Mater et Magistra PT 449

449 n. 200
Por conseguinte, pode dizer-se que os problemas humanos de alguma importância - qualquer que seja o seu conteúdo, científico, técnico, econômico, social, político ou cultural, apresentam hoje dimensões supranacionais e muitas vezes mundiais.


n. 201
Assim, as comunidades políticas, separadamente e com as próprias forças, não têm já possibilidade de resolver adequadamente os seus maiores problemas dentro de si mesmas, ainda que se trate de nações que sobressaem pelo elevado grau e difusão da cultura, pelo número e atividade dos cidadãos, pela eficácia dos sistemas econômicos, e pela extensão e riqueza dos territórios. Todas se condicionam mutuamente e pode, mesmo, afirmar-se que cada uma atinge o próprio desenvolvimento, contribuindo para o desenvolvimento das outras. Por isso é que se impõem o entendimento e a colaboração mútuos.


Desconfiança recíproca

n. 202
Assim se pode entender como, entre os indivíduos e os povos, vai ganhando cada vez mais terreno a persuasão da necessidade urgente daquele entendimento e colaboração. Ao mesmo tempo, porém, parece que os homens, particularmente os que têm maiores responsabilidades, se mostram incapazes de realizar tanto um como a outra. A raiz dessa incapacidade não se busque em razões científicas, técnicas ou econômicas, mas na falta de confiança mútua. Os homens, e por conseqüência os Estados, temem-se uns aos outros. Cada um teme que o vizinho alimente intenções de domínio e espreite o momento de levar a efeito tais propósitos. Por isso, organiza a própria defesa, quer dizer, arma-se, enquanto vai declarando que o faz, mais para dissuadir o agressor hipotético de algum ataque efetivo, do que para agredir.

n. 203
E deste modo, empregam-se imensas energias humanas e meios gigantescos para fins não-construtivos, ao mesmo tempo que se insinua e robustece, entre indivíduos e povos, um sentimento de mal-estar e de opressão, que debilita o espírito de iniciativa, impedindo empreendimentos de maior envergadura.


Desconhecimento da ordem moral

n. 204
A falta de confiança mútua explica-se com o fato de os homens, sobretudo os mais responsáveis, se inspirarem, no desenvolvimento da sua atividade, em concepções da vida diferentes ou radicalmente contrárias entre si. Algumas, infelizmente, não reconhecem a existência da ordem moral: ordem transcendente, universal e absoluta, de igual valor para todos. Deste modo impossibilitam-se o contato e o entendimento pleno e confiado, à luz de uma mesma lei de justiça, por todos admitida e observada.

450 n. 205
Verdade é que os termos "justiça" e "exigências da justiça" continuam a andar na boca de todos. Mas têm significações diversas ou opostas para uns e para outros. E é por isso que os apelos, repetidos e apaixonados, à justiça e às exigências da justiça, longe de oferecerem possibilidades de contato ou de entendimento, aumentam a confusão, agravam as diferenças, e tornam mais acesas as contendas. Daí, espalhar-se a persuasão de que não há outro meio para fazer valer os próprios direitos e conseguir os próprios interesses, que não seja o recurso à violência, fonte de males gravíssimos.


Deus, verdadeiro fundamento da ordem moral

n. 206
A confiança recíproca entre os homens e os Estados só pode nascer e consolidar-se através do reconhecimento e do respeito pela ordem moral.

n. 207
A ordem moral não pode existir sem Deus: separada dele, desintegra-se. O homem, pois, não é formado só de matéria, mas é também um ser espiritual, dotado de inteligência e liberdade. Exige, portanto, uma ordem moral e religiosa, que, mais do que todos e quaisquer valores materiais, influi na direção e nas soluções que deve dar aos problemas da vida individual e comunitária, dentro das comunidades nacionais e nas relações entre estas.

n. 208
Foi dito que, na era dos triunfos da ciência e da técnica, os homens podem construir a sua civilização, prescindindo de Deus. A verdade é que mesmo os progressos científicos e técnicos apresentam problemas humanos de dimensões mundiais, apenas solúveis à luz de uma sincera e ativa fé em Deus, princípio e fim do homem e do mundo.

