Novo millennio ineunte PT 38

O primado da graça

38 No âmbito da programação que nos espera, apostar com a maior confiança numa pastoral que contemple o devido espaço para a oração pessoal e comunitária significa respeitar um princípio essencial da visão cristã da vida: o primado da graça. Há uma tentação que sempre insidia qualquer caminho espiritual e também a acção pastoral: pensar que os resultados dependem da nossa capacidade de agir e programar. É certo que Deus nos pede uma real colaboração com a sua graça, convidando-nos por conseguinte a investir, no serviço pela causa do Reino, todos os nossos recursos de inteligência e de acção; mas ai de nós, se esquecermos que, « sem Cristo, nada podemos fazer » (cf. Jn 15,5).

É a oração que nos faz viver nesta verdade, recordando-nos constantemente o primado de Cristo e, consequentemente, o primado da vida interior e da santidade. Quando não se respeita este primado, não há que maravilhar-se se os projectos pastorais se destinam ao falimento e deixam na alma um deprimente sentido de frustração. Repete-se então connosco aquela experiência dos discípulos narrada no episódio evangélico da pesca miraculosa: « Trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos » (Lc 5,5). Esse é o momento da fé, da oração, do diálogo com Deus, para abrir o coração à onda da graça e deixar a palavra de Cristo passar por nós com toda a sua força: Duc in altum! Na pesca de então, foi Pedro que disse a palavra de fé: « À tua palavra, lançarei as redes » (Lc 5,5). Neste início de milénio, seja permitido ao Sucessor de Pedro convidar toda a Igreja a este acto de fé, que se exprime num renovado compromisso de oração.



Escuta da Palavra

39 Não há dúvida que este primado da santidade e da oração só é concebível a partir duma renovada escuta da palavra de Deus. Desde o Concílio Vaticano II, que assinalou o papel proeminente da palavra divina na vida da Igreja, muito se avançou certamente na escuta assídua e na leitura atenta da Sagrada Escritura. Foi-lhe garantido o lugar de honra que merece na oração pública da Igreja. A ela recorrem já em larga medida os indivíduos e as comunidades, e há muitos entre os próprios fiéis leigos que dela se ocupam, habilitados com a ajuda preciosa de estudos teológicos e bíblicos. E sobretudo há a obra da evangelização e da catequese que se tem revitalizado precisamente pela atenção à palavra de Deus. É preciso, amados irmãos e irmãs, consolidar e aprofundar esta linha, inclusive com a difusão do livro da Bíblia nas famílias. De modo particular é necessário que a escuta da Palavra se torne um encontro vital, segundo a antiga e sempre válida tradição da lectio divina: esta permite ler o texto bíblico como palavra viva que interpela, orienta, plasma a existência.



Anúncio da Palavra

40 Alimentar-nos da Palavra para sermos « servos da Palavra » no trabalho da evangelização: tal é, sem dúvida, uma prioridade da Igreja ao início do novo milénio. Deixou de existir, mesmo nos países de antiga evangelização, a situação de « sociedade cristã » que, não obstante as muitas fraquezas que sempre caracterizam tudo o que é humano, tinha explicitamente como ponto de referência os valores evangélicos. Hoje tem-se de enfrentar com coragem uma situação que se vai tornando cada vez mais variada e difícil com a progressiva mistura de povos e culturas que caracteriza o novo contexto da globalização. Ao longo destes anos, muitas vezes repeti o apelo à nova evangelização; e faço-o agora uma vez mais para inculcar sobretudo que é preciso reacender em nós o zelo das origens, deixando-nos invadir pelo ardor da pregação apostólica que se seguiu ao Pentecostes. Devemos reviver em nós o sentimento ardente de Paulo que o levava a exclamar: « Ai de mim se não evangelizar! » (1Co 9,16).

Esta paixão não deixará de suscitar na Igreja uma nova missionariedade, que não poderá ser delegada a um grupo de « especialistas », mas deverá corresponsabilizar todos os membros do povo de Deus. Quem verdadeiramente encontrou Cristo, não pode guardá-Lo para si; tem de O anunciar. É preciso um novo ímpeto apostólico, vivido como compromisso diário das comunidades e grupos cristãos. Que isso se faça, porém, no devido respeito pelo caminho próprio de cada pessoa e com atenção pelas diferentes culturas em que deve ser semeada a mensagem cristã, para que os valores específicos de cada povo não sejam renegados, mas purificados e levados à sua plenitude.

