Mulieris dignitatem PT 21

A maternidade segundo o espírito

21 A virgindade no sentido evangélico comporta a renúncia ao matrimônio e, por conseguinte, também à maternidade física. Todavia, a renúncia a este tipo de maternidade, que pode também comportar um grande sacrifício para o coração da mulher, abre para a experiência de uma maternidade de sentido diverso: a maternidade « segundo o espírito » (cf. Rm 8,4). A virgindade, de fato, não priva a mulher das suas prerrogativas. A maternidade espiritual reveste-se de múltiplas formas. Na vida das mulheres consagradas que vivem, por exemplo, segundo o carisma e as regras dos diversos Institutos de caráter apostólico, ela poderá exprimir-se como solicitude pelos homens, especialmente pelos mais necessitados: os doentes, os deficientes físicos, os abandonados, os órfãos, os idosos, as crianças, a juventude, os encarcerados, e, em geral, os marginalizados. Uma mulher consagrada reencontra desse modo o Esposo, diverso e único em todos e em cada um, de acordo com as suas próprias palavras: « tudo o que fizestes a um destes ... a mim o fizestes » (Mt 25,40).O amor esponsal comporta sempre uma singular disponibilidade para ser efundido sobre quantos se encontram no raio da sua ação. No matrimônio, esta disponibilidade, embora aberta a todos, consiste particularmente no amor que os pais dedicam aos filhos. Na virgindade, tal disponibilidade está aberta a todos os homens, abraçados pelo amor de Cristo esposo.

Em relação a Cristo, que é o Redentor de todos e de cada um, o amor esponsal, cujo potencial materno se esconde no coração da mulher, esposa virginal, está também disposto a abrir-se para todos e cada um. Isso se verifica nas Comunidades religiosas de vida apostólica e diversamente naquelas de vida contemplativa ou de clausura. Existem, além disso, outras formas de vocação para a virgindade por causa do Reino, como, par exemplo, os Institutos Seculares, ou as Comunidades de consagrados que florescem dentro de Movimentos, Grupos e Associações: em todas estas realidades, a mesma verdade sobre a maternidade espiritual das pessoas que vivem na virgindade encontra uma multiforme confirmação. Em todo o caso, trata-se não somente de formas comunitárias, mas também de formas extra-comunitárias. Em definitivo, a virgindade, como vocação da mulher, é sempre a vocação de uma pessoa, de uma pessoa concreta e única. Portanto, é também profundamente pessoal a maternidade espiritual que se faz sentir nesta vocação.

Baseado nisto se verifica também uma aproximação específica entre a virgindade da mulher não casada e a maternidade da mulher casada. Tal aproximação vai não só da maternidade para a virgindade, como se acentuou acima, mas vai também da virgindade para o matrimônio, entendido como forma de vocação da mulher, em que esta se torna mãe dos filhos nascidos do seu ventre. O ponto de partida desta segunda analogia é o significado das núpcias. Com efeito, a mulher é « casada » quer pelo sacramento do matrimônio, quer espiritualmente pelas núpcias com Cristo. Num e outro caso as núpcias indicam o « dom sincero da pessoa » da esposa ao esposo. Deste modo — pode-se dizer — o perfil do matrimônio encontra-se espiritualmente na virgindade. E se se tratar de maternidade física, não deverá, porventura, também ela ser uma maternidade espiritual para responder à verdade global do homem que é uma unidade de corpo e de espírito? Existem, por conseguinte, muitas razões para ver nestes dois caminhos diversos — duas vocações diversas de vida da mulher — uma profunda complementaridade e até uma profunda união no interior do ser da pessoa.



« Filhinhos meus por quem sofro novamente as dores do parto »

22 O Evangelho revela e permite compreender precisamente este modo de ser da pessoa humana. O Evangelho ajuda toda mulher e todo homem a vivê-lo e assim a realizar-se. Existe, de fato, uma total igualdade em relação aos dons do Espírito Santo, em relação às « grandes obras de Deus » (Ac 2,11). Não só isso. Precisamente diante das « grandes obras de Deus », o apóstolo-homem sente necessidade de recorrer àquilo que é por essência feminino, a fim de exprimir a verdade sobre o próprio serviço apostólico. Exatamente assim age Paulo de Tarso, quando se dirige aos Gálatas com as palavras: « Filhinhos meus por quem sofro novamente as dores do parto » (Ga 4,19). Na primeira Carta aos Coríntios (1Co 7,38) o apóstolo anuncia a superioridade da virgindade sobre o matrimônio, doutrina constante da Igreja no espírito das palavras de Cristo, relatadas no Evangelho de Mateus (Mt 19,10-12), sem ofuscar absolutamente a importância da maternidade física e espiritual. Para ilustrar a missão fundamental da Igreja, ele não encontra outra coisa melhor do que se referir à maternidade.

