqui também o eixo que conduz do mundo visível ao invisível: na Eucaristia, aprendemos a ver a profundidade do real. O pão e o vinho transformam-se no Corpo e Sangue de Cristo, que Se faz presente no seu caminho pascal para o Pai: este movimento introduz-nos, corpo e alma, no movimento de toda a criação para a sua plenitude em Deus.


45 Na celebração dos sacramentos, a Igreja transmite a sua memória, particularmente com a profissão de fé. Nesta, não se trata tanto de prestar assentimento a um conjunto de verdades abstractas, como sobretudo fazer a vida toda entrar na comunhão plena com o Deus Vivo. Podemos dizer que, no Credo, o fiel é convidado a entrar no mistério que professa e a deixar-se transformar por aquilo que confessa. Para compreender o sentido desta afirmação, pensemos em primeiro lugar no conteúdo do Credo. Este tem uma estrutura trinitária: o Pai e o Filho unem-Se no Espírito de amor. Deste modo o crente afirma que o centro do ser, o segredo mais profundo de todas as coisas é a comunhão divina. Além disso, o Credo contém uma confissão cristológica: repassam-se os mistérios da vida de Jesus até à sua morte, ressurreição e ascensão ao Céu, na esperança da sua vinda final na glória. E, consequentemente, afirma-se que este Deus-comunhão, permuta de amor entre o Pai e o Filho no Espírito, é capaz de abraçar a história do homem, de introduzi-lo no seu dinamismo de comunhão, que tem, no Pai, a sua origem e meta final. Aquele que confessa a fé sente-se implicado na verdade que confessa; não pode pronunciar, com verdade, as palavras do Credo, sem ser por isso mesmo transformado, sem mergulhar na história de amor que o abraça, que dilata o seu ser tornando-o parte de uma grande comunhão, do sujeito último que pronuncia o Credo: a Igreja. Todas as verdades, em que cremos, afirmam o mistério da vida nova da fé como caminho de comunhão com o Deus Vivo.


Fé, oração e Decálogo

46 Há mais dois elementos que são essenciais na transmissão fiel da memória da Igreja. O primeiro é a Oração do Senhor, o Pai Nosso; nela, o cristão aprende a partilhar a própria experiência espiritual de Cristo e começa a ver com os olhos d’Ele. A partir d’Aquele que é Luz da Luz, do Filho Unigénito do Pai, também nós conhecemos a Deus e podemos inflamar outros no desejo de se aproximarem d’Ele.

Igualmente importante é ainda a ligação entre a fé e o Decálogo. Dissemos já que a fé se apresenta como um caminho, uma estrada a percorrer, aberta pelo encontro com o Deus vivo; por isso, à luz da fé, da entrega total ao Deus que salva, o Decálogo adquire a sua verdade mais profunda, contida nas palavras que introduzem os Dez Mandamentos: « Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto » (
Ex 20,2). O Decálogo não é um conjunto de preceitos negativos, mas de indicações concretas para sair do deserto do « eu » auto-referencial, fechado em si mesmo, e entrar em diálogo com Deus, deixando-se abraçar pela sua misericórdia a fim de a irradiar. Deste modo, a fé confessa o amor de Deus, origem e sustentáculo de tudo, deixa-se mover por este amor para caminhar rumo à plenitude da comunhão com Deus. O Decálogo aparece como o caminho da gratidão, da resposta de amor, que é possível porque, na fé, nos abrimos à experiência do amor de Deus que nos transforma. E este caminho recebe uma luz nova de tudo aquilo que Jesus ensina no Sermão da Montanha (cf. Mt 5-7).

Toquei assim os quatro elementos que resumem o tesouro de memória que a Igreja transmite: a confissão de fé, a celebração dos sacramentos, o caminho do Decálogo, a oração. À volta deles se estruturou tradicionalmente a catequese da Igreja, como se pode ver no Catecismo da Igreja Católica, instrumento fundamental para aquele acto com que a Igreja comunica o conteúdo inteiro da fé, « tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita ».[39]

[39] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum, 8.

