Mulieris dignitatem PT 8


IV

EVA — MARIA


O « princípio » e o pecado

9 « Constituído por Deus em estado de justiça, o homem, porém, tentado pelo Maligno, desde o início da história abusou de sua liberdade. Levanta-se contra Deus desejando atingir o seu fim fora dele ». (28 - GS 13) Com estas palavras, o ensinamento do último Concílio recorda a doutrina revelada sobre o pecado e, em particular, sobre o primeiro pecado que é o pecado original. O « princípio » bíblico — a criação do mundo e do homem no mundo — contém, ao mesmo tempo, a verdade sobre este pecado, que pode ser chamado também o pecado do « princípio » do homem sobre a terra. Embora o que está escrito no Livro do Gênesis venha expresso em forma de narração simbólica, como no caso da descrição da criação do homem como homem e mulher (cf. Gn 2,18-25), mesmo assim revela aquilo a que é preciso chamar « o mistério do pecado » e, mais plenamente ainda, « o mistério do mal » existente no mundo criado por Deus.

Não é possível ler « o mistério do pecado » sem fazer referência a toda a verdade sobre a « imagem e semelhança » com Deus, que está na base da antropologia bíblica. Esta verdade apresenta a criação do homem como uma doação especial por parte do Criador, na qual estão contidos não só o fundamento e a fonte da dignidade essencial do ser humano — homem e mulher — no mundo criado, mas também o início do chamamento dos dois a participarem da vida íntima do próprio Deus. A luz da Revelação, criação significa ao mesmo tempo início da história da salvação. Exatamente neste inicio o pecado se inscreve e se configura como contraste e negação.

Pode-se dizer paradoxalmente que o pecado, apresentado em Gênesis (c. Gn 3), é a confirmação da verdade sobre a imagem e semelhança de Deus no homem, se esta verdade significa a liberdade, isto é, o livre arbítrio, com o uso da qual o homem pode escolher o bem, mas pode também abusar escolhendo, contra a vontade de Deus, o mal. No seu significado essencial, todavia, o pecado é a negação daquilo que Deus é—como Criador—em relação ao homem, e daquilo que Deus quer, desde o início e para sempre, para o homem. Criando o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, Deus quer para eles a plenitude do bem, ou seja a felicidade sobrenatural, que deriva da participação na sua própria vida. Cometendo o pecado, o homem rejeita este dom e, ao mesmo tempo, quer tornar-se « como Deus, conhecendo o bem e o mal » (Gn 3,5), isto é, decidindo do bem e do mal independentemente de Deus, seu Criador. O pecado das origens tem a sua « medida » humana, a sua dimensão interior na vontade livre do homem e juntamente traz em si uma certa característica « diabólica », (29) como é claramente posto em relevo no Livro do Gênesis (He 3,1-5). O pecado opera a ruptura da unidade originária, da qual o homem gozava no estado de justiça original: a união com Deus como fonte da unidade no interior do próprio « eu », na relação recíproca do homem e da mulher (« communio personarum ») e, enfim, face ao mundo exterior e à natureza.

A descrição bíblica do pecado original em Gênesis (c. Gn 3) de certo modo « distribui os papéis » que nele desempenharam a mulher e o homem. A isto farão referência ainda mais tarde algumas passagens da Bíblia, como, por exemplo, a Carta de São Paulo a Timóteo: « Adão foi formado primeiro e depois Eva. E não foi Adão o seduzido; mas a mulher ». (1Tm 2,13-14). Não há dúvida, porém, que, independentemente desta « distribuição das partes » na descrição bíblica,esse primeiro pecado é o pecado do homem, criado por Deus homem e mulher. Esse é tambémo pecado dos « primeiros pais », ao qual se prende o seu caráter hereditário. Neste sentido chamamo-lo « pecado original ».

Esse pecado, como já foi dito, não pode ser entendido adequadamente se não se referir ao mistério da criação do ser humano — homem e mulher — à imagem e semelhança de Deus.Através dessa referência se pode entender também o mistério da « não-semelhança » com Deus, na qual consiste o pecado, e que se manifesta no mal presente na história do mundo; da « não-semelhança » com Deus, o único que é bom (cf. Mt 19,17) e que é a plenitude do bem. Se esta « não-semelhança » do pecado com Deus, a própria Santidade, pressupõe a « semelhança » no campo da liberdade, do livre arbítrio, pode-se dizer então que, precisamente por esta razão, a « não-semelhança » contida no pecado é tanto mais dramática e tanto mais dolorosa. É preciso também admitir que Deus, como Criador e Pai, é aqui atingido, « ofendido » e, obviamente, ofendido no coração mesmo da doação que faz parte do desígnio eterno de Deus sobre o homem.

