Quadragesimo anno PT 18

Obrigações inerentes ao domínio

18 E a fim de pôr termo às controvérsias, que acerca do domínio e deveres a ele inerentes começaram a agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento assente por Leão XIII, de que o direito de propriedade é distinto do seu uso. (30) Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento « não pode urgir-se por vias jurídicas ». (31) Pelo quê sem razão afirmam alguns, que o domínio e o seu honesto uso são uma e a mesma coisa; e muito mais ainda é alheio à verdade dizer, que se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele.

Prestam portanto grande serviço à boa causa e são dignos de todo o elogio os que, salva a concórdia dos ânimos e a integridade da doutrina tradicional da Igreja, se empenham em definir a natureza íntima destas obrigações e os limites, com que as necessidades do convívio social circunscrevem tanto o direito de propriedade, como o uso ou exercício do domínio. Pelo contrário muito se enganam e erram aqueles, que tentam reduzir o domínio individual a ponto de o abolirem praticamente.

(30) Encícl. Rerum novarum, n. 19.
(31) Cfr. Encícl. Rerum novarum, n. 19.

Poderes do Estado

19 Efectivamente, que deva o homem atender não só ao próprio interesse, mas também ao bem comum, deduz-se da própria índole, a um tempo individual e social, do domínio, a que nos referimos. Definir porém estes deveres nos seus pormenores e segundo as circunstâncias, compete, já que a lei natural de ordinário o não faz, aos que estão à frente do Estado. E assim a autoridade pública, iluminada sempre pela luz natural e divina, e pondo os olhos só no que exige o bem comum, pode decretar mais minuciosamente o que aos proprietários seja lícito ou ilícito no uso de seus bens. Já Leão XIII ensinou sabiamente que « Deus confiou à indústria dos homens e às instituições dos povos a demarcação da propriedade individual ». (32) E realmente o regime da propriedade não é mais imutável, que qualquer outra instituição da vida social, como o demonstra a história e Nós mesmo notámos em outra ocasião : « Que variedade de formas concretas não revestiu a propriedade desde a forma primitiva dos povos selvagens, de que ainda há hoje vestígios, até à forma de propriedade dos tempos patriarcais, e depois sucessivamente desde as diversas formas tirânicas (usamos esta palavra no seu sentido clássico), através das feudais e logo das monárquicas, até às formas existentes na idade moderna »! (33) É evidente porém que a autoridade pública não tem direito de desempenhar-se arbitrariamente desta função; devem sempre permanecer intactos o direito natural de propriedade e o que tem o proprietário de legar dos seus bens. São direitos estes, que ela não pode abolir, porque « o homem é anterior ao Estado », (34) e « a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real ». (35) Eis porque o sábio Pontífice declarava também, que o Estado não tem direito de esgotar a propriedade particular com excessivas contribuições : « Não é das leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito da propriedade individual; a autoridade pública não a pode portanto abolir : o mais que pode é moderar-lhe o uso e harmonizá-lo com o bem comum ». (36) Quando ela assim concilia o direito de propriedade com as exigências do bem comum, longe de mostrar-se inimiga dos proprietários presta-lhes benévolo apoio; de facto, fazendo isto, impede eficazmente que a posse particular dos bens, estatuída com tanta sabedoria pelo Criador em vantagem da vida humana, gere desvantagens intoleráveis e venha assim a arruinar-se : não oprime a propriedade, mas defende-a; não a enfraquece, mas reforça-a.

(32) Encícl. Rerum novarum, n. 7.
(33) Alocução aos membros de Acção Católica italiana, 16 de Maio de 1926.
(34) Encícl. Rerum novarum, n. 6.
(35) Encícl. Rerum novarum, n. 10.
(36) Encícl. Rerum novarum, n.

Deveres relativos aos rendimentos livres

20 Nem ficam de todo ao arbítrio do homem os seus rendimentos livres, isto é aqueles de que não precisa para sustentar a vida convenientemente e com decoro : ao contrário as sagradas Escrituras e os santos Padres da Igreja intimam continuamente e com a maior clareza aos ricos o gravíssima dever da esmola e de praticar a beneficência e magnificência. Empregar grandes capitais disponíveis para oferecer em abundância trabalho lucrativo, com tanto que este se empregue em obras realmente úteis, não só não é vício ou imperfeição moral, mas até se deve julgar acto preclaro da virtude da magnificência muito em harmonia com as necessidades dos tempos, como se deduz argumentando dos princípios do Doutor Angélico. (37)

(37) S. Thomas, S. Th.,
II-II 97,0 II-II 134,0.

