Mater et Magistra PT 418


A REMUNERAÇÃO DO TRABALHO


Critérios de justiça e de eqüidade


n. 68
Amargura profunda invade o nosso espírito diante do espetáculo tristíssimo de inumeráveis trabalhadores em muitas nações e continentes inteiros, os quais recebem um salário que os submete, a eles e às famílias, a condições de vida infra-humanas. Isto deve-se também a estar nos seus primórdios, ou numa fase de insuficiente desenvolvimento, o processo da industrialização nessas nações e continentes.


n. 69
Mas, em alguns desses países, a abundância e o luxo desenfreado de uns poucos privilegiados contrasta, de maneira estridente e ofensiva, com as condições de mal-estar extremo da maioria; noutras nações obriga-se a atual geração a viver privações desumanas para o poder econômico nacional crescer segundo um ritmo de aceleração que ultrapassa os limites marcados pela justiça e pela humanidade; e noutras, parte notável do rendimento nacional consome-se em reforçar ou manter um mal-entendido prestígio nacional, ou gastam-se somas altíssimas nos armamentos.

419 n. 70
Além disso, nos países economicamente desenvolvidos, não é raro que para ofícios pouco absorventes ou de valor discutível se estabeleçam distribuições ingentes, enquanto que as correspondentes ao trabalho assíduo e profícuo de categorias inteiras de cidadãos honestos e operosos são demasiado reduzidas, insuficientes ou, pelo menos, desproporcionadas com a ajuda que eles prestam à comunidade, ou com o rendimento da respectiva empresa, ou com o rendimento total da economia da nação.


n. 71
Julgamos, pois, dever nosso armar uma vez mais que a retribuição do trabalho, assim como não pode ser inteiramente abandonada às leis do mercado, também não pode fixar-se arbitrariamente; há de estabelecer-se segundo a justiça e a eqüidade. É necessário que aos trabalhadores se dê um salário que lhes proporcione um nível de vida verdadeiramente humano e lhes permita enfrentar com dignidade as responsabilidades familiares. É preciso igualmente que, ao determinar-se a retribuição, se tenham em conta o concurso efetivo dos trabalhadores para a produção, as condições econômicas das empresas e as exigências do bem comum nacional. Considerem-se de modo especial as repercussões sobre o emprego global das forças de trabalho dentro do país inteiro, e ainda as exigências do bem comum universal, isto é, as que dizem respeito às comunidades internacionais, de natureza e extensão diversas.


n. 72
É claro que os critérios acima expostos valem sempre e em toda a parte. Contudo, não é possível determinar a medida em que devem aplicar-se, sem atender à riqueza disponível; esta pode variar e varia de fato, na quantidade e na qualidade, de nação para nação; e, mesmo dentro da mesma nação, de uma época para outra.

Ajustamento entre o progresso econômico e o progresso social


n. 73
Enquanto as economias dos vários países se desenvolvem rapidamente, com ritmo ainda mais intenso neste último após guerra, julgamos oportuno lembrar um princípio fundamental. O progresso social deve acompanhar e igualar o desenvolvimento econômico, de modo que todas as categorias sociais tenham parte nos produtos obtidos em maior quantidade. É preciso, pois, vigiar com atenção e trabalhar eficazmente para que os desequilíbrios econômicos e sociais não cresçam, antes, quanto possível, se vão atenuando.

420 n. 74
"A própria economia nacional - nota sabiamente o nosso predecessor Pio XII - assim como é fruto da atividade de homens que trabalham unidos na comunidade política, assim não tende senão a assegurar, sem interrupção, as condições materiais em que poderá desenvolver-se plenamente a vida individual dos cidadãos. Onde isto se conseguir, e de modo duradouro um povo será, de verdade, economicamente rico, porque o bem-estar geral, e, por conseguinte, o direito pessoal de todos ao uso dos bens terrenos encontra-se deste modo realizado conforme o plano estabelecido pelo Criador.(23) Dai segue-se que a riqueza econômica de um povo não depende só da abundância global dos bens, mas também, e mais ainda, da real e eficaz distribuição deles segundo a justiça, para tornar possível a melhoria do estado pessoal dos membros da sociedade: é este o fim verdadeiro da economia nacional.