n. 209
Veremos estas verdades confirmadas se repararmos que, até os ilimitados horizontes abertos pela investigação científica contribuem para que se revigore nos espíritos a persuasão de que as ciências e a matemática, se podem descobrir os fenômemos, estão longe de abranger, e, menos ainda, de penetrar completamente os aspectos mais profundos da realidade. E a trágica experiência
451 de gigantescas forças, que, postas ao serviço da técnica, tanto podem utilizar-se para construir como para destruir, põe em evidência a importância suprema dos valores do espírito e mostra que o progresso científico e técnico há de conservar o seu caráter essencial de meio para a civilização.

n. 210
O sentimento de progressiva insatisfação, que se difunde nos países de alto nível de vida, desfaz a ilusão do sonhado paraíso terrestre. E, ao mesmo tempo, vão os homens tomando consciência cada vez mais clara dos direitos invioláveis e universais da pessoa, e vai-se tornando mais viva a aspiração a estreitar relações mais justas e mais humanas. Todos estes motivos contribuem para que a humanidade se dê mais plena conta das suas limitações e se volte para os valores do espírito. O que não pode deixar de ser feliz presságio de sinceros acordos e fecundas colaborações.



QUARTA PARTE


A RENOVAÇÃO DAS RELAÇÕES DE CONVIVÊNCIA NA VERDADE, NA JUSTIÇA E NO AMOR


Ideologias defeituosas e errôneas

n. 211
Depois de tantos progressos científicos e técnicos, e mesmo em virtude deles, subsiste ainda o problema de se renovarem relações de convivência em equilíbrio mais humano, tanto no interior de cada país, como no plano internacional.

n. 212
Com este fim, elaboraram-se e difundiram-se diversas ideologias na época moderna. Algumas já se dissiparam, como névoa ao contato do sol; outras sofreram e sofrem revisões substanciais; outras ainda, enfraqueceram bastante, e vão perdendo cada vez mais o seu poder de fascinação no espírito dos homens. A razão de tal declínio está em que estas ideologias consideram apenas alguns aspectos do homem, e, freqüentemente, os menos profundos, pois não tomam em conta as imperfeições humanas inevitáveis, como a doença e o sofrimento, que não podem ser eliminados nem sequer pelos sistemas econômicos e sociais mais avançados.
452 Além disso, há a profunda e inextinguível exigência religiosa, que se nota sempre e em toda a parte, mesmo quando é conculcada pela violência ou habilmente sufocada.

n. 213O erro mais radical na época moderna é considerar-se a exigência religiosa do espírito humano como expressão do sentimento ou da fantasia, ou então como produto de uma circunstância histórica, que se há de eliminar como elemento anacrônico e obstáculo ao progresso humano. Ora, é precisamente nesta exigência que os seres humanos se revelam tais como são verdadeiramente: criados por Deus e para Deus, como exclama Santo Agostinho: "Foi para ti, Senhor, que nos fizeste; e o nosso coração está insatisfeito, até que descanse em ti".(37)

37. Confissões 1, 1.

n. 214
Portanto, qualquer que seja o progresso técnico e econômico, não haverá no mundo justiça nem paz, enquanto os homens não tornarem a sentir a dignidade de criaturas e de filhos de Deus, primeira e última razão de ser de toda a criação. O homem, separado de Deus, torna-se desumano consigo mesmo e com os seus semelhantes, porque as relações bem ordenadas entre homens pressupõem relações bem ordenadas da consciência pessoal com Deus, fonte de verdade, de justiça e de amor.

n. 215
É certo que a perseguição desencadeada há decênios em muitos países, mesmo de civilização cristã antiga, contra tantos irmãos e filhos nossos, os quais, exatamente por essa razão, nos são queridos de modo especial, põe cada vez mais em evidência a nobre superioridade dos perseguidos e a refinada barbárie dos perseguidores; o que, se não produz ainda frutos visíveis de arrependimento, leva já muita gente a refletir.

n. 216
Sempre fica de pé a verdade de que o aspecto mais sinistramente típico da época moderna consiste na tentativa absurda de se querer construir uma ordem temporal sólida e fecunda prescindindo de Deus, fundamento único sobre o qual ela poderá subsistir; e querer proclamar a grandeza do homem, secando a fonte donde ela brota e se alimenta,
453 e isto através da repressão, e, se fosse possível, da extinção das aspirações íntimas do homem, no sentido de Deus. Todavia, a experiência cotidiana, no meio dos desenganos mais amargos e não raras vezes através do testemunho do sangue, continua a mostrar a verdade do que arma o livro inspirado: "Se Iahweh não contrói a casa, em vão labutam os seus construtores" (Ps 126,1).


