Mater et Magistra PT 434

434 no que se refere ao regime fiscal, ao crédito, à previdência social, à defesa dos preços, ao fomento de indústrias complementares e à modernização dos estabelecimentos.

Regime fiscal


n. 131
A distribuição dos encargos segundo a capacidade contributiva dos cidadãos é princípio fundamental de um sistema tributário justo e eqüitativo.


n. 132
Mas corresponde também a uma exigência do bem comum ter presente, na distribuição tributária, que os lucros se obtêm com maior lentidão no setor agrícola e estão expostos a maiores riscos, havendo, além disso, maiores dificuldades para obter os capitais indispensáveis.


Capitais a juros convenientes

n. 133
Pelas razões acima indicadas, os possuidores de capitais são pouco inclinados a investimentos neste setor, tendendo mais a investi-los noutros domínios. Assim, acontece que a agricultura não pode pagar juros elevados; e ordinariamente nem sequer os juros habituais, para encontrar os capitais necessários ao seu desenvolvimento e ao exercício normal das suas atividades. Por conseguinte, exige o bem comum que se aplique à agricultura uma política especial de crédito que assegure aos lavradores esses capitais a uma taxa razoável de juros.


Seguros sociais e previdência social

n. 134
Na agricultura pode ser indispensável estabelecer dois sistemas diferentes de seguros: um, para os produtos agrícolas; e outro, para os agricultores e suas famílias. Pelo simples fato de o rendimento agrícola pro capite ser geralmente inferior ao dos setores da indústria e dos serviços públicos, não seria conforme à justiça social e à eqüidade estabelecer sistemas e seguros sociais ou de previdência social em que os lavradores e respectivas famílias se vissem notavelmente menos bem tratados que os setores da indústria e dos serviços. Julgamos, porém, que a política social deve ter como objetivo proporcionar aos cidadãos um regime de seguro que não apresente diferenças notáveis, qualquer que seja o setor econômico em que trabalham ou de cujos rendimentos vivem.


n. 135
Os sistemas de seguros sociais e de previdência social podem contribuir eficazmente para uma distribuição do rendimento total de um país, segundo critérios de justiça e de eqüidade; e podem, portanto, considerar-se como instrumento para reduzir os desequilíbrios dos níveis de vida entre as várias categorias de cidadãos.

Defesa dos preços

435 n. 136
Dada à natureza dos produtos agrícolas, é necessário aplicar-lhes uma disciplina eficaz na defesa dos preços, utilizando para tal fim os diversos recursos que hoje pode fornecer a técnica econômica. Seria muito desejável que esta disciplina fosse sobretudo obra das pessoas interessadas; não pode porém dispensar-se a ação reguladora dos poderes públicos.


n. 137
Nem se esqueça, nesta matéria, que o preço dos produtos agrícolas constitui freqüentemente mais retribuição do trabalho que remuneração do capital.


n. 138O papa Pio XI, na encíclica Quadragesimo Anno, observa judiciosamente que para a realização do bem comum "contribui a justa proporção entre os salários"; mas acrescenta, logo a seguir: "Com ela está intimamente relacionada a proporção razoável entre os preços por que se vendem os produtos dos ramos diversos da atividade econômica, como são a agricultura, a indústria e outros semelhantes".(33)


n. 139Verdade é que os produtos agrícolas estão destinados a prover antes de tudo às necessidades humanas primárias; por isso, devem os preços ser tais, que os tornem acessíveis a todos os consumidores. Todavia, é claro que não pode aduzir-se este motivo para forçar uma categoria inteira de cidadãos a permanecer num estado de inferioridade econômica e social, privando-a de um poder de compra, indispensável a um nível de vida digno; o que seria evidentemente contrário ao bem comum.

