Evangelii praecones PT




CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII


EVANGELII PRAECONES



SOBRE O FOMENTO DAS MISSÕES




Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos, Bispos e outros Ordinários locais
em paz e comunhão com a Sé Apostólica



INTRODUÇÃO



1 Ao decorrer o vigésimo quinto aniversário da publicação da encíclica "Rerum Ecclesiae",(1) em que nosso predecessor de imortal memória Pio XI procurou com normas sapientíssimas promover o desenvolvimento das missões católicas, de novo se apresentam ao nosso espírito, de modo vivíssimo, os arautos do evangelho, que nos imensos campos das missões se afadigam "para que a palavra de Deus se propague e seja glorificada" (2Th 3,1). E, ao considerarmos quão grande progresso neste intervalo de tempo obteve esta tão santa causa, invade-nos grande alegria. Como tivemos ocasião de lembrar em 24 de junho de 1944, falando aos diretores das Pontifícias Obras Missionárias, "a atividade missionária, tanto nos países já iluminados pela luz do evangelho, como no próprio campo das Missões, atingiu tal intensidade, tal amplitude externa e tal vigor interno, como não se encontram talvez em nenhuma época da história das missões".(2)


2 Parece-nos contudo sumamente oportuno nestes tempos procelosos e ameaçadores, em que muitos povos se sentem divididos por interesses opostos, recomendar de novo a causa das missões, pois os pregoeiros do evangelho são mensageiros da bondade humana e cristã, e a todos exortam à fraternidade e compreensão mútua, capaz de superar os conflitos dos povos e as fronteiras das nações.


3 Nesse sentido dizíamos, entre outras coisas, na citada alocução,: "...O vosso caráter internacional e a vossa colaboração fraterna colocam em plena luz aquele sinal distintivo da Igreja católica, que é a negação e contradição viva da discórdia em que se agitam e se debatem as nações, queremos dizer, a universalidade da fé e do amor, que está acima de todos os campos de batalha e de todas as fronteiras, acima de todos os continentes e de todos os oceanos, universalidade que vos incita e estimula a atingir a suspirada meta de fazer coincidir com os confins do mundo os confins do reino de Deus".(3)

(1) AAS 18(1926), p. 65s.
(2) AAS 36(1944), p. 209.
(3) AAS 36(1944), p. 267.

4 Tomando ocasião dos cinco lustros decorridos desde a publicação da encíclica Rerum Ecclesiae, é com verdadeiro prazer que tributamos merecidos louvores ao fecundo trabalho realizado, e que exortamos a todos a continuarem com renovado entusiasmo a grande obra encetada. A todos, isto é, aos nossos veneráveis irmãos no episcopado, aos missionários, aos sacerdotes e aos fiéis, tanto aos que trabalham nos territórios de missões como aos que em qualquer parte da terra com suas orações, com a educação e o auxílio que prestam aos candidatos às missões, ou, finalmente, com suas esmolas, colaboram nesta obra importantíssima.

1. Progressos


5 Em primeiro lugar compraz-nos recordar brevemente os progressos obtidos. No ano de 1926 as missões eram 400, atualmente são perto de 600; o número dos habitantes católicos desses territórios não chegava a 15 milhões, enquanto hoje atinge perto de 28 milhões. Os sacerdotes, estrangeiros e nativos, eram então cerca de 14.800, hoje ultrapassam 26.800. Naquela data eram estrangeiros todos os bispos missionários; decorridos 25 anos, 88 missões estão confiadas ao clero nativo e, com o estabelecimento, em muitas regiões, da hierarquia eclesiástica, e a nomeação de bispos indígenas, manifesta-se mais claramente que a Igreja de Jesus Cristo é verdadeiramente católica e não se pode considerar como estrangeira em nenhuma parte do mundo.