A unidade e a integridade da fé

47 A unidade da Igreja, no tempo e no espaço, está ligada com a unidade da fé: « Há um só Corpo e um só Espírito, (...) uma só fé » (Ep 4,4-5). Hoje poderá parecer realizável a união dos homens com base num compromisso comum, na amizade, na partilha da mesma sorte com uma meta comum; mas sentimos muita dificuldade em conceber uma unidade na mesma verdade; parece-nos que uma união do género se oporia à liberdade do pensamento e à autonomia do sujeito. Pelo contrário, a experiência do amor diz-nos que é possível termos uma visão comum precisamente no amor: neste, aprendemos a ver a realidade com os olhos do outro e isto, longe de nos empobrecer, enriquece o nosso olhar. O amor verdadeiro, à medida do amor divino, exige a verdade e, no olhar comum da verdade que é Jesus Cristo, torna-se firme e profundo. Esta é também a alegria da fé: a unidade de visão num só corpo e num só espírito. Neste sentido, São Leão Magno podia afirmar: « Se a fé não é una, não é fé ». [40]

Qual é o segredo desta unidade? A fé é una, em primeiro lugar, pela unidade de Deus conhecido e confessado. Todos os artigos de fé se referem a Ele, são caminhos para conhecer o seu ser e o seu agir; por isso, possuem uma unidade superior a tudo quanto possamos construir com o nosso pensamento, possuem a unidade que nos enriquece, porque se comunica a nós e nos torna um.

Depois, a fé é una, porque se dirige ao único Senhor, à vida de Jesus, à história concreta que Ele partilha connosco. Santo Ireneu de Lião deixou isto claro, contrapondo-o aos hereges gnósticos. Estes sustentavam a existência de dois tipos de fé: uma fé rude, a fé dos simples, imperfeita, que se mantinha ao nível da carne de Cristo e da contemplação dos seus mistérios; e outro tipo de fé mais profunda e perfeita, a fé verdadeira reservada para um círculo restrito de iniciados, que se elevava com o intelecto para além da carne de Jesus rumo aos mistérios da divindade desconhecida. Contra esta pretensão, que ainda em nossos dias continua a ter o seu encanto e os seus seguidores, Santo Ireneu reafirma que a fé é uma só, porque passa sempre pelo ponto concreto da encarnação, sem nunca superar a carne e a história de Cristo, dado que Deus Se quis revelar plenamente nela. É por isso que não há diferença, na fé, entre « aquele que é capaz de falar dela mais tempo » e « aquele que fala pouco », entre aquele que é mais dotado e quem se mostra menos capaz: nem o primeiro pode ampliar a fé, nem o segundo diminuí-la.[41]

Por último, a fé é una, porque é partilhada por toda a Igreja, que é um só corpo e um só Espírito: na comunhão do único sujeito que é a Igreja, recebemos um olhar comum. Confessando a mesma fé, apoiamo-nos sobre a mesma rocha, somos transformados pelo mesmo Espírito de amor, irradiamos uma única luz e temos um único olhar para penetrar na realidade.

[40] In nativitate Domini sermo, 4, 6: SC 22, 110.
[41] Cf. Ireneu, Adversus haereses, I, 10, 2: SC 264, 160.

48 Dado que a fé é uma só, deve-se confessar em toda a sua pureza e integridade. Precisamente porque todos os artigos da fé estão unitariamente ligados, negar um deles — mesmo dos que possam parecer menos importantes — equivale a danificar o todo. Cada época pode encontrar pontos da fé mais fáceis ou mais difíceis de aceitar; por isso, é importante vigiar para que se transmita todo o depósito da fé (cf. 1Tm 6,20) e para que se insista oportunamente sobre todos os aspectos da confissão de fé. De facto, visto que a unidade da fé é a unidade da Igreja, tirar algo à fé é fazê-lo à verdade da comunhão. Os Padres descreveram a fé como um corpo, o corpo da verdade, com diversos membros, analogamente ao que se passa no corpo de Cristo com o seu prolongamento na Igreja. [42] A integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja virgem, com o seu amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a comunhão com o Senhor. [43] A unidade da fé é, por conseguinte, a de um organismo vivo, como bem evidenciou o Beato John Henry Newman, quando enumera, entre as notas características para distinguir a continuidade da doutrina no tempo, o seu poder de assimilar em si tudo o que encontra, nos diversos âmbitos em que se torna presente, nas diversas culturas que encontra, [44] tudo purificando e levando à sua melhor expressão. É assim que a fé se mostra universal, católica, porque a sua luz cresce para iluminar todo o universo, toda a história.

[42] Cf. ibid., II, 27, 1: o. c., 294, 264.
[43] Cf. Agostinho, De sancta virginitate, 48, 48: PL 40, 424- 425 (« Servatur et in fide inviolata quaedam castitas virginalis, qua Ecclesia uni viro virgo casta cooptatur »).
[44] Cf. An Essay on the Development of Christian Doctrine (Uniform Edition: Longmans, Green and Company, Londres 1868-1881), 185-189.