Ao mesmo tempo, porém, também o ser humano — homem e mulher — é atingido pelo mal do pecado, do qual é autor. O texto bíblico de Gênesis (c. Gn 3) mostra-o com as palavras que descrevem claramente a nova situação do homem no mundo criado. Ele mostra a perspectiva da « fadiga » com que o homem há de procurar os meios para viver (cf. Gn 3,17-19), bem como a das grandes « dores » em meio às quais a mulher dará à luz seus filhos (cf. Gn 3,16). Tudo isto, depois, é marcado pela necessidade da morte, que constitui o termo da vida humana sobre a terra. Deste modo o homem, como pó, « voltará à terra, porque dela foi tirado »: « porque és pó, e em pó te hás de tornar » (cf. Gn 3,19).

Estas palavras confirmam-se de geração em geração. Elas não significam que a imagem e a semelhança de Deus no ser humano, quer mulher quer homem, foi destruída pelo pecado; significam, ao invés, que foi « ofuscada » (30) e, em certo sentido, « diminuída ». Na verdade, o pecado « diminui » o homem, como recorda também o Concílio Vaticano II. (31 - cf. GS 13) Se o homem, já pela sua própria natureza de pessoa, é imagem e semelhança de Deus, então a sua grandeza e dignidade se realizam na aliança com Deus, na união com ele, no fato de procurar a unidade fundamental que pertence à « lógica » interior do mistério próprio da criação. Essa unidade corresponde à verdade profunda de todas as criaturas dotadas de inteligência e, em particular, do homem, o qual, entre as criaturas do mundo visível, desde o início foi elevado, mediante a eleição eterna por parte de Deus em Jesus: « Em Cristo ... ele nos elegeu antes da criação do mundo... Por puro amor ele nos predestinou a sermos por ele adotados por filhos, por intermédio de Jesus

Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade (cf. Ep 1,4-6). O ensinamento bíblico, no seu conjunto, consente-nos dizer que a predestinação diz respeito a todas as pessoas humanas, a homens e mulheres, a cada um e cada uma, sem exceção.

19. « Diabolicus » e lingua Graeca « 8i.a-ßaXX<o » = « divido, separo, calumnior »
30, Cf. ORIGENES, In Gen. hom. 13, 4: PG 12, 234; S. GREGORIUS NYSSENUS, De virg. 1 2 : S. Ch. 119, 404-419; De beat. V I : PG 44, 1272.



« Ele te dominará »

10 A descrição bíblica do Livro do Gênesis delineia a verdade sobre as consequências do pecado do homem, como indica também a perturbação da relação original entre o homem e a mulher que corresponde à dignidade pessoal de cada um deles. O ser humano, tanto homem como mulher, é uma pessoa e, por conseguinte, « a única criatura na terra que Deus quis por si mesma »; e, ao mesmo tempo, precisamente esta criatura única e irrepetível « não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesma ». (32 - cf. GS 24) Daqui se origina a relação de « comunhão », na qual se exprimem a « unidade dos dois » e a dignidade pessoal tanto do homem como da mulher. Quando lemos, pois, na descrição bíblica, as palavras dirigidas à mulher: « sentir-te-ás atraída para o teu marido, e ele te dominará » (Gn 3,16), descobrimos uma ruptura e uma constante ameaça precisamente a respeito desta « unidade dos dois », que corresponde à dignidade da imagem e da semelhança de Deus em ambos. Tal ameaça resulta, porém, mais grave para a mulher. Com efeito, ao ser um dom sincero, e por isso ao viver « para » o outro, sucede o domínio: « ele te dominará ». Este « domínio » indica a perturbação e a perda da estabilidade da igualdade fundamental, que na « unidade dos dois » possuem o homem e a mulher: e isto vem sobretudo em desfavor da mulher, porquanto somente a igualdade, resultante da dignidade de ambos como pessoas, pode dar às relações recíprocas o caráter de uma autêntica « communio personarum » (comunhão de pessoas). Se a violação desta igualdade, que é conjuntamente dom e direito que derivam do próprio Deus Criador, comporta um elemento em desfavor da mulher, ao mesmo tempo tal violação diminui também a verdadeira dignidade do homem. Tocamos aqui um ponto extremamente sensível na dimensão do « ethos » inscrito originariamente pelo Criador, já no fato mesmo da criação de ambos à sua imagem e semelhança.