O cristianismo do terceiro milénio deverá responder cada vez melhor a esta exigência de inculturação. Permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição eclesial, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar. Ao longo do ano jubilar, pudemos saborear de modo especial a beleza deste rosto pluriforme da Igreja. Talvez seja só um início, um ícone apenas esboçado do futuro que o Espírito de Deus nos prepara.

Cristo há-de ser proposto a todos com confiança. A proposta seja feita aos adultos, às famílias, aos jovens, às crianças, sem nunca esconder as exigências mais radicais da mensagem evangélica, mas adaptando-a, a nível de sensibilidade e linguagem, à situação de cada um, segundo o exemplo de Paulo que afirmava: « Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a todo o custo » (1Co 9,22). Ao recomendar tudo isto, penso particularmente àpastoral juvenil. Precisamente vindo dos jovens, o Jubileu, como acima recordei, presenteou-nos com um testemunho de generosa disponibilidade. Temos de saber valorizar resposta tão consoladora, investindo aquele entusiasmo como um novo talento (cf. Mt 25,15) que o Senhor colocou nas nossas mãos para fazê-lo frutificar.



41 Nesta missionariedade confiante, empreendedora e criativa, sirva-nos de estímulo e orientação o exemplo luminoso de tantas testemunhas da fé que o Jubileu nos fez recordar. A Igreja encontrou sempre, nos seus mártires, uma semente de vida. « Sanguis martyrum, semen christianorum »: 25 esta célebre « lei » enunciada por Tertuliano, sujeita à prova da história, sempre se mostrou verdadeira. Porque não haveria de o ser também no século e milénio que estamos a começar? Talvez estivéssemos um pouco habituados a ver os mártires de longe, como se se tratasse duma categoria do passado associada especialmente com os primeiros séculos da era cristã. A comemoração jubilar descerrou-nos um cenário surpreendente, mostrando o nosso tempo particularmente rico de testemunhas, que souberam, ora dum modo ora doutro, viver o Evangelho em situações de hostilidade e perseguição até darem muitas vezes a prova suprema do sangue. Neles, a palavra de Deus, semeada em terra boa, produziu o cêntuplo (cf. Mt 13,8 Mt 13,23). Com o seu exemplo, indicaram-nos e de certo modo aplanaram-nos a estrada do futuro. A nós, resta-nos apenas seguir, com a graça de Deus, as suas pegadas.

(25) Tertuliano, Apologeticum 50, 13: PL 1, 534.

IV

TESTEMUNHAS DO AMOR

42 « É por isto que todos saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros » (Jn 13,35). Se verdadeiramente contemplámos o rosto de Cristo, amados irmãos e irmãs, a nossa programação pastoral não poderá deixar de inspirar-se ao « mandamento novo » que Ele nos deu: « Assim como Eu vos amei, também vós deveis amar-vos uns aos outros » (Jn 13,34).

É o outro vasto campo, em que se torna necessário um decidido empenho programático a nível da Igreja universal e das Igrejas particulares: o da comunhão (koinonia), que encarna e manifesta a própria essência do mistério da Igreja. A comunhão é o fruto e a expressão daquele amor que, brotando do coração do Pai eterno, se derrama em nós através do Espírito que Jesus nos dá (cf. Rm 5,5), para fazer de todos nós « um só coração e uma só alma » (Ac 4,32). Ao realizar esta comunhão de amor, a Igreja manifesta-se como « sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».26

A tal respeito, as palavras do Senhor são tão precisas que não é possível reduzir o seu alcance. A Igreja terá necessidade de muitas coisas para a sua caminhada histórica, também no novo século; mas, se faltar a caridade (agape), tudo será inútil. O apóstolo Paulo recorda-no-lo no hino da caridade: Ainda que falássemos as línguas dos homens e dos anjos e tivéssemos uma fé capaz « de transportar montanhas », mas faltasse a caridade, de « nada » nos serviria (cf. 1Co 13,2). A caridade é verdadeiramente o « coração » da Igreja, como bem intuiu S. Teresa de Lisieux que eu quis proclamar Doutora da Igreja precisamente como perita dascientia amoris: « Compreendi que a Igreja tem um coração, um coração ardente de amor; compreendi que só o amor fazia actuar os membros da Igreja [...]; compreendi que o amor encerra em si todas as vocações, que o amor é tudo ».27

(26) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 1.
(27) Manuscrito B, MSB 3-3vs. : Opere complete (Vaticano 1997), 223.