6 Para aduzir alguns exemplos: foi constituída, segundo as normas canônicas, a hierarquia eclesiástica na China e em várias regiões da África; celebraram-se três concílios plenários de suma importância, o primeiro na Indochina em 1934, o segundo na Austrália em 1937, o terceiro na Índia, no ano passado; os seminários menores multiplicaram-se enormemente; os alunos dos seminários maiores, apenas 1770 vinte e cinco anos atrás, são hoje 4.300; construíram-se muitos seminários regionais; foi fundado em Roma, junto ao Colégio Urbano da Propagação da Fé, o "Instituto missionário"; em Roma e em outras partes, foram inauguradas várias cátedras de missiologia; igualmente em Roma, foi fundado o Colégio de S. Pedro, no qual sacerdotes indígenas completam com maior esmero a sua formação nas ciências sagradas, nas virtudes e no apostolado; foram fundadas nas missões duas universidades; os ginásios ou colégios superiores, que antes eram cerca de 1.600, hoje passam de 5.000; as escolas primárias e secundárias quase duplicaram de número; e o mesmo se pode afirmar dos ambulatórios ou dispensários e hospitais, em que se atende a todo o gênero de doentes, até mesmo aos leprosos. Podem-se enumerar ainda os seguintes dados: a União missionária do clero nestes 25 anos tomou novo impulso; iniciou-se a Agência "Fides", com o encargo de obter, selecionar e divulgar notícias de interesse religioso; quase em toda parte aumentam e se espalham com profusão livros e revistas sobre as missões; não poucos foram os Congressos missionários realizados, entre os quais o de Roma, na segunda metade do ano santo, que mostrou esplendidamente quanto se tem feito no setor missionário; não há muito celebrou-se com grande concorrência e muita piedade o congresso eucarístico de Kumasi, na Costa do Ouro (África); em favor da Obra da Santa Infância designamos um dia especial cada ano para orações e coleta de esmolas.(4) Todos esses fatos demonstram claramente que o apostolado missionário se adapta eficaz e oportunamente às novas circunstâncias e às crescentes necessidades dos tempos.

(4) Epist. Praeses Consilii, AAS 43(951), pp. 88-89.

7 Nem se há de passar em silêncio que, nesses vinte e cinco anos, foram constituídas cinco novas delegações apostólicas dependentes da Sagrada Congregação da Propagação da Fé, além dos muitos territórios de missões sujeitos aos núncios e internúncios apostólicos. Com prazer atestamos que da presença e operosidade desses prelados já se colheram abundantes frutos, principalmente no sentido de se coordenarem melhor os trabalhos dos missionários. Para isso contribuíram grandemente esses nossos legados, já visitando cada uma das missões, já tomando parte, com autoridade nossa, nas reuniões episcopais, a fim de fazerem convergir para utilidade comum a prudência e experiência de cada um dos ordinários, deliberando conjuntamente sobre os meios de apostolado mais realizáveis e eficazes. Essa fraternidade de fé e de ação teve também outro resultado: o de elevar a estima da religião cristã por parte das autoridades civis e dos infiéis.


8 O que resumidamente expusemos sobre os progressos obtidos pela causa missionária nesses 25 anos foi-nos dado contemplá-lo no decurso do ano santo, ao confluírem a Roma, para impetrar a bênção de Deus e nossa, multidões de fiéis das longínquas plagas agora evangelizadas. Todos esses progressos nos impelem, com o apóstolo, quando escrevia aos romanos, a desejar também nós... "conceder graças espirituais que vos confirmem, isto é, consolarmo-nos em vós, por causa da fé que nos é comum" (Rm 1,11-12).


9 Parece-nos ouvir o divino Mestre repetir a todos aquela consoladora exortação: "Levantai os olhos e contemplai os campos, que começam a alvejar para a ceifa" (Jn 4,35). E à insuficiência dos arautos da doutrina cristã para atenderem às necessidades atuais das missões, corresponde outra recomendação do divino Redentor: "A messe é deveras grande e os operários poucos. Rogai ao Senhor que envie operários à sua messe" (Mt 9,37-38).


10 Com imenso prazer reconhecemos que vai felizmente crescendo, com grande esperança para a Igreja, o número daqueles que se sentem divinamente inspirados para propagar o evangelho em todas as regiões da terra; mas muitíssimo falta ainda, e, portanto, muito resta que pedir a Deus. Considerando os inumeráveis povos ainda fora do único redil e do único porto de salvação, dirigimos ao supremo Príncipe dos pastores a súplica do Eclesiástico: "Assim como... perante eles fostes glorificado em nós, assim perante nós vós sereis exaltado neles, para que vos conheçam como nós conhecemos e saibam que não existe Deus senão vós" (Si 36,4-5).

