Quadragesimo anno PT 37

III.


NOTÁVEIS MUDANÇAS DESDE A ENCÍCLICA DE LEÃO XIII


38 Grandes foram as transformações, que desde os tempos de Leão XIII sofreram tanto a economia, como o socialismo.


1. - EVOLUÇÃO DA ECONOMIA

39 E primeiramente todos vêem, quão mudada está hoje a situação económica. Sabeis, veneráveis Irmãos e amados Filhos, que o Nosso Predecessor de feliz memória na sua encíclica se referia principalmente àquele sistema, em que ordinariamente uns contribuem com o capital, os outros com o trabalho para o comum exercício da economia, qual ele próprio a definiu na frase lapidar : « Nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital ». (53)

Foi esta espécie de economia, que Leão XIII procurou com todas as veras regular segundo as normas da justiça; donde se segue que de per si não é condenável. E realmente de sua natureza não é viciosa : só então viola a recta ordem, quando o capital escraviza aos operários ou à classe proletária com o fim e condição de que os negócios e todo o andamento económico estejam nas suas mãos e revertam em sua vantagem, desprezando a dignidade humana dos operários, a função social da economia e a própria justiça social e o bem comum.

Verdade é que mesmo hoje não é esta a única forma de economia, que reina por toda a parte; há outra forma, que ainda abraça uma numerosa e importante fracção da humanidade, como é por exemplo a classe agrícola, na qual a maior parte do género humano ganha honradamente a sua vida. Também esta se vê a braços com estreitezas e dificuldades, às quais alude Nosso Predecessor em muitos passos da sua encíclica e Nós nesta Nossa já mais de uma vez Nos referimos.

Mas o regime capitalista da economia, desde a publicação da « Rerum novarum », com o propagar-se da indústria alastrou em todas as direcções, de tal maneira que se infiltrou e invadiu completamente todos os outros campos da produção, cujas condições sociais e económicas afecta realmente e informa com suas vantagens, desvantagens e vícios.

Por consequência não é só o bem dos habitantes das regiões industriais, mas o de todos os homens, que Nós procuramos, ao dirigirmos a Nossa atenção principalmente para as mudanças, que sofreu a economia capitalista desde os tempos de Leão XIII.

(53) Encícl. Rerum novarum, n. 15.

Despotismo económico

40 É coisa manifesta, como nos nossos tempos não só se amontoam riquezas, mas acumula-se um poder imenso e um verdadeiro despotismo económico nas mãos de poucos, que as mais das vezes não são senhores, mas simples depositários e administradores de capitais alheios, com que negoceiam a seu talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles que, tendo nas suas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia, e manipulam de tal maneira a alma da mesma, que não pode respirar sem sua licença. Este acumular de poderio e recursos, nota característica da economia actual, é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência. Por outra parte este mesmo acumular de poderio gera três espécies de luta pelo predomínio : primeiro luta-se por alcançar o predomínio económico; depois combate-se renhidamente por obter predomínio no governo da nação, a fim de poder abusar do seu nome, forças e autoridade nas lutas económicas; enfim lutam os Estados entre si, empregando cada um deles a força e influência política para promover as vantagens económicas dos seus cidadãos, ou ao contrário empregando as forças e predomínio económico para resolver as questões políticas, que surgem entre as nações.

Funestas consequências

41 As últimas consequências deste espírito individualista no campo económico são essas que vós, veneráveis Irmãos e amados Filhos, vedes e lamentais : a livre concorrência matou-se a si própria; à liberdade do mercado sucedeu o predomínio económico; à avidez do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio; toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel, atroz. Acrescem os danos gravíssimos originados da malfadada confusão dos empregos e atribuições da pública autoridade e da economia, quais são : primeiro e um dos mais funestos, o aviltamento da majestade do Estado, a qual do trono onde livre de partidarismos e atenta só ao bem comum e à justiça, se sentava como rainha e árbitra suprema dos negócios públicos, se vê feita escrava, entregue e acorrentada ao capricho de paixões desenfreadas; depois, no campo das relações internacionais, dois rios brotados da mesma fonte : de um lado o Nacionalismo ou Imperialismo económico, do outro o Internacionalismo ou Imperialismo internacional bancário, não menos funesto e execrável, cuja pátria é o interesse.