Esta afirmação de Gênesis Gn 3,16 tem um grande e significativo alcance. Ela implica uma referência à relação recíproca entre o homem e a mulher no matrimônio. Trata-se do desejo nascido no clima do amor esponsal, que faz com que « o dom sincero de si mesmo » da parte da mulher encontre resposta e complemento num « dom » análogo da parte do marido. Somente apoiados neste princípio podem os dois, e em particular a mulher, « encontrar-se » como verdadeira « unidade dos dois » segundo a dignidade da pessoa. A união matrimonial exige o respeito e o aperfeiçoamento da verdadeira subjetividade pessoal dos dois. A mulher não pode tornar-se « objeto » de « domínio » e de « posse » do homem. Mas as palavras do texto bíblico referem-se diretamente ao pecado original e às suas consequências duradouras no homem e na mulher. Onerados pela pecaminosidade hereditária, carregam em si a constante « causa do pecado », ou seja a tendência a ferir a ordem moral, que corresponde à própria natureza racional e à dignidade do ser humano como pessoa. Esta tendência exprime-se na tríplice concupiscência, que o texto apostólico precisa como concupiscência dos olhos, concupiscência da carne e fausto da vida (cf. 1Jn 2,16). As palavras do Gênesis, acima citadas (Gn 3,16), indicam de que modo esta tríplice concupiscência, como « causa do pecado », pesará sobre a relação recíproca entre homem e mulher.

Essas mesmas palavras se referem diretamente ao matrimônio, mas indiretamente abrangem os diversos campos da convivência social: as situações em que a mulher permanece em desvantagem ou é discriminada pelo fato de ser mulher. A verdade revelada sobre a criação do homem como homem e mulher constitui o principal argumento contra todas as situações que, sendo objetivamente prejudiciais, isto é injustas, contêm e exprimem a herança do pecado que todos os seres humanos trazem em si. Os Livros da Sagrada Escritura confirmam em vários pontos a existência efetiva de tais situações e juntamente proclamam a necessidade de converter-se, isto é, de purificar-se do mal e de libertar-se do pecado: de tudo aquilo que ofende o outro, que « diminui » o homem, não só aquele a quem se ofende, mas também aquele que comete a ofensa. Essa é a mensagem imutável da Palavra revelada de Deus. Nisso se exprime o « ethos » bíblico até o fim. (33)

Nos nossos dias a questão dos « direitos da mulher » tem adquirido um novo significado no amplo contexto dos direitos da pessoa humana. Iluminando este programa, constantemente declarado e de várias maneiras recordado, a mensagem bíblica e evangélica guarda a verdade sobre a « unidade » dos « dois », isto é, sobre a dignidade e a vocação que resultam da diversidade específica e originalidade pessoal do homem e da mulher. Por isso, também a justa oposição da mulher face àquilo que exprimem as palavras bíblicas: « ele te dominará » (Gn 3,16) não pode sob pretexto algum conduzir à « masculinização » das mulheres. A mulher—em nome da libertação do « domínio » do homem—não pode tender à apropriação das características masculinas, contra a sua própria « originalidade » feminina. Existe o temor fundado de que por este caminho a mulher não se « realizará », mas poderia, ao invés, deformar e perder aquilo que constitui a sua riqueza essencial. Trata-se de uma riqueza imensa. Na descrição bíblica, a exclamação do primeiro homem à vista da mulher criada é uma exclamação de admiração e de encanto, que atravessa toda a história do homem sobre a terra.