23. Cf. AAS, 33(1941), p. 200.

n. 75
Não podemos deixar de aludir ao fato de que hoje, em muitas economias, as médias e grandes empresas conseguem com freqüência aumentar rápida e consideravelmente a capacidade produtiva por meio do autofinanciamento. Nestes casos, cremos poder afirmar que aos trabalhadores se deve reconhecer um título de crédito nas empresas em que trabalham, especialmente se ainda lhes toca uma retribuição não superior ao salário mínimo.


n. 76
A este propósito convém recordar o princípio exposto pelo nosso predecessor Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno: "É completamente falso atribuir só ao capital, ou só ao trabalho, aquilo que se obtém com a ação conjunta de um e de outro, e é também de todo injusto que um deles, negando a eficácia do contributo do outro, se arrogue somente a si tudo o que se realiza".(24)

24. Cf. AAS, 23 (1931), p.195.

n. 77
A essa exigência de justiça pode satisfazer-se de diversas maneiras que a experiência sugere. Uma delas, e das mais desejáveis, consiste em fazer que os trabalhadores possam chegar a participar na propriedade das empresas, da forma e no grau mais convenientes. Pois nos nossos dias, mais ainda que nos tempos do nosso predecessor,
421 "é necessário procurar com todo o empenho que, para o futuro, os capitais ganhos, não se acumulem nas mãos dos ricos senão na justa medida, e se distribuam com certa abundância entre os operários".(25)


25. Cf. ibid. p.198.

n. 78
Devemos ainda recordar que o equilíbrio entre a remuneração do trabalho e o rendimento deve conseguir-se em harmonia com as exigências do bem comum, tanto da comunidade nacional como de toda a família humana.


n. 79
Devem considerar-se exigências do bem comum no plano nacional: dar emprego ao maior número possível de trabalhadores; evitar que se constituam categorias privilegiadas, mesmo entre trabalhadores; manter uma justa proporção entre salários e preços; tornar acessíveis bens e serviços de interesse geral ao maior número de cidadãos; eliminar ou reduzir os desequilíbrios entre os setores da agricultura, da indústria e dos serviços; realizar o equilíbrio entre a expansão econômica e o desenvolvimento dos serviços públicos essenciais; adaptar, na medida do possível, as estruturas produtivas aos progressos das ciências e das técnicas; moderar o teor de vida já melhorado da geração presente, tendo a intenção de preparar um porvir melhor as gerações futuras.


n. 80
São exigências do bem comum no plano mundial: evitar qualquer forma de concorrência desleal entre as economias dos vários países; favorecer a colaboração entre as economias nacionais por meio de convênios eficazes; cooperar para o desenvolvimento econômico dos países menos prósperos.


n. 81
É claro que estas exigências do bem comum, nacional ou mundial, também se devem ter presentes quando se trata de fixar as partes de rendimento que se hão de entregar, sob forma de ganhos, aos responsáveis pela direção das empresas; e, sob forma de juros ou dividendos, aos que forneceram os capitais.



AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA QUANTO ÀS ESTRUTURAS PRODUTIVAS


Estruturas conforme à dignidade do homem

422 n. 82
A justiça há de respeitar-se, não só na distribuição da riqueza, mas também na estrutura das empresas em que se exerce a atividade produtiva. Na verdade, exige a natureza que os homens, no exercício da atividade produtiva, encontrem possibilidade de empenhar a própria responsabilidade e aperfeiçoar o próprio ser.


n. 83
Por isso, quando as estruturas, o funcionamento e o condicionalismo de um sistema econômico comprometem a dignidade humana dos que nele trabalham, entorpecem sistematicamente o sentido da responsabilidade ou impedem que a iniciativa pessoal se manifeste, tal sistema é injusto, mesmo se, por hipótese, a riqueza nele produzida alcança altos níveis e é distribuída segundo as regras da justiça e da eqüidade.