Remédios

42 Na parte doutrinal desta encíclica indicámos já os remédios, com que se pode combater um mal tão profundo. Agora basta recordar a substância do Nosso ensinamento. Visto como o regime económico moderno se baseia principalmente no capital e no trabalho, é preciso que as normas da recta razão ou da filosofia social cristã, relativas a estes dois elementos e à sua colaboração, sejam melhor conhecidas e postas em prática. Para, evitar o escolho quer do individualismo quer do socialismo, ter-se-á em conta o duplo carácter individual e social tanto do capital ou propriedade, como do trabalho. As relações mútuas de um com o outro devem ser reguladas segundo as leis de uma rigorosa justiça comutativa, apoiada na caridade cristã. A livre concorrência contida dentro de justos e razoáveis limites e mais ainda o poderio económico devem estar efectivamente sujeitos à autoridade pública, em tudo o que é da sua alçada. Enfim as públicas instituições adaptarão a sociedade inteira às exigências do bem comum, isto é, às regras da justiça; donde necessariamente resultará, que esta função tão importante da vida social, qual é a actividade económica, se encontrará por sua vez reconduzida a uma ordem sã e bem equilibrada.


2. - EVOLUÇÃO DO SOCIALISMO

43 Não menos profunda que a da economia, foi desde o tempo de Leão XIII a evolução do socialismo, contra o qual principalmente terçou armas o Nosso Predecessor. Então podia ele dizer-se único, defendia uma doutrina bem definida e reduzida a sistema; depois dividiu-se em duas facções principais, de tendências pela maior parte contrárias, e irreconciliáveis entre si, conservando porém ambas o princípio fundamental do socialismo primitivo, contrário à fé cristã.

O partido da violência ou comunismo

44 Uma das facções seguiu uma evolução paralela à da economia capitalista, que antes descrevemos, e precipitou no comunismo, que ensina duas coisas e as procura realizar, não oculta ou solapadamente, mas à luz do dia, francamente e por todos os meios ainda os mais violentos : guerra de classes sem tréguas nem quartel e completa destruição da propriedade particular. Na prossecução destes objectivos a tudo se atreve, nada respeita; uma vez no poder, é incrível e espantoso quão bárbaro e desumano se monstra. Aí estão a atestá-lo as mortandades e ruínas de que alastrou vastíssimas regiões da Europa oriental e da Ásia; e então o ódio declarado contra a santa Igreja e contra o mesmo Deus demasiado o provam essas monstruosidades sacrílegas bem conhecidas de todo o mundo. Por isso, se bem julgamos supérfluo chamar a atenção dos filhos obedientes da Igreja para a impiedade e iniquidade do comunismo, contudo não é sem uma dor profunda, que vemos a apatia dos que parecem desprezar perigos tão iminentes, e com desleixo pasmoso deixam propagar por toda a parte doutrinas, que porão a sociedade a ferro e fogo. Sobretudo digna de censura é a inércia daqueles, que não tratam de suprimir ou mudar um estado de coisas, que, exasperando os ânimos, abre caminho à subversão e ruína completa da sociedade.

O socialismo propriamente dito, ou mitigado

45 Mais moderada é a outra facção, que conservou o nome de socialismo : porque não só professa abster-se da violência, mas abranda e limita de algum modo, embora não as suprima de todo, a luta de classes e a extinção da propriedade particular. Dir-se-ia que o socialismo, aterrado com as consequências que o comunismo deduziu de seus próprios princípios, tende para as verdades que a tradição cristã sempre solenemente ensinou, e delas em certa maneira se aproxima; por quanto é inegável que as suas revindicações concordam às vezes muitíssimo com as reclamações dos católicos que trabalham na reforma social.