33. Cf. AAS, 23(1931), p. 202; EE 5/657.


Complemento dos rendimentos agrícolas


n. 140
Convém promover, nas zonas agrícolas, as indústrias e os serviços de armazenagem, transformação e transporte dos produtos dos campos. É também para desejar que nessas zonas se levem a efeito iniciativas referentes aos outros setores econômicos e às outras atividades profissionais. Deste modo, oferece-se às famílias dos agricultores a possibilidade de completarem os ganhos nos mesmos ambientes em que vivem e trabalham.

Adaptação estrutural da empresa agrícola

436 n. 141
Não é possível estabelecer a priori qual a estrutura que mais convém à empresa agrícola, dada a variedade dos meios rurais no interior de cada país e, mais ainda, entre os diversos países do mundo. Contudo, quando se tem um conceito humano e cristão do homem e da família, não se pode deixar de considerar como ideal a empresa que funciona como comunidade de pessoas. Desse modo as relações, entre os seus membros e estruturas, correspondem às normas de justiça e ao espírito que já indicamos. De modo particular, deve considerar-se como ideal a empresa de dimensões familiares. Nem se pode deixar de trabalhar para que uma e outra cheguem a ser realidade, de acordo com as condições ambientais.


n. 142
É oportuno, aliás, insistir em que a empresa de dimensões familiares será viável somente se dela puder obter-se um nível de vida digno para a família. Para isso, torna-se indispensável que os cultivadores sejam instruídos, modernizados continuamente e assistidos na técnica da sua profissão. É também indispensável que eles estabeleçam ampla rede de instituições cooperativistas, estejam profissionalmente organizados, e tomem parte ativa na vida pública, tanto nos organismos administrativos como nos movimentos políticos.

Os agricultores, protagonistas da própria elevação


n. 143
Estamos convencidos que os protagonistas do progresso econômico e social e da elevação cultural nos meios rurais devem ser os mesmos interessados, quer dizer, os lavradores. Podem facilmente convencer-se de quanto é nobre o seu trabalho: vivem no templo majestoso da criação; estão em relações freqüentes com a vida animal e vegetal, inesgotável nas expressões e inflexível nas leis, a qual lembra constantemente a Providência do Criador; das suas mãos, por assim dizer, brotam, em toda a sua variedade, os alimentos que sustentam a família humana; e com elas proporcionam à indústria um número cada vez maior de matérias-primas.


n. 144
Esse trabalho manifesta igualmente a dignidade dos que o realizam e distingue-se pela riqueza dos conhecimentos de mecânica, química e biologia que exige;
437 conhecimentos que devem atualizar-se constantemente, tantas são as repercussões dos progressos técnicos e científicos no setor agrícola. E, imalmente, um trabalho caracterizado pelos aspectos e valores morais que lhe são próprios, pois exige agilidade na orientação e adaptação, paciência na espera, sentido da responsabilidade, espírito perseverante e empreendedor.

Solidariedade e colaboração

n. 145
Repare-se ainda que, no setor agrícola, como aliás em qualquer outro setor produtivo, a associação é atualmente uma exigência vital; e muito mais, quando o setor se baseia na empresa familiar. Os trabalhadores da terra devem sentir-se solidários uns dos outros, e colaborar na criação de iniciativas cooperativistas e associações profissionais ou sindicais. Umas e outras são necessárias para tirar proveito dos progressos científicos e técnicos na produção, contribuir eficazmente para a defesa dos preços, e chegar a um plano de igualdade com as profissões, ordinariamente organizadas dos outros setores produtivos; e para que a agricultura consiga fazer-se ouvir no campo político e junto dos órgãos da administração pública. Porque hoje as vozes isoladas quase não têm possibilidade de chamarem sobre si as atenções, e muito menos de se fazerem atender.