Encontramos um reflexo da mesma analogia — e da mesma verdade — na Constituição dogmática sobre a Igreja. Maria é a « figura » da Igreja: (43) «Com efeito, no mistério da Igreja — pois também a Igreja é com razão chamada mãe e virgem — Maria precedeu, apresentando-se de modo eminente e singular, como modelo de virgem e de mãe... Deu à luz o Filho, a quem Deus constituiu primogênito entre muitos irmãos (cf. Rm 8,29) isto é, entre os fiéis, para cuja regeneração e formação ela coopera com amor de mãe ». (44 - GS 63) « Por certo, a Igreja, contemplando-lhe a arcana santidade, imitando-lhe a caridade e cumprindo fielmente a vontade do Pai, mediante a palavra de Deus recebida na fé, torna-se também ela mãe, pois pela pregação e pelo batismo ela gera para a vida nova e imortal os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus ». (45 - GS 64) Trata-se aqui da maternidade «segundo o espírito » a respeito dos filhos e filhas do gênero humano. Tal maternidade — como foi dito — torna-se a « parte » da mulher também na virgindade. A Igreja « também é virgem que íntegra e puramente guarda a fé prometida ao Esposo ». (46 - GS 64) Isto se realiza em Maria da maneira mais perfeita. A Igreja, pois, « imitando a Mãe do seu Senhor, pela virtude do Espírito Santo, conserva virginalmente uma fé íntegra, uma sólida esperança e uma sincera caridade ». (47)

O Concílio confirmou que se não se recorre à Mãe de Deus, não é possível compreender o mistério da Igreja, a sua realidade, a sua vitalidade essencial. Indiretamente encontramos aquia referência ao paradigma bíblico da « mulher », delineado claramente já na descrição do « princípio » (cf. Gn 3,15), e ao longo do percurso que vai da criação, passando pelo pecado, até chegar à redenção. Deste modo se confirma a união profunda entre o que é humano e o que constitui a economia divina da salvação na história do homem. A Bíblia convence-nos do fato de que não se pode ter uma adequada hermenêutica do homem, ou seja, daquilo que é « humano », sem um recurso adequado àquilo que é « feminino ». Analogamente acontece na economia salvífica de Deus: se queremos compreendê-la plenamente em relação a toda a história do homem, não podemos deixar de lado, na ótica de nossa fé, o mistério da « mulher »: virgem-mãe-esposa.

43. Cf. CONO. OEC. VAT. Il, Const. dogm. Lumen gentium de Ecclesia, 63; S. AMBROSIUS, In Lc I I , 7: S. Ch. 45, 74; De instit. virg. X I V , 87-89: PL 16, 326-327; S. CYRILLUS ALEXANDRINUS, Hom. 4: PO 77, 996; S . ISIDORUS HISPALENSIS, Allegoriae 139: PL 83, 117.
47. Ibid., GS 64. Quod ad rationem Mariam-Ecclesiam attinet, quae constanter repetitur in meditationibus Patrum Ecclesiae totiusque Traditionis Christianae, cf. Litt. Enc. Redemptoris Mater (25 Martii 1987), RMA 42-44 et notae 117-127 : L. mem., 418-422. Cf. insuper: CLEMENS ALEXANDRINUS, Paed. 1, 6 : S. Ch. 70, 186 s.; S. AMBROSIUS, In Lc II, 7: S. Ch. 45, 74 ; S. AUGUSTINUS, Sermo 192, 2: PL 38, 1012 ; Sermo 195, 2: PL 38, 1018 ; Sermo 25, 8: PL 46, 938 ; S. LEO MAGNUS, Sermo 25, 5: PL 54, 211 ; Sermo 26, 2: PL 5 4 , 21 3 ; BEDA VENERABILIS, In Lc I, 2 : PL 92, 330. «utraque Mater — ita scribit ISAAC DE STELLA, discipulus S. Bernardi —, utraque virgo; utraque de eodem Spiritu... concipit... Illa [Maria]... corpori caput peperit; ista [Ecclesia]... capiti corpus edidit. Utraque Christi mater, sed neutra sine altera totum parit. Unde ... quod de virgine matre Ecclesia universaliter, hoc de virgine Maria singulariter; et quod de virgine matre Maria specialiter, id de virgine matre Ecclesia generaliter iure intelligitur, et cum de alterutra sermo texitur, fere permistim et indifferenter de utraque sententia intelligitur » (Sermo 51, 7-8 : S. Ch. 339, 202-205.