Uma espiritualidade de comunhão

43 Fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão: eis o grande desafio que nos espera no milénio que começa, se quisermos ser fiéis ao desígnio de Deus e corresponder às expectativas mais profundas do mundo.

Que significa isto em concreto? Também aqui o nosso pensamento poderia fixar-se imediatamente na acção, mas seria errado deixar-se levar por tal impulso. Antes de programar iniciativas concretas, é preciso promover uma espiritualidade da comunhão, elevando-a ao nível de princípio educativo em todos os lugares onde se plasma o homem e o cristão, onde se educam os ministros do altar, os consagrados, os agentes pastorais, onde se constroem as famílias e as comunidades. Espiritualidade da comunhão significa em primeiro lugar ter o olhar do coração voltado para o mistério da Trindade, que habita em nós e cuja luz há-de ser percebida também no rosto dos irmãos que estão ao nosso redor. Espiritualidade da comunhão significa também a capacidade de sentir o irmão de fé na unidade profunda do Corpo místico, isto é, como « um que faz parte de mim », para saber partilhar as suas alegrias e os seus sofrimentos, para intuir os seus anseios e dar remédio às suas necessidades, para oferecer-lhe uma verdadeira e profunda amizade. Espiritualidade da comunhão é ainda a capacidade de ver antes de mais nada o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo como dom de Deus: um « dom para mim », como o é para o irmão que directamente o recebeu. Por fim, espiritualidade da comunhão é saber « criar espaço » para o irmão, levando « os fardos uns dos outros » (
Ga 6,2) e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos insidiam e geram competição, arrivismo, suspeitas, ciúmes. Não haja ilusões! Sem esta caminhada espiritual, de pouco servirão os instrumentos exteriores da comunhão. Revelar-se-iam mais como estruturas sem alma, máscaras de comunhão, do que como vias para a sua expressão e crescimento.



44 Posto isto, o novo século há-de ver-nos empenhados mais intensamente na valorização e desenvolvimento dos sectores e instrumentos que, segundo as grandes directrizes do Concílio Vaticano II, servem para assegurar e garantir a comunhão. Como não pensar, em primeiro lugar, a dois serviços específicos de comunhão que são o ministério petrino e, intimamente ligada com ele, a colegialidade episcopal? Trata-se de duas realidades que têm o seu fundamento e consistência no próprio desígnio de Cristo sobre a Igreja,28 mas por isso mesmo necessitam duma verificação contínua que assegure a sua autêntica inspiração evangélica.

Depois do Concílio Vaticano II, já muito se fez nomeadamente quanto à reforma da Cúria Romana, à organização dos Sínodos, ao funcionamento das Conferências Episcopais; mas certamente há ainda muito que fazer para valorizar o melhor possível as potencialidades destes instrumentos da comunhão, hoje particularmente necessários tendo em vista a exigência de dar resposta pronta e eficaz aos problemas que a Igreja tem de enfrentar nas rápidas mudanças do nosso tempo.

(28) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, cap. III.
LG 18-29


45 Os espaços da comunhão hão-de ser aproveitados e promovidos dia-a-dia, a todos os níveis, no tecido da vida de cada Igreja. Nesta, a comunhão deve resplandecer nas relações entre Bispos, presbíteros e diáconos, entre Pastores e o conjunto do povo de Deus, entre clero e religiosos, entre associações e movimentos eclesiais. Para isso, devem-se valorizar cada vez mais os organismos de participação previstos no direito canónico, tais como os Conselhos Presbiterais e Pastorais.Como se sabe, estes não se regem pelos critérios da democracia parlamentar, porque operam por via consultiva, e não deliberativa; 29 mas não é por isso que perdem o seu sentido e importância. É que a teologia e a espiritualidade da comunhão inspiram uma recíproca e eficaz escuta entre Pastores e fiéis, que por um lado os mantém unidos a priori em tudo o que é essencial, e por outro fá-los confluir normalmente para decisões ponderadas e compartilhadas mesmo naquilo que é opinável.