Sensibilidade às exigências do bem comum

n. 146
Contudo, os lavradores, como aliás os trabalhadores de qualquer outro setor produtivo, ao utilizarem as suas multiformes organizações, devem conservar-se dentro da ordem moral e jurídica; quer dizer, devem conciliar os seus direitos e interesses com os das outras profissões e subordinar uns e outros às exigências do bem comum. Os agricultores, ao trabalharem pela melhoria e elevação do mundo rural, podem legitimamente pedir que o seu trabalho seja ajudado e completado pelos poderes públicos, contanto que eles mesmos mostrem atender às exigências do bem comum e contribuam para as satisfazer.

n. 147
É-nos grato expressar aqui o nossa complacência àqueles alhos nossos que nas diversas partes do mundo se ocupam em organizações cooperativistas, profissionais e sindicais, tendentes à promoção econômica e social de todos os cultivadores da terra.


Vocação e missão

438 n. 148
O homem encontra no trabalho agrícola mil incentivos para se afirmar, progredir e enriquecer, mesmo na esfera dos valores do espírito. É, portanto, um trabalho que se deve considerar e viver como vocação e missão; isto é, como resposta ao convite recebido de Deus para colaborar na realização do seu plano providêncial na história, como compromisso tomado de se elevar cada um a si e elevar os outros, e ainda como auxilio para a civilização humana.


Nivelamento e promoção nas zonas subdesenvolvidas

n. 149
Não é raro que, entre cidadãos do mesmo país, haja desigualdades econômicas e sociais pronunciadas. Isso deve-se principalmente a viverem e trabalharem uns em zonas economicamente desenvolvidas e outros em zonas atrasadas. A justiça e a eqüidade exigem que os poderes públicos se empenhem em eliminar ou diminuir essas desigualdades. Para isso, deve procurar-se que, nas zonas menos desenvolvidas, sejam garantidos os serviços públicos essenciais segundo as formas e os graus sugeridos ou reclamados pelo meio e correspondentes, em princípio, ao padrão de vida médio, vigente no país. Mas não se requer menos uma política econômica e social adequada, principalmente quanto à oferta de trabalho, às migrações da população, aos salários, aos impostos, ao crédito, aos investimentos, atendendo de modo particular às indústrias de caráter propulsivo: política capaz de promover a absorção e o emprego remunerador da mão-de-obra, de estimular o espírito empreendedor e de aproveitar os recursos locais.


n. 150
Contudo, a ação dos poderes públicos há de encontrar sempre justificação em motivos de bem comum. Deve, portanto, exercer-se num plano de conjunto para toda a nação, com o intento constante de contribuir para o progresso gradual, simultâneo e proporcionado, dos três setores produtivos: agricultura, indústria e serviços; e procurar que os cidadãos das zonas menos desenvolvidas se sintam e sejam deveras, na medida do possível, os responsáveis e os realizadores da sua elevação econômica.

439 n. 151
Recordemos, finalmente, que também a iniciativa particular deve contribuir para estabelecer o equilíbrio econômico e social entre as diferentes zonas de nação. Mais ainda, os poderes públicos, em virtude do princípio de subsidiariedade, devem favorecer e ajudar a iniciativa privada, comando-lhe, onde e logo que seja possível de maneira eficiente, a continuação do desenvolvimento econômico.


Eliminar ou diminuir a desproporção entre terra e povoamento

n. 152
Convém observar que, em não poucas nações se verificam flagrantes desigualdades entre território e população. Efetivamente, numas há escassez de homens e abundância de terras aproveitáveis; ao passo que em outras são numerosos os homens e escasseia a terra cultivável.


n. 153
Há também naçôes, em que, apesar das riquezas em estado potêncial, a condição ainda primitiva da agricultura não permite produzir bens suficientes para as necessidades elementares das populações, enquanto, noutros países, o alto grau de modernização alcançado pela lavoura determina uma superprodução de bens agrícolas com reflexos negativos sobre as respectivas economias nacionais.