Os recursos pessoais da feminilidade certamente não são menores que os recursos da masculinidade, mas são diversos. A mulher, portanto, — como, de resto, também o homem — deve entender a sua « realização » como pessoa, a sua dignidade e vocação, em função destes recursos, segundo a riqueza da feminilidade, que ela recebeu no dia da criação e que herda como expressão, que lhe é peculiar, da « imagem e semelhança de Deus ». Somente por este caminho pode ser superada também aquela herança do pecado que é sugerida nas palavras da Bíblia: « sentir-te-ás atraída para o teu marido, e ele te dominará ». A superação desta má herança é, de geração em geração, dever de todo homem, seja homem, seja mulher. Efetivamente, em todos os casos em que o homem é responsável de quanto ofende a dignidade pessoal e a vocação da mulher, ele age contra a própria dignidade pessoal e a própria vocação.

33. Re quidem vera Patres IV saeculi ad legem se revocantes divinam fortiter sunt nisi contra adhuc vigens tunc discrimen adversus mulieres tum in moribus tum in legibus civilibus sui temporis. Cf. S. GREGORIUS NAZIANZENUS, Or. 37, 6: PG 36, 290; S. HIERONYMUS, Ad Oceanum ep. 77, 3: PL 22, 691; S. AMBROSIUS, De instit. virg, I I I , 16: PL 16, 309; S. AUGUSTINUS, Sermo 132, 2: PL 38, 735, Sermo S92, 4: PL 39, 1711.



Proto-Evangelho

11 O Livro do Gênesis atesta o pecado, que é o mal do « princípio » do homem, as suas consequências que desde então pesam sobre todo o gênero humano, e juntamente contém oprimeiro anúncio da vitória sobre o mal, sobre o pecado. Provam-no as palavras que lemos em Gênesis 3, 15, habitualmente ditas « Proto-Evangelho »: « Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a dela; esta te esmagará a cabeça enquanto tu te lanças contra o seu calcanhar ». É significativo que o anúncio do redentor, do salvador do mundo, contido nestas palavras, se refira à « mulher ». Esta é nomeada em primeiro lugar no Proto-Evangelho como progenitora daquele que será o redentor do homem. (34) E se a redenção deve realizar-se mediante a luta contra o mal, por meio da « inimizade » entre a estirpe da mulher e a estirpe daquele que, como « pai da mentira » (Jn 8,44), é o primeiro autor do pecado na história do homem, esta será também a inimizade entre ele e a mulher.

Nessas palavras desvela-se a perspectiva de toda a Revelação, primeiro como preparação ao Evangelho e depois como próprio Evangelho. Nesta perspectiva convergem, sob o nome da mulher, as duas figuras femininas: Eva e Maria.

As palavras do Proto-Evangelho, relidas à luz do Novo Testamento, exprimem adequadamente a missão da mulher na luta salvífica do redentor contra o autor do mal na história do homem.

O confronto Eva-Maria retorna constantemente no curso da reflexão sobre o depósito da fé recebida da Revelação divina, e é um dos temas retomados frequentemente pelos Padres, pelos escritores eclesiásticos e pelos teólogos. (35) Habitualmente, nesta comparação surge à primeira vista uma diferença, uma contraposição. Eva, como « mãe de todos os viventes » (Gn 3,20), é testemunha do « princípio » bíblico, no qual estão contidas a verdade sobre a criação do homem à imagem e semelhança de Deus e a verdade sobre o pecado original. Maria étestemunha do novo « princípio » e da « nova criatura » (cf. 2Co 5,17). Melhor, ela mesma, como a primeira redimida na história da salvação, é « nova criatura »: é a « cheia de graça ». É difícil compreender porque as palavras do Proto-Evangelho realcem tão fortemente a « mulher », se não se admite que com ela se inicia a nova e definitiva Aliança de Deus com a humanidade, a Aliança no sangue redentor de Cristo. Essa Aliança inicia-se com uma mulher, a « mulher », na Anunciação em Nazaré. Esta é a novidade absoluta do Evangelho: outras vezes no Antigo Testamento, Deus, para intervir na história do seu Povo, se tinha dirigido a mulheres, como a mãe de Samuel e de Sansão; mas para estipular a sua Aliança com a humanidade se tinha dirigido somente a homens: Noé, Abraão, Moisés. No início da Nova Aliança, que deve ser eterna e irrevogável, está a mulher: a Virgem de Nazaré. Trata-se de um sinal indicativo de que « em Jesus Cristo » « não há homem nem mulher » (Ga 3,28). Nele a contraposição recíproca entre homem e mulher — como herança do pecado original — é essencialmente superada. « Todos vós sois um em Cristo Jesus », escreverá o Apóstolo (Ga 3,28).