Com efeito a luta de classes, quando livre de inimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa concorrência honesta, fundada no amor da justiça, que se bem não é aquela bem-aventurada paz social, por que todos suspiramos, pode e deve ser o princípio da mútua colaboração. Do mesmo modo a guerra à propriedade particular, afrouxando pouco a pouco, chega a limitar-se a ponto de já não agredir a posse do necessário à produção dos bens, mas aquele despotismo social, que a propriedade contra todo o direito se arrogou. E de facto um tal poder não pertence aos simples proprietários mas à autoridade pública. Por este caminho podem os princípios deste socialismo mitigado vir pouco a pouco a coincidir com os votos e reclamações dos que procuram reformar a sociedade segundo os princípios cristãos. Estes com razão pretendem que certos géneros de bens sejam reservados ao Estado, quando o poderio que trazem consigo é tal, que, sem perigo do mesmo Estado, não pode deixar-se em mãos dos particulares.

Tão justos desejos e revindicações em nada se opõem à verdade cristã, e muito menos são exclusivos do socialismo. Por isso quem só por eles luta, não tem razão para declarar-se socialista.

Mas não se vá julgar que os partidos socialistas, não filiados ainda no comunismo, professam já todos teórica e praticamente esta moderação. Em geral não renegam a luta de classes nem a abolição da propriedade, apenas a mitigam. Ora se os falsos princípios assim se mitigam e obliteram, pergunta-se, ou melhor perguntam alguns sem razão, se não será bem que também os princípios católicos se mitiguem e moderem, para sair ao encontro do socialismo e congraçar-se com ele a meio caminho? Não falta quem se deixe levar da esperança de atrair por este modo os socialistas. Esperança vã! Quem quer ser apóstolo entre os socialistas, é preciso que professe franca e lealmente toda a verdade cristã, e que de nenhum modo feche os olhos ao erro. Esforcem-se antes, se querem ser verdadeiros arautos do Evangelho, por mostrar aos socialistas, que as suas reclamações, na parte que tem de justas, se defendem muito mais vigorosamente com os princípios da fé e se promovem muito mais eficazmente com as forças da caridade.

Contrasta com a doutrina católica

46 E se o socialismo estiver realmente tão moderado no tocante à luta de classes e à propriedade particular, que já não mereça nisto a mínima censura? Terá renunciado por isso à sua natureza essencialmente anticristã? Eis uma dúvida, que a muitos traz suspensos. Muitíssimos católicos convencidos de que os princípios cristãos não podem jamais abandonar-se nem obliterar-se, volvem os olhos para esta Santa Sé e suplicam instantemente, que definamos se este socialismo repudiou de tal maneira as suas falsas doutrinas, que já se possa abraçar e quase baptizar, sem prejuízo de nenhum princípio cristão. Para lhes respondermos, como pede a Nossa paterna solicitude, declaramos : O socialismo quer se considere como doutrina, quer como facto histórico, ou como « acção », se é verdadeiro socialismo, mesmo depois de se aproximar da verdade e da justiça nos pontos sobreditos, não pode conciliar-se com a doutrina católica; pois concebe a sociedade de modo completamente avesso à verdade cristã.

Com efeito : segundo a doutrina cristã o homem sociável por natureza é colocado nesta terra, para que, vivendo em sociedade e sob a autoridade ordenada por Deus, (54) cultive e desenvolva plenamente todas as suas faculdades, para louvor e glória do Criador, e pelo fiel cumprimento dos deveres da sua profissão ou vocação, qualquer que ela seja, grangeie a felicidade temporal e eterna. Ora o socialismo, ignorando por completo ou desprezando este fim sublime dos indivíduos e da sociedade, opina que o consórcio humano foi instituído só pela vantagem material que oferece. E na verdade do facto que o trabalho convenientemente organizado é muito mais produtivo que os esforços isolados, os socialistas concluem, que a actividade económica deve necessariamente revestir uma forma social. Desta necessidade segue-se, segundo eles, que os homens por amor da produção são obrigados a entregar-se e sujeitar-se completamente à sociedade. Mais : estimam tanto os bens materiais, que servem à comodidade da vida, que afirmam deverem pospor-se e mesmo sacrificar-se quaisquer outros bens superiores e em particular a liberdade às exigências de uma produção activíssima. Esta perda da dignidade humana, inevitável no sistema da produção « socializada », julgam-na bem compensada com a abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão distribuídos pelos indivíduos, e estes poderão livremente aplicar a uma vida mais cómoda e faustosa. Em consequência a sociedade sonhada pelo socialismo não pode existir nem conceber-se sem violências manifestas; por outra parte goza de uma liberdade não menos falsa, pois carece de verdadeira autoridade social; esta não pode fundar-se nos cómodos materiais, mas provém somente de Deus Criador e fim último de todas as coisas. (55)

(54) Cfr.
Rm 13,1.
(55) Cfr. Encícl. Diuturnum, 29 de Junho de 1881.