VII

A IGREJA — ESPOSA DE CRISTO


O « grande mistério »

23 Uma importância fundamental a este respeito têm as palavras da Carta aos Efésios: « Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela, a fim de santificá-la, purificando-a com o lavacro de água juntamente com a palavra, para apresentar a si próprio essa Igreja resplandecente de glória, sem mancha, nem ruga, nem coisa alguma semelhante, para que seja santa e irrepreensível. Desse modo devem também os maridos amar as mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Ninguém jamais odiou sua própria carne, antes, cada qual a nutre e dela toma cuidados, como Cristo faz também com a Igreja, pois nós somos membros do seu corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, unir-se-á à sua mulher e passarão os dois a formar uma só carne. Grande mistério é este:mas digo-o referindo-me a Cristo e à Igreja » (Ep 5,25-32).

Nesta Carta o autor exprime a verdade sobre a Igreja como esposa de Cristo, indicando igualmente como esta verdade se radica na realidade bíblica da criação do homem como varão e mulher. Criados à imagem e semelhança de Deus como « unidade dos dois », ambos foram chamados a um amor de caráter esponsal. Pode-se dizer também que, seguindo a descrição da criação no Livro do Gênesis (Gn 2,18-25), este chamamento fundamental se manifesta juntamente com a criação da mulher e é inscrito pelo Criador na instituição do matrimônio, que, segundo o Gênesis Gn 2,24, desde o início possui o caráter de união das pessoas (« communio personarum »). Embora não diretamente, a mesma descrição do « princípio » (cf. Gn 1,27 e Gn 2,24) indica que todo o « ethos » das relações recíprocas entre o homem e a mulher deve corresponder à verdade pessoal do seu ser.

Tudo isto já foi considerado precedentemente. O texto da Carta aos Efésios confirma ainda uma vez a verdade acima apresentada e, ao mesmo tempo, compara o caráter esponsal do amor entre o homem e a mulher com o mistério de Cristo e da Igreja. Cristo é o Esposo da Igreja, a Igreja é a Esposa de Cristo. Esta analogia não deixa de ter precedentes: ela transfere para o Novo Testamento o que já estava presente no Antigo Testamento, particularmente nos profetas Oséias, Jeremias, Ezequiel e Isaías. (48) As respectivas passagens merecem uma análise à parte. Citemos pelo menos um texto. Eis como Deus fala ao seu povo eleito através do profeta: « Não temas, porque não terás que te envergonhar; não te confundas, porque não terás do que te enrubescer; antes, esquecerás a vergonha da tua juventude, e não te lembrarás mais da afronta da tua viuvez; porque o teu esposo é o teu Criador, cujo nome é Senhor dos exércitos; o teu redentor é o Santo de Israel, que se chama Deus de toda terra ... Será, por acaso, repudiada a mulher desposada na juventude? Diz o teu Deus. Por um breve instante eu te abandonei, e com grande afeto, voltarei a acolher-te. Num rapto de ira, ocultei-te o meu rosto por um momento; mas com perene clemência compadeci-me de ti, diz o teu redentor, o Senhor ... Abalar-se-ão os montes e os outeiros vacilarão, mas a minha clemência de ti não se apartará, e o meu pacto de paz não vacilará » (Is 54,4-8 Is 54,10).

Se o ser humano — homem e mulher — foi criado à imagem e semelhança de Deus, Deus pode falar de si pelos lábios do profeta, servindo-se da linguagem que é por essência humana: no texto citado de Isaías é « humana » a expressão do amor de Deus, mas o amor em si mesmo édivino. Sendo amor de Deus, esse amor tem um caráter esponsal propriamente divino, ainda que venha expresso com a analogia do amor do homem para com a mulher. Essa mulher-esposa é Israel, enquanto povo escolhido por Deus, e esta eleição tem sua origem exclusiva no amor gratuito de Deus. É justamente por este amor que se explica a Aliança, apresentada frequentemente como uma aliança matrimonial, que Deus renova sempre com o seu povo escolhido. Esta aliança, da parte de Deus, é « um compromisso » duradouro; ele permanece fiel ao seu amor esponsal, embora a esposa se tenha demonstrado muitas vezes infiel.