Com tal finalidade, é preciso assumir aquela antiga sabedoria que, sem prejudicar em nada o papel categorizado dos Pastores, procurava incentivá-los à mais ampla escuta de todo o povo de Deus. É significativo o que S. Bento lembra ao abade do mosteiro, ao convidá-lo a consultar também os mais novos: « É frequente o Senhor inspirar a um mais jovem um parecer melhor ».30 E S. Paulino de Nola exorta: « Dependemos dos lábios de todos os fiéis, porque, em cada fiel, sopra o Espírito de Deus ».31

Desta forma, se a ciência jurídica, ao estabelecer normas precisas de participação, manifesta a estrutura hierárquica da Igreja e esconjura tentações de arbítrio e injustificadas pretensões, a espiritualidade da comunhão confere uma alma ao dado institucional, ao aconselhar confiança e abertura que corresponde plenamente à dignidade e responsabilidade de cada membro do povo de Deus.

(29) Cf. Congr. do Clero e Outras, Instr. acerca de algumas questões sobre a colaboração dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes Ecclesiae de mysterio (15 de Agosto de 1997): AAS 89 (1997), 852-877. Veja-se sobretudo o art. 5: « Os organismos de colaboração na Igreja particular ».
(30) Reg. III, 3
RB 3,3: « Ideo autem omnes ad consilium vocari diximus, quia saepe iuniori Dominus revelat quod melius est ».
(31) « De omnium fidelium ore pendeamus, quia in omnem fidelem Spiritus Dei spirat »: Epistula 23, 36, a Sulpício Severo: CSEL 29, 193.


A variedade das vocações

46 Esta perspectiva de comunhão está intimamente ligada à capacidade que tem a comunidade cristã de dar espaço a todos os dons do Espírito. A unidade da Igreja não é uniformidade, mas integração orgânica das legítimas diversidades; é a realidade de muitos membros unidos num só corpo, o único Corpo de Cristo (cf. 1Co 12,12). Por isso, é necessário que a Igreja do terceiro milénio estimule todos os baptizados e crismados a tomarem consciência da sua própria e activa responsabilidade na vida eclesial. Ao lado do ministério ordenado, podem florescer outros ministérios — instituídos ou simplesmente reconhecidos — em proveito de toda a comunidade ajudando-a nas suas diversas necessidades: desde a catequese à animação litúrgica, desde a educação dos jovens às várias expressões da caridade.

Um generoso empenho certamente há-de ser posto — sobretudo através de uma oração insistente ao Senhor da messe (cf. Mt 9,38) — na promoção das vocações ao sacerdócio e de especial consagração. Trata-se dum problema de grande importância para a vida da Igreja em todo o mundo. Mas, nalguns países de antiga evangelização, tal problema tornou-se dramático devido à alteração do contexto social e à aridez religiosa causada pelo consumismo e secularismo. É necessário e urgente estruturar uma vasta e capilar pastoral das vocações, que envolva as paróquias, os centros educativos, as famílias, suscitando uma reflexão mais atenta sobre os valores essenciais da vida, cuja síntese decisiva está na resposta que cada um é convidado a dar ao chamamento de Deus, especialmente quando esta pede a total doação de si mesmo e das próprias forças à causa do Reino.

Neste contexto, aparece em todo o seu valor cada uma das restantes vocações, radicadas na riqueza da vida nova recebida no sacramento do Baptismo. Em particular, há que descobrir cada vez melhor a vocação própria dos fiéis leigos, que são chamados, enquanto tais, a « procurar o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus »,32 e têm também « um papel próprio a desempenhar na missão do inteiro povo de Deus, na Igreja e no mundo [...], com a sua acção para evangelizar e santificar os homens ».33

Nesta mesma linha, reveste uma grande importância para a comunhão o dever de promover as várias realidades agregativas, que, tanto nas suas formas mais tradicionais como nas mais recentes dos movimentos eclesiais, continuam a dar à Igreja uma grande vitalidade que é dom de Deus e constitui uma autêntica « primavera do Espírito ». É, sem dúvida, necessário que associações e movimentos, tanto a nível da Igreja universal como das Igrejas particulares, actuem em plena sintonia eclesial e obediência às directrizes autorizadas dos Pastores. Mas, a todos é dirigida, de forma exigente e peremptória, a advertência do Apóstolo: « Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom » (1Th 5,19-21).

