Quadragesimo anno PT


CARTA ENCÍCLICA

QUADRAGESIMO ANNO

DE SUA SANTIDADE

PAPA PIO XI

SOBRE A RESTAURAÇÃO

E APERFEIÇOAMENTO

DA ORDEM SOCIAL

EM CONFORMIDADE COM

A LEI EVANGÉLICA NO XL ANIVERSÁRIO

DA ENCÍCLICA DE LEÃO XIII «RERUM NOVARUM»

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS

PATRIARCAS PRIMAZES ARCEBISPOS BISPOS

E MAIS ORDINÁRIOS EM PAZ E COMUNHÃO

COM A SÉ APOSTÓLICA

BEM COMO A TODOS OS FIÉIS DO ORBE CATÓLICO






Veneráveis Irmãos e Amados
Filhos Saúde e Bênção Apostólica

No 40º aniversário da magistral encíclica de Leão XIII « Rerum novarum », todo o orbe católico, movido dos sentimentos da mais viva gratidão, propõe-se comemorá-la com a devida solenidade.

A Encíclica « Rerum novarum »\b\i.

1 Já antes, em certo modo, haviam preparado o caminho àquele documento de solicitude pastoral, as encíclicas do mesmo Nosso Predecessor sobre o princípio da sociedade humana que é a família e o santo sacramento do Matrimónio, (1) sobre a origem da autoridade civil, (2) e a devida ordem das suas relações com a Igreja, (3) sobre os principais deveres dos fieis como cidadãos, (4) contra os princípios do socialismo, (5) contra as falsas teorias da liberdade humana, (6) e outras do mesmo género que plenamente revelaram o modo de pensar de Leão XIII; contudo a encíclica « Rerum novarum » distingue-se das demais por ter dado a todo o género humano regras seguríssimas para a boa solução do espinhoso problema do consórcio humano, a chamada « Questão social », precisamente quando isso mais oportuno e necessário era.

(1) Encícl. Arcanum 10 de Fevereiro de 1880.
(2) Encícl. Diuturnum 29 de Junho de 1881.
(3) Encícl. Immortale Dei 1 de Novembro de 1885.
(4) Encícl. Sapientiae christianae 10 de Janeiro de 1890.
(5) Encícl. Quod apostolici muneris 28 de Dezembro de 1878.
(6) Encícl. Libertas 20 de Junho de 1888.

Sua ocasião

2 Com efeito ao fim do século XIX, em consequência de um novo género de economia, que se ia formando, e dos grandes progressos da indústria em muitas nações, aparecia a sociedade cada vez mais dividida em duas classes : das quais uma, pequena em número, gozava de quase todas as comodidades que as invenções modernas fornecem em abundância; ao passo que a outra, composta de uma multidão imensa de operários, a gemer na mais calamitosa miséria, debalde se esforçava por sair da penúria, em que se debatia.

Com tal estado de coisas facilmente se resignavam os que, nadando em riquezas, o supunham efeito inevitável das leis económicas, e por isso queriam que se deixasse à caridade todo o cuidado de socorrer os miseráveis; como se a caridade houvesse de capear as violações da justiça, não só toleradas, mas por vezes até impostas pelos legisladores. Ao contrário só a duras penas o toleravam os operários, vítimas da fortuna adversa, e tentavam sacudir o jugo duríssimo: uns, levados na fúria de maus conselhos, aspiravam a tudo subverter, os outros, a quem a educação cristã demovia d'esses maus intentos, estavam contudo firmemente convencidos de que nesta matéria era necessária uma reforma urgente e radical.

O mesmo pensavam todos os católicos, sacerdotes ou leigos, que, impelidos por uma caridade admirável, já de há muito trabalhavam em aliviar a miséria imerecida dos operários, não podendo de modo nenhum persuadir-se de que uma diferença tão grande e tão iníqua na distribuição dos bens temporais correspondesse verdadeiramente aos desígnios sapientíssimos do Criador.