Esta imagem do amor esponsal ligada com a figura do Esposo divino — uma imagem muito clara nos textos proféticos — encontra a sua confirmação e coroamento na Carta aos Efésios (Ep 5,23-32). Cristo é saudado como esposo por João Batista (cf. Jn 3,27-29): antes, o próprio Cristo aplica a si esta comparação tomada dos profetas (cf. Mc 2,19-20). O apóstolo Paulo, que traz em si todo o patrimônio do Antigo Testamento, escreve aos Coríntios: « Pois bem, eu sou ciumento de vós, do mesmo ciúme de Deus, por vos ter desposado com um único esposo, para apresentar-vos a Cristo como virgem pura » (2Co 11,2). A expressão mais plena, porém, da verdade sobre o amor de Cristo redentor, segundo a analogia do amor esponsal no matrimônio, se encontra na Carta aos Efésios: « Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela » (Ep 5,25); e nisto se confirma plenamente o fato de a Igreja ser a esposa de Cristo: « O teu redentor é o Santo de Israel » (Is 54,5). No texto paulino, a analogia da relação esponsal toma ao mesmo tempo duas direções, que formam o conjunto do « grande mistério » («sacramentum magnum »). A aliança própria dos esposos « explica » o caráter esponsal da união de Cristo com a Igreja, e esta união, por sua vez, como « grande sacramento », decide da sacramentalidade do matrimônio como aliança santa dos esposos, homem e mulher. Lendo esta passagem, rica e complexa, que, no seu conjunto, é uma grande analogia, devemos distinguiro que nela exprime a realidade humana das relações interpessoais daquilo que exprime, com linguagem simbólica, o « grande mistério » divino.

48. Cf. ex. gr., Os 1,2 Os 2,16-18 Jr 2,2 Ep 16,8 Is 50,1 Is 54,5-8.



A « novidade » evangélica

24 O texto dirige-se aos esposos como homens e mulheres concretos, e recorda-lhes o « ethos » do amor esponsal que remonta à instituição divina do matrimônio desde o « princípio ». A verdade desta instituição corresponde a exortação: « Maridos, amai as vossas mulheres »,amai-as em virtude do vínculo especial e único, pelo qual o homem e a mulher, no matrimônio, se tornam « uma só carne » (Gn 2,24 Ep 5,31). Existe neste amor uma afirmação fundamentalda mulher como pessoa, uma afirmação graças à qual a personalidade feminina pode desenvolver-se plenamente e enriquecer-se. É precisamente assim que age Cristo como esposo da Igreja, desejando que ela seja « resplandecente de glória, sem mancha, nem ruga » (Ep 5,27). Pode-se dizer que aqui esteja plenamente assumido aquilo que constitui o « estilo » de Cristo no trato da mulher. O marido deveria fazer seus os elementos deste estilo em relação à sua esposa; e, analogamente, deveria fazer o homem a respeito da mulher, em todas as situações. Assim, os dois, homem e mulher, atuam o « dom sincero de si mesmos »!

O autor da Carta aos Efésios não vê contradição alguma entre uma exortação formulada dessa maneira e a constatação de que « as mulheres sejam submissas aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher » (Ep 5,22-23). O autor sabe queesta impostação, tão profundamente arraigada nos costumes e na tradição religiosa do tempo, deve ser entendida e atuada de um modo novo: como uma « submissão recíproca no temor de Cristo » (cf. Ep 5,21); tanto mais que o marido é dito « cabeça » da mulher como Cristo é cabeça da Igreja; e ele o é para se entregar « a si mesmo por ela » (Ep 5,25) e se entregar a si mesmo por ela é dar até a própria vida. Mas, enquanto na relação Cristo-Igreja a submissão é só da parte da Igreja, na relação marido-mulher a « submissão » não é unilateral, mas recíproca!