n. 154
É óbvio que a solidariedade humana e a fraternidade cristã pedem que sejam estabelecidas, entre os povos, relações de colaboração ativa e multiforme, que permita e favoreça o movimento de bens, capitais e homens, com o fim de eliminar ou diminuir as desigualdades apontadas. Mas deste ponto falaremos a seguir mais pormenorizadamente.


n. 155
Queremos contudo manifestar desde já a nossa sincera estima pela obra eminentemente benéfica que vem realizando a Organização das Nações Unidas a favor da alimentação e da agricultura (FAO), fomentando relações fecundas entre os povos, promovendo a modernização das culturas sobretudo nas nações em vias de desenvolvimento, aliviando o mal-estar das populações subalimentadas.



EXIGÊNCIAS DE JUSTIÇA NAS RELAÇÕES ENTRE PAÍSES DE DIFERENTE PROGRESSO ECONÔMICO


O problema da época moderna

440 n. 156
O maior problema da época moderna talvez seja o das relações entre as comunidades políticas economicamente desenvolvidas e as que se encontram em vias de desenvolvimento econômico; as primeiras, por conseguinte, com alto nível de vida, as outras, em condições de escassez ou de miséria. A solidariedade, que une todos os seres humanos e os torna membros de uma só família, impõe aos países, que dispõem com exuberância de meios de subsistência, o dever de não permanecerem indiferentes diante das comunidades políticas cujos membros lutam contra as dificuldades da indigência, da miséria e da fome, e não gozam dos direitos elementares da pessoa humana. Tanto mais que, dada a interdependência cada vez maior entre os povos, não é possível que entre eles reine uma paz durável e fecunda, se o desnível das condições econômicas e sociais for excessivo.


n. 157
Consciente da nossa paternidade universal, nós sentimos o dever de inculcar, em forma solene, quanto noutra ocasião já afirmamos: "Todos somos solidariamente responsáveis pelas populações subalimentadas...".(34) (Por isso) "é necessário educar as consciências no sentimento da responsabilidade que pesa sobre todos e cada um, particularmente sobre os mais favorecidos",(35)


n. 158
É bem claro que o dever, sempre proclamado pela Igreja, de ajudar quem se debate com a indigência e a miséria, devem-no sentir mais intensamente os católicos, pelo motivo nobilíssimo de serem membros do corpo místico de Cristo. O Apóstolo São João proclama: "Nisto conhecemos o Amor: ele deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos. Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus?" (
1Jn 3,16-17).


n. 159
Vemos, pois, com agrado, que as nações dotadas de sistemas econômicos altamente produtivos prestam ajuda às comunidades políticas em fase de progresso econômico, para que estas cheguem, com menor dificuldade, a melhorar as próprias condições de vida.

34. Alocução de 3 de maio de 1960. AAS, 52(1960), p. 465.
35. Cf. ibid.


Auxílios de urgência

441 n. 160
Há nações em que se produzem bens de consumo e sobretudo gêneros agrícolas em excesso; e há outras em que setores grandes da população lutam contra a miséria e a fome. Motivos de justiça e de humanidade pedem que as primeiras vão em socorro das outras. Destruir ou desperdiçar bens que são indispensáveis à sobrevivência de seres humanos é ferir a justiça e a humanidade.

n. 161
Sabemos que produzir bens, sobretudo agrícolas, para além das necessidades de um país, pode ter repercussões economicamente negativas para algumas categorias de pessoas. Mas não é razão suficiente para cessar o dever de prestar auxílio de urgência aos necessitados e famintos, seria antes uma razão a mais para empregar todos os meios para diminuir aquelas repercussões negativas e as distribuir eqüitativamente entre todos os cidadãos.