2. Perseguições


11 Esses progressos salutares da causa missionária são fruto não só de imensos trabalhos dos semeadores da palavra divina, mas também de muito sangue derrama do em generoso martírio. Não faltaram, nesses 25 anos, terríveis perseguições à Igreja nalgumas nações, em que ela se encontrava em seus primórdios; nem faltam hoje regiões do extremo Oriente purpureadas no sangue de mártires. Chegam-nos notícias de que não poucos fiéis, como também religiosas, missionários, sacerdotes indígenas e até alguns bispos - precisamente porque se mantiveram e se mantêm heroicamente constantes na própria fé - foram expulsos de suas casas e privados de seus bens. Uns andam passando fome no exílio, outros estão encerrados em prisões ou em campos de concentração, outros ainda foram cruelmente trucidados.


12 Enche-se de indizível tristeza o nosso coração, ao pensarmos nas angústias, nos sofrimentos e na morte desses queridíssimos filhos. Acompanhamo-los não só com paternal amor, mas com paterna veneração, pois sabemos que o altíssimo ofício de missionário é muitas vézes exaltado à dignidade do martírio. Jesus Cristo, o primeiro mártir, predisse: "Se me perseguiram, perseguir-vosão também a vós" (Jn 15,20), "sereis oprimidos neste mundo, mas tende confiança, eu venci o mundo" (Jn 16,33), "se o grão de trigo lançado à terra não morrer, ficará só; mas se morrer produzirá muito fruto" (Jn 12,24-25).


13 Os arautos e pregoeiros da doutrina e moral cristãs, que longe dos lares pátrios tombam feridos de morte no desempenho do seu santíssimo ministério, são como sementes, das quais, a um sinal de Deus, hão de germinar frutos abundantíssimos. Por isso s. Paulo afirmava: "Gloriamo-nos das tribulações" (Rm 5,3), e S. Cipriano, bispo mártir, consolava e exortava os cristãos do seu tempo com estas palavras: "O Senhor quis que nos alegrássemos e exultássemos nas perseguições, porque nas perseguições se concedem coroas de fé, se provam os soldados de Deus e se abrem aos mártires as portas do céu. Não foi para pensar só na paz que demos o nosso nome à milícia de Deus, nem para afastar e rejeitar a luta, uma vez que o Senhor foi o primeiro a exercitar-se nela, como mestre de humildade, paciência e sofrimento, cumprindo ele primeiro o que nos ensinava, e sofrendo primeiro o que nos exortava a sofrermos".(5)

(5) S. Cipriano, Epist. 56, PL 4, 351A.


14 Também os semeadores do evangelho, que hoje se afadigam em plagas longínquas, propugnam a mesma causa, que se propugnava na primitiva Igreja. Encontram-se quase nas mesmas condições em que se encontravam em Roma os que - juntamente com os príncipes dos apóstolos, Pedro e Paulo - introduziram o evangelho na cidadela do império romano. Quem quer que reflita que a Igreja naqueles primórdios estava desprovida de qualquer poderio humano e era ademais oprimida de calamidades e perseguições não pode deixar de admirar como um punhado inerme de cristãos conseguiu vencer o maior poder que porventura houve na terra. O que então aconteceu, sucederá também agora. Como o jovem Davi, confiado mais no auxílio divino do que na sua funda, prostrou o gigante Golias envolto na armadura de ferro, assim a Igreja instituída por Jesus Cristo não poderá nunca ser vencida por qualquer poder da terra, mas há de superar impávida todas as perseguições. Sabemos que esta força inquebrantável tem sua origem na indefectível promessa divina; não podemos porém deixar de manifestar nosso agradecimento a todos aqueles que muito destemidamente testemunharam a fé em Jesus Cristo e na sua Igreja, coluna e fundamento da verdade (cf. 1Tm 3,5), e exortamo-los a que se mantenham firmes no caminho tomado.


15 De tal fortaleza e intrepidez recebemos freqüentes notícias, que nos confortam imensamente. Se não faltou quem, sob pretexto de amor e fidelidade à própria pátria, pretendesse separar desta cidade eterna e desta Sé Apostólica os filhos da Igreja católica, bem puderam e podem eles responder que a ninguém cedem no amor à pátria, mas que exigem se lhes respeite lealmente o direito a uma liberdade justa.