Em relação ao « antigo » isto é evidentemente algo « novo »: é a novidade evangélica. Encontramos várias passagens em que os escritos apostólicos exprimem esta novidade, embora nelas se faça ouvir também aquilo que é « antigo », aquilo que ainda está arraigado na tradição religiosa de Israel, no seu modo de compreender e de explicar os textos sagrados como, por exemplo, a passagem de Gênesis (c. Gn 2). (49)

As Cartas apostólicas são dirigidas a pessoas que vivem num ambiente que tem o mesmo modo de pensar e de agir. A « novidade » de Cristo é um fato: ela constitui o conteúdo inequívoco da mensagem evangélica e é fruto da redenção. Ao mesmo tempo, porém, a consciência de que no matrimônio existe a recíproca « submissão dos cônjuges no temor de Cristo », e não só a da mulher ao marido, deve abrir caminho nos corações e nas consciências, no comportamento e nos costumes. Este é um apelo que não cessa de urgir, desde então, as gerações que se sucedem, um apelo que os homens devem acolher sempre de novo. O apóstolo escreveu não só: « Em Cristo Jesus ... não há homem nem mulher », mas também: « não há escravo nem livre ». E, contudo, quantas gerações tiveram que passar, até que esse princípio se realizasse na história da humanidade com a abolição do instituto da escravidão! E que dizer de tantas formas de escravidão, às quais estão sujeitos homens e povos, que ainda não desapareceram da cena da história?

O desafio, porém, do « ethos » da redenção é claro e definitivo. Todas as razões a favor da « submissão » da mulher ao homem no matrimônio devem ser interpretadas no sentido de uma « submissão recíproca » de ambos « no temor de Cristo ». A medida do verdadeiro amor esponsal encontra a sua fonte mais profunda em Cristo, que é o Esposo da Igreja, sua Esposa.


A dimensão simbólica do « grande mistério »

25 No texto da Carta aos Efésios encontramos uma segunda dimensão da analogia que, no seu conjunto, deve servir à revelação do « grande mistério »: a dimensão simbólica. Se o amor de Deus para com o homem, para com o povo escolhido, Israel, é apresentado pelos profetas como o amor do esposo pela esposa, tal analogia exprime a qualidade « esponsal » e o caráter divino e não humano do amor de Deus: « O teu esposo é o teu Criador ... que se chama Deus de toda a terra » (Is 54,5). O mesmo se diga também do amor esponsal de Cristo redentor: « Com efeito, Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito » (Jn 3,16). Trata-se, portanto, do amor de Deus expresso mediante a redenção, operada por Cristo. Segundo a Carta paulina, este amor é « semelhante » ao amor esponsal dos cônjuges humanos, mas naturalmente não é « igual ». A analogia, com efeito, implica conjuntamente uma semelhança e uma margem adequada de não-semelhança.

é fácil observá-lo, se tomarmos em consideração a figura da « esposa ». Segundo a Carta aos Efésios, a esposa é a Igreja, tal como para os profetas a esposa era Israel: portanto, é um sujeito coletivo, e não uma pessoa singular. Este sujeito coletivo é o Povo de Deus, ou seja, uma comunidade composta de muitas pessoas, tanto homens como mulheres. « Cristo amou a Igreja » precisamente como comunidade, como Povo de Deus e, ao mesmo tempo, nesta Igreja, que na mesma passagem é chamada também seu « corpo » (cf. Ep 5,23), ele amou cada pessoa singularmente. De fato, Cristo remiu todos, sem exceção, todos os homens e todas as mulheres. Na redenção exprime-se justamente este amor de Deus e realiza-se, na história do homem e do mundo, o caráter esponsal desse amor.

Cristo entrou na história e permanece nela como o Esposo que « se entregou a si mesmo ». « Entregar-se » significa « tornar-se um dom sincero », da maneira mais completa e radical: « Ninguém tem maior amor do que este » (Jn 15,13). Nesta concepção, por meio da Igreja, todos os seres humanos — tanto homens como mulheres — são chamados a ser a « Esposa » de Cristo, redentor do mundo. Assim, « ser esposa », portanto o « feminino », torna-se símbolo de todo o « humano », segundo as palavras de Paulo: « não há homem nem mulher: todos vós soisum só em Cristo Jesus » (Ga 3,28).