Cooperação científica, técnica e financeira

n. 162Os auxílios de urgência, ainda que obedeçam a um dever de humanidade e de justiça, não bastam para eliminar, nem sequer para diminuir, as causas que, num considerável número de países, determinam um estado permanente de indigência, de miséria, ou de fome. Essas causas encontram-se, principalmente, no primitivismo ou atraso dos sistemas econômicos. Por isso não se podem eliminar ou diminuir senão por meio de uma colaboração multiforme, destinada a fazer adquirir aos seus cidadãos as habilitações profissionais e as competências científicas e técnicas; e a fornecer os capitais indispensáveis para iniciar e acelerar o progresso econômico segundo critérios e métodos modernos.

n. 163
Bem sabemos como, nestes últimos anos, se foi desenvolvendo e armando a consciência do dever de fomentar o progresso econômico e social das nações que se debatem com maiores dificuldades.

n. 164
Organismos mundiais e regionais, Estados, fundações, sociedades particulares, oferecem cada vez mais a esses países a sua própria cooperação técnica em todos os setores da produção; e proporcionam a milhares de jovens ocasião de irem estudar nas universidades das nações mais adiantadas e adquirir uma formação científica, técnica e profissional atualizada. Ao mesmo tempo, instituições bancárias mundiais, Estados, e entidades particulares fornecem capitais e dão ou contribuem para dar vida a uma rede cada vez mais extensa de iniciativas econômicas dentro das nações ainda em vias de desenvolvimento. Apraz-nos aproveitar a oportunidade para manifestarmos o nosso sincero apreço por semelhante obra, rica de frutos. Mas não podemos deixar de observar que a cooperação científica, técnica e econômica, entre as comunidades políticas mais adiantadas e aquelas que se encontram ainda na fase inicial ou a caminho do progresso, exige uma expansão maior ainda que a atual;
442 e é para desejar que essa expansão nos próximos decênios chegue a caracterizar as relações intercomunitárias.


Evitar os erros do passado

n. 165
A este propósito, julgamos oportunas algumas considerações e advertências.

n. 166
A prudência aconselha que os países, que se encontram num estado inicial ou pouco avançado no campo econômico, tenham presentes as experiências por que passaram as nações já desenvolvidas.

n. 167
Produzir mais e melhor corresponde a uma exigência da razão, e é também necessidade imprescindível. Não é porém menos necessário, nem menos conforme à justiça, repartir-se eqüitativamente a riqueza produzida, entre todos os membros da comunidade política: por isso, deve procurar-se que o desenvolvimento econômico e o progresso social se sujeitem a um mesmo ritmo. O que exige que esse desenvolvimento e esse progresso sejam realizados, na medida do possível, gradual e harmonicamente, em todos os setores da produção: agricultura, indústria e serviços.


Respeito às características próprias de cada comunidade

n. 168
As nações em fase de desenvolvimento econômico costumam apresentar uma individualidade própria, inconfundível: pelos recursos e características do próprio ambiente natural, pelas tradições muitas vezes ricas de valores humanos e pelas qualidades típicas de seus membros.

n. 169
As nações economicamente desenvolvidas, ao ajudá-las, devem reconhecer e respeitar essa individualidade, e vencer a tentação de projetar a própria imagem, através daquela obra, sobre as comunidades em vias de desenvolvimento.


Obras desinteressadas

n. 170
Mas a tentação maior, para as comunidades políticas economicamente avançadas, é a de se aproveitarem da cooperação técnica e financeira que prestam, para influírem na situação política das comunidades em fase de desenvolvimento econômico, afim de levarem a cabo planos de predomínio.

n. 171
Onde quer que isto se verifique, deve-se declarar explicitamente que estamos diante de nova forma de colonialismo, a qual, por mais habilmente que se disfarce,
443 não deixará de ser menos dominadora do que a antiga, que muitos povos deixaram recentemente. E essa nova forma prejudicaria as relações internacionais, constituindo ameaça e perigo para a paz mundial.

n. 172
É, portanto, indispensável e justo que a mencionada cooperação técnica e financeira se preste com o mais sincero desinteresse político. Deve ter apenas em vista colocar essas comunidades, que pretendem desenvolver-se, em condições de realizarem por si mesmas a própria elevação econômica e social.

n. 173
Deste modo oferece-se uma preciosa contribuição para formar uma comunidade mundial, em que todos os membros serão sujeitos conscientes dos próprios deveres e dos próprios direitos, e trabalharão em plano de igualdade, pela consecução do bem comum universal.