Títulos de aquisição do domínio

21 Títulos de aquisição do domínio são a ocupação de coisas sem dono, a indústria ou a chamada especificação, como o demonstram abundantemente a tradição de todos os séculos e a doutrina do Nosso Predecessor Leão XIII. De facto não faz injustiça a ninguém, por mais que alguns digam o contrário, quem se apodera de uma coisa abandonada ou sem dono; de outra parte a indústria que alguém exerce em nome próprio, e com a qual as coisas se transformam ou aumentam de valor, dá-lhe direito sobre os produtos do seu trabalho.

Capital e trabalho

22 Muito diversa é a condição do trabalho, que vendido a outrem se exerce em coisa alheia. A ele particularmente visava Leão XIII, quando escrevia « poder-se afirmar sem perigo de erro, que o trabalho é a fonte única da riqueza nacional ». (38) Com efeito, não vemos com os próprios olhos, que a abundância dos bens, que constituem a riqueza, se formam e brotam das mãos dos obreiros, quer trabalhem sós, quer armadas de instrumentos e máquinas, com o que aumentam admiravelmente a sua actividade? Ninguém ignora, que nunca um país se ergueu da miséria e pobreza a uma fortuna melhor e mais elevada sem a colaboração ingente de todos os cidadãos, tanto dos que dirigem o trabalho, como dos que o executam. Não é porém menos certo que estes grandes esforços seriam imiteis e vãos, que nem sequer poderiam tentar-se, se Deus Criador do universo não tivesse na sua bondade fornecido antes as matérias primas e as forças da natureza. Pois que é trabalhar, senão aplicar ou exercer as forças do corpo e do espírito nestas mesmas coisas ou por meio delas? Exige porém a lei natural ou a vontade de Deus por ela promulgada, que se mantenha a devida ordem na aplicação dos bens naturais aos usos humanos : ora semelhante ordem consiste em ter cada coisa o seu dono. D'aqui vem que, a não ser que um trabalhe no que é seu, deverão aliar-se as forças de uns com as coisas dos outros; pois que umas sem as outras nada produzem. Isto precisamente tinha em vista Leão XIII, quando escrevia : « de nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital ». (39) Por conseguinte é inteiramente falso atribuir ou só ao capital ou só ao trabalho o produto do concurso de ambos; e é injustíssimo que um deles, negando a eficácia do outro, se arrogue a si todos os frutos.

(38) Encícl. Rerum novarum, n. 27.
(39) Encícl. Rerum novarum, n. 15.

Pretensões injustas do capital

23 É certo que por muito tempo pôde o capital arrogar-se direitos demasiados. Todos os produtos e todos os lucros reclamava-os ele para si, deixando ao operário unicamente o bastante para restaurar e reproduzir as forças. Apregoava-se, que por fatal lei económica pertencia aos patrões acumular todo o capital, e que a mesma lei condenava e acorrentava os operários a perpétua pobreza e vida miserável. E bem verdade, que as obras nem sempre estavam de acordo com semelhantes monstruosidades dos chamados liberais de Manchester : não se pode contudo negar que para elas tendia com passo certeiro e constante o regime económico e social. Por isso não é para admirar que estas opiniões erróneas e estes postulados falsos fossem energicamente impugnados, e não só por aqueles a quem privavam do direito natural de adquirir melhor fortuna.

Injustas pretensões do trabalho

24 De facto aos operários assim mal tratados apresentaram-se os chamados « intelectuais », contrapondo a uma lei falsa um não menos falso princípio moral : « os frutos e rendimentos, descontado apenas o que baste a amortizar e reconstituir o capital, pertencem todos de direito aos operários ». Erro mais capcioso que o de alguns socialistas, para os quais tudo o que é produtivo deve passar a ser propriedade do Estado ou « socializar-se »; mas por isso mesmo erro muito mais perigoso e próprio a embair os incautos : veneno suave que tragaram avidamente muitos, a quem o socialismo sem rebuço não pudera enganar.