Perene atualidade da doutrina social na Igreja

n. 217A Igreja apresenta e proclama uma concepção sempre atual da convivência humana.

n. 218
Como se conclui do que dissemos até agora, o princípio fundamental desta concepção consiste em, cada um dos seres humanos, ser e dever ser o fundamento, o fim e o sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social: cada um dos seres humanos considerado na realidade daquilo que é e que deve ser, segundo a sua natureza intrinsecamente social, e no plano divino da sua elevação à ordem sobrenatural.

n. 219
Deste princípio básico, que defende a dignidade sagrada da pessoa, o magistério da Igreja, com a colaboração de sacerdotes e leigos competentes, formulou, especialmente neste último século, uma doutrina social. Esta indica com clareza o caminho seguro que leva ao restabelecimento das relações de convivência social segundo critérios universais correspondentes à natureza, aos diversos âmbitos de ordem temporal, e às características da sociedade contemporânea, e precisamente por isto, aceitáveis por todos.

n. 220
Mas hoje, é mais do que nunca indispensável que esta doutrina seja conhecida, assimilada e aplicada à realidade nas formas e na medida que as situações diversas permitem ou reclamam. Tarefa árdua, mas nobilíssima, para cuja realização convidamos instantemente não só os nossos irmãos e filhos espalhados pelo mundo inteiro, mas todos os homens de boa vontade.


Instrução

n. 221
De novo afirmamos, e acima de tudo, que a doutrina social cristã é parte integrante da concepção cristã da vida.

n. 222
Embora saibamos, com prazer, que esta doutrina já de há muito é proposta em vários institutos, insistimos na intensificação de tal ensino, por meio de
454 cursos ordinários e em forma sistemática, em todos os seminários e em todas as escolas católicas de qualquer grau que sejam. Inclua-se também nos programas de instrução religiosa das paróquias e das associações do apostolado dos leigos; propague-se através dos meios modernos de difusão: imprensa diária e periódica, obras de vulgarizaçâo e de caráter científico, rádio e televisão.

n. 223
Para a sua difusão muito podem contribuir os nossos filhos do laicato, com o desejo de aprenderem a doutrina, com o zelo em a fazerem compreender aos outros e com a prática da mesma, impregnando dela as próprias atividades de ordem temporal.

n. 224
Não esqueçam que a verdade e a eficácia da doutrina social católica se manifestam, sobretudo, na orientação segura que oferecem à solução dos problemas concretos. Desta maneira, conseguir-se-á chamar para ela a atenção dos que a desconhecem, ou mesmo a combatem por a desconhecerem; e talvez se consiga até que no espírito de alguns se faça luz.


Educação

n. 225
Uma doutrina social não se enuncia apenas; aplica-se na prática, em termos concretos. Isto vale sobretudo quando se trata da doutrina social cristã, cuja luz é a verdade, cujo fim é a justiça, cuja força dinâmica é o amor.

n. 226
Relembramos, pois, a necessidade de os nossos filhos não receberem apenas instrução social, mas também educação social.

n. 227
A educação cristã deve ser integral; quer dizer, deve compreender a totalidade dos deveres. Há de, pois, fazer nascer e fortificar nas almas a consciência de terem de exercer cristãmente as atividades de natureza econômica e social.

455 n. 228
A passagem da teoria à prática é difícil por natureza e o é principalmente quando se trata de reduzir a termos concretos uma doutrina social como a cristã. A dificuldade vem do egoísmo profundamente enraizado no ser humano, do materialismo que impregna a sociedade moderna, da dificuldade em reconhecer, com clareza e exatidão, as exigências objetivas da justiça, em cada um dos casos particulares. Por isso, não basta fazer despertar e formar a consciência da obrigação de proceder cristãmente no campo econômico e social. A educação deve pretender também ensinar o método que torne possível o cumprimento desta obrigação.