Respeito pela hierarquia dos valores

n. 174
Os progressos científicos e técnicos, o desenvolvimento econômico, as melhorias nas condições de vida, constituem sem dúvida elementos positivos de uma civilização. Mas devemos lembrar-nos de que não são, nem podem ser, valores supremos; em comparação destes, revestem essencialmente um caráter instrumental.

n. 175
Observamos com amargura que, nos países economicamente desenvolvidos, existem não poucos homens em que se foi extinguindo e se apagou, ou se inverteu, a consciência da hierarquia dos valores. Os valores do espírito descuram-se, esquecem-se ou negam-se; ao passo que os progressos das ciências e das técnicas, o desenvolvimento econômico e o bem-estar material se apregoam e defendem como bens superiores a tudo e são até exaltados à categoria de razão única da vida. Esta mentalidade constitui um dos mais deletérios dissolventes na cooperação que os povos economicamente desenvolvidos prestam aos povos em fase evolutiva: estes, por antiga tradição, não raras vezes conservam ainda viva e operante a consciência de alguns dos mais importantes valores humanos.

n. 176
É essencialmente imoral atentar contra esta consciência: deve ser respeitada e, quanto possível, iluminada e aperfeiçoada, para continuar a ser o que é: fundamento da verdadeira civilização.


Contribuição da Igreja

444 n. 177
A Igreja, por direito divino, é universal. E também o é de fato, por estar presente, ou tender a estar presente, a todos os povos.

n. 178
O fato da Igreja ser estabelecida no meio de um povo tem sempre conseqüências positivas no campo econômico e social, como o provam a história e a experiência. Os homens, fazendo-se cristãos, não podem deixar de sentir a obrigação de melhorar as estruturas e as condições da ordem temporal, por respeito à dignidade humana, e para se eliminarem ou reduzirem os obstáculos à difusão do bem e aumentarem os incentivos e os convites que levam a ele.

n. 179
E, além disso, a Igreja, ao penetrar na vida dos povos, não é nem pode considerar-se nunca uma instituição imposta de fora, porque a sua presença coincide com o renascimento ou a ressurreição de cada homem em Cristo; e quem renasce ou ressuscita em Cristo, nunca é vítima de coação externa: pelo contrário, sente-se livre no mais íntimo do próprio ser, para se encaminhar para Deus; e tudo quando nele representa um valor, de qualquer natureza que seja, se consolida e enobrece.

n. 180
A Igreja de Cristo, observa acertadamente o nosso predecessor Pio XII, "fidelíssima depositária da educadora sabedoria divina, não pode pensar nem pensa em alterar ou menosprezar as características particulares, que cada povo, com zelo e piedade, e também com compreensível ufania guarda e considera como precioso patrimônio. O seu fim é a unidade sobrenatural no amor universal, conhecido e praticado; não a uniformidade exclusivamente externa e superficial, por isso mesmo debilitante. A Igreja saúda, com alegria e acompanha com solicitude maternal todas as diretrizes e medidas, que levam, a um prudente e ordenado desenvolvimento de forças e tendências particulares, apoiadas nas raízes mais profundas de cada raça, contanto que elas se não oponham aos deveres que derivam, para o gênero humano, da sua unidade de origem e do destino comum".(36)

445 n. 181
Vemos com profunda satisfação como hoje os cidadãos católicos, das comunidades em fase de desenvolvimento econômico, ordinariamente não ficam atrás de ninguém ao tratar-se de participar no esforço que elas realizam no sentido do progresso e da elevação no campo econômico e social.