Procuravam eles com toda a lealdade um remédio eficaz a esta lamentável desordem da sociedade e uma firme defesa contra os perigos ainda maiores que a ameaçavam; mas tal é a fraqueza mesmo das melhores inteligências humanas, que ora se viam repelidos como inovadores perigosos, ora obstaculados por companheiros de acção mas de ideais diversos: e assim hesitantes entre várias opiniões, nem sabiam para onde voltar-se.

No meio de tão grande luta de espíritos, quando de uma parte e doutra ferviam disputas nem sempre pacíficas, todos os olhos se volviam, como tantas outras vezes, para a cátedra de Pedro, para este depósito sagrado de toda a verdade, donde se difundem pelo mundo inteiro palavras de salvação; e todos, sociólogos, patrões, operários, acorrendo com frequência desusada aos pés do Vigário de Cristo na terra, suplicavam a uma voz que se lhes indicasse enfim o caminho seguro.

Prudentíssimo como era o Pontífice, tudo ponderou longamente diante de Deus, chamou a conselho homens de reconhecida ciência, pesou bem as razões por uma parte e outra, e finalmente movido « pela consciência do múnus Apostólico », (7) para que não parecesse, que descurava os seus deveres calando por mais tempo, (8) decidiu-se a falar a toda a Igreja de Cristo, antes a todo o género humano, no exercício do magistério divino a ele confiado.

Ressoou por tanto no dia 15 de maio de 1891 aquela voz há tanto suspirada, ressoou robusta e clara, sem que a intimidassem as dificuldades, nem a enfraquecesse a velhice, e ensinou à família humana, a empreender novos caminhos no terreno social.


(7) Encícl. Rerum novarum, 15 de Maio de 1891, n. 1.
(8) Cfr. Encícl. Rerum novarum, n. 13.

Tópicos principais

3 Conheceis, veneráveis Irmãos e amados Filhos, e sabeis perfeitamente a admirável doutrina, que tornou a encíclica « Rerum novarum » digna de eterna memória. Nela o bom Pastor, condoído ao ver « a miserável e desgraçada condição, em que injustamente viviam » tão grande parte dos homens, tomou animoso a defesa dos operários, que « as condições do tempo tinham entregado e abandonado indefesos à crueldade de patrões desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada ».(9) Não pediu auxílio nem ao liberalismo nem ao socialismo, pois que o primeiro se tinha mostrado de todo incapaz de resolver convenientemente a questão social, e o segundo propunha um remédio muito pior que o mal, que lançaria a sociedade em perigos mais funestos.

O Pontífice no uso do seu direito e convencido de que a ele principalmente fora confiada a salvaguarda da religião e de tudo o que com ela está estreitamente vinculado, pois se tratava de um problema « a que não se podia encontrar solução plausível sem o auxílio da religião e da Igreja », (10) apoiando-se unicamente nos princípios imutáveis tirados do tesoiro da recta razão e da revelação divina, confiadamente e « como quem tinha autoridade », (11) expôs com inexcedível clareza e proclamou não só « os direitos e os deveres que devem reger as relações mútuas dos ricos e dos proletários, dos capitalistas e dos trabalhadores », (12) mas também a parte que deviam tomar a Igreja, a autoridade civil e os próprios interessados na solução dos conflitos sociais.

Nem a voz Apostólica ressoou debalde; antes, com assombro a ouviram e a aplaudiram com suma benevolência, além dos filhos obedientes da Igreja, muitos dos que viviam longe da verdade e da unidade da fé e quase todos os que depois se ocuparam de sociologia e economia tanto no estudo teórico como na pública legislação.

Foram porém os operários cristãos os que com maior alegria acolheram a encíclica ao verem-se assim vingados e defendidos pela suprema Autoridade da terra e com eles todas as almas generosas, que, já de há muito empenhadas em aliviar a sorte dos operários, não tinham encontrado senão indiferença em muitos, suspeitas odientas e até manifesta hostilidade em muitos outros. E é por isso que todos estes tiveram depois em tanta estima aquelas letras Apostólicas, que todos os anos costumam celebrar-lhe a memória com demonstrações de gratidão diversas nas diversas terras.