Função das associações do apostolado dos leigos

n. 229
Para atuar cristãmente no campo econômico e social, a educação com dificuldade haverá de mostrar-se eficaz, se os que a recebem não tomam nela parte ativa e se não for dada também através da ação.

n. 230
Justamente se costuma dizer que não é possível chegar a usar bem da liberdade senão por meio do bom uso da liberdade. De modo análogo, proceder cristãmente no campo econômico e social não se consegue senão por meio da ação cristã concreta nesse domínio.

n. 231
Por isso, na educação social, corresponde uma função importante às associações e organizações ao apostolado dos leigos, especialmente às que se propõem, como objetivo próprio, impregnar de cristianismo um ou outro setor da ordem temporal.

n. 232
Efetivamente, não poucos membros destas Associações podem utilizar as suas experiências cotidianas para se educarem a si próprios cada vez melhor e contribuírem para a educação social dos jovens.

n. 233
Vem a propósito recordar a todos, grandes e pequenos, que o sentido cristão da vida impõe espírito de sobriedade e sacrifício.

n. 234
Infelizmente, prevalecem hoje bastante a mentalidade e a tendência hedonistas, que pretendem reduzir a vida à busca do prazer e à satisfação completa de todas as paixões, com grave prejuízo para o espírito e até para o corpo. No plano natural é sabedoria e fonte de bens
456 a moderação e o domínio dos apetites inferiores. E no plano sobrenatural, o evangelho, a Igreja e toda a sua tradição ascética exigem o espírito de mortificação e penitência, que assegura o domínio sobre a carne e oferece um meio efïcaz de expiar a pena devida pelo pecado, do qual ninguém é livre senão Jesus e a sua mãe imaculada.


Sugestões práticas

n. 235
Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: "ver, julgar e agir".

n. 236
Convém, hoje mais que nunca, convidar com freqüência os jovens a refletir sobre estes três momentos e a realizá-los praticamente, na medida do possível. Deste modo, os conhecimentos adquiridos e assimilados não ficarão, neles, em estado de idéias abstratas, mas torná-los-ão capazes de traduzir na prática os princípios e as diretrizes sociais.

n. 237
Nas aplicações destes, podem surgir divergências mesmo entre católicos retos e sinceros. Quando isto suceder, não faltem a consideração, o respeito mútuo e a boa vontade em descobrir os pontos onde existe acordo, a fim de se conseguir uma ação oportuna e eficaz. Não nos percamos em discussões intermináveis; e, sob o pretexto de conseguirmos o ótimo, não deixemos de realizar o bom que é possível, e portanto, obrigatório.

n. 238
Os católicos, que exercem atividades econômicas e sociais, têm freqüentes relações com outros homens que não possuem a mesma concepção da vida. Em tais relações, procedam com atenção os nossos alhos,
457 de modo a serem coerentes consigo mesmos e não descerem a compromissos em matéria de religião e de moral. Mas, ao mesmo tempo, mostrem espírito de compreensão, desinteresse e disposição a colaborar lealmente na prossecução de objetivos bons por natureza, ou que, pelo menos, se podem encaminhar para o bem. Contudo, se a hierarquia eclesiástica se pronuncia em tal matéria, é claro que os católicos são obrigados a ater-se às diretrizes recebidas; pois compete à Igreja o direito e o dever, não só de tutelar os princípios de ordem ética e religiosa, mas também de intervir com autoridade na esfera da ordem temporal, quando se trata de julgar da aplicação destes princípios a casos concretos.