3. O trabalho a realizar


16 É preciso ter bem presente o que acima dissemos: o que há ainda por fazer no campo das missões requer enorme esforço de trabalho e muitos operários. Lembremo-nos de que os nossos irmãos "que jazem nas trevas e nas sombras" (Ps 106,10) formam multidão imensa de aproximadamente um bilhão de homens. Parece ainda ressoar o lamento do amantíssimo coração de Jesus: "Tenho outras ovelhas que não são deste redil, e é preciso reconduzi-las, e ouvirão a minha voz e far-se-á um só rebanho e um só pastor" (Jn 10,16).


17 Como bem sabeis, veneráveis irmãos, não faltam pastores que procuram afastar as ovelhas deste único redil e porto de salvação, e sabeis que tal perigo em certas regiões se vai tornando cada vez maior. Pensando na imensa multidão de homens que ainda carecem da luz do evangelho, e considerando o perigo gravíssimo em que tantos são lançados pelo materialismo ateu e por certa doutrina que se diz cristã, mas que está eivada dos erros do comunismo, vemo-nos ansiosamente impelidos a promover com todas as forças e em toda parte as obras de apostolado, e tomamos como dirigida a nós a exortação do profeta: "Clama, não cesses de clamar; como tuba faze ouvir a tua voz" (Is 58,1).


18 Recomendamos a Deus, de modo especial, os missionários que trabalham nas regiões do interior da América Latina, pois bem sabemos a que perigos e insídias estão expostos, devido aos erros disseminados pelos acatólicos.

4. O missionário


19 Para que a ação dos missionários se torne cada vez mais eficaz e para que não se perca em vão nem uma só gota do seu suor e do seu sangue, queremos traçar aqui brevemente alguns princípios e normas que lhes devem reger a atividade.


20 Convém advertir, de início, que quem é chamado por divina inspiração para a vida missionária é designado para uma obra grandiosa e de incomparável elevação. Consagra a própria vida para dilatar o reino de Deus até aos confins da terra. Não busca o que é seu, mas o que é de Jesus Cristo (cf. Ph 2,21). Pode aplicar-se a si, de modo particular, as belíssimas expressões do Apóstolo: "somos embaixadores de Jesus Cristo" (2Co 5,20), "vivendo em carne mortal, não pelejamos segundo a carne" (2Co 10,3), "fiz-me enfermo com os enfermos, para ganhar os enfermos" (1Co 9,22). Deve, pois, considerar como segunda pátria a região, a que vem trazer a luz do evangelho e amá-la conforme a caridade exige. Não procure lucros terrenos, nem os interesses da própria nação ou instituto religioso, mas unicamente o bem das almas. Deve sim amar intensamente a própria nação e a própria ordem, mas com amor ainda maior deve amar a Igreja. E lembre-se que nada do que for obstáculo ao bem da Igreja, poderá ser proveito para a sua ordem.


21 É preciso, além disso, que os candidatos às missões, enquanto se preparam na pátria, não só recebam a devida formação eclesiástica, mas adquiram também aqueles conhecimentos teóricos e práticos que lhes serão de grandíssima utilidade, quando entre estrangeiros forem pregadores do evangelho. Aprendam portanto as línguas que lhes serão necessárias, tenham conhecimentos suficientes de medicina, agricultura, etnografia, história, geografia e outras ciências congêneres.

5. A finalidade das missões


22 A primeira finalidade das missões é, porém, como todos sabem, que a luz do cristianismo brilhe com maior esplendor ante os novos povos e faça surgir dentre eles novos cristãos. Mas é preciso também que procurem desde logo - e o tenham sempre presente como fito - estabelecer solidamente a Igreja entre os povos evangelizados, dando-lhes uma hierarquia própria, formada de elementos nativos.