No meio de tanta harmonia de sentimentos não faltaram vozes discordantes de alguns, mesmo de católicos, a quem a doutrina de Leão XIII, tão nobre e elevada, tão nova para humanos ouvidos pareceu suspeita e até escandalizou. Ela assaltava ousadamente e derribava os ídolos do liberalismo, não fazia caso de preconceitos inveterados, prevenia inopinadamente o futuro: que muito que os rotineiros desdenhassem aprender esta nova filosofia social e os tímidos receassem subir a tais alturas, ao passo que outros, admirando aquela luz, a reputavam perfeição ideal, mais para desejar que para realizar?

(9) Encícl. Rerum novarum, n. 2.
(10) Encícl. Rerum novarum, D. 13.
(11)
Mt 7,29.
(12) Encícl. Rerum novarum, n. 1.

Fim da presente Encíclica

4 Por isso é que Nós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, agora que todo o mundo e sobretudo os operários católicos, que de toda a parte acodem a esta Alma Cidade, comemoram com tanta solenidade e entusiasmo o quadragésimo aniversário da encíclica « Rerum novarum », julgamos dever Nosso aproveitar esta ocasião para recordar os grandes. benefícios que dela advieram à Igreja católica e a toda a humanidade; defender a doutrina social e económica de tão grande Mestre satisfazendo a algumas dúvidas, desenvolvendo mais e precisando alguns pontos; finalmente, chamando a juízo o regime económico moderno e instaurando processo ao socialismo, apontar a raiz do mal estar da sociedade contemporânea e mostrar-lhe ao mesmo tempo a única via de uma restauração salutar, que é a reforma cristã dos costumes. Eis os três pontos da presente encíclica.

I. BENEFÍCIOS DA «RERUM NOVARUM »


5 Para começarmos pelo que em primeiro lugar propusemos, seguindo a advertência de S. Ambrósio, (13) que a gratidão é o primeiro e mais imperioso dos deveres, não podemos conter-Nos que não demos a Deus as maiores acções de graças pelos imensos benefícios que da encíclica de Leão XIII advieram à Igreja e a todo o género humano. Se Nós os quiséssemos enumerar, mesmo de passagem, deveríamos por assim dizer, recordar toda a história dos últimos quarenta anos, na parte relativa à questão social. Mas tudo se pode reduzir a três pontos, conforme ao tríplice concurso que o Nosso Predecessor desejava, para poder levar a efeito a sua obra grandiosa de restauração.

(13) S. Ambrósio, de excessu fratris sui Satyri, I, 44.


1. - ACÇÃO DA IGREJA

6 Em primeiro lugar o que da Igreja se podia esperar, declarou-o eloquentemente o mesmo Leão XIII : « A Igreja é a que aufere do Evangelho a única doutrina capaz de pôr termo à luta, ou ao menos de a suavizar, tirando-lhe toda a aspereza; é ela que com seus preceitos instrui as inteligências e se esforça por moralizar a vida dos indivíduos; que com utilíssimas instituições melhora continuamente a sorte dos proletários ». (14)

(14) Encícl. Rerum novarum, n. 13.

a) No campo doutrinal

7 Ora a Igreja não deixou estagnar no seu seio esta linfa preciosa, senão que a fez correr em abundância para o bem comum da suspirada paz. O próprio Leão XIII e seus Sucessores não cessaram de proclamar de viva voz e por escrito a doutrina social e económica da encíclica « Rerum novarum », urgindo-a e aplicando-a segundo a ocasião às circunstâncias de tempo e lugar, com aquela caridade paterna e constância pastoral, que sempre os distinguiu na defesa dos pobres e desvalidos. (15) Nem foi outro o proceder de grande parte do Episcopado, que com assiduidade e maestria declarou e comentou a mesma doutrina, adaptando-a às condições dos diversos países, segundo a mente e as directivas da Santa Sé. (16)

Não é pois de admirar, que muitos sábios quer eclesiásticos quer leigos se aplicassem diligentemente, seguindo a orientação dada pela Igreja, a desenvolver a ciência social e económica, conforme às exigências do nosso tempo, levados sobretudo do desejo de tornar a doutrina inalterada e inalterável da Igreja mais eficaz para remediar as necessidades modernas.