Princípio directivo da justa distribuição

25 A premuni-los contra estes falsos princípios, com que a si próprios fechavam o caminho da justiça e da paz, deviam bastar as palavras sapientíssimas do Nosso Predecessor : « de qualquer modo que seja distribuída entre os particulares, não cessa a terra de servir à utilidade pública ». (40) O mesmo ensinámos Nós pouco antes, quando declarávamos, que a própria natureza exige a repartição dos bens em domínios particulares, precisamente a fim de poderem as coisas criadas servir ao bem comum de modo ordenado e constante. Este princípio deve ter continuamente diante dos olhos, quem não quer desviar-se da recta senda da verdade.

Ora nem toda a distribuição dos bens ou riquezas entre os homens é apta para obter totalmente ou com a devida perfeição o fim estabelecido por Deus. E necessário que as riquezas, em contínuo incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei de justiça social proíbe, que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros. Violam-na por conseguinte tanto os ricos que, felizes por se verem livres de cuidados em meio da sua fortuna, têm por muito natural embolsarem eles tudo e os operários nada, como a classe proletária que, irritada por tantas injustiças e demasiadamente propensa a exagerar os próprios direitos, reclama para si tudo, porque fruto do trabalho das suas mãos, e combate e pretende suprimir toda a propriedade e rendas ou proventos, qualquer que seja a sua natureza e função social, uma vez que se obtenham e pela simples razão de serem obtidos sem trabalho. A este propósito cita-se às vezes o Apóstolo, lá onde diz : « quem não quer trabalhar, não coma ». (41) Citação descabida e falsa. O Apóstolo repreende os ociosos, que podendo e devendo trabalhar, não o fazem, e admoesta-nos a que aproveitemos diligentemente o tempo e as forças do corpo e do espírito, nem queiramos ser de peso aos outros, quando podemos bastar-nos a nós mesmos. Agora, que o trabalho seja o único título para receber o sustento ou perceber rendimentos, isso não o ensina, nem podia ensinar o Apóstolo. (42)

Cada um deve pois ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social. Hoje porém, à vista do contraste estridente, que há entre o pequeno número dos ultra-ricos e a multidão inumerável dos pobres, não há homem prudente, que não reconheça os gravíssimos inconvenientes da actual repartição da riqueza.

(40) Encícl. Rerum novarum, n. 7.
(41)
2Th 3,10.
(42) Cfr. 2Th 3,8-10.


3. - REDENÇÃO DOS PROLETÁRIOS

26 Esta é aquela « Redenção dos proletários », que o Nosso Predecessor dizia dever procurar-se a todo o custo. O mesmo afirmamos e repetimos Nós com tanto maior energia e insistência, quanto mais frequentemente vemos votadas ao esquecimento as recomendações daquele grande Pontífice, ou porque intencionalmente se não falava, delas, ou porque as julgavam impossíveis de actuar, sendo que não só podem, mas devem realizar-se. Nem elas no nosso tempo perderam nada da aia, força e oportunidade, apesar de hoje não ser tão geral e horrendo o pauperismo, como era ao tempo de Leão XIII. Sem dúvida que a condição dos operários melhorou e se tornou mais tolerável, sobretudo nas cidades mais progredidas e populosas, onde os operários já não podem todos sem excepção ser considerados como indigentes e miseráveis. Mas desde que as artes mecânicas e a indústria moderna em pouquíssimo tempo invadiram completamente e dominaram regiões inumeráveis, tanto as terras chamadas novas, como os reinos do remoto Oriente cultivados já na antiguidade, cresceu desmesuradamente o número dos proletários pobres, cujos gemidos bradam ao céu. Acresce o ingente exército dos jornaleiros relegados à ínfima condição e sem a mínima esperança de se verem jamais senhores de um pedaço de terra; (43) se não se empregam remédios oportunos e eficazes, ficarão perpetuamente na condição de proletários.

É verdade, que a condição proletária não se deve confundir com o pauperismo; contudo basta o facto de a multidão dos proletários ser imensa, enquanto as grandes fortunas se acumulam nas mãos de poucos ricos, para provar à evidência que as riquezas, produzidas em tanta abundância neste nosso século de industrialismo, não estão bem distribuídas pelas diversas classes da sociedade.