Confirmação de uma diretriz


n. 84
Não é possível determinar, em pormenor, quais as estruturas do sistema econômico que melhor correspondem à dignidade humana e mais eficazmente desenvolvem o sentido da responsabilidade. Contudo, o nosso predecessor Pio XII indica oportunamente esta diretriz: "A propriedade agrícola pequena e média, a artesanal e profissional, comercial e industrial, deve ser assegurada e promovida; as uniões cooperativistas devem garantir-lhes as vantagens próprias da grande exploração; e nas grandes explorações deve ficar aberta a possibilidade de suavisar o contrato de trabalho pelo contrato da sociedade".(26)

26. Radiomensagem de 1° de setembro de 1944; cf. AAS, 36(1944), p. 254.

Empresas artesanais e cooperativas de produção


n. 85
Devem-se conservar e promover, de harmonia com o bem comum e conforme as possibilidades técnicas, a empresa artesanal, a exploração agrícola familiar, e também a empresa cooperativista, como integração das duas precedentes.


n. 86
Mais adiante, voltaremos a falar da empresa agrícola familiar. Aqui, julgamos oportuno algumas observações acerca da empresa artesanal e das cooperativas.


n. 87
Antes de mais, é preciso notar que ambas as empresas, para conseguirem viver, devem adaptar-se constantemente nas estruturas, no funcionamento e nos tipos de produtos às situações sempre novas,
423 determinadas pelos progressos das ciências e das técnicas, e ainda pela variação nas exigências e preferências dos consumidores. Adaptação que tem de realizar, primeiro que todos, o artesanato e os sócios das cooperativas.


n. 88
Para este fim, é necessário que uns e outros possuam uma boa formação não só técnica mas também humana, e se encontrem organizados profissionalmente; e é também indispensável que se exerça uma política econômica apropriada, no que diz respeito sobretudo à instrução, ao regime fiscal, ao crédito e à previdência social.


n. 89
Por outro lado, a ação dos poderes públicos em favor do artesanato e dos sócios das cooperativas encontra-se também justificada pelo fato de representar categorias a que pertencem valores humanos genuínos e que contribuem para o progresso da civilização.


n. 90
Por estes motivos, convidamos, com amor paternal, os nossos caríssimos filhos, artífices e sócios das cooperativas, espalhados pelo mundo inteiro, a tomarem consciência da nobreza da sua profissão e da importância do que fazem para nas comunidades nacionais se manter o sentimento da responsabilidade e espírito de colaboração, e se conservar vivo o amor do trabalho perfeito e original.

Presença ativa dos trabalhadores nas médias e grandes empresas


n. 91
Seguindo na direção indicada pelos nossos predecessores também nós consideramos que é legítima nos trabalhadores a aspiração a participarem ativamente na vida das empresas, em que estão inseridos e trabalham. Não é possível determinar antecipadamente o modo e o grau dessa participação, dependendo eles do estado concreto que apresenta cada empresa. Esta situação pode variar de empresa para empresa, e, dentro de cada empresa, está sujeita a alterações muitas vezes rápidas e fundamentais. Julgamos contudo útil chamar a atenção para a continuidade da presença ativa dos trabalhadores, tanto na empresa particular como na pública; deve-se tender sempre para que a empresa se torne uma comunidade de pessoas, nas relações, nas funções e na situação de todo o seu pessoal.