Estas palavras tratam da originária « unidade dos dois », que está ligada à criação do homem, como homem e mulher, à imagem e semelhança de Deus, segundo o modelo da comunhão perfeitíssima de Pessoas que é o próprio Deus. As palavras paulinas constatam que o mistério da redenção do homem em Jesus Cristo, filho de Maria, retoma e renova aquilo que no mistério da criação correspondia ao desígnio eterno de Deus Criador. Precisamente por isso, no dia da criação do homem como homem e mulher, « Deus contemplou tudo o que tinha feito, e eis que estava tudo muito bem » (Gn 1,31). A redenção restitui, em certo sentido, à sua própria raiz o bem que foi essencialmente « diminuído » pelo pecado e pela sua herança na história do homem.

A « mulher » do Proto-Evangelho é inserida na perspectiva da redenção. O confronto Eva-Maria pode ser entendido também no sentido de que Maria assume em si mesma e abraça omistério da « mulher », cujo início é Eva, « a mãe de todos os viventes » (Gn 3,20): antes de tudo o assume e abraça no interior do mistério de Cristo — « novo e último Adão » (cf. 1Co 15,45) — o qual assumiu na sua pessoa a natureza do primeiro Adão. A essência da Nova Aliança consiste no fato de que o Filho de Deus, consubstancial ao Pai eterno, se torna homem: acolhe a humanidade na unidade da Pessoa divina do Verbo. Aquele que opera a Redenção é, ao mesmo tempo, verdadeiro homem. O mistério da Redenção do mundo pressupõe que Deus-Filho tenha assumido a humanidade como herança de Adão, tornando-se semelhante a ele e a todo homem em tudo, « com exceção do pecado » (He 4,15). Deste modo, ele « manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação », como ensina o Concílio Vaticano II. (36 - GS 22) Em certo sentido, ajudou-o a redescobrir « quem é o homem » (cf. Ps 8,5).

Em todas as gerações, na tradição da fé e da reflexão cristã sobre a mesma, a aproximação Adão-Cristo é frequentemente acompanhada da de Eva-Maria. Se Maria é descrita também como « nova Eva », quais podem ser os significados desta analogia? Certamente são múltiplos. É preciso deter-se particularmente no significado que vê em Maria a revelação plena de tudo o que é compreendido na palavra bíblica « mulher »: uma revelação proporcional ao mistério da Redenção. Maria significa, em certo sentido, ultrapassar o limite de que fala o Livro do Gênesis (Gn 3,16) e retornar ao « princípio » no qual se encontra a « mulher » tal como foi querida na criação, portanto no pensamento eterno de Deus, no seio da Santíssima Trindade. Maria é o « novo princípio » da dignidade e da vocação da mulher, de todas e de cada uma das mulheres. (37)

Para compreender isto podem servir de chave, de modo particular, as palavras postas pelo evangelista nos lábios de Maria depois da Anunciação, durante a sua visita a Isabel: « grandes coisas fez em mim o Todo-poderoso » (Lc 1,49). Estas se referem certamente à concepção do Filho, que é « Filho do Altíssimo » (Lc 1,32), o « santo » de Deus; conjuntamente, porém, elas podem significar também a descoberta da própria humanidade feminina. « Grandes coisas fez em mim »: esta é a descoberta de toda a riqueza, de todos os recursos pessoais da feminilidade, de toda a eterna originalidade da « mulher », assim como Deus a quis, pessoa por si mesma, e que se encontra contemporaneamente « por um dom sincero de Si mesma ».

Esta descoberta relaciona-se com a clara consciência do dom, da dádiva oferecida por Deus.O pecado já no « princípio » tinha ofuscado esta consciência, em certo sentido a tinha sufocado, como indicam as palavras da primeira tentação por obra do « pai da mentira » (cf. Gn 3,1-5). Com a chegada da « plenitude dos tempos » (cf. Ga 4,4), ao começar a cumprir-se na história da humanidade o mistério da redenção, esta consciência irrompe com toda a sua força nas palavras da « mulher » bíblica de Nazaré. Em Maria, Eva redescobre qual é a verdadeira dignidade da mulher, da humanidade feminina. Esta descoberta deve chegar continuamente ao coração de cada mulher e plasmar a sua vocação e a sua vida.