(32) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 31.
(33) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, AA 2.


47 Deve ser assegurada também uma especial atenção à pastoral da família, ainda mais necessária na época actual, que regista uma crise generalizada e radical desta instituição fundamental. Na visão cristã do matrimónio, a relação entre um homem e uma mulher — relação recíproca e total, única e indissolúvel — corresponde ao desígnio originário de Deus, o qual, ofuscado na história pela « dureza do coração », foi restaurado no seu esplendor primordial por Cristo, mostrando o que Deus quis « ao princípio » (Mt 19,8). No matrimónio elevado à dignidade de Sacramento, está expresso o « grande mistério » do amor esponsal de Cristo pela sua Igreja (cf. Ep 5,32).

Sobre este ponto, a Igreja não pode ceder às pressões de determinada cultura, ainda que generalizada e por vezes agressiva. Ao contrário, é preciso fazer com que, por meio duma educação evangélica sempre mais completa, as famílias cristãs ofereçam um exemplo persuasivo da possibilidade de um matrimónio vivido de forma plenamente congruente com o desígnio de Deus e com as verdadeiras exigências da pessoa humana — a pessoa dos esposos e sobretudo a pessoa mais frágil dos filhos. As próprias famílias hão-de estar cada vez mais conscientes da atenção que é devida aos filhos, tornando-se sujeitos activos, na Igreja e na sociedade, com uma presença eficaz na defesa dos seus direitos.



O empenho ecuménico

48 Depois, como não mencionar a urgência de fomentar a comunhão no âmbito delicado doempenho ecuménico? Infelizmente, os tristes legados do passado vão acompanhar-nos ainda para além do limiar do novo milénio. A celebração jubilar registou algum sinal verdadeiramente profético e tocante, mas há ainda tanto caminho a percorrer!

Na realidade, o Grande Jubileu, levando-nos a fixar o olhar em Cristo, fez-nos tomar mais viva consciência da Igreja como mistério de unidade. « Creio na Igreja una »: isto que afirmamos na profissão de fé, tem o seu fundamento último em Cristo, no Qual a Igreja não está dividida (cf.
1Co 1,11-13). Enquanto Corpo de Cristo, na unidade realizada pelo dom do Espírito, a Igreja é indivisível. A realidade da divisão forma-se no terreno da história, nas relações entre os filhos da Igreja, em consequência da fragilidade humana para acolher o dom que continuamente dimana de Cristo-Cabeça para o seu Corpo místico. A oração de Jesus no Cenáculo — « que todos sejam um; como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti, que também eles estejam em Nós » (Jn 17,21) — é simultaneamente revelação e invocação. Revela-nos a unidade de Cristo com o Pai, como lugar fontal da unidade da Igreja e dom perene que ela receberá misteriosamente d'Ele até ao fim dos tempos. Esta unidade, que não deixa de realizar-se concretamente na Igreja Católica, apesar dos limites próprios do ser humano, manifesta-se também, em diversa medida, nos numerosos elementos de santificação e de verdade que se encontram no seio das outras Igrejas e Comunidades eclesiais; tais elementos, enquanto dons próprios da Igreja de Cristo, impele-as incessantemente para a unidade plena.34

A oração de Jesus lembra-nos que este dom precisa de ser acolhido e fomentado de maneira sempre mais profunda. A invocação « ut unum sint » é simultaneamente imperativo que nos obriga, força que nos sustenta, salutar censura à nossa preguiça e mesquinhez de coração. É sobre a oração de Jesus, não sobre as nossas capacidades, que assenta a confiança de poder chegar, também na história, à comunhão plena e visível de todos os cristãos.

Nesta perspectiva de renovado caminho pós-jubilar, olho com grande esperança para asIgrejas do Oriente, esperando que retorne plenamente aquela permuta de dons que enriqueceu a Igreja do primeiro milénio. A lembrança do tempo em que a Igreja respirava com « dois pulmões », estimule os cristãos do Oriente e do Ocidente a caminharem juntos, na unidade da fé e no respeito das legítimas diferenças, aceitando-se e ajudando-se uns aos outros como membros do único Corpo de Cristo.