424 n. 92
Ora, isto exige que as relações entre empresários e dirigentes, por um lado, e trabalhadores, por outro, sejam caracterizadas pelo respeito, pela estima e compreensão, pela colaboração leal e ativa, e pelo amor da obra comum; e que o trabalho seja considerado e vivido por todos os membros da empresa, não só como fonte de lucros, mas também como cumprimento de um dever e prestação de um serviço. O que supõe, também, poderem os trabalhadores fazer ouvir a sua voz e contribuir para o bom funcionamento e o progresso da empresa. Observava o nosso predecessor Pio XII: "A função econômica e social, que todo o homem aspira a desempenhar, exige que a atividade de cada um não se encontre submetida totalmente à vontade alheia".(27) Uma concepção humana da empresa deve, sem dúvida, salvaguardar a autoridade e a eficiência necessária da unidade de direção; mas não pode reduzir os colaboradores de todos os dias à condição de simples e silenciosos executores, sem qualquer possibilidade de fazerem valer a própria experiência, completamente passivos quanto às decisões que os dirigem.

27. Alocução de 8 de outubro de 1956; cf. AAS, 48(1956), pp. 999-800.

n. 93
É de notar, por último, que o exercício da responsabilidade, por parte dos empregados nos organismos produtivos, não só corresponde às exigências legítimas, próprias da natureza humana, mas está também em harmonia com o progresso histórico em matéria econômica, social e política.


n. 94
Infelizmente, como já indicamos e veremos ainda mais extensamente, não são poucos os desequilíbrios econômicos e sociais que ofendem hoje a justiça e a humanidade; e erros gravíssimos ameaçam as atividades, os fins, as estruturas e o funcionamento do mundo econômico. Apesar disso, não se pode negar que os regimes econômicos, sob o impulso do progresso científico e técnico, se vão hoje modernizando e tornando mais eficientes, a um ritmo muito mais rápido que antigamente. Isto exige dos trabalhadores aptidões e habilitações profissionais mais elevadas. Ao mesmo tempo e como conseqüência, encontram eles a sua disposição maior número de meios e mais extensas margens de tempo, para se instruírem e atualizarem e para aperfeiçoarem a própria cultura e a formação moral e religiosa.

425 n. 95
Torna-se também possível aumentar os anos destinados à educação de base e à formação profissional das novas gerações.


n. 96
Vai-se deste modo criando um ambiente humano que favorece a possibilidade de as classes trabalhadoras assumirem maiores responsabilidades mesmo dentro das empresas; e as nações têm cada vez maior interesse em que todos os cidadãos se considerem responsáveis pela realização do bem comum, em todos os setores da vida social.


Presença dos trabalhadores em todos os níveis

n. 97
Na época moderna, aumentou notavelmente o movimento associativo dos trabalhadores; e foi reconhecido em geral nas disposições jurídicas dos estados e até no plano internacional, especialmente como instrumento de colaboração prestada sobretudo por meio do contrato coletivo. Não podemos, todavia, deixar de notar como é útil ou até necessário, que a voz dos trabalhadores tenha possibilidade de se fazer ouvir e atender, fora mesmo de cada organismo produtivo, e isto em todos os níveis.


n. 98
A razão está em que os organismos produtivos, por mais extensas que sejam as suas dimensões e maior e mais profunda a sua eficiência, são órgãos vitais na estruturação econômica e social das respectivas nações e estão condicionados por ela.


n. 99
Todavia, as resoluções, que mais influem no conjunto, não são tomadas pelo organismo produtivo, mas sim pelos poderes públicos ou por instituições de alcance mundial, regional ou nacional, pertencentes à economia ou à produção. Daqui a oportunidade, ou mesmo necessidade, de fazerem parte desses poderes ou instituições, além dos que fornecem os capitais ou dos seus representantes, também os trabalhadores ou quem lhes representa os direitos, exigências e aspirações.


n. 100
O nosso pensamento afetuoso e o nosso paternal estímulo dirigem-se para as associações profissionais e os movimentos sindicais de inspiração cristã, presentes e ativos em vários continentes.
426 Apesar de muitas dificuldades, por vezes bem sérias, eles têm sabido trabalhar e continuam a fazê-lo, a favor dos interesses dos trabalhadores e da sua elevação material e moral, tanto no interior de cada país como no plano mundial.