34. Cf. S. IRENAEUS, Adv. haer. I I I , 23, 7: 8. Ch. 211, 462-465; V, 21, 1: 8. Ch. 153, 260-265; S. EPIPHANIUS, Panar., I I I , 2, 78: PO 42, 728-729; S. AUGUSTINUS, Enarr. in Ps. 103, s. 4, 6: CCL 40, 1525.
35. Cf. S. IUSTINUS, Dial, cum Thryph. 1 0 0 : PG 6, 709-712 ; S. IRENAEUS, Adv. haer. I I I , 22, 4: S. Ch. 211, 438-445; V, 19, l: s. Ch. 153, 248-251 ; S. CYRILLUS HIEROSOLYMITANUS, Catech. 12, 1 5 : PG 33, 7 4 1 ; S. IOANNES CHRYSOSTOMUS, In Ps. 44, 7: PG 55, 1 9 3 ; S. IOANNES DAMASCENUS, Horn. II in dorm. B.V.M. 3 : S. Ch. 80, 130-135 ; ESYCHIUS HIEROSOLYMITANUS, Sermo V in Deiparam: PG 93, 1464 s . ; TERTULLIANUS, De carne Christi 1 7 : CCL 2, 904 s . ; S. HIERONYMUS, Epist. 22, 2 1 : PL 22, 4 0 8 ; S. AUGUSTINUS, Serm. 51, 2-3 : PL 38, 335 ; Serm. 232, 2: PL 38, 1108 ; CARD. I. H. NEWMAN, A Letter to the rev. E. B. Pusey, Longmans, London 1865 ; M. I. SCHEEBEN, Handbuch der Katholischen Dogmatik, V / 1 (Freiburg 1954 2), 243-266 ; V / 2 (Freiburg 1954 2), 306-499. Cf. CONC. OEC. VAT. I I , Const. dogm. Lumen gentium de Ecclesia, LG 56.
37. Cf. S. AMBROSIUS, De instit. virg. V, 33: PL 16, 313.


V

JESUS CRISTO


« Ficaram admirados por estar ele a conversar com uma mulher »

12 As palavras do Proto-Evangelho, no Livro de Gênesis, permitem que passemos ao âmbito do Evangelho. A redenção do homem, ali anunciada, aqui se torna realidade na pessoa e na missão de Jesus Cristo, nas quais reconhecemos também aquilo que a realidade da redenção significa para a dignidade e a vocação da mulher. Este significado é-nos esclarecido em grau maior pelas palavras de Cristo e por todo o seu comportamento, em relação às mulheres, que é extremamente simples e, exatamente por isso, extraordinário, se visto no horizonte do seu tempo: é um comportamento que se caracteriza por uma grande transparência e profundidade. Diversas mulheres aparecem no itinerário da missão de Jesus de Nazaré, e o encontro com cada uma delas é uma confirmação da « novidade de vida » evangélica, de que já se falou.

Admite-se universalmente — e até por parte de quem se posiciona criticamente diante da mensagem cristã — que Cristo se constituiu, perante os seus contemporâneos, promotor da verdadeira dignidade da mulher e da vocação correspondente a tal dignidade. Às vezes, isso provocava estupor, surpresa, muitas vezes raiando o escândalo: « ficaram admirados por estar ele a conversar com uma mulher » (
Jn 4,27), porque este comportamento se distinguia daquele dos seus contemporâneos. « Ficaram admirados » até os próprios discípulos de Cristo. O fariseu, a cuja casa se dirigiu a mulher pecadora para ungir os pés de Jesus com óleoperfumado, « disse consigo: "Se este homem fosse um profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que o toca: é uma pecadora" » (Lc 7,39). Estranheza ainda maior ou até « santa in dignação » deviam provocar nos ouvintes satisfeitos de si as palavras de Cristo: « Os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no reino de Deus » (Mt 21,31).