Ação multíplice e responsabilidade

n. 239
Da instrução e educação, deve passar-se à ação. É dever que pertence sobretudo aos nossos filhos do laicato, porque, em virtude do seu estado de vida, se ocupam habitualmente em atividades e instituições de ordem e finalidade temporais.

n. 240
Aos nossos filhos, para exercerem tão nobre função, é, não só necessário que sejam profissionalmente competentes e desempenhem as suas atividades temporais, em conformidade com as leis que lhes dizem respeito para conseguirem eficazmente o fim próprio das mesmas; mas também indispensável que, no exercício dessas atividades, se movam dentro dos princípios e diretrizes da doutrina social cristã, numa atitude de confiança sincera e de obediência dial à autoridade eclesiástica. Tenham presente que, no exercício das atividades temporais, se não seguem os princípios e as diretrizes da doutrina social cristã, não só faltam a um dever e lesam com freqüência os direitos dos seus irmãos, mas podem até chegar a desacreditar a doutrina, como se ela fosse, apesar de nobre em si mesma, desprovida de força e de orientação eficaz.


Um perigo grave

n. 241
Como já notamos, os homens de hoje aprofundaram e ampliaram muito o conhecimento das leis da natureza, criaram instrumentos para lhe dominarem as forças, produziram e continuam a produzir obras gigantescas e espetaculares. Mas, no seu empenho de dominar e transformar o mundo exterior, correm o perigo de
458 se esquecerem e se enfraquecerem a si mesmos: Observou com profunda amargura o nosso predecessor Pio XI, na encíclica Quadragesimo Anno: "E assim o trabalho corporal que a divina providência destinara ao aperfeiçoamento material e moral do homem, mesmo depois do pecado original, vai transformar-se em instrumento de perversão. Por outras palavras, a matéria inerte sai enobrecida da fábrica; os homens é que se corrompem e envilecem com ela".(38)

n. 242
Afirma, do mesmo modo, o sumo pontífice Pio XII, que a nossa época se distingue pelo contraste flagrante entre o imenso progresso científico e técnico, e um espantoso regresso no campo dos valores humanos, pois, "a sua monstruosa obra-prima consiste em transformar o homem num gigante do mundo físico à custa do seu espírito reduzido a pigmeu no mundo sobrenatural e eterno".(39)

n. 243
Uma vez mais se verifica hoje, em proporções tão vastas, o que dos pagãos afirmava o Salmista, ao dizer que os homens esquecem muitas vezes na ação a própria natureza, e admiram as obras que fazem, até ao ponto de verem nelas um ídolo: "Os seus ídolos são prata e ouro, obra das mãos dos homens" (
Ps 113,4).

38. AAS.23(1931), p. 221s.
39. Radiomensagem de Natal de 1953: AAS, 46(1953), p.10.


Reconhecimento e respeito pela hierarquia dos valores

n. 244
Na nossa paternal solicitude de pastor de todas as almas, convidamos insistentemente os nossos filhos a vigiarem sobre si mesmos, para manterem viva e operante a consciência da hierarquia dos valores no exercício das atividades temporais e na prossecução dos fins imediatos de cada uma.

n. 245
É certo que a Igreja ensinou sempre, e continua a ensinar, que os progressos científicos e técnicos e o conseqüente bem-estar material são bens reais, que marcam um passo importante no caminhar da civilização humana. Mas esses progressos devem avaliar-se dentro da esfera da sua verdadeira natureza: são só instrumentos ou meios a utilizar para a consecução mais eficaz de um fim superior, que é facilitar e promover o aperfeiçoamento espiritual dos seres humanos,
459 tanto na ordem natural como na sobrenatural.

n. 246
A palavra do Divino Mestre continua a fazer-se ouvir como um aviso perene: "Que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida? Ou que poderá o homem dar em troca de sua vida?" (
Mt 16,26).


Santificação das festas

n. 247
Esta advertência nâo parece alheia à obrigação do repouso que se deve gozar nos dias de festa. Para defender a dignidade do homem, como criatura dotada de alma feita à imagem e semelhança de Deus, a Igreja urgiu sempre a observância do terceiro preceito do decálogo: "Lembra-te de santificar o dia de festa" (Ex 20,8). Deus tem o direito de exigir do homem que dedique ao culto um dia da semana, no qual o espírito, livre das ocupações materiais, possa elevar e abrir o pensamento e o coração às coisas celestiais, examinando no íntimo da consciência as suas relações inevitáveis e indispensáveis com o Criador.