n. 101
É com satisfação que julgamos dever nosso fazer notar que o seu trabalho não há de ser medido apenas pelos resultados diretos e imediatos, que se encontram à vista; mas também pelas repercussões positivas sobre todo o mundo do trabalho, onde difunde idéias bem orientadas e exerce um influxo cristãmente renovador.


n. 102
Digno de estima é igualmente o influxo que os nossos amados filhos exercem, com espírito cristão, nas outras associações profissionais e sindicais, inspiradas nos princípios naturais da convivência e respeitadoras da liberdade de consciência.


n. 103
Apraz-nos expressar a nossa estima sincera pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Há dezenas de anos que ela vai contribuindo, de maneira eficaz e preciosa, para implantar no mundo uma ordem econômica e social baseada na justiça e na humanidade, ordem que exprime também as legítimas reivindicações dos tratalhadores.



A PROPRIEDADE PRIVADA


Situação nova


n. 104
Nestes últimos decênios, como é do conhecimento geral, nos maiores organismos econômicos foi acentuando-se cada vez mais a separação entre a propriedade dos bens produtivos e as responsabilidades na direção. Sabemos que nasceram daqui problemas difíceis de controle para os poderes públicos, tendo eles de conseguir que os objetivos pretendidos pelos dirigentes de grandes organizações, sobretudo daqueles que têm maior influência em toda a vida econômica de um país, não se oponham às exigências do bem comum. Esses problemas, como prova a experiência, surgem, tanto se os capitais das grandes empresas são de propriedade privada como se pertencem a entidades públicas.

427 n. 105
É verdade que hoje já há um bom número de cidadãos, e cada dia vão sendo mais, que, dados em organismos de seguros ou de previdência social, olham com serenidade para o futuro: serenidade que, em outros tempos, se fundava sobre a posse de patrimônios, embora fossem modestos.


n. 106
Por último, observe-se que nos nossos dias o homem aspira mais a conseguir habilitações profïssionais do que tornar-se proprietário de bens; e tem maior confiança nos recursos que provém do trabalho ou no direito baseado no mesmo, do que em rendimentos vindos do capital ou em direitos nele fundados.


n. 107
Isso encontra-se, aliás, em harmonia com a nobreza do trabalho como afirmação imediata da pessoa diante do capital, que é, por sua natureza, instrumento. Esta mudança de mentalidade há de considerar-se, portanto, um progresso na civilização humana.


n. 108
Os aspectos indicados do mundo econômico, têm contribuído para espalhar a dúvida sobre se deixou de ter valor hoje, ou perdeu importância, um princípio de ordem econômica e social constantemente ensinado e propugnado pelos nossos predecessores, o qual diz ser de direito natural a propriedade privada, mesmo tratando-se de bens produtivos.


Reafirmação do direito de propriedade

n. 109
Essa dúvida não tem razão de ser. O direito de propriedade privada, mesmo sobre bens produtivos, tem valor permanente, pela simples razão de ser um direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e finalista de cada ser humano em relação à sociedade. Seria, aliás, inútil insistir na livre iniciativa pessoal em campo econômico se a essa iniciativa não fosse permitido dispor livremente dos meios indispensáveis para se afirmar. Além disso, a história e a experiência provam que, nos regimes políticos que não reconhecem o direito de propriedade privada sobre os bens produtivos, são oprimidas ou sufocadas as expressões fundamentais da liberdade; é legítimo, portanto, concluir que estas encontram naquele direito garantia e incentivo.


n. 110
Assim se explica como certos movimentos sociais e políticos que se propõem conciliar na vida social a justiça com a liberdade e que eram, até há pouco, claramente opostos ao direito de propriedade privada dos bens de produção, hoje, melhor informados da realidade, revêem a própria posição e tomam uma atitude substancialmente favorável a esse direito.