Do ponto de vista linguístico, pode-se dizer que a analogia do amor esponsal segundo a Carta aos Efésios reporta o que é « masculino » ao que é « feminino », dado que, como membros da Igreja, também os homens estão compreendidos no conceito de « Esposa ». E isto não pode causar admiração, pois o apóstolo, para exprimir a sua missão em Cristo e na Igreja, fala de « filhinhos por quem eu sofro as dores de parto » (cf. Ga 4,19). No âmbito daquilo que é « humano », daquilo que é humanamente pessoal, a « masculinidade » e a « feminilidade » se distinguem e, ao mesmo tempo, se completam e se explicam mutuamente. Isso está presente também na grande analogia da « Esposa » na Carta aos Efésios. Na Igreja, todo ser humano — homem e mulher — é a « Esposa », enquanto acolhe como dom o amor de Cristo redentor, e enquanto procura corresponder-lhe com o dom da própria pessoa.

Cristo é o Esposo. Nisto se exprime a verdade sobre o amor de Deus que « foi o primeiro a nos amar » (1Jn 4,19) e que com o dom gerado por este amor esponsal pelo homem superou todas as expectativas humanas: « amou até o fim » (Jn 13,1). O Esposo — o Filho consubstancial ao Pai enquanto Deus — tornou-se filho de Maria, « filho do homem », verdadeiro homem, do sexo masculino. O símbolo do Esposo é de gênero masculino. Neste símbolo masculino é representado o caráter humano do amor pelo qual Deus expressou o seu amor divino por Israel, pela Igreja, por todos os homens. Meditando no que os Evangelhos dizem sobre o comportamento de Cristo com as mulheres, podemos concluir que como homem, filho de Israel, ele revelou a dignidade das « filhas de Abraão » (cf. Lc 13,16), a dignidade possuída pela mulher desde o « princípio » em igualdade com o homem. E, ao mesmo tempo, Cristo colocouem evidência toda a originalidade que distingue a mulher do homem, toda a riqueza a ela conferida no mistério da criação. No comportamento de Cristo em relação à mulher realiza-se de maneira exemplar aquilo que o texto da Carta aos Efésios exprime com o conceito de « esposo ». Precisamente porque o amor divino de Cristo é amor de Esposo, esse amor é o paradigma e o exemplar de todo amor humano, particularmente do amor dos homens-varões.



A Eucaristia

26 Sobre o amplo horizonte do « grande mistério », que se exprime na relação esponsal entre Cristo e a Igreja, é possível também compreender de modo adequado o fato do chamamento dos « Doze ». Chamando só homens como seus apóstolos, Cristo agiu de maneira totalmente livre e soberana. Fez isto com a mesma liberdade com que, em todo o seu comportamento, pôs em destaque a dignidade e a vocação da mulher, sem se conformar ao costume dominante e à tradição sancionada também pela legislação do tempo. Por conseguinte, a hipótese segundo a qual ele teria chamado homens como apóstolos, seguindo a mentalidade difusa no seu tempo, não corresponde em absoluto ao modo de agir de Cristo. « Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus com verdade ... pois não fazes acepção de pessoas » (Mt 22,16). Estas palavras caracterizam plenamente o comportamento de Jesus de Nazaré. Nisto se pode encontrar também uma explicação para o chamamento dos « Doze ». Eles estão com Cristo durante a última Ceia; só eles recebem o mandato sacramental: « fazei isto em minha memória »(Lc 22,19 1Co 11,24), ligado à instituição da Eucaristia. Eles, na tarde do dia da Ressurreição, recebem o Espírito Santo para perdoar os pecados: « àqueles a quem perdoardes os pecados, ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficar-lhes-ão retidos » (Jn 20,23).

Encontramo-nos no próprio centro do Mistério pascal, que revela até o fundo o amor esponsal de Deus. Cristo é o Esposo porque « se entregou a si mesmo »: o seu corpo foi « dado », o seu sangue foi « derramado » (cf. Lc 22,19-20). Deste modo « amou até o fim » (Jn 13,1). O « dom sincero » atuado no sacrifício da Cruz ressalta de modo definitivo o sentido esponsal do amor de Deus. Cristo é o Esposo da Igreja, como redentor do mundo. A Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa. A Eucaristia torna presente e de modo sacramental realiza novamente o ato redentor de Cristo, que « cria » a Igreja, seu corpo. Com este « corpo » Cristo está unido como o esposo com a esposa. Tudo isto está presente na Carta aos Efésios. No « grande mistério » de Cristo e da Igreja é introduzida a perene « unidade dos dois », constituída desde o « princípio » entre o homem e a mulher.