(43) Encícl. Rerum novarum, n. 35.

Os operários devem poder formar um património

27 É pois necessário envidar energicamente todos os esforços, para que ao menos de futuro as riquezas grangeadas se acumulem em justa proporção nas mãos dos ricos, e com suficiente largueza se distribuam pelos operários; não para que estes se dêem ao ócio, — já que o homem nasceu para trabalhar como a ave para voar, — mas para que, vivendo com parcimônia, aumentem os seus haveres, aumentados e bem administrados provejam aos encargos da família; e livres assim de uma condição precária e incerta qual é a dos proletários, não só possam fazer frente a todas as eventualidades durante a vida, mas deixem ainda por morte alguma coisa, aos que lhes sobrevivem.

Toda esta doutrina já por Nosso Predecessor, não só insinuada, mas abertamente proclamada, Nós de novo e com mais insistência a inculcamos com esta Nossa encíclica : pois desenganem-se todos, que se não se põe em prática quanto antes e com todas as veras, será impossível defender eficazmente a ordem pública, a paz e a tranquilidade da sociedade humana contra os maquinadores de revoluções.


4. - O JUSTO SALÁRIO

28 Ora não se poderá pôr em prática, se não se procura, que os proletários, trabalhando e vivendo com parcimónia, adquiram o seu modesto pecúlio, como já acima indicamos desenvolvendo os ensinamentos de Nosso Predecessor. Mas, a não ser da própria jorna, d'onde poderá tirar esse pouco que vai economizando, o que não tem outra fonte de receita senão o seu trabalho? Entremos portanto nesta questão do salário, que Leão XIII apelidou « de grande importância », (44) declarando e desenvolvendo, onde for necessário, a sua doutrina e preceitos.

(44) Encícl. Rerum novarum, n. 34.

O salário não é de sua natureza injusto

29 E primeiramente os que dizem ser de sua natureza injusto o contrato de compra e venda do trabalho e pretendem substituí-lo por um contrato de sociedade, dizem um absurdo e caluniam malignamente o Nosso Predecessor que na encíclica « Rerum novarum » não só admite a legitimidade do salário, mas se difunde em regulá-lo segundo as leis da justiça.

Julgamos contudo que nas presentes condições sociais é preferível, onde se possa, mitigar os contratos de trabalho combinando-os com os de sociedade, como já começou a fazer-se de diversos modos com não pequena vantagem dos operários e dos patrões. Deste modo operários e oficiais são considerados sócios no domínio ou na gerência, ou compartilham os lucros.

O justo valor da paga deve ser avaliado não por um, senão por vários princípios, como sabiamente dizia Leão XIII por estas palavras : « para determinar equitativamente o salário devem ter-se em vista várias considerações ». (45)

Com estas palavras confuta a leviandade dos que pensam resolver facilmente tão momentoso problema, empregando uma única medida e essa mesma disparatada.

Erram certamente os que não receiam enunciar este princípio, que tanto vale o trabalho e tanto deve importar a paga, quanto é o valor dos seus frutos; e que por isso na locação do próprio trabalho tem o operário direito de exigir por ele tudo o que produzir. Asserção infundada, como basta a demonstrá-lo o que acima dissemos ao tratar da relação entre o trabalho e o capital.

(45) Encícl. Rerum novarum, n. 17.

Carácter individual e social do trabalho

30 Como o domínio, assim também o trabalho, sobretudo o contratado, deve considerar-se não só relativamente aos indivíduos, mas também em função da sociedade. A razão é clara. Se a sociedade não forma realmente um corpo organizado, se a ordem social e jurídica não protege o exercício da actividade, se as várias artes, dependentes como são entre si, não trabalham de concerto e não se ajudam mutuamente, se enfim e mais ainda, não se associam e colaboram juntos a inteligência, o capital, e o trabalho, não pode a actividade humana produzir fruto : logo não pode ela ser com justiça avaliada nem remunerada equitativamente, se não se tem em conta a sua natureza social e individual.

Tríplice relação do salário

31 Destas duas propriedades naturais do trabalho humano derivam consequências gravíssimas, pelas quais se deve regular e determinar o salário.