428 n. 111
Fazemos nossas, nesta matéria, as observações do nosso predecessor Pio XII: "Quando a Igreja defende o princípio da propriedade privada, tem em vista um alto fim ético e social. Não quer dizer que ela pretenda conservar pura e simplesmente o estado presente das coisas, como se nele visse a expressão da vontade divina, nem proteger por princípio o rico e o plutocrata, contra o pobre e o proletário... A Igreja pretende conseguir que a instituição da propriedade privada venha a ser o que deve, conforme o desígnio da Sabedoria Divina e as disposições da natureza".(28) Quer dizer, pretende que a propriedade privada seja garantia da liberdade essencial da pessoa humana e elemento insubstituível da ordem social.

28. Radiomensagem de 1° de setembro de 1944; cf. AAS, 36(1944), p. 253.

n. 112
Observamos também que hoje as economias, em muitos países, vão aumentando rapidamente a própria eficiência produtiva. Mas, crescendo o rendimento, exigem a justiça e a eqüidade, como já se viu, que seja também elevada a remuneração do trabalho, dentro dos limites consentidos pelo bem comum. Isto dará aos trabalhadores maior facilidade de poupar e constituir um patrimônio. Não se compreende, portanto, como se pode contestar o caráter natural de um direito que encontra a sua principal fonte e o seu alimento perpétuo na fecundidade do trabalho; que constitui um meio apropriado para a afirmação da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade em todos os campos; e que é elemento de estabilidade serena para a família, e de pacífico e ordenado progresso na convivência social.


Difusão efetiva

n. 113
Não basta afirmar que o caráter natural do direito de propriedade privada se aplica também aos bens produtivos; é necessário ainda insistir para que ela se difunda efetivamente entre todas as classes sociais.


n. 114
Como afirma o nosso predecessor Pio XII, a dignidade da pessoa humana "exige normalmente, como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada, na medida do possível a todos" (29) e, por outro lado, entre as exigências que derivam da nobreza moral do trabalho, encontra-se também "a da conservação e do aperfeiçoamento de uma ordem social que torne possível e assegure a todas as classes do povo a propriedade privada, embora seja modesta".(30)

29. Radiomensagem de 24 de dezembro de 1942, cf. AAS, 35(1943), p.17.
30. Cf. ibid. p. 20.

429 n. 115
Ainda mais se deve urgir a difusão da propriedade num tempo como o nosso, em que, como já se indicou, mais numerosos são os países que desenvolvem rapidamente os próprios sistemas econômicos. Por isso, utilizando os vários recursos técnicos de eficiência comprovada, não é difícil promover iniciativas e exercer uma política econômica e social que mente e facilite difusão mais extensa da propriedade particular dos bens de consumo duráveis, da habitação, das terras, das ferramentas dos artífices e alfaias da casa agrícola e de ações nas médias e grandes empresas. Alguns países, economicamente prósperos e socialmente avançados, já o estão experimentando com feliz resultado.


Propriedade pública

n. 116
O que fica dito não exclui, como é óbvio, que também o Estado e outras entidades públicas possam legitimamente possuir, em propriedade, bens produtivos, especialmente quando "eles chegam a conferir tal poder econômico, que não é possível deixá-lo nas mãos de pessoas privadas sem perigo do bem comum".(31) A época moderna tende para a expansão da propriedade pública: do Estado e de outras coletividades. O fato explica-se pelas funções, cada vez mais extensas, que o bem comum exige dos poderes públicos. Mas, também nesta matéria, deve aplicar-se o princípio da subsidiariedade, acima enunciado. Assim, o Estado, e, como ele, as outras entidades de direito público, não devem aumentar a sua propriedade senão na medida em que verdadeiramente o exijam motivos evidentes do bem comum, e não apenas com o fim de reduzir, e menos ainda eliminar, a propriedade privada.