Aquele que falava e agia assim fazia compreender que os « mistérios do Reino » lhe eram conhecidos até o fundo. Ele também « sabia o que há em cada homem » (Jn 2,25), no seu íntimo, no seu « coração ». Era testemunha do desígnio eterno de Deus a respeito do homem por ele criado à sua imagem e semelhança, como homem e mulher. Era também profundamente consciente das consequências do pecado, do « mistério de iniquidade » que opera nos corações humanos come fruto amargo do ofuscamento da imagem divina. Como é signiíicativo o fato de que, no colóquio fundamental sobre o matrimônio e sobre a sua indissolubilidade, Jesus, diante de seus interlocutores, « os escribas », que eram por ofício os conhecedores da Lei, faça referência ao « princípio ». A questão colocada é a do direito « masculino » de « repudiar a própria mulher por qualquer motivo » (Mt 19,3); e, portanto, também do direito da mulher, da sua justa posição no matrimônio, da sua dignidade. Os interlocutores consideram ter a seu favor a legislação mosaica vigente em Israel « Moisés mandou dar-lhe libelo de repúdio e despedi-la » (Mt 19,7). Responde Jesus: « por causa da dureza do vosso coração permitiu-vos Moisés repudiar as vossas mulheres; mas no princípio não era assim » (Mt 19,8). Jesus apela para o « princípio », para a criação do homem como homem e mulher e para o ordenamento de Deus que se fundamenta no fato de que os dois foram criados « à sua imagem e semelhança ». Por isso, quando o homem « deixa seu pai e sua mãe » unindo-se à sua esposa, de modo a formarem os dois « uma só carne », permanece em vigor a lei que provém de Deus mesmo: « Não separe, pois, o homem o que Deus uniu » (Mt 19,6).

O princípio desse « ethos », que desde o início foi inscrito na realidade da criação, é agora confirmado por Cristo contra a tradição, que comportava a discriminação da mulher. Nesta tradição, o homem « dominava », não considerando adequadamente a mulher e a dignidade que o « ethos » da criação colocou como base das relações recíprocas das duas pessoas unidas em matrimônio. Este « ethos » é recordado e confirmado pelas palavras de Cristo: é o « ethos » do Evangelho e da redenção.



As mulheres do Evangelho

13 Folheando as páginas do Evangelho, passa diante de nossos olhos um grande número de mulheres, de idade e condições diversas. Encontramos mulheres atingidas pela doença ou por sofrimentos físicos, como a mulher que tinha « um espírito que a mantinha enferma, andava recurvada e não podia de forma alguma endireitar-se » (cf. Lc 13,11); ou como a sogra de Simão que estava « de cama com febre » (Mc 1,30); ou como a mulher que « sofria de um fluxo de sangue » (cf. Mc 5,25-34), que não podia tocar ninguém, porque se pensava que o seu toque tornasse o homem « impuro ». Cada uma delas foi curada e a última, a hemorroíssa, que tocou o manto de Jesus « no meio da multidão » (Mc 5,27), foi por ele louvada pela sua grande fé: « a tua fé te salvou » (Mc 5,34). Há, depois, a filha de Jairo, que Jesus faz voltar à vida, dirigindo-se a ela com ternura: « Menina, eu te mando, levanta-te! » (Mc 5,41). E há ainda a viúva de Naim, para quem Jesus faz voltar à vida o filho único, fazendo acompanhar o seu gesto de uma expressão de terna piedade: « compadeceu-se dela e disse-lhe: "Não chores" » (Lc 7,13). E há, enfim, a Cananéia, uma mulher que merece da parte de Cristo palavras de especial estima pela sua fé, sua humildade e pela grandeza de espírito, de que só um coração de mãe é capaz: « ó Mulher, é grande a tua fé! Faça-se como desejas » (Mt 15,28). A mulher cananéia pedia a cura de sua filha.

às vezes as mulheres, que Jesus encontrava e que dele recebiam tantas graças, o acompanhavam, enquanto com os apóstolos peregrinava pelas cidades e aldeias, anunciando o Evangelho do Reino de Deus; e elas « os assistiam com os seus bens ». O Evangelho cita entre elas Joana, esposa do administrador de Herodes, Susana e « muitas outras» (Lc 8,1-3).