A) O sustento do operário e da família

32 Primeiro ao operário deve dar-se remuneração que baste para o sustento seu e da família. (46) É justo que toda a mais família, na medida das suas forças, contribua para o seu mantimento, como vemos que fazem as famílias dos lavradores, e também muitas de artistas e pequenos negociantes. Mas é uma iniquidade abusar da idade infantil ou da fraqueza feminina. As mães de família devem trabalhar em casa ou nas suas adjacências, dando-se aos cuidados domésticos. É um péssimo abuso, que deve a todo o custo cessar, o de as obrigar, por causa da mesquinhez do salário paterno, a ganharem a vida fora das paredes domésticas, descurando os cuidados e deveres próprios e sobretudo a educação dos filhos. Deve pois procurar-se com todas as veras, que os pais de família recebam uma paga bastante a cobrir as despesas ordinárias da casa. E se as actuais condições não permitem, que isto se possa sempre efectuar, exige contudo a justiça social, que se introduzam quanto antes as necessárias reformas, para que possa assegurar-se um tal salário a todo o operário adulto. — São pois dignos de louvor todos aqueles, que com prudente e utilíssima iniciativa tem já experimentado vários métodos para tornar o salário proporcionado aos encargos domésticos de tal modo que, aumentando estes, cresça também aquele; antes seja tal, que possa bastar a qualquer necessidade extraordinária e imprevista.

(46) Cfr. Encícl. Casti connubii, 31 de Dezembro de 1930.

B) Situação da empresa

33 É preciso atender também ao empresário e a empresa no determinar a importância dos salários; seria injustiça exigir salários demasiados, que eles não pudessem pagar sem se arruinarem e arruinarem consigo os operários. Mas se a deficiência dos lucros dependesse da negligência, inércia, ou descuido em procurar o progresso técnico e económico, não seria essa uma causa justa para cercear a paga aos operários. Se porém a causa de a empresa não render quanto baste para retribuir aos operários equitativamente, são contribuições injustas ou o ver-se forçada a vender os artefactos por um preço inferior ao justo, os que assim a vexam, tornam-se réus de culpa grave; pois que privam do justo salário os trabalhadores, que forçados da necessidade se vêem obrigados a aceitar uma paga inferior à devida.

Trabalhem por conseguinte de comum acordo operários e patrões para vencer as dificuldades e obstáculos, e sejam em obra tão salutar ajudados prudente e providamente pela autoridade pública. Mas se apesar de tudo os negócios correrem mal, será então o caso de ver se a empresa poderá continuar, ou se será melhor prover aos operários de outro modo. Nessas gravíssimas conjunturas é, mais que nunca, necessário, que reine e se sinta entre operários e patrões a união e concórdia cristã.

C) Exigências do bem comum

34 Enfim a grandeza do salário deve ser proporcionada ao bem da economia pública. Já atrás declarámos, quanto importa ao bem comum, que os operários e oficiais possam formar um modesto pecúlio com a parte do salário economizada. Mas não podemos passar em silêncio outro ponto de não menor importância e grandemente necessário nos nossos tempos, e é, que todos os que têm vontade e forças, possam encontrar trabalho. Ora isto depende em boa parte da determinação do salário : a qual como será vantajosa, se bem feita, assim se tornará nociva, se exceder os devidos limites. Quem não sabe, que foram os salários demasiadamente pequenos ou exageradamente grandes a causa de muitos operários se verem sem trabalho? É este mal, formidavelmente agravado nos anos do nosso Pontificado, que lança aos operários nas maiores misérias e tentações, que arruína a prosperidade dos estados e põe em perigo a ordem pública, a paz e tranquilidade do mundo inteiro. É portanto contra a justiça social diminuir ou aumentar demasiadamente os salários em vista só das próprias conveniências e sem ter em conta o bem comum; e a mesma justiça exige, que em pleno acordo de inteligências e vontades, quanto seja possível, se regulem os salários de tal modo, que o maior número de operários possa encontrar trabalho e ganhar o necessário para o sustento da vida. É também importante para o mesmo efeito a boa proporção entre as diversas categorias de salários; com a qual está intimamente relacionada a justa proporção entre os preços de venda dos produtos das diversas artes, como a agricultura, a indústria, etc. Se tudo isto se observar como convêm, unir-se-ão as diversas artes e se organizarão num corpo união, prestando-se como membros mútuo e benéfico auxílio. Só então estará solidamente constituído o organismo económico e social e será capaz de obter os seus fins, quando todos e cada um tiverem todos os bens, que as riquezas naturais, a arte técnica, e a boa administração económica podem proporcionar. Estes bens devem bastar não só à estrita necessidade e à honesta comodidade, senão também a elevar o homem a um certo grau de cultura, o qual, uma vez que não falte a prudência, longe de obstar, grandemente favorece a virtude. (47)