n. 248
Mas é também direito, e até necessidade do homem, interromper a aplicação do corpo ao trabalho duro de cada dia, para aliviar os membros cansados, distrair honestamente os sentidos e estreitar a união da família, que exige contato freqüente e convívio tranqüilo entre todos.

n. 249
Religião, moral e higiene concordam na necessidade do repouso periódico que a Igreja, desde há séculos, traduz na santificaçâo do domingo, com a assistência ao santo sacrifício da missa, memorial e aplicação da obra redentora de Cristo às almas.

n. 250
Com viva dor temos de reconhecer e deplorar a negligência, para não dizer o desprezo, desta lei santa; com perniciosas conseqüências
460 para a saúde da alma e do corpo dos nossos queridos trabalhadores.

n. 251
Em nome de Deus e para bem material e espiritual dos homens, chamamos a todos, autoridades, patrões e trabalhadores, à observância do preceito de Deus e da Igreja, recordando a cada um a grave responsabilidade que tem perante Deus e a sociedade.


Empenho renovado

n. 252
De tudo o que acima brevemente expusemos, seria erro deduzir que os nossos filhos, sobretudo do laicato, hajam de considerar prudente diminuir a sua obrigação cristã para com o mundo; pelo contrário, devem renovála e robustecê-la.

n. 253
Nosso Senhor, na sublime oração pela unidade da sua Igreja, não pede ao Pai que afaste os seus do mundo, mas que os preserve do mal: "Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal" (Jn 17,15). Não devemos ver artificialmente uma oposição onde ela não existe: neste caso, entre a perfeição pessoal e a atividade de cada um no mundo, como se uma pessoa não pudesse aperfeiçoar-se senão deixando de exercer atividades temporais, ou se o exercício delas comprometesse fatalmente a nossa dignidade de seres humanos e de crentes.

n. 254
Pelo contrário, corresponde perfeitamente ao plano da Providência que se aperfeiçõe cada um pelo trabalho cotidiano; e este, para a quase totalidade dos homens, é trabalho de natureza e finalidade temporal. A Igreja vê-se hoje empenhada com uma missão gigantesca: a de imprimir caráter humano e cristão à civilização moderna; caráter que esta pede, e quase reclama, para deveras progredir e se conservar. Como insinuamos, a Igreja vai exercendo esta missão sobretudo por meio dos seus filhos leigos,
461 os quais, tendo sempre tal fim em vista, devem sentir-se obrigados a exercer as próprias atividades profissionais como quem satisfaz a um dever, como quem presta um serviço, em união íntima com Deus, em Cristo e para sua glória. Já o indicava o apóstolo São Paulo: "Portanto quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus" (1Co 10,31). "E tudo o que fizerdes de palavra ou ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, por ele dando graças a Deus, o Pai" (Col 3,17).


Maior eficácia nas atividades temporais

n. 255
Uma vez conseguido que as atividades e as instituições temporais permaneçam abertas aos valores espirituais e aos fins sobrenaturais, conseguiu-se também, ao mesmo tempo, reforçar-lhes a eficácia relativamente aos seus fins específicos e imediatos. É sempre verdade a palavra do Divino Mestre: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas" (Mt 6,33). Quando se é "luz no Senhor" (Ep 5,8), e se caminha como "filhos da luz" (cf. Ep 5,8), apreendem-se melhor as exigências fundamentais da justiça, mesmo nas zonas mais complexas e difíceis da ordem temporal, em que, não raro, os egoísmos individuais, e os de grupo ou de raça, insinuam e espalham espessas névoas. E quando somos animados pela caridade de Cristo, nós conhecemos os laços que nos unem aos outros, e sentimos como próprias as necessidades, os sofrimentos e as alegrias alheias. Por conseguinte, a ação de cada um, qualquer que seja o objeto da mesma e o meio em que se exerce, não pode deixar de ser mais desinteressada, mais vigorosa e mais humana; pois a caridade: "é paciente, é benigna... não busca os seus próprios interesses... não folga com a injustiça, alegra-se com a verdade... tudo espera, tudo suporta" (1Co 13,4-7).