Foi assim que à luz e sob o impulso da encíclica de Leão XIII nasceu uma verdadeira ciência social católica, cultivada e enriquecida continuamente pela indefessa aplição d'aquêles varões escolhidos, que chamámos cooperadores da Igreja. Nem eles a deixam escondida na sombra de simples discussões eruditas, mas expõem-na à luz do sol em públicas palestras, como o demonstram exuberantemente os cursos, tão úteis e tão frequentados, instituídos nas universidades católicas, academias e seminários, os congressos ou « semanas sociais » celebrados frequentemente e com grande fruto, os círculos de estudos, os escritos repletos de oportuna e sã doutrina, por toda a parte e por todos os modos divulgados.

E não são estes apenas os frutos do documento Leoniano : a doutrina ensinada na encíclica « Rerum novarum » impôs-se insensivelmente à atenção d'aqueles mesmos que, separados da unidade católica, não reconhecem a autoridade da Igreja ; e assim os princípios de sociologia católica entraram pouco a pouco no património de toda a sociedade humana ; e as verdades eternas, tão altamente proclamadas pela santa memória do Nosso Predecessor, vemo-las frequentemente citadas e defendidas não só em jornais e livros mesmo acatólicos, mas até nos parlamentos e tribunais.

E quando após a grande guerra os governantes das principais potências, trataram de restabelecer a paz sobre as bases de uma completa renovação social, entre as leis, feitas para regular o trabalho dos operários segundo a justiça e a equidade, decretaram muitas tão conformes com os princípios e directivas de Leão XIII, que parecem intencionalmente copiadas. É que a encíclica « Rerum novarum » é um documento tão notável, que bem se pode dizer com palavras de Isaias : « Estandarte arvorado à face das nações »! (17)

(15) Baste mencionar: Leão XIII, Letras Apostólicas Praeclara 20 de Junho de 1894. Leão XIII Graves de communi 18 de Janeiro de 1901. Pio X Motu proprio sobre a Acção-popular cristã 8 de Dezembro de 1903. Bento XV, Enciclica Ad Beatissimi 1 de Novembro de 1914. Pio XI, Enciclica Ubi arcano 23 de Dezembro de 1922. Pio XI, Enciclica Rite expiatis 30 de Abril de 1926.
(16) Cfr. La Hierarchie Catholique et le Problème social depuis l'Encyclique « Rerum novarum » 1891-1931, pp. xv1-335, publicado pela « Union internationale d'études sociales fondée à Malines, en 1920, sons la présidence du Card. Mercier ». (Paris, éditions Spes », 1931).
(17) Cfr.
Is 11,12.

b) Na prática

8 Assim se iam divulgando cada vez mais à luz das investigações científicas os preceitos de Leão XIII ; ao mesmo tempo passava-se à sua aplicação prática. E primeiramente com actividade e benevolência fizeram-se todos os esforços para. elevar aquela classe, que os recentes progressos da indústria tinham aumentado desmedidamente sem lhe darem na sociedade o lugar que lhe competia, e que por isso jazia em quase completa desconsideração e abandono : falamos dos operários., a cuja cultura zelosos sacerdotes de um e outro clero, apesar de sobrecarregados com outros cuidados pastorais, se aplicaram desde logo, sob a guia dos respectivos Prelados e com grande fruto d'aquelas almas. Este trabalho constante vara embeber de espírito cristão as almas dos operários contribuiu também muitíssimo para lhes dar a verdadeira consciência da própria dignidade, e para habilitá-los, pela compreensão clara dos direitos e deveres da sua classe, a progredir honrada e felizmente no campo social e económico, a ponto de servirem de guias aos outros.

Daqui os meios de subsistência melhor assegurados e em maior cópia : por quanto não só começaram a multiplicar-se segundo as exortações do grande Pontífice as obras de caridade e beneficência, mas também foram surgindo por toda a parte e cada vez mais numerosas as associações de mútuo socorro para operários, artistas, agricultores e jornaleiros de toda a espécie, fundadas segundo os conselhos e directivas da Igreja e ordinariamente sob a direcção do clero.