Se Cristo, instituindo a Eucaristia, a ligou de modo tão explícito ao serviço sacerdotal dos apóstolos, é lícito pensar que dessa maneira ele queria exprimir a relação entre homem e mulher, entre o que é « feminino » e o que é « masculino », querida por Deus, tanto no mistério da criação como no da redenção. É na Eucaristia que, em primeiro lugar, se exprime de modo sacramental o ato redentor de Cristo Esposo em relação à Igreja Esposa. Isto se torna transparente e unívoco, quando o serviço sacramental da Eucaristia, no qual o sacerdote age «in persona Christi », é realizado pelo homem. É uma explicação que confirma o ensinamento da Declaração Inter insigniores, publicada por incumbência do Papa Paulo VI para responder à interrogação sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial. (50)

50. Cf. CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI, Declaratio Inter insigniores circa quaestionem admissionis mulierum ad sacerdotium ministeriale (15 Octobris 1976): AAS 69 (1977), 98-116.



O dom da Esposa

27 O Concílio Vaticano II renovou na Igreja a consciência da universalidade do sacerdócio. Na Nova Aliança há um só sacrifício e um só sacerdote: Cristo. Deste único sacerdócio participam todos os batizados, tanto homens como mulheres, enquanto devem « oferecer a si mesmos como vítima viva, santa, agradável a Deus » (cf. Rm 12,1), dar em toda parte testemunho de Cristo e, a quem pergunte, dar uma resposta acerca da esperança da vida eterna (cf. 1P 3,15). (51 - cf. LG 10) A participação universal no sacrifício de Cristo, no qual o Redentor ofereceu ao Pai o mundo inteiro e, particularmente, a humanidade, faz com que todos, na Igreja, sejam « um reino de sacerdotes » (Ap 5,10 cf. 1P 2,9), isto é, participem não só na missão sacerdotal, mas também na profética e real de Cristo Messias. Esta participação determina, outrossim, a união orgânica da Igreja, como Povo de Deus, com Cristo. Nela se exprime ao mesmo tempo o « grande mistério » da Carta aos Efésios: a Esposa unida ao seu Esposo, unida porque vive a sua vida; unida porque participa na sua tríplice missão (tria munera Christi); unida de maneira a responder com um « dom sincero de si mesma » ao dom inefável do amor do Esposo, redentor do mundo. Isto diz respeito a todos na Igreja, tanto a mulheres como a homens, e diz respeito obviamente também àqueles que são participantes no « sacerdócio ministerial », (52 - cf. LG 10) que possui o caráter de serviço. No âmbito do « grande mistério » de Cristo e da Igreja, todos são chamados a responder — como uma esposa — com o dom da sua vida ao dom inefável do amor de Cristo, o qual, como Redentor do mundo, é o único Esposo da Igreja. No « sacerdócio real », que é universal, exprime-se contemporaneamente o dom da Esposa.

Isso é de fundamental importância para compreender a Igreja na sua própria essência,fazendo com que se evite transferir à Igreja — também na sua qualidade de « instituição » composta de seres humanos e inserida na história — critérios de compreensão e de julgamento que não dizem respeito à sua natureza. Mesmo que a Igreja possua uma estrutura « hierárquica », (53 - cf. LG 18-29) esta, todavia, se ordena integralmente à santidade dos membros corpo místico de Cristo. E a santidade é medida segundo o « grande mistério », em que a Esposa responde com o dom do amor ao dom do Esposo, e o faz « no Espírito Santo », pois « o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado » (cf. Rm 5,5). O Concílio Vaticano II, confirmando o ensinamento de toda a tradição, recordou que, na hierarquia da santidade,precisamente a « mulher », Maria de Nazaré, é « figura » da Igreja. Ela « precede » todos no caminho rumo à santidade; na sua pessoa « a Igreja já atingiu a perfeição, pela qual existe sem mácula e sem ruga » (cf. Ep 5,27). (54) Neste sentido, pode-se dizer que a Igreja éconjuntamente « mariana » e « apostólico-petrina ». (55)