às vezes, figuras de mulheres aparecem nas parábolas, com que Jesus de Nazaré ilustrava aos seus ouvintes a verdade sobre o Reino de Deus. Assim é nas parábolas da dracma perdida (cf. Lc 15,8-10), do fermento (cf. Mt 13,33), das virgens prudentes e das virgens estultas (cf. Mt 25,1-13). É particularmente eloquente o relato do óbulo da viúva. Enquanto « os ricos ... colocavam as suas ofertas na caixa do templo ... uma viúva ... deitou lá duas moedinhas ». EntãoJesus disse: « essa viúva pobre deitou mais do que todos... foi da sua penúria que tirou tudo quanto possuía » (cf. Lc 21,1-4). Deste modo Jesus a apresenta como modelo para todos e a defende, pois no sistema sócio-jurídico da época, as viúvas eram seres totalmente indefesos (cf. também Lc 18,1-7).

Em todo o ensinamento de Jesus, como também no seu comportamento, não se encontra nada que denote a discriminação, própria do seu tempo, da mulher. Ao contrário, as suas palavras e as suas obras exprimem sempre o respeito e a honra devidos à mulher. A mulher recurvada é chamada « filha de Abraão » (Lc 13,16), enquanto em toda a Bíblia o título « filho de Abraão » é atribuído só aos homens. Percorrendo a via dolorosa rumo ao Gólgota, Jesus dirá às mulheres: « Filhas de Jerusalém, não choreis por mim » (Lc 23,28). Este modo de falar às mulheres e sobre elas, assim como o modo de tratá-las, constitui uma clara « novidade » em relação aos costumes dominantes do tempo.

Isso se torna ainda mais explícito no tocante àquelas mulheres que a opinião comum apontava com desprezo como pecadoras, pecadoras públicas e adúlteras. Por exemplo, a Samaritana, a quem Jesus mesmo diz: « tiveste cinco maridos e aquele que agora tens não é teu marido ». E ela, percebendo que ele conhecia os segredos da sua vida, reconhece nele o Messias e corre a anunciá-lo aos seus conterrâneos. O diálogo que precede este reconhecimento é um dos mais belos do Evangelho (cf. Jn 4,7-27).

Eis, depois, uma pecadora pública que, não obstante a condenação por parte da opinião comum, entra na casa do fariseu para ungir com óleo perfumado os pés de Jesus. Ao anfitrião que se escandalizava deste fato, Jesus dirá dela: « São perdoados os seus muitos pecados, visto que muito amou » (cf. Lc 7,37-47).

Eis, enfim, uma situação que é talvez a mais eloquente: uma mulher surpreendida em adultérioé conduzida a Jesus. A pergunta provocatória: « Ora Moisés, na Lei, mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes? », Jesus responde: « Aquele de vós que estiver sem pecado, lance-lhe por primeiro uma pedra ». A força de verdade, contida nesta resposta, é tão grande que « se foram embora um após o outro, a começar pelos mais velhos ». Permanecem só Jesus e a mulher. « Onde estão? Ninguém te condenou? » — « Ninguém, Senhor ». — « Nem eu te condenarei: — vai e doravante não tornes a pecar » (cf. Jn 8,3-11).

Estes episódios constituem um quadro de conjunto muito transparente. Cristo é aquele que « sabe o que há no homem » (cf. Jn 2,25), no homem e na mulher. Conhece a dignidade do homem, o seu valor aos olhos de Deus. Ele mesmo, Cristo, é a confirmação definitiva deste valor. Tudo o que diz e faz tem o seu cumprimento definitivo no mistério pascal da redenção. O comportamento de Jesus a respeito das mulheres, que encontra ao longo do caminho do seu serviço messianico, é o reflexo do desígnio eterno de Deus, o qual, criando cada uma delas, a escolhe e ama em Cristo (cf. Ep 1,1-5). Por isso, cada mulher é aquela « única criatura na terra que Deus quis por si mesma ». Cada mulher herda do « princípio » a dignidade de pessoa precisamente como mulher. Jesus de Nazaré confirma esta dignidade, recorda-a, renova-a e faz dela um conteúdo do Evangelho e da redenção, para a qual é enviado ao mundo. É preciso, pois, introduzir na dimensão do mistério pascal toda palavra e todo gesto de Cristo que se referem à mulher. Desta maneira tudo se explica completamente.




Mulieris dignitatem PT 8