23 Na carta que enviamos, no dia 9 de agosto do ano passado, ao nosso dileto filho, o cardeal Pedro Fumasoni Biondi, prefeito da Sagrada Congregação "De Propaganda Fide", escrevíamos: "A Igreja não tem a mínima intenção de dominar os povos ou de se apoderar das coisas temporais, pois o seu único anelo é levar a todos os povos a luz sobrenatural da fé, promover a civilização e a fraterna concórdia entre as nações".(6)


24 E na carta apostólica Maximum illud (7), do nosso antecessor de imortal memória Bento XV, escrita no ano de 1919, como na encíclica Rerum Ecclesiae (8) do nosso imediato predecessor de feliz recordação, Pio XI, proclamava-se que as missões católicas deviam ter como fim supremo implantar a Igreja em novas terras. E em 1944, dirigindo-nos, como dissemos, aos diretores das Obras missionárias, afirmávamos: "A grande finalidade das missões é estabelecer a Igreja em novas terras, dando lhe tão profundas raízes que possa, quanto antes, viver e florescer sem o auxílio das organizações missionárias. As organizações missionárias não são fins de si mesmas: procuram com empenho o estabelecimento da Igreja em novas terras, mas uma vez que o obtêm, retiram-se para outros empreendimentos".(9) "A atividade missionária não se limita ao consolidamento de posições já conquistadas, a sua meta é transformar todo o mundo numa terra santificada. Pretendem os missionários levar através de todas as regiões, até à última e mais remota choupana e até o último e mais remoto habitante do mundo, o reino do divino Redentor ressuscitado, 'ao qual foi dado todo o poder no céu e na terra'" (cf. Mt 28,18).(10)

(6) Epist. Perlibenti equidem; AAS 42(1950), p. 727.
(7) AAS 11 (1919), p. 440s.
(8) AAS 18 (1926), p. 65s.
(9) AAS 36 (1944), p. 210.
(10) Ibidem, p. 208.

6. O clero indígena


25 É evidente que a Igreja não se pode estabelecer convenientemente nas novas regiões, sem organização adequada e principalmente sem clero indígena a altura das necessidades locais. Apraz-nos repetir aqui os ponderados e sábios ensinamentos da encíclica "Rerum Ecclesiae": "...Se cada um de vós deve procurar obter o maior número de sacerdotes indígenas, deve também procurar formá-los na santidade requerida pela vida sacerdotal e naquele espírito apostólico cheio de zelo pela salvação dos próprios irmãos, que os torne prontos a dar a vida pelos membros da sua tribo e nação". (11)


26 "Suponhamos que, por motivo de guerra ou de outros acontecimentos políticos, em algum território de missão se substitua um governo por outro e se exija ou se decrete o afastamento dos missionários de determinado país; suponhamos - o que mais dificilmente acontecerá - que as populações nativas, atingindo maior grau de civilização e uma espécie de maioridade cultural, decidam, para tornar-se independentes, excluir do seu território os representantes, as tropas e os missionários das nações colonizadoras e que isso não se possa levar a efeito sem o recurso à violência. Que ruína desastrosa ameaçaria então a Igreja em tais regiões, se não se tivesse providenciado às necessidades dos convertidos, estendendo por todo o território uma como rede de sacerdotes nativos".(12)

(11) AAS 18(1926), p. 76. 26.
(12) Ibidem, p. 75.

27 Contemplando em não poucos países do extremo oriente a verificação dessas previsões do nosso imediato predecessor, entristecemo-nos profundamente. Onde existiam missões florescentíssimas e então alvejantes para a messe (cf. Jn 4,35) vivem-se hoje dias da maior angústia. Seja-nos permitido esperar que os povos da Coréia e da China, dotados de natural bondade e delicadeza e herdeiros do esplendor de civilizações muito antigas, se vejam livres quanto antes, não só de tempestuosos conflitos bélicos, mas também da doutrina funesta que nega os bens celestes para inculcar só os da terra. E oxalá estimem, como é justo, a caridade cristã e a virtude dos missionários estrangeiros e dos sacerdotes indígenas, que com os seus trabalhos e com o risco da própria vida pretendem apenas o verdadeiro bem do povo.


28 Damos a Deus imensas graças por haver em ambas as nações um clero nativo escolhido e já numeroso, esperança da Igreja, e por bastantes dioceses estarem já entregues a bispos do país. É glória dos missionários estrangeiros ter-se podido chegar a este resultado.