(47) Cfr. S. Thomas, De regimine principum, 1, 15. Encícl. Rerum novarum, n. 27.


5. - RESTAURAÇÃO DA ORDEM SOCIAL

35 O que fica exposto sobre a equitativa repartição dos bens e sobre o justo salário, diz respeito aos indivíduos, nem visa senão acessóriamente a ordem social, que o Nosso Predecessor Leão XIII desejou e procurou restaurar pelos princípios da sã filosofia e aperfeiçoar segundo as normas sublimes da lei evangélica.

Já alguma coisa se fez neste sentido; mas para realizar o muito que ainda está por fazer e para que a família humana colha vantagens melhores e mais abundantes, são de absoluta necessidade duas coisas : a reforma das instituições e a emenda dos costumes.

Ao falarmos na reforma das instituições temos em vista sobretudo o Estado; não porque dele só deva esperar-se todo o remédio, mas porque o vício do já referido « individualismo » levou as coisas a tal extremo, que enfraquecida e quase extinta aquela vida social outrora rica e harmónicamente manifestada em diversos géneros de agremiações, quase só restam os indivíduos e o Estado. Esta deformação do regime social não deixa de prejudicar o próprio Estado, sobre o qual recaem todos os serviços das agremiações suprimidas e que verga ao peso de negócios e encargos quase infinitos.

Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas; permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social : assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à colectividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.

Deixe pois a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer : dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam : quanto mais perfeita ordem jerárquica reinar entre as varias agremiações, segundo este princípio da função « supletiva » dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação.

Harmonia entre as diversas profissões

36 O primeiro objectivo que devem propor-se tanto o Estado como o escol dos cidadãos, o ponto em que devem concentrar todos os esforços, é por termo ao conflito, que divide as classes, suscitar e promover uma cordial harmonia entre as diversas profissões.

E em primeiro lugar deve a política social aplicar-se toda a reconstituí-las. Actualmente a sociedade continua num estado violento e por isso instável e vacilante, pois se funda sobre classes, que se movem por apetites desencontrados e por isso, dada a fraqueza humana, com facilidade tendem para o ódio e para a guerra.

Com efeito embora o trabalho, como muito bem expôs o Nosso Predecessor na sua encíclica , (48) não seja um simples género comercial, mas deva reconhecer-se nele a dignidade humana do operário, e não possa permutar-se como qualquer mercadoria, de facto hoje no mercado do trabalho a oferta e a procura dividem os contratadores em duas classes ou campos opostos, que encarniçadamente se digladiam. Esta grave desordem leva a sociedade à ruína, se não se lhe dá pronto e eficaz remédio. Mas a cura só então será perfeita, quando a estas classes opostas, se substituírem organismos bem constituídos, ordens ou profissões, que agrupem os indivíduos, não segundo a sua categoria no mercado do trabalho, mas segundo as funções sociais, que desempenham. Assim como as relações de vizinhança dão origem aos municípios, assim os que exercem a mesma profissão ou arte são pela própria natureza impelidos a formar colégios ou corporações; tanto que muitos julgam estes organismos autónomos, senão essenciais, ao menos naturais à sociedade civil.

E como a ordem, segundo egregiamente explica S. Tomás, (49) é a unidade resultante da disposição conveniente de muitas coisas, o corpo social não será verdadeiramente ordenado, se não há um vínculo comum, que una solidamente num só todo os membros que o constituem. Ora este princípio de unidade encontra-se, — para cada arte, na produção dos bens ou prestação dos serviços a que visa a actividade combinada de patrões e operários ocupados no mesmo ofício, — para o conjunto das profissões, no bem comum, a que todas e cada uma devem tender com esforços combinados. Esta união será tanto mais forte e eficaz, quanto mais fielmente se aplicarem os indivíduos e as próprias profissões a exercitar a sua especialidade e a assinalar-se nela.