Membros vivos do Corpo Místico de Cristo

462 n. 256
Mas não podemos concluir a nossa encíclica sem recordar outra verdade, que é, ao mesmo tempo, uma realidade sublime: somos membros vivos do corpo místico de Cristo, que é a sua Igreja: "Com efeito, o corpo é um e, não obstante tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo: assim também acontece com Cristo" (
1Co 12,12).

n. 257
Convidamos, com paternal insistência, todos os nossos filhos, do clero e do laicato, a que tomem profunda consciência de tão grande dignidade e grandeza, pois estão enxertados em Cristo, como os sarmentos na videira: "Eu sou a videira e vós os ramos" (Jn 15,5) e, por esse motivo, são chamados a viver a sua mesma vida. Todo o trabalho e todas as atividades, mesmo as de caráter temporal, que se exercem em união com Jesus, divino Redentor, se tornam um prolongamento do trabalho de Jesus e dele recebem virtude redentora: "Aquele que permanece em mim e eu nele, produz muito fruto" (Jn 15,5). É um trabalho, através do qual não só realizamos a nossa própria perfeição sobrenatural, mas contribuímos também para estender e difundir aos outros os frutos da Redenção, levedando assim, com o fermento evangélico, a civilização em que vivemos e trabalhamos.

n. 258
A nossa época encontra-se invadida e penetrada de erros fundamentais, dilacerada e atormentada por desordens profundas; mas é também uma época em que, ao espírito combativo da Igreja, se abrem imensas possibilidades de fazer o bem.


Conclusão

n. 259
Amados irmâos e filhos nossos: o olhar que lançamos convosco sobre os diversos problemas da vida social contemporânea, desde as primeiras luzes do ensinamento do papa Leão XIII, levou-nos a formular um conjunto de observações que formam um programa. Convidamo-vos a que as pondereis,
463 as mediteis bem e vos animeis a cooperar, todos e cada um de vós, na realização do reino de Cristo sobre a terra: "Reino de verdade e de vida; reino de santidade e de graça; reino de justiça, de amor e de paz";(40) reino que promete o gozo dos bens celestiais, para que fomos criados e que ansiosamente desejamos.

n. 260
Trata-se da doutrina da Igreja católica e apostólica, mãe e mestra de todas as gentes, cuja luz ilumina e abrasa; cuja voz, ao ensinar cheia de sabedoria celestial, pertence a todos os tempos; cuja virtude oferece sempre remédios eficazes, suscetíveis de trazerem solução para as crescentes necessidades dos homens, para as angústias e aflições desta vida. A esta voz, une-se, em perfeita harmonia, a voz antiquíssima do Salmista, que sem descanso conforta e alenta as nossas almas: "Vou ouvir o que Iahweh Deus diz, porque ele fala de paz ao seu povo e seus fiéis, para que não voltem à insensatez. Sua salvação está próxima dos que o temem, e a Glória habitará em nossa terra. Amor e Verdade se encontram, Justiça e Paz se abraçam; da terra germinará a Verdade, e a Justiça se inclinará do céu. o próprio Iahweh dará a felicidade, e a nossa terra dará seu fruto. A Justiça caminhará à sua frente e com seus passos traçará um caminho (
Ps 84,9ss).

n. 261
São estes, veneráveis irmãos, os votos que nos formulamos, ao terminar esta carta, a que, de há tempos, dedicamos a nossa solicitude pela Igreja universal. Fazemo-lo, parà que o divino Redentor dos homens, "feito por Deus sabedoria para nós, e justiça e santificação e redenção" (1Co 1,30), reine e triunfe, através dos séculos, em todos os homens e sobre todas as coisas; e também para que, restabelecida a ordem na sociedade, todas as gentes gozem finalmente de paz, de prosperidade e de alegria.

464 n. 262
Como presságio de feliz realização destes votos e como penhor da nossa paternal benevolência, concedemos de coração, no Senhor, a bênção apostólica, a vós, veneráveis irmãos, e a todos os fiéis confiados ao vosso ministério, de modo especial aos que generosamente corresponderem às nossas exortações.

Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 15 de maio do ano de 1961, terceiro do nosso Pontificado.



JOÃO PP. XXIII



40. Prefácio da Missa do Cristo Rei.



Mater et Magistra PT 449