Na história da Igreja, desde os primeiros tempos existiam — ao lado dos homens — numerosas mulheres, para as quais a resposta da Esposa ao amor redentor do Esposo adquiria plena força expressiva. Como primeiras, vemos aquelas mulheres que pessoalmente tinham encontrado Cristo, tinham-no seguido e, depois da sua partida, juntamente com os apóstolos, « eram assíduas na oração » no cenáculo de Jerusalém até ao dia do Pentecostes. Naquele dia, o Espírito Santo falou por meio de « filhos e filhas » do Povo de Deus, cumprindo o anúncio do profeta Joel (cf. Ac 2,17). Aquelas mulheres, e a seguir outras mais, tiveram parte ativa e importante na vida da Igreja primitiva, na edificação desde os fundamentos da primeira comunidade cristã — e das comunidades que se seguiram — mediante os próprios carismas e o seu multiforme serviço. Os escritos apostólicos anotam os seus nomes, como Febe, « diaconisa da Igreja de Cêncreas » (cf. Rm 16,1), Prisca com o marido áquila (cf. 2Tm 4,19), Evódia e Síntique (Ph 4,2), Maria, Trifena, Perside, Trifosa (Rm 16,6 Rm 16,12). O apóstolo fala de suas « fadigas » por Cristo, e estas indicam os vários campos de serviço apostólico da Igreja, a começar pela « igreja doméstica ». Nesta, de fato, a « fé sincera » passa da mãe aos filhos e netos, como realmente se verificou na casa de Timóteo (cf. 2Tm 1,5).

O mesmo se repete no decorrer dos séculos, de geração em geração, como demonstra a história da Igreja. A Igreja, com efeito, defendendo a dignidade da mulher e a sua vocação, expressou honra e gratidão por aquelas que — fiéis ao Evangelho — em todo o tempo participaram na missão apostólica de todo o Povo de Deus. Trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de família, que corajosamente deram testemunho da sua fé e, educando os próprios filhos no espírito do Evangelho, transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja.

Em cada época e em cada país encontramos numerosas mulheres « perfeitas » (cf. Pr 31,10), que — não obstante perseguições, dificuldades e discriminações — participaram na missão da Igreja. Basta mencionar aqui Mônica, mãe de Agostinho, Macrina, Olga de Kiev, Matilde de Toscana, Edviges da Silésia e Edviges de Cracóvia, Elisabeth de Turíngia, Brígida da Suécia, Joana d'Arc, Rosa de Lima, Elisabeth Seaton e Mary Ward.

O testemunho e as obras de mulheres cristãs tiveram um influxo significativo na vida da Igreja, como também na da sociedade. Mesmo diante de graves discriminações sociais, as mulheres santas agiram de « modo livre », fortalecidas pela sua união com Cristo. Semelhante união e liberdade enraizadas em Deus explicam, por exemplo, a grande obra de Santa Catarina de Sena na vida da Igreja e de Santa Teresa de Jesus na vida monástica.

Também em nossos dias a Igreja não cessa de enriquecer-se com o testemunho das numerosas mulheres que realizam a sua vocação à santidade. As mulheres santas são uma personificação do ideal feminino, mas são também um modelo para todos os cristãos, um modelo de « sequela Christi », um exemplo de como a Esposa deve responder com amor ao amor do Esposo.

54. Cf. ibid., LG 65 cf. quoque LG 63; cf. Litt. Enc. Redemptoris Mater (25 Martii 1987), RMA 2-6: I. mem., 362-367
55. « Hic marianus aspectus est tantundem — si non magis — fundamentalis a«c praecipuus Ecclesiae quantum aspectus apostolicus et petrinus, cum quo arctissime coniungitur... mariana ratio Ecclesiae petrinam praecedit rationem, etiamsi sit cum ea penitus coniuncta et complementaris. Maria, Immaculata, omnem alium praecedit, et, ut patet, ipsum Petrum et apostolos: non solum quod Petrus et Apostoli, orti e multitudine humani generis quod nascitur sub peccato, membra sunt Ecclesiae, quae est "sancta ex peccatoribus", sed etiam quia triplex eorum munus ad nil aliud spectat quam ut efformet Ecclesiam ad illam perfectam formam sanctitatis, quae iam praeformata et praefigurata est in Maria. Sicut probe dixit quidam theologus nostrae aetatis: "Maria est 'regina Apostolorum' neque sibi apostolicas petivit potestates. Ipsa aliud et plus habet" (I. U. von BALTHSAB, Neue Klarstellungen)»: Allocutio ad Patres Cardinales Romanaeque Curiae Praelatos die 22 Dec. 1987 habita: AAS 80 (1988), pp. 1025-1034.


Mulieris dignitatem PT 21