Com idêntico empenho há-de ser cultivado o diálogo ecuménico com os irmãos e irmãs daComunhão Anglicana e das Comunidades eclesiais nascidas da Reforma. O confronto teológico sobre pontos essenciais da fé e da moral cristã, a colaboração na caridade e sobretudo o grande ecumenismo da santidade não deixarão, com a ajuda de Deus, de produzir os seus frutos no futuro. Entretanto, prossigamos confiadamente pelo caminho, suspirando pelo momento em que poderemos, com todos os discípulos de Cristo sem excepção, cantar juntos com toda a nossa voz: « Como é bom e agradável viverem os irmãos em harmonia! » (Ps 133,1).

(34) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 8.


A caridade fraterna

49 Partindo da comunhão dentro da Igreja, a caridade abre-se, por sua natureza, ao serviço universal, frutificando no compromisso dum amor activo e concreto por cada ser humano. Este âmbito qualifica de modo igualmente decisivo a vida cristã, o estilo eclesial e a programação pastoral. É de se esperar que o século e o milénio que estão a começar hão-de ver a dedicação a que pode levar a caridade para com os mais pobres. Se verdadeiramente partimos da contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar: « Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e recolhestes-Me; estava nu e destes-Me de vestir; adoeci e visitastes-Me; estive na prisão e fostes ter Comigo » (Mt 25,35-36). Esta página não é um mero convite à caridade, mas uma página de cristologia que projecta um feixe de luz sobre o mistério de Cristo. Nesta página, não menos do que o faz com a vertente da ortodoxia, a Igreja mede a sua fidelidade de Esposa de Cristo.

É certo que ninguém pode ser excluído do nosso amor, uma vez que, « pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem »; 35 mas, segundo as palavras inequivocáveis do Evangelho que acabámos de referir, há na pessoa dos pobres uma especial presença de Cristo, obrigando a Igreja a uma opção preferencial por eles. Através desta opção, testemunha-se o estilo do amor de Deus, a sua providência, a sua misericórdia, e de algum modo continua-se a semear na história aqueles gérmenes do Reino de Deus que foram visíveis na vida terrena de Jesus, ao acolher a quantos recorriam a Ele para todas as necessidades espirituais e materiais.

(35) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 22.


50 No nosso tempo, de facto, são muitas as necessidades que interpelam a sensibilidade cristã. O nosso mundo começa o novo milénio, carregado com as contradições dum crescimento económico, cultural e tecnológico que oferece a poucos afortunados grandes possibilidades e deixa milhões e milhões de pessoas não só à margem do progresso, mas a braços com condições de vida muito inferiores ao mínimo que é devido à dignidade humana. Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se?

E o cenário da pobreza poderá ampliar-se indefinidamente, se às antigas pobrezas acrescentarmos as novas que frequentemente atingem mesmo os ambientes e categorias dotados de recursos económicos, mas sujeitos ao desespero da falta de sentido, à tentação da droga, à solidão na velhice ou na doença, à marginalização ou à discriminação social. O cristão, que se debruça sobre este cenário, deve aprender a fazer o seu acto de fé em Cristo, decifrando o apelo que Ele lança a partir deste mundo da pobreza. Trata-se de dar continuidade a uma tradição de caridade, que já teve inumeráveis manifestações nos dois milénios passados, mas que hoje requer, talvez, ainda maior capacidade inventiva. É hora duma nova « fantasia da caridade », que se manifeste não só nem sobretudo na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola humilhante, mas como partilha fraterna.

Por isso, devemos procurar que os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como « em sua casa ». Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino? Sem esta forma de evangelização, realizada através da caridade e do testemunho da pobreza cristã, o anúncio do Evangelho — e este anúncio é a primeira caridade — corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta. A caridade das obras garante uma força inequivocável à caridade das palavras.



Os desafios de hoje

51 E como ficar indiferentes diante das perspectivas dum desequilíbrio ecológico, que torna inabitáveis e hostis ao homem vastas áreas do planeta? Ou face aos problemas da paz,frequentemente ameaçada com o íncubo de guerras catastróficas? Ou frente ao vilipêndio dos direitos humanos fundamentais de tantas pessoas, especialmente das crianças? Muitas são as urgências, a que o espírito cristão não pode ficar insensível.