2. - ACÇÃO DA AUTORIDADE CIVIL

9 Quanto à autoridade civil, Leão XIII, ultrapassando com audácia os confins impostos pelo liberalismo, ensina impertérrito, que ela não deve limitar-se a tutelar os direitos e a ordem pública, mas antes fazer o possível « para que as leis e instituições sejam tais... , que da própria organização do Estado dimane espontaneamente a prosperidade da nação e dos indivíduos ». (18) Deve sim deixar-se tanto aos particulares como às famílias a justa liberdade de acção, mas contanto que se salve o bem comum e não se faça injúria a ninguém. Aos governantes compete defender toda a nação e os membros que a constituem, tendo sempre cuidado especial dos fracos e deserdados da fortuna ao proteger os direitos dos particulares. « Por quanto a classe abastada, munida dos seus próprios recursos, carece menos do auxílio público; pelo contrário a classe indigente, desprovida de meios pessoais, esteia-se sobre tudo na protecção do Estado. Por conseguinte deve ele atender com particular cuidado e providência aos operários, visto serem eles do número da classe pobre ». (19)

Não negamos que alguns governantes, já antes da encíclica de Leão XIII, tivessem provido às necessidades mais urgentes dos obreiros e reprimido as injustiças de maior vulto a estes feitas. Mas foi só depois que a palavra Apostólica ressoou ao mundo inteiro desde a cátedra de Pedro, que os governos, capacitando-se mais da sua missão, se aplicaram a desenvolver uma política social mais activa.

E na verdade, em quanto vacilavam os princípios do liberalismo, que havia muito paralisavam a obra eficaz dos governos, a encíclica « Rerum novarum» produziu no seio das nações uma grande corrente favorável a uma política francamente social, e de tal modo excitou os melhores católicos a cooperar com as autoridades, que não raro foram eles os defensores mais ilustres da nova legislação nos próprios parlamentos. Mais ainda : foram ministros da Igreja compenetrados da doutrina de Leão XIII que propuseram às câmaras muitas das leis sociais recentemente promulgadas, e que depois mais urgiram e promoveram a sua execução.

Deste contínuo e indefesso trabalho nasceu aquela jurisprudência completamente desconhecida nos séculos passados, que se propõe defender com ardor os sagrados direitos do operário, provenientes da sua dignidade de homem e de cristão : de facto estas leis protegem a alma, a saúde, as forças, a família, as casas, as oficinas, o salário, abrangem os acidentes de trabalho, numa palavra, tudo aquilo que interessa a classe trabalhadora, principalmente as mulheres e crianças. E se uma tal legislação não condiz de todo nem em toda a parte com as normas de Leão XIII, não se pode contudo negar haver nela muitas reminiscências da encíclica « Rerum novarum » e que à mesma por conseguinte se deve atribuir em grande parte a melhorada condição dos operários.

(18) Encícl. Rerum novarum, n. 25.
(19) Encícl. Rerum novarum, n. 29.


3. - ACÇÃO DOS INTERESSADOS

10 Mostra enfim muito prudentemente o Pontífice, que os patrões e os próprios operários podem fazer muito nesta matéria, « com as instituições destinadas a levar auxílio oportuno aos indigentes e a aproximar mais uma classe da outra ». (20) Entre estas dá Leão XIII o primeiro lugar às associações que abrangem quer somente os operários, quer operários e patrões; e alarga-se em recomendá-las e ilustrá-las, declarando a sua natureza, razão de ser, conveniência, direitos, deveres, leis, com sabedoria verdadeiramente admirável.

Nem estes ensinamentos podiam vir em ocasião mais oportuna : com efeito nesse tempo os que tinham na mão em muitas nações o leme do Estado, totalmente impregnados de liberalismo, não só não eram favoráveis às associações operárias, mas até abertamente as hostilizavam ; e quando reconheciam de boa vontade e tutelavam instituições análogas entre outras classes, negavam com injustiça flagrante o direito natural de associação àqueles, que mais necessitavam dele, para se defender das vexações dos poderosos ; nem faltou ainda mesmo entre os católicos quem visse de maus olhos, acoimando-os de socialistas ou anárquicos, os esforços dos operários em associar-se.