49 Como serviço à unidade da fé e à sua transmissão íntegra, o Senhor deu à Igreja o dom da sucessão apostólica. Por seu intermédio, fica garantida a continuidade da memória da Igreja, e é possível beber, com certeza, na fonte pura donde surge a fé; assim a garantia da ligação com a origem é-nos dada por pessoas vivas, o que equivale à fé viva que a Igreja transmite. Esta fé viva assenta sobre a fidelidade das testemunhas que foram escolhidas pelo Senhor para tal tarefa; por isso, o magistério fala sempre em obediência à Palavra originária, sobre a qual se baseia a fé, e é fiável porque se entrega à Palavra que escuta, guarda e expõe.[45] No discurso de despedida aos anciãos de Éfeso, em Mileto, referido por São Lucas nos Actos dos Apóstolos, São Paulo atesta que cumpriu o encargo, que lhe foi confiado pelo Senhor, de lhes anunciar toda a vontade de Deus (cf. Ac 20,27); é graças ao magistério da Igreja que nos pode chegar, íntegra, esta vontade e, com ela, a alegria de a podermos cumprir plenamente.

[45] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum, DV 10.


CAPÍTULO IV - DEUS PREPARA PARA ELES UMA CIDADE

(cf. He 11,16)





A fé e o bem comum

50 Ao apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que, na arca, consegue salvar a sua família (cf. He 11,7). Depois aparece Abraão, de quem se diz que, pela fé, habitara em tendas, esperando a cidade de alicerces firmes (cf. He 11,9-10). Vemos assim surgir, relacionada com a fé, uma nova fiabilidade, uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem de fé assenta sobre o Deus-Amen, o Deus fiel (cf. Is 65,16), tornando-se assim firme ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se refere também à cidade que Deus está a preparar para o homem. A fé revela quão firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável.


51 Devido precisamente à sua ligação com o amor (cf. Ga 5,6), a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. A fé nasce do encontro com o amor gerador de Deus que mostra o sentido e a bondade da nossa vida; esta é iluminada na medida em que entra no dinamismo aberto por este amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício para a plenitude do amor. A luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das relações humanas, a sua capacidade de perdurarem, serem fiáveis, enriquecerem a vida comum. A fé não afasta do mundo, nem é alheia ao esforço concreto dos nossos contemporâneos. Sem um amor fiável, nada poderia manter verdadeiramente unidos os homens: a unidade entre eles seria concebível apenas enquanto fundada sobre a utilidade, a conjugação dos interesses, o medo, mas não sobre a beleza de viverem juntos, nem sobre a alegria que a simples presença do outro pode gerar. A fé faz compreender a arquitectura das relações humanas, porque identifica o seu fundamento último e destino definitivo em Deus, no seu amor, e assim ilumina a arte da sua construção, tornando-se um serviço ao bem comum. Por isso, a fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um futuro de esperança. A Carta aos Hebreus oferece um exemplo disto mesmo, ao nomear entre os homens de fé Samuel e David, a quem a fé permitiu « exercerem a justiça » (He 11,33). A expressão refere-se aqui à sua justiça no governar, àquela sabedoria que traz a paz ao povo (cf. 1S 12,3-5 2S 8,15). As mãos da fé levantam-se para o céu, mas fazem-no ao mesmo tempo que edificam, na caridade, uma cidade construída sobre relações que têm como alicerce o amor de Deus.


A fé e a família

52 No caminho de Abraão para a cidade futura, a Carta aos Hebreus alude à bênção que se transmite dos pais aos filhos (cf. He 11,20-21). O primeiro âmbito da cidade dos homens iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na união estável do homem e da mulher no matrimónio. Tal união nasce do seu amor, sinal e presença do amor de Deus, nasce do reconhecimento e aceitação do bem que é a diferença sexual, em virtude da qual os cônjuges se podem unir numa só carne (cf. Gn 2,24) e são capazes de gerar uma nova vida, manifestação da bondade do Criador, da sua sabedoria e do seu desígnio de amor. Fundados sobre este amor, homem e mulher podem prometer-se amor mútuo com um gesto que compromete a vida inteira e que lembra muitos traços da fé: prometer um amor que dure para sempre é possível quando se descobre um desígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada. Depois, a fé pode ajudar a individuar em toda a sua profundidade e riqueza a geração dos filhos, porque faz reconhecer nela o amor criador que nos dá e nos entrega o mistério de uma nova pessoa; foi assim que Sara, pela sua fé, se tornou mãe, apoiando-se na fidelidade de Deus à sua promessa (cf. He 11,11).