29 Mas, a esse propósito, julgamos útil notar um ponto, que nos parece não dever esquecer-se quando se entregam a bispos e sacerdotes naturais missões antes confiadas a clero de fora. O instituto religioso, cujos membros cultivaram com seus suores esse campo do Senhor, quando, por decreto do Conselho supremo da Propagação da Fé, entrega a outros obreiros a vinha já carregada de abundantes frutos, não deve por isso abandoná-lo completamente; mas fará coisa muito útil se continuar a ajudar o novo bispo, escolhido na própria nação. Como na maior parte das dioceses do mundo há religiosos que ajudam o Ordinário, assim também nas regiões de missões, ainda que esses religiosos sejam originários de outros países, não deixarão de combater o santo combate como tropas auxiliares e assim se realizará perfeitamente o que disse o divino Mestre junto do poço de Sicar: "O ceifeiro recebe o salário e recolhe o fruto para a vida eterna, para que o semeador se alegre juntamente com quem colhe" (Jn 4,36).



7. A Ação Católica nas missões


30 Desejamos, além disso, com essa encíclica não só exortar os missionários, mas também esses leigos que "de coração grande e ânimo pronto" (2M 1,3) militam nos esquadrões da Ação católica e prestam auxílio aos missionários.


31 Pode-se afirmar que este auxílio dos leigos, que chamamos hoje Ação católica, não faltou desde as origens da Igreja; e mais, que prestou notáveis serviços aos apóstolos e outros propagadores do evangelho e permitiu à religião cristã apreciáveis aumentos. Por isso o apóstolo das gentes menciona Apolo, Lídia, Áquila, Priscila e Filemon e acrescenta, dirigindo-se aos Filipenses: "Peço-te também a ti, generoso colaborador, que ajudes essas que lutaram pelo evangelho, comigo e com Clemente e com os restantes colaboradores meus, cujos nomes estão no livro da vida" (Ph 4,3).


32 Do mesmo modo, é sabido de todos que a doutrina cristã não foi só propagada por bispos e sacerdotes, mas também por funcionários, soldados e simples particulares pelas estradas consulares. Numerosos milhares de fiéis cristãos, cujos nomes não conhecemos hoje, pouco depois de receberem a fé católica, ardendo no desejo de propagar a nova religião, esforçaram-se por abrir o caminho à verdade evangélica; assim se explica que, ao cabo de uns cem anos, já o nome e a virtude cristãs tinham chegado a todas as principais cidades do império romano.


33 S. Justino, Minúcio Félix, Aristides, o cônsul Acílio Glaber, o patrício Flávio Clemente, s. Tarcísio e outros inumeráveis santos e santas mártires, por terem robustecido e fecundado o desenvolvimento da Igreja com os seus trabalhos e o seu sangue, podem se chamar de alguma sorte vanguardistas e precursores da Ação católica. Vem aqui a propósito citar a belíssima frase do autor da epístola a Diogneto, que ainda hoje parece cheia de atualidade: "Os cristãos... habitam as próprias pátrias mas como de passagem..., toda região estrangeira é pátria para eles, e toda pátria lugar de peregrinação". (13)

(13) Epist. ad Diognetum, V,5; ed. Funk I, 399.

34 Sucedendo-se na Idade Média as invasões bárbaras, vemos homens e senhoras nobres e até humildes operários e incansáveis mulheres do povo esforçarem-se sem descanso por ganhar profundamente os seus compatriotas para a religião de Jesus Cristo, por lhes ajustar os costumes, e por, diante do perigo, porem a salvo a religião e o Estado. Junto ao nosso imortal predecessor Leão Magno, que resistiu fortemente a Átila, invasor da Itália, estavam, segundo a tradição, dois consulares romanos. Quando as terríveis hordas dos hunos cercavam Paris, a santa virgem Genoveva, que se deliciava na oração ininterrupta e na penitência rigorosa, com admirável caridade valeu quanto pôde às almas e também aos corpos dos seus concidadãos. Teodolinda, rainha dos lombardos, levou seu povo a abraçar a religião cristã. Na Espanha, o rei Recaredo esforçou-se por reconduzir os súditos da heresia ariana à verdadeira fé. Na França, não só aparecem bispos - como Remígio de Reims, Cesário de Arles, Gregório de Zburs, Eígio de Beauvais e outros muitos que se notabilizaram pela virtude e zelo, mas também rainhas que ensinaram aos ignorantes a verdade cristã, que deram de comer, aliviaram ou reanimaram doentes, famintos e toda a espécie de necessitados: assim, por exemplo, Clotilde tanto aproximou o espírito de Clóvis da religião católica que o levou, afinal, à purificação do batismo; Radegunda e Batilda ocuparam-se dos doentes com a maior caridade e curaram até leprosos. Na Inglaterra, a rainha Berta recebeu o apóstolo daquela nação, s. Agostinho, e persuadiu o marido Edelberto a aceitar de boa vontade os preceitos evangélicos. E quando os Anglo-Saxões, nobres e ínfimos plebeus, homens e mulheres, velhos e novos, receberam a fé cristã, logo, levados pelo certo instinto do amor divino, se ligaram a esta Sé Apostólica com laços apertadíssimos de amor filial, de fidelidade e de respeito.