Do que precede é fácil concluir, que no seio destas corporações estão em primeiro lugar os interesses comuns à profissão; entre os quais o mais importante é vigiar por que a actividade colectiva se oriente sempre para o bem comum de toda a sociedade. As questões, que se refiram aos interesses particulares dos patrões ou operários poder-se-ão tratar e resolver separadamente.

Apenas é preciso recordar, que os ensinamentos de Leão XIII sobre a forma do governo político se aplicam também na devida proporção aos colégios ou corporações profissionais : é lícito aos seus membros eleger a forma que lhes aprouver, com tanto que atendam às exigências da justiça e do bem comum. (50)

E como os habitantes de um município costumam formar associações autónomas para fins muito diversos, às quais cada um é livre de dar ou não o seu nome, assim os que exercem a mesma profissão, conservam a liberdade de se associarem para fins de algum modo relacionados com o exercício da sua arte. Mas porque o Nosso Predecessor tratou distinta e claramente na sua encíclica destas associações livres, basta-Nos agora inculcar um ponto : os cidadãos podem livremente não só instituir associações de direito e carácter particular, mas ainda « eleger livremente para elas aqueles estatutos e regulamentos, que julgarem mais convenientes ao fim proposto ». (51) Idêntica liberdade deve reconhecer-se às sociedades, cujo objectivo ultrapassa os confins das diversas profissões. Proponham-se as associações livres já florescentes e que tão bons frutos produzem, abrir caminho, segundo os princípios da filosofia social cristã, a estes colégios ou corporações mais vastos de que falamos, e ponham todo o empenho, cada uma na medida das suas forças, em atingir este ideal.

(48) Encícl. Rerum novarum, n. 16.
(49) Cfr. S. Thomas, Contra Gentes 3, 71; Summa Theol.
I 9,0 I 65,2 i. c.
(50) Cfr. Encícl. Immortale Dei, 1 de Novembro de 1885.
(51) Encícl. Rerum novarum, n. 42.

Princípio directivo da economia

37 Resta ainda outro ponto estreitamente ligado com o precedente. Como não pode a unidade social basear-se na luta de classes, assim a recta ordem da economia não pode nascer da livre concorrência de forças. Deste princípio como de fonte envenenada derivaram para a economia universal todos os erros da ciência económica « individualista »; olvidando esta ou ignorando, que a economia é juntamente social e moral, julgou que a autoridade pública a devia deixar em plena liberdade, visto que no mercado ou livre concorrência possuía um princípio directivo capaz de a reger muito mais perfeitamente, que qualquer inteligência criada. Ora a livre concorrência, ainda que dentro de certos limites é justa e vantajosa, não pode de modo nenhum servir de norma reguladora à vida económica. Aí estão a comprová-lo os factos desde que se puseram em prática as teorias de espírito individualista. Urge por tanto sujeitar e subordinar de novo a economia a um princípio directivo, que seja seguro e eficaz. A prepotência económica, que sucedeu à livre concorrência não o pode ser; tanto mais que, indómita e violenta por natureza, precisa, para ser útil a humanidade, de ser energicamente enfreada e governada com prudência; ora não pode enfrear-se nem governar-se a si mesma. Força é portanto recorrer a princípios mais nobres e elevados : à justiça e caridade sociais. E preciso que esta justiça penetre completamente as instituições dos povos e toda a vida da sociedade; é sobre tudo preciso que esse espírito de justiça manifeste a sua. eficácia constituindo uma ordem jurídica e social que informe toda a economia, e cuja alma seja a caridade. Em defender e reivindicar eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a autoridade pública; e fá-lo-á com menos dificuldade se se desembaraçar daqueles encargos, que já antes declarámos não serem próprios dela.

Mais : é muito para desejar que as várias nações, pois que tanto dependem umas das outras e se completam economicamente, se dêem com todo o empenho, em união de vistas e de esforços, a promover com prudentes tratados e instituições uma vantajosa e feliz cooperação económica internacional.