n. 182
Por outro lado, os cidadãos católicos das comunidades economicamente adiantadas multiplicam as suas iniciativas no sentido de se favorecer e melhorar a ajuda prestada às comunidades ainda em fase de desenvolvimento econômico. Digna de especial consideração é a multiforme assistência que eles prestam, em proporções cada vez maiores, aos estudantes da África e da Ásia espalhados pelas universidades da Europa e da América, e ainda a preparação de pessoas dispostas a irem para as nações subdesenvolvidas com o fim de lá exercerem atividades técnicas e profissionais.

n. 183
A estes nossos queridos filhos, que em todos os continentes manifestam a perene vitalidade da Igreja, promotora do progresso genuíno e vivificadora das civilizações, queremos que chegue a nossa palavra paternalmente afetuosa de aplauso e de alento.

36. Carta Encíclica Summi Pontificatus: AAS, 31(1939), pp 428-429.


INCREMENTOS DEMOGRÁFICOS E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO


Desequilíbrio entre a população e os meios de subsistência

n. 184
Nestes últimos tempos, surge a cada passo o problema da relação entre os aumentos demográficos, o progresso econômico e a disponibilidade de meios de subsistência, tanto no plano mundial, como nas comunidades políticas em vias de desenvolvimento econômico.

n. 185
No plano mundial, observam alguns que, segundo cálculos estatísticos considerados sérios, a família humana, dentro de poucos decênios, chegará a números muito elevados, ao passo que o desenvolvimento econômico prosseguirá com ritmo menos acelerado. Daqui concluem que a desproporção entre o povoamento e os meios de subsistência, num futuro não longínquo, se fará sentir de maneira aguda, se não se tratar devidamente de limitar o aumento demográfico.


n. 186
Nas comunidades políticas em fase de desenvolvimento econômico, observa-se com base nas estatísticas, que a rápida difusão de medidas higiênicas e de cuidados sanitários reduz muito a mortalidade, sobretudo infantil;
446 ao mesmo tempo que a percentagem da natalidade, que nessas comunidades costuma ser elevada, tende a permanecer constante, ou quase constante, pelo menos durante um período considerável de anos. Cresce pois notavelmente o excesso dos nascimentos sobre os óbitos, não aumentando na mesma proporção a eficiência produtiva dos respectivos sistemas econômicos. Torna-se impossível que nas comunidades em fase de desenvolvimento econômico melhore o nível de vida; antes, é inevitável que piore. Por isso, e afim de impedir que se chegue a situações de mal-estar extremo, há quem julgue indispensável recorrer a medidas drásticas para evitar ou diminuir a natalidade.


Os termos do problema

n. 187
A verdade é que, situado o problema no plano mundial, não parece que a relação entre o incremento demográfico, por um lado, e o desenvolvimento econômico e a disponibilidade dos meios de subsistência, por outro, venham a criar dificuldades ao menos por agora ou num futuro próximo. De todos os modos, são demasiado incertos e oscilantes os elementos de que dispomos para podermos chegar a conclusões seguras.

n. 188
Além disso, Deus, na sua bondade e sabedoria, espalhou pela natureza recursos inesgotáveis e deu aos homens inteligência e gênio capazes de inventar os instrumentos aptos para com eles se poderem encontrar os bens necessários à vida. Por isso, a solução fundamental do problema não deve procurar-se em expedientes que ofendem a ordem moral estabelecida por Deus e atacam os próprios manânciais da vida humana, mas num renovado esforço científico e técnico, por parte do homem, no sentido de aperfeiçoar e estender cada vez mais o seu domínio sobre a natureza. Os progressos já realizados pelas ciências e técnicas abrem, nesta direção, horizontes ilimitados.

n. 189
Sabemos que, em determinadas áreas e em certos países em fase de desenvolvimento econômico, apresentam-se realmente dificuldades graves, devidas à existência de uma organização econômica e social deficiente que não oferece meios de vida proporcionais ao índice do incremento demográfico e também à insuficiência da solidariedade entre os povos.