Um especial empenho deve colocar-se em alguns aspectos da radicalidade evangélica que frequentemente são menos compreendidos, chegando a tornar-se impopular a intervenção da Igreja, mas isso não pode fazer com que estejam menos presentes na agenda eclesial da caridade. Refiro-me à obrigação de se empenhar pelo respeito da vida de cada ser humano, desde a concepção até ao seu ocaso natural. De igual modo, o serviço ao homem obriga-nos a gritar, oportuna e inoportunamente, que todos os que lançam mão das novas potencialidades da ciência, principalmente no âmbito das biotecnologias, não podem jamais descurar as exigências fundamentais da ética, fazendo apelo a uma discutível solidariedade que acaba por discriminar vidas entre si, com desprezo pela dignidade própria de cada ser humano.

Para a eficácia do testemunho cristão, especialmente nestes âmbitos delicados e controversos, é importante fazer um grande esforço para explicar adequadamente os motivos da posição da Igreja, sublinhando sobretudo que não se trata de impor aos não crentes uma perspectiva de fé, mas de interpretar e defender valores radicados na própria natureza do ser humano. A caridade tomará então necessariamente a forma de serviço à cultura, à política, à economia, à família, para que em toda a parte sejam respeitados os princípios fundamentais de que depende o destino do ser humano e o futuro da civilização.



52 Tudo isto há-de ser naturalmente realizado com um estilo especificamente cristão: compete sobretudo aos leigos, no cumprimento da vocação que lhes é própria, fazerem-se presentes nestas tarefas sem nunca ceder à tentação de reduzir as comunidades cristãs a agências sociais. De modo particular, o relacionamento com a sociedade civil deverá verificar-se no respeito da sua autonomia e competência, segundo os ensinamentos propostos pela doutrina social da Igreja.

É conhecido o esforço que o Magistério eclesial tem realizado, sobretudo no século XX, para ler a realidade social à luz do Evangelho e oferecer de forma cada vez mais concreta e orgânica o seu contributo para a solução da questão social, hoje alargada à escala planetária.

Esta vertente ético-social é uma dimensão imprescindível do testemunho cristão: há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação e, em última análise, com a própria tensão escatológica do cristianismo. Se esta tensão nos torna conscientes do carácter relativo da história, não o faz para nos desinteressarmos do dever de a construir. A tal respeito, continua sempre actual o ensinamento do Concílio Vaticano II: « A mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus semelhantes, mas, antes, os obriga ainda mais a realizar essas actividades ».36

(36) Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
GS 34.


Um sinal concreto

53 Para dar um sinal desta dimensão da caridade e da promoção humana, que se funda nas exigências íntimas do Evangelho, quis que o ano jubilar, entre os numerosos frutos de caridade que já produziu durante a sua realização — penso de modo particular à ajuda dada a muitos irmãos mais pobres que lhes permitiu tomar parte no Jubileu — deixasse também uma obraque de algum modo constituisse o fruto e o selo da caridade jubilar. Muitos peregrinos deram, de diversos modos, a sua esmola e, com eles, também muitos protagonistas da actividade económica ofereceram apoios generosos, que serviram para garantir uma adequada realização da ocorrência jubilar. Uma vez pagas as despesas que foi preciso fazer durante o ano, o saldo que houver deveerá ser destinado para fins de caridade. É realmente importante que, dum acontecimento religioso tão significativo, seja afastado qualquer indício de especulação económica. O que sobrar há-de servir para se repetir, nesta circunstância também, a experiência já muitas vezes vivida ao longo da história a começar dos primórdios da Igreja, quando a comunidade de Jerusalém deu o testemunho — que tanto impressionou os não cristãos — duma espontânea permuta de dons, até à posse comum dos bens, em favor dos mais pobres (cf. Ac 2,44-45).

A obra a realizar será apenas um pequeno rio que irá confluir no grande caudal da caridade cristã que atravessa a história. Um rio pequeno, mas significativo! O Jubileu fez com que o mundo olhasse para Roma, a Igreja « que preside à caridade »,37 e deixasse nas mãos de Pedro a sua esmola. Esta caridade que se manifestara no centro da catolicidade derrama-se agora, de algum modo, sobre o mundo através deste sinal que se pretende seja fruto e recordação viva da comunhão experimentada por ocasião do Jubileu.

(37) S. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, Pref.: Ed. Funk, I, 252.


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