35 É maravilhoso, também, o espetáculo que apresenta a Alemanha, quando fecundada pelas excursões apostólicas e pelo suor generoso de S. Bonifácio e seus companheiros. Os filhos e filhas desse povo forte e generoso, num grande movimento espiritual, puseram à disposição dos monges, dos sacerdotes e dos bispos uma cooperação zelosa e ativa, para que brilhasse cada vez mais naquelas regiões vastíssimas a luz da verdade evangélica e para que os mandamentos e a virtude cristã mais e mais avançassem, produzindo frutos de salvação.


36 Em tempo nenhum, portanto, deixou a Igreja católica de realizar novos progressos e de levar os povos a maior prosperidade social, e isto, não só pelo incansável trabalho do clero, mas também pela cooperação pedida aos leigos. Assim, todos conhecem a atividade da rainha s. Isabel na Hungria, do rei s. Fernando em Castela e de s. Luís IX em França; com santidade de vida e ação perseverante, comunicaram força renovadora às várias classes da sociedade, fundando instituições benéficas, fazendo chegar a verdadeira religião a toda parte, defendendo valorosamente a Igreja e sobretudo indo a frente de todos pelo exemplo. São conhecidos também os ótimos serviços prestados pelas beneméritas confrarias de leigos na Idade Média; nelas se reuniam os artífices e operários de ambos os sexos, que, embora vivendo no século, não deixavam por isso de ter diante dos olhos um ideal de perfeição evangélica, que procuravam pessoalmente atingir e para o qual se esforçavam, em união com o clero, por orientar a todos os demais.


37 Ora, as condições, que se realizavam nos primeiros tempos da Igreja, reproduzem-se hoje na maioria das regiões missionadas; ou, pelo menos, os problemas que as afligem agora são os mesmos a que noutro tempo e lugar foi preciso encontrar solução. Por isso, é absolutamente necessário que os leigos das missões associem ao apostolado hierárquico do clero a sua atividade incansável, formada nas hostes cerradas da Ação católica. O trabalho dos catequistas é necessário, sem dúvida; mas não menos necessária é a atividade vigilante de outros que, sem pretenderem qualquer paga, mas levados só pelo amor de Deus, se põem à disposição dos missionários, ajudando-os no seu trabalho.


38 Desejamos, portanto, que em toda parte, na medida do possível, se constituam associações católicas de homens e mulheres, de estudantes, de operários, de artífices e de desportistas, e além disso outras organizações e piedosos agrupamentos, que se possam chamar tropas auxiliares dos missionários. Mas, ao fundá-las e ao dar-lhes vida, tenha-se mais conta da honestidade, da virtude e do ardor que do número dos sócios.


39 Deve-se notar também que não há melhor meio para conciliar aos missionários a confiança dos pais e mães de família do que lhes tomar cuidado solícito dos filhos. Estes, orientando o espírito pela verdade cristã e pautando os costumes pela norma da virtude, concorrerão não só para a honra da própria família, mas também para o vigor e brilho de toda a sociedade; e terão freqüentemente o bom papel de restituir o vigor antigo à vida da comunidade cristã, acaso debilitada.