31. Carta Encíclica Quadragesimo Anno: AAS, 23(1931), p. 214.

430 n. 117
Nem se pode esquecer que as iniciativas econômicas do Estado, e das outras entidades de direito público, devem confiar-se a pessoas que juntem à competência provada, a honestidade reconhecida e um vivo sentimento de responsabilidade para com o país. Além disso, a atividade que exercem deve estar sujeita a uma vigilância atenta e constante, mesmo para evitar que, dentro da própria organização do Estado se formem núcleos de poder econômico, com prejuízo do bem da comunidade, que é a sua razão de ser.


Função social

n. 118
Outro ponto de doutrina, proposto constantemente pelos nossos predecessores, é que o direito de propriedade privada sobre os bens, possui intrinsecamente uma função social. No plano da criação, os bens da terra são primordialmente destinados à subsistência digna de todos os seres humanos, como ensina sabiamente o nosso predecessor Leão XIII na encíclica Rerum Novarum: "Quem recebeu da liberalidade divina maior abundância de bens, ou externos e corporais ou espirituais, recebeu-os para os fazer servir ao aperfeiçoamento próprio, e simultaneamente, como ministro da Divina Providência, à utilidade dos outros: 'quem tiver talento, trate de não o esconder; quem tiver abundância de riquezas, não seja avaro no exercício da misericórdia; quem souber um ofício para viver, faça participar o seu próximo da utilidade e proveito do mesmo'".(32)

32. Acta Leonis XIII,11(1891), p.114; EE 3.

n. 119
Hoje, tanto o Estado como as entidades de direito público vão estendendo continuamente o campo da sua presença e iniciativa. Mas nem por isso desapareceu, como alguns erroneamente tendem a pensar, a função social da propriedade privada: esta deriva da natureza mesma do direito de propriedade. Há sempre numerosas situações dolorosas e indigências delicadas e agudas, que a assistência pública não pode contemplar nem remediar. Por isso, continua sempre aberto um vasto campo à sensibilidade humana e à caridade cristã dos indivíduos. Observe-se por último que, para desenvolver os valores espirituais, são muitas vezes mais fecundas as múltiplas iniciativas dos particulares ou dos grupos, que a ação dos poderes públicos.

431 n. 120
Apraz-nos aqui recordar como o Evangelho considera legítimo o direito de propriedade privada. Ao mesmo tempo, porém, o Divino Mestre dirige freqüentemente convites instantes aos ricos para que transformem os seus bens materiais em bens espirituais, repartindo-os com os necessitados: bens que o ladrão não rouba, nem a traça ou a ferrugem destroem, e que se encontrarão aumentados nos celeiros eternos do Pai do Céu: "Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde nem a traça, nem o caruncho corroem, e onde os ladrões não arrombam nem roubam" (
Mt 6,19-20). E o Senhor considerará dada ou negada a si mesmo a esmola dada ou negada aos indigentes: "Todas as vezes que fizestes (estas coisas) a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim as fizestes" (Mt 25,40).



TERCEIRA PARTE


NOVOS ASPECTOS DA QUESTÃO SOCIAL


n. 121O avanço da história faz ressaltar cada vez mais as exigências da justiça e da eqüidade que não intervêm apenas nas relações entre operários e empresas ou direção destas, mas dizem também respeito às relações entre os diversos setores econômicos, entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas economicamente menos desenvolvidas dentro da economia nacional, e, no plano, mundial, às relações entre países desigualmente desenvolvidos em matéria econômica e social.



EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA QUANTO ÀS RELAÇÕES ENTRE OS SETORES PRODUTIVOS


A agricultura, setor subdesenvolvido

n. 122
Não parece que a população rural do mundo, considerada em toda a sua extensão, tenha diminuído, em números absolutos. Apesar disso, é incontestável que se dá um êxodo das populações rurais em direção aos centros urbanos. É um fato que se verifica em quase todos os países e algumas vezes atinge proporções enormes e cria problemas humanos complexos, difíceis de resolver.


n. 123
Sabemos que, à medida que uma economia progride, diminui a mão de obra empregada na agricultura, aumenta a percentagem dos que trabalham na indústria e nos vários serviços.