(20) Encícl. Rerum novarum, n. 36.

A) Associações operárias

11 São por tanto dignas dos maiores encómios as normas emanadas da autoridade de Leão XIII, que lograram derribar tais obstáculos, e desfazer tais suspeitas ; mas tornaram-se ainda mais importantes, por terem exortado os operários cristãos a associarem-se segundo os vários misteres, ensinando-lhes o meio de o conseguirem, e por terem ainda consolidado no caminho do dever muitos, a quem as associações socialistas seduziam fortemente, apregoando-se a si mesmas únicos defensores e propugnadores dos humildes e oprimidos.

Quanto à erecção destas associações, a encíclica « Rerum novarum» observa muito a propósito, « que as corporações devem organizar-se e governar-se de modo que forneçam a cada um de seus membros os meios mais fáceis e expeditos para conseguirem seguramente o fim proposto, isto é : a maior cópia possível, para cada um, de bens do corpo, do espírito e da fortuna »; porém é claro « que sobretudo se deve ter em vista, como mais importante, a perfeição moral e religiosa; e que por ela se deve orientar todo o regulamento destas sociedades ». (21) Com efeito « constituída assim a religião como fundamento de todas as leis sociais, não é difícil determinar as relações que devem existir entre os membros para que possam viver em paz e prosperar . (22)

Desejosos de levar a efeito a aspiração de Leão XIII, muitos do clero e do laicado dedicaram-se por toda a parte com louvável empenho a fundar estas associações; as quais protegidas pela religião, embebidas do seu espírito, formaram operários verdadeiramente cristãos, que uniam em boa harmonia o exercício diligente da própria arte com os preceitos salutares da religião e defendiam eficaz e tenazmente os próprios direitos e interesses temporais, tendo sempre em conta a justiça e o sincero desejo de colaborar com as outras classes para a restauração cristã de toda a vida social.

Diverso segundo as várias circunstâncias locais foi o esforço em realizar os desígnios e as normas de Leão XIII. De facto nalgumas regiões a mesma associação abraçava todos os fins visados pelo Pontífice ; noutras ao contrário chegou-se a uma certa divisão de actividade; e formaram-se associações distintas, umas para zelar os direitos e interesses legítimos dos sócios nos contractos de trabalho, outras para organizar o mútuo auxílio económico, outras finalmente para o desempenho dos deveres religiosos e morais e de outras obrigações análogas.

Este segundo método prevaleceu sobretudo nos países, onde as leis pátrias, as instituições económicas, ou a discórdia de inteligências e corações tão deploravelmente enraizada na sociedade moderna ou ainda a, necessidade urgente de opor uma frente única aos inimigos da ordem, impediam aos católicos a fundação de sindicatos próprios. Num tal estado de coisas os católicos vêem-se quase obrigados a inscrever-se em sindicatos neutros, uma vez que façam profissão de justiça e equidade e deixem aos sócios católicos plena liberdade de obedecer à própria consciência e cumprir os preceitos da Igreja. Pertence aos Bispos, se reconhecerem que tais associações são impostas pelas circunstâncias e não oferecem perigo para a religião, permitir que os operários católicos se inscrevam nelas, observando contudo a este respeito as normas e precauções recomendadas por Nosso Predecessor Pio X, de santa memória. (23) Primeira e a mais importante é, que ao lado dos sindicatos existam sempre outros grupos com o fim de dar a seus membros uma séria formação religiosa e moral, para que eles depois infiltrem nas organizações sindicais o bom espírito que deve animar toda a sua actividade. Sucederá assim que estes grupos exercerão benéfica influencia mesmo fora do próprio âmbito.

Por isso deve atribuir-se à encíclica Leoniana o terem florescido tanto por toda a parte estas associações operárias, que já hoje, apesar de serem, infelizmente, ainda inferiores em número às dos socialistas e comunistas, agrupam notável multidão de sócios e podem defender energicamente os direitos e aspirações legítimas do operariado católico e propugnar os salutares princípios da sociedade cristã, quer fronteiras a dentro da pátria, quer em congressos internacionais.