53 Em família, a fé acompanha todas as idades da vida, a começar pela infância: as crianças aprendem a confiar no amor de seus pais. Por isso, é importante que os pais cultivem práticas de fé comuns na família, que acompanhem o amadurecimento da fé dos filhos. Sobretudo os jovens, que atravessam uma idade da vida tão complexa, rica e importante para a fé, devem sentir a proximidade e a atenção da família e da comunidade eclesial no seu caminho de crescimento da fé. Todos vimos como, nas Jornadas Mundiais da Juventude, os jovens mostram a alegria da fé, o compromisso de viver uma fé cada vez mais sólida e generosa. Os jovens têm o desejo de uma vida grande; o encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma grande chamada — a vocação ao amor — e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade.


Uma luz para a vida em sociedade

54 Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade. Desde o seu início, a história de fé foi uma história de fraternidade, embora não desprovida de conflitos. Deus chama Abraão para sair da sua terra, prometendo fazer dele uma única e grande nação, um grande povo, sobre o qual repousa a Bênção divina (cf. Gn 12,1-3). À medida que a história da salvação avança, o homem descobre que Deus quer fazer a todos participar como irmãos da única bênção, que encontra a sua plenitude em Jesus, para que todos se tornem um só. O amor inexaurível do Pai é-nos comunicado em Jesus, também através da presença do irmão. A fé ensina-nos a ver que, em cada homem, há uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão.

Quantos benefícios trouxe o olhar da fé cristã à cidade dos homens para a sua vida em comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, que não era tão evidente no mundo antigo. No século II, o pagão Celso censurava os cristãos por algo que lhe parecia uma ilusão e um engano: pensar que Deus tivesse criado o mundo para o homem, colocando-o no vértice do universo inteiro. « Porquê pretender que [a verdura] cresça para os homens, em vez de crescer para os mais selvagens dos animais sem razão? »[46] « Se olhássemos a terra do alto do céu, que diferença se nos ofereceria entre as nossas actividades e as das formigas e das abelhas? »[47] No centro da fé bíblica, há o amor de Deus, o seu cuidado concreto por cada pessoa, o seu desejo de salvação que abraça toda a humanidade e a criação inteira e que atinge o clímax na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Quando se obscurece esta realidade, falta o critério para individuar o que torna preciosa e única a vida do homem; e este perde o seu lugar no universo, extravia-se na natureza, renunciando à própria responsabilidade moral, ou então pretende ser árbitro absoluto, arrogando-se um poder de manipulação sem limites.

[46] Orígenes, Contra Celsum, IV, 75: SC 136, 372.
[47] Ibid., 85: o. c., 136, 394.

55 Além disso a fé, ao revelar-nos o amor de Deus Criador, faz-nos olhar com maior respeito para a natureza, fazendo-nos reconhecer nela uma gramática escrita por Ele e uma habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada; ajuda-nos a encontrar modelos de progresso, que não se baseiem apenas na utilidade e no lucro mas considerem a criação como dom, de que todos somos devedores; ensina-nos a individuar formas justas de governo, reconhecendo que a autoridade vem de Deus para estar ao serviço do bem comum. A fé afirma também a possibilidade do perdão, que muitas vezes requer tempo, canseira, paciência e empenho; um perdão possível quando se descobre que o bem é sempre mais originário e mais forte que o mal, que a palavra com que Deus afirma a nossa vida é mais profunda do que todas as nossas negações. Aliás, mesmo dum ponto de vista simplesmente antropológico, a unidade é superior ao conflito; devemos preocupar-nos também com o conflito, mas vivendo-o de tal modo que nos leve a resolvê-lo, a superá-lo, como elo duma cadeia, num avanço para a unidade.