432 Pensamos, contudo, que o êxodo da população, do setor agrícola para outros setores produtivos, não é provocado somente pelo progresso econômico. Deve-se a múltiplas outras razões, como a vontade de fugir de um ambiente considerado fechado e sem futuro; a sede de novidades e aventuras, que domina a geração presente; a esperança de enriquecimento rápido; a miragem de uma vida mais livre, com os meios e facilidades que oferecem os aglomerados urbanos. Mas julgamos que não se pode duvidar de que este êxodo é também provocado pelo fato de ser o setor agrícola, quase em toda a parte, um setor deprimido, tanto no que diz respeito ao índice de produtividade da mão-de-obra, como pelo que se refere ao nível de vida das populações rurais.


n. 124
Daí um problema de fundo, que se apresenta a quase todos os Estados: como reduzir o desequilíbrio da produtividade entre o setor agrícola, por um lado, e o setor industrial e os vários serviços, pelo outro? Isto, para o nível de vida da população rural se distanciar o menos possível do nível de vida dos que trabalham na indústria e nos serviços; para os agricultores não sofrerem um complexo de inferioridade, antes, pelo contrário, se persuadirem de que, também no meio rural, podem afirmar e aperfeiçoar a sua personalidade pelo trabalho, e olhar confiados para o futuro.


n. 125
Parece-nos, por isso, oportuno indicar algumas diretrizes suscetíveis de contribuírem para resolver o problema. Valem, pensamos nós, qualquer que seja o ambiente histórico; contanto que sejam aplicadas, como é óbvio, da maneira e na medida que o ambiente permitir.

Adaptação dos serviços essenciais


n. 126
Primeiramente, é indispensável que exista o empenho, sobretudo por parte dos poderes públicos, em que, nos ambientes agrícolas, se desenvolvam, como convém, os serviços essenciais: estradas, transportes, comunicações, água potável, alojamento, assistência sanitária, instrução elementar, formação técnica e profissional, boas condições para a vida religiosa, meios recreativos, e tudo o que requer a casa rural em mobiliário e modernização.
433 Se faltarem nos meios rurais estes serviços, que hoje são elementos constitutivos de um nível de vida digno, o desenvolvimento econômico e o progresso social vêm a tornar-se quase impossíveis ou demasiado lentos. Donde resulta que o êxodo da população rural se torna praticamente inevitável e dificilmente se consegue discipliná-lo.

Desenvolvimento gradual e harmonioso do sistema econômico


n. 127
É necessário também que o desenvolvimento econômico da nação se realize de modo gradual e harmônico entre todos os setores produtivos. Quer dizer, é preciso que no setor agrícola se realizem as transformações que dizem respeito às técnicas da produção, à escolha das culturas e à estruturação das empresas, conforme as permitir ou exigir a vida econômica no seu conjunto; de maneira que se atinja, logo que seja possível, um nível de vida conveniente, comparado com o setor da indústria e dos vários serviços.


n. 128
A agricultura chegará assim a absorver maior quantidade de bens industriais e a requerer serviços mais qualificados. Por sua vez, oferecerá aos outros dois setores e à comunidade inteira produtos que melhor correspondam, em quantidade e qualidade, às exigências do consumo; e contribuirá para a estabilização da moeda, elemento positivo para o progresso ordenado do sistema econômico total.


n. 129
Deste modo, julgamos que se tornaria menos difícil regulamentar, tanto nas regiões donde parte como naquelas a que se dirige o movimento da mão-de-obra, libertada pela modernização progressiva da agricultura; e seria possível dar-lhe a formação profissional requerida para a sua proveitosa inserção nos outros setores produtivos, bem como ajuda econômica e a preparação e assistência espiritual, necessárias à sua integração na sociedade.

Política econômica apropriada


n. 130
Para se obter progresso econômico harmonioso entre todos os setores produtivos, requer-se uma política econômica hábil no campo agrícola
434
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