447 n. 190
Todavia, mesmo em tais casos, devemos afirmar claramente desde já que estes problemas não se podem encarar, nem estas dificuldades se podem vencer, recorrendo a métodos e meios que são indignos de um ser racional e só encontram explicação num conceito puramente materialista do homem e da vida.

n. 191A solução acertada encontra-se apenas num progresso econômico e social que respeite e fomente os genuínos valores humanos, individuais e sociais, em conformidade com a moral, com a dignidade e o imenso valor da vida humana, e, juntamente, numa colaboração em escala mundial que permita e fomente a circulação ordenada e fecunda de conhecimentos úteis, de capitais e pessoas.


Respeito pelas leis da vida

n. 192
Temos de proclamar solenemente que a vida humana deve ser transmitida por meio da família, fundada no matrimônio uno e indissolúvel, elevado para os cristãos à dignidade de sacramento. A transmissão da vida humana foi confiada pela natureza a um ato pessoal e consciente, sujeito, como tal, às leis sapientíssimas de Deus: leis invioláveis e imutáveis, que é preciso acatar e observar. Por isso, não se podem usar aqui meios, nem seguir métodos, que serão lícitos quando se tratar da transmissão da vida nas plantas e nos animais.


n. 193
A vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida, ofende a Divina Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano, e enfraquece a comunidade de que é membro.


Educação ao sentimento de responsabilidade

n. 194
É de suma importância que as gerações novas recebam, com a formação cultural e religiosa adequada que é dever e direito dos pais proporcionar-lhes, também uma educação sólida do sentimento de responsabilidade em todas as manifestações da existência, particularmente no que diz respeito à fundação da família, à transmissão da vida e à educação dos alhos. Deve inculcar-se-lhes uma fé viva, e profunda confiança na Divina Providência, para se disporem a arrostar
448 fadigas e sacrifícios no cumprimento de tão nobre missão, muitas vezes difícil, qual é a de colaborar com Deus em transmitir a vida humana e educar a prole. Para educar, nenhuma instituição dispõe de recursos tão eficazes como a Igreja, que, também por este motivo, possui o direito de exercer a sua missão com plena liberdade.


Ao serviço da vida

n. 195
No Gênesis lembra-se como Deus impôs aos primeiros seres humanos dois mandamentos: o de transmitir a vida: "Crescei e multiplicai-vos" (Gn 1,28) e o de dominar a natureza: "Enchei a terra e submetei-a" (Gn 1,28): mandamentos que se completam mutuamente.

n. 196
Sem dúvida o mandamento divino de dominar a natureza não é imposto com uns destrutivos, mas sim para serviço da vida.

n. 197
Notamos com tristeza que uma das contradições que mais perturbam e atormentam a nossa época é a seguinte: enquanto, por um lado, salientam-se as situações de mal-estar, e apresenta-se o espectro da miséria e da fome; por outro, utilizam-se, muitas vezes em grande escala, as descobertas da ciência, as realizações da técnica e os recursos econômicos, para criar terríveis instrumentos de ruína e de morte.

n. 198
A providência de Deus concede ao gênero humano meios suficientes para resolver dignamente os múltiplos e delicados problemas da transmissão da vida; mas estes problemas podem tornar-se difíceis ou até insolúveis porque os homens, desencaminhados na inteligência ou pervertidos na vontade, se valem desses meios contra a razão, isto é, para fins que não correspondem à sua própria natureza social nem aos planos da Providência.



COLABORAÇÃO EM PLANO MUNDIAL


Dimensões mundiais dos problemas humanos importantes

n. 199
Os progressos científicos e técnicos multiplicam e reforçam, em todos os setores da convivência, as relações entre os países, tornando a sua interdependência cada vez mais profunda e vital.


Mater et Magistra PT 434