40 Apesar de a Ação católica, como é sabido, dever exercitar principalmente sua atividade em promover obras de apostolado, nada impede os que foram recebidos nos seus quadros de fazerem também parte de associações cujo fim é ajustar a vida social e política aos princípios do evangelho; mais ainda: não só como cidadãos, mas também como católicos, gozam do direito de o fazer; e têm até esse dever.

8. A escola e a imprensa


41 E como a juventude, sobretudo a que se dá às letras e aos estudos superiores, há de fornecer os mentores do futuro, ninguém deixará de reconhecer quanto importa que haja particular cuidado das escolas primárias, secundárias e universitárias. Com ânimo paternal exortamos, portanto, os superiores das missões a que as desenvolvam com todo o empenho, quanto for possível, sem se pouparem a trabalhos nem a despesas.


42 De fato, esses centros educativos têm principalmente a utilidade de fomentar relações frutuosas entre os missionários e os pagãos de todas as classes, e de facilitar principalmente à juventude, moldável como a cera, a compreensão, estima e aceitação da doutrina católica. Essa mocidade instruída há de chegar, como todos sabem, a dirigir o Estado; e a massa do povo segui-la-á como a chefes e mestres. O apóstolo das gentes manifestou também, diante da assembléia dos sábios, a altíssima sabedoria do evangelho, quando anunciou o Deus desconhecido no Areópago de Atenas. Se, porém, como resultado deste apostolado do ensino, não vierem a ser muitos os que se convertam completamente, mais numerosos hão de ser aqueles que se sintam invadidos de suave atrativo para a beleza sublime da nossa religião e para a caridade dos seus adeptos.


43 São, além disso, as escolas e colégios instituições utilíssimas para se refutarem os erros de toda sorte, que hoje grassam cada vez mais e, às claras ou solapadamente, se insinuam de modo especial nas almas juvenis, devido à ação dos acatólicos e dos comunistas.


44 Nem é menos útil editar e divulgar escritos sobre problemas atuais. Julgamos que não vale a pena determo-nos neste ponto; entra pelos olhos de todos a importância dos jornais, revistas e livros seja para apresentarem na devida luz a verdade e a virtude e para a inculcarem às almas, seja para descobrirem os enganos propostos sob aparência de verdade, seja ainda para refutarem as falsidades que ora atacam a religião, ora deformam com grande prejuízo das almas questões sociais candentes. Por isso, louvamos muito os pastores que têm a peito divulgar o mais possível tais publicações bem orientadas. Não é pouco o já realizado neste campo, mas muito mais está ainda por fazer.

9. Assistência sanitária


45 Apraz-nos agora recomendar, com a maior instância, obras e iniciativas que valem a doenças e tribulações de toda espécie; referimo-nos aos hospitais, aos leprosários, aos postos de distribuição de remédios, aos asilos de velhos, às maternidades, aos orfanatos e aos refúgios para necessitados. Estas obras, que nos parecem as mais belas flores do jardim cultivado pelos semeadores da palavra evangélica, apresentam-nos, por assim dizer, nova visão do divino Redentor, que "passou fazendo o bem e sarando a todos" (Ac 10,38).


46 Sem dúvida essas maravilhas de caridade preparam com a maior eficácia os espíritos pagãos e levam-nos a abraçar a religião cristã; e são também o seguimento da ordem de Jesus dada aos apóstolos: "Em qualquer cidade em que entrardes, e vos receberem, curai os doentes que nela houver, e dizei-lhes: 'aproximou-se de vós o reino de Deus'" (Lc 10,8-9). 47. Mas é preciso que os religiosos e religiosas chamados para este frutuoso trabalho, adquiram, antes de partir, a preparação intelectual e moral hoje requeridas. Sabemos que não faltam religiosas, possuidoras de diplomas oficiais, que estudaram doenças horríveis como a lepra e lhes encontraram remédios apropriados. Merecem bem justos louvores. A elas, como a todos os missionários que trabalham dedicadamente nos leprosários, abençoamos nós com amor paternal, admirando caridade tão heróica.


48 Quanto à medicina e à cirurgia, será muito conveniente solicitar o auxílio de leigos diplomados, que aceitem de boa vontade abandonar a própria pátria a fim de se porem à disposição dos missionários. Mas é necessário que se recomendem pela sã doutrina e pela virtude.


Evangelii praecones PT