(21) Encícl. Rerum novarum, n. 42.
(22) Encícl. Rerum novarum, n. 43.
(23) Encícl. Singulari quadam de 24 de Setembro de 1912.

B) Associações não operárias

12 Acresce ao sobredito, que a doutrina relativa ao direito natural de associação tão sabiamente exposta e com tanto valor defendida por Leão XIII, começou naturalmente a aplicar-se também a associações não operárias; pelo quê deve-se em grande parte mesma encíclica, que até entre os agricultores e outros membros da classe média se vejam florescer e multiplicar de dia para dia estas utilíssimas corporações e outros institutos similares, que aliam felizmente os interesses económicos à formação espiritual.

C) Associações de industriais

13 E se não pode dizer-se o mesmo das associações que o Nosso Predecessor tão ardentemente desejava ver instituídas entre patrões e industriais, e que lamentamos sejam tão poucas, não deve isso atribuir-se completamente à má vontade dos homens, mas a dificuldades muito maiores que se opõem à sua realização, dificuldades que Nós muito bem conhecemos e avaliamos na devida conta. Temos porém segura esperança de que para breve até essas dificuldades desaparecerão e saudamos já com íntimo júbilo da alma alguns esforços envidados com vantagem neste particular, cujos frutos abundantes prometem messe ainda mais copiosa para o futuro. (24)

(24) Carta da S. Congregação do Concilio ao Bispo de Lille, 5 de Junho de 1929.

CONCLUSÃO: A « MAGNA CHARTA » DOS OPERÁRIOS


14 Todos estes benefícios da encíclica de Leão XIII que Nós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, acabamos de recordar, acenando-os mais do que descrevendo-os, são tais e tão grandes, que mostram claramente como o imortal documento não era apenas a expressão de um ideal magnífico mas irrealizável. Ao contrário o Nosso ilustre Predecessor hauriu no Evangelho, e portanto numa fonte sempre viva e vivificante a doutrina que pode, senão resolver já de vez, ao menos abrandar muito a luta fatal em que mutuamente se digladia a família humana. Os frutos de salvação recolhidos pela Igreja de Cristo e por todo o género humano, com a graça de Deus, mostram bem que a boa. semente, espalhada há quarenta anos em tão larga cópia, caiu em grande parte numa terra fértil ; nem é temeridade afirmar que a encíclica de Leão XIII se demonstrou com a longa experiência do tempo a « Magna Charta » em que deve basear-se como em sólido fundamento toda a actividade cristã no campo social. Por isso os que mostram fazer pouco da mesma encíclica e da sua comemoração, estes ou blasfemam do que não conhecem, ou não percebem nada do que conhecem, ou, se percebem, praticam uma solene injustiça, e ingratidão.

Mas como durante estes anos surgiram dúvidas sobre a recta interpretação de vários passos da encíclica ou sobre as consequências a deduzir deles, dando ocasião entre os próprios católicos a discussões nem sempre amigáveis ; e como por outra parte as novas exigências do nosso tempo e as mudadas condições sociais tornam necessária uma aplicação mais esmerada da doutrina Leoniana e mesmo algumas adições, aproveitamos de boa vontade esta ocasião, para, em virtude do Nosso múnus Apostólico, que a todos Nos faz devedores, (25) satisfazermos, quanto é da Nossa parte, a estas dúvidas e exigências.

(25) Cfr.
Rm 1,14.

II.


AUTORIDADE DA IGREJA NA QUESTÃO SOCIAL E ECONÓMICA


15 Mas antes de entrarmos neste assunto, devemos pressupor, o que já provou abundantemente Leão XIII, que julgar das questões sociais e económicas é dever e direito da Nossa suprema autoridade. (26) Não foi é certo confiada à Igreja, a missão de encaminhar os homens à conquista de uma felicidade apenas transitória e caduca, mas da eterna; antes « a Igreja crê não dever intrometer-se sem motivo nos negócios terrenos ». (27) O que não pode, é renunciar ao ofício de que Deus a investiu, de interpor a sua autoridade não em assuntos técnicos, para os quais lhe faltam competência e meios, mas em tudo o que se refere à moral. Dentro deste campo, o depósito da verdade que Deus Nos confiou e o gravíssimo encargo de divulgar toda a lei moral, interpretá-la e urgir o seu cumprimento oportuna e importunamente, sujeitam e subordinam ao Nosso juízo a ordem social e as mesmas questões económicas.