Se deste modo se restaurarem os membros do corpo social e se restabelecer o princípio regulador da economia, poder-se-lhe-á aplicar de alguma forma o que o Apóstolo dizia do corpo místico de Cristo : « todo o corpo organizado e unido pelas articulações de um mútuo obséquio, segundo a medida de actividade de cada membro, cresce e se desenvolve na caridade ». (52)

Recentemente iniciou-se, como todos sabem, uma nova organização sindical e corporativa, à qual, vista a matéria desta Nossa carta encíclica não podemos deixar de Nos referir, com alguma consideração oportuna.

O Estado reconheceu juridicamente o « sindicato », dando-lhe porém carácter de monopólio, já que só ele, assim reconhecido, pode representar respectivamente operários e patrões, só ele concluir contractos e pactos de trabalho. A inscrição no sindicato é facultativa, e só neste sentido se pode dizer, que a organização sindical é livre; pois a quota sindical e certas taxas especiais são obrigatórias para todos os que pertencem a uma dada categoria, sejam eles operários ou patrões; como obrigatórios para todos são também os contratos de trabalho estipulados pelo sindicato jurídico. Verdade é que nas regiões oficiais se declarou, que o sindicato jurídico não exclui a existência de facto de associações profissionais.

As corporações são constituídas pelos representantes dos sindicatos dos operários e dos patrões pertencentes à mesma arte e profissão, e, como verdadeiros e próprios órgãos e instituições do Estado, dirigem e coordenam os sindicatos nas coisas de interesse comum. É proibida a greve; se as partes não podem chegar a um acordo, intervém a autoridade.

Basta reflectir um pouco, para ver as vantagens desta organização, embora apenas sumariamente indicada : a pacífica colaboração das classes, a repressão das organizações e violências socialistas, a acção moderadora de uma magistratura especial. Para não omitir nada em matéria de tanta importância, e em harmonia com os princípios gerais acima recordados e com o que em breve acrescentaremos, devemos contudo dizer, que não falta quem receie, que o Estado se substitua às livres actividades, em vez de se limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio; que a nova organização sindical e corporativa tem carácter excessivamente burocrático e político; e que, não obstante as vantagens gerais acenadas, pode servir a particulares intentos políticos mais que à preparação e início de uma ordem social melhor.

Nós cremos, que para conseguir este outro intento nobilíssimo, com benefício geral verdadeiro e duradoiro, é necessária antes de tudo e sobre tudo a bênção de Deus e depois a colaboração de todas as boas vontades. Cremos também e por necessária consequência, que o mesmo intento se conseguirá tanto mais seguramente, quanto maior for a contribuição das competências técnicas., profissionais e sociais, e mais ainda da doutrina e prática dos princípios católicos por parte, não da Acção Católica (que não pretende desenvolver actividade meramente sindical ou política), mas por parte d'aqueles Nossos filhos a quem a Acção Católica admiravelmente forma naqueles princípios e no seu apostolado sob a guia e magistério da Igreja; da Igreja, que mesmo no terreno supra acenado, como em qualquer outro onde se agitem e regulem questões morais, não pode esquecer ou descurar o mandato de guardar e ensinar, que lhe foi divinamente conferido.

Tudo o que temos ensinado acerca da restauração e aperfeiçoamento da ordem social, de modo nenhum poderá realizar-se sem a reforma dos costumes, como até a mesma história eloquentemente demonstra. De facto houve já uma ordem social que, apesar de imperfeita e incompleta, era, de algum modo, dadas as circunstâncias e exigências do tempo, conforme à recta razão. E se essa ordem já de há muito se extinguiu, não foi de certo por ser incapaz de evolucionar e alargar-se com as novas condições sociais; mas porque os homens, ou obcecados pelo amor próprio se recusaram a abrir como convinha, o seio das suas organizações à multidão sempre crescente, que desejava entrar nelas, ou porque iludidos pela aparência de uma falsa liberdade e por outros erros, rebeldes a toda a sujeição, trabalharam por sacudir o jugo de qualquer autoridade.

Só Nos resta por conseguinte citar de novo a juízo o vigente sistema económico, e o seu mais violento acusador, o socialismo, para sobre eles proferirmos uma sentença clara e justa; e ao mesmo tempo, indagada a última raiz de tantos males, apontar o primeiro e mais necessário remédio, que é a reforma dos costumes.

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Ep 4,16.


Quadragesimo anno PT 18