Quando a fé esmorece, há o risco de esmorecerem também os fundamentos do viver, como advertia o poeta Thomas Sterls Eliot: « Precisais porventura que se vos diga que até aqueles modestos sucessos / que vos permitem ser orgulhosos de uma sociedade educada / dificilmente sobreviveriam à fé, a que devem o seu significado? »[48] Se tiramos a fé em Deus das nossas cidades, enfraquecer-se-á a confiança entre nós, apenas o medo nos manterá unidos, e a estabilidade ficará ameaçada. Afirma a Carta aos Hebreus: « Deus não Se envergonha de ser chamado o "seu Deus", porque preparou para eles uma cidade » (
He 11,16). A expressão « não se envergonha » tem conotado um reconhecimento público: pretende-se afirmar que Deus, com o seu agir concreto, confessa publicamente a sua presença entre nós, o seu desejo de tornar firmes as relações entre os homens. Porventura vamos ser nós a envergonhar-nos de chamar a Deus « o nosso Deus »? Seremos por acaso nós a recusar-nos a confessá-Lo como tal na nossa vida pública, a propor a grandeza da vida comum que Ele torna possível? A fé ilumina a vida social: possui uma luz criadora para cada momento novo da história, porque coloca todos os acontecimentos em relação com a origem e o destino de tudo no Pai que nos ama.

[48] « Choruses from The Rock », in: The Collected Poems and Plays 1909-1950 (Nova Iorque 1980), 106.

Uma força consoladora no sofrimento

56 São Paulo, falando aos cristãos de Corinto das suas tribulações e sofrimentos, coloca a sua fé em relação com a pregação do Evangelho. De facto, diz que nele se cumpre esta passagem da Escritura: « Acreditei e por isso falei » (2Co 4,13). O Apóstolo refere-se a uma frase do Salmo 116, onde o salmista exclama: « Eu tinha confiança, mesmo quando disse: "A minha aflição é muito grande!" » (Ps 116,10). Falar da fé comporta frequentemente falar também de provas dolorosas, mas é precisamente nelas que São Paulo vê o anúncio mais convincente do Evangelho, porque é na fraqueza e no sofrimento que sobressai e se descobre o poder de Deus que supera a nossa fraqueza e o nosso sofrimento. O próprio Apóstolo se encontra numa situação de morte que redunda em vida para os cristãos (cf. 2Co 4,7-12). Na hora da prova, a fé ilumina-nos; e é precisamente no sofrimento e na fraqueza que se torna claro como « não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor » (2Co 4,5). O capítulo 11 da Carta aos Hebreus termina com a referência a quantos sofreram pela fé, entre os quais ocupa um lugar particular Moisés que tomou sobre si a humilhação de Cristo (cf. He 11,26 He 11,35-38). O cristão sabe que o sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se acto de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser uma etapa de crescimento na fé e no amor. Contemplando a união de Cristo com o Pai, mesmo no momento de maior sofrimento na cruz (cf. Mc 15,34), o cristão aprende a participar no olhar próprio de Jesus; até a morte fica iluminada, podendo ser vivida como a última chamada da fé, o último « Sai da tua terra » (cf. Gn 12,1), o último « Vem! » pronunciado pelo Pai, a quem nos entregamos com a confiança de que Ele nos tornará firmes também na passagem definitiva.


57 A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. Em Cristo, o próprio Deus quis partilhar connosco esta estrada e oferecer-nos o seu olhar para nela vermos a luz. Cristo é aquele que, tendo suportado a dor, Se tornou « autor e consumador da fé » (He 12,2).

O sofrimento recorda-nos que o serviço da fé ao bem comum é sempre serviço de esperança que nos faz olhar em frente, sabendo que só a partir de Deus, do futuro que vem de Jesus ressuscitado, é que a nossa sociedade pode encontrar alicerces sólidos e duradouros. Neste sentido, a fé está unida à esperança, porque, embora a nossa morada aqui na terra se vá destruindo, há uma habitação eterna que Deus já inaugurou em Cristo, no seu corpo (cf. 2Co 4,16-5,5). Assim, o dinamismo de fé, esperança e caridade (cf. 1Th 1,3 1Co 13,13) faz-nos abraçar as preocupações de todos os homens, no nosso caminho rumo àquela cidade, « cujo arquitecto e construtor é o próprio Deus » (He 11,10), porque « a esperança não engana » (Rm 5,5).

Unida à fé e à caridade, a esperança projecta-nos para um futuro certo, que se coloca numa perspectiva diferente relativamente às propostas ilusórias dos ídolos do mundo, mas que dá novo impulso e nova força à vida de todos os dias. Não deixemos que nos roubem a esperança, nem permitamos que esta seja anulada por soluções e propostas imediatas que nos bloqueiam no caminho, que « fragmentam » o tempo transformando-o em espaço. O tempo é sempre superior ao espaço: o espaço cristaliza os processos, ao passo que o tempo projecta para o futuro e impele a caminhar na esperança.




Lumen fidei PT 40