Pois ainda que a economia e a moral « se regulam, cada uma no seu âmbito, por princípios próprios », (28) é erro julgar a ordem económica e a moral tão encontradas e alheias entre si, que de modo nenhum aquela dependa desta. Com efeito, as chamadas leis económicas, deduzidas da própria natureza das coisas e da índole do corpo e da alma, determinam os fins que a actividade humana se não pode propor, e os que pode procurar com todos os meios no campo económico ; e a. razão mostra claramente, da mesma natureza das coisas e da natureza individual e social do homem, o fim imposto pelo Criador a toda a ordem económica.

Por sua parte a lei moral manda-nos prosseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa actividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins particulares impostos pela natureza, ou melhor, por Deus autor da mesma; subordinando sempre estes fins aquele, como pede a boa ordem. Se seguirmos fielmente esta regra, sucederá, que os fins particulares da economia, sejam eles individuais ou sociais, se inserirão facilmente na ordem geral dos fins, e nós subindo por eles, como por uma escada, chegaremos ao fim último de todos os seres, que é Deus, bem supremo e inexaurível para si e para nós.

(26) Cfr. Rerum novarum, n. 13.
(27) Encícl. Ubi arcano, 23 de Dezembro de 1922.
(28) Cfr. Conc. Vaticano, Sess. 3, c. 4.


1. - DO DIREITO DE PROPRIEDADE

16 Para vir agora ao particular, começamos pelo direito de propriedade. Sabeis, veneráveis Irmãos e amados Filhos, que Leão XIII de feliz memória defendeu tenazmente o direito de propriedade contra as aberrações dos socialistas do seu tempo, mostrando que a destruição do domínio particular reverteria, não em vantagem, mas em ruína da classe operária. Mas como não falta quem com flagrante injustiça calunie o Sumo Pontífice e a Igreja de ter zelado e zelar somente os interesses dos ricos contra os proletários, e os mesmos católicos não concordam na interpretação do genuíno e verdadeiro modo de pensar de Leão XIII, pareceu-Nos bem vingar de tais calúnias a sua doutrina que é a católica e defendê-la de falsas interpretações.

Sua índole individual e social

17 Primeiramente tenha-se por certo, que nem Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaram seguindo a doutrina e direcção da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida a dupla espécie de domínio, que chamam individual e social, segundo diz respeito ou aos particulares ou ao bem comum ; pelo contrário foram unânimes em afirmar que a natureza ou o próprio Criador deram ao homem o direito do domínio particular, não só para que ele possa prover às necessidades próprias e da família, mas para que sirvam verdadeiramente ao seu fim os bens destinados pelo Criador a toda a família humana : ora nada disto se pode obter, se não se observa uma ordem certa e bem determinada.

Deve portanto evitar-se cuidadosamente um duplo escolho, em que se pode cair. Pois como o negar ou cercear o direito de propriedade social e pública precipita no chamado « individualismo » ou dele muito aproxima, assim também rejeitar ou atenuar o direito de propriedade privada ou individual leva rapidamente ao « colectivismo » ou pelo menos à necessidade de admitir-lhe os princípios. Sem a luz destas verdades ante os olhos, cair-se-á depressa nas sirtes do modernismo moral, jurídico e social, que denunciámos com letras Apostólicas no princípio do Nosso Pontificado; (29) tenham-no presente sobretudo aqueles espíritos desordeiros, que com infames calúnias ousam acusar a Igreja de ter permitido, que se introduzisse na doutrina teológica o conceito pagão do domínio, ao qual desejam a todo o custo substituir outro, por eles com pasmosa ignorância apelidado de cristão.

(29) Encícl. Ubi arcano, 23 de Dezembro de 1922.


Quadragesimo anno PT