Católicos e socialistas termos contraditórios

47 E se este erro, como todos os mais, encerra algo de verdade, o que os Sumos Pontífices nunca negaram, funda-se contudo numa própria concepção da sociedade humana, diametralmente oposta à verdadeira doutrina católica. Socialismo religioso, socialismo católico são termos contraditórios : ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista.

Socialismo educador

48 Estas doutrinas que Nós de novo com a Nossa suprema autoridade solenemente declaramos e confirmamos, devem aplicar-se também a um novo sistema de socialismo prático, ainda mal conhecido, mas que se vai propagando nos meios socialistas. Propõe-se ele a formação das inteligências e dos costumes; e ainda que se faz particular amigo da infância e procura aliciá-la, abraça todas as idades e condições, para formar o homem « socialista » que há de constituir mais tarde a sociedade humana plasmada pelo ideal do socialismo.

Na Nossa encíclica « Divini illius Magistri » ensinámos desenvolvidamente os princípios, em que se funda, os fins, a que se dirige a pedagogia cristã. (56) Quão contrários lhes sejam a teoria e a prática do socialismo educador, é tão claro e evidente, que é inútil insistir. Parecem porém ignorar ou não ter na devida conta os gravíssimos e funestos perigos deste socialismo, os que não tratam de lhe resistir forte e energicamente, como o pede a gravidade das circunstâncias. É dever do Nosso múnus pastoral chamar-lhes a atenção para a gravidade e eminência do perigo : lembrem-se todos, que deste socialismo educador foi pai o liberalismo, será herdeiro legítimo o bolchevismo.

(56) Encícl. Divini illius Magistri, 31 de Dezembro de 1929.

Católicos desertores nos arraiais socialistas

49 Pôsto isto, compreendeis facilmente, veneráveis Irmãos, com quanta dor vemos em algumas regiões não poucos dos Nossos filhos, de cuja fé e boa vontade não queremos duvidar, desertar dos arraiais da Igreja e passar às fileiras do socialismo; uns ostentando abertamente o nome e professando as doutrinas socialistas, outros indiferentes ou talvez forçados entrando em associações, que teórica ou praticamente professam o socialismo.

Ora Nós com paterna solicitude ansiosamente vamos considerando e indagando como foi possível, que chegassem a tal aberração; e parece-Nos ouvir a resposta, com que muitos se escusam : a Igreja e todos os que se lhe proclamam obedientes, favorecem os ricos, desprezam os operários, nem têm deles o mínimo cuidado; por isso é que se viram na necessidade de se inscrever no socialismo para salvaguardar os próprios interesses.

É muito para lamentar, veneráveis Irmãos, que houvesse um tempo e haja ainda quem, dizendo-se católico, apenas se lembra da sublime lei da justiça, e caridade, que nos obriga não só a dar a cada um o que lhe pertence, mas também a socorrer os pobres, nossos irmãos, como ao próprio Jesus Cristo; (57) quem não teme oprimir os operários por cobiça de sórdido lucro e, o que é mais grave, quem abusa da mesma religião para paliar as suas iníquas extorsões e defender-se contra as justíssimas reclamações dos operários. Por Nossa parte não deixaremos nunca de censurar severamente um tal proceder; são eles os culpados de a Igreja se ver injustamente (mas com certa aparência de verdade) acusada de patrocinar a causa dos ricos, e de não se compadecer das necessidades e angústias dos pobres, defraudados da sua parte de bem-estar nesta vida. Aparências infundadas e acusações caluniosas, como demonstra toda a história da Igreja. Bastava a encíclica, cujo quadragésimo aniversário celebramos, para provar exuberante mente, que, só com a maior das injustiças, se podem assacar à Igreja tais calúnias e contumélias.

(57) Cfr.
Jc 2.

Oxalá voltem à casa paterna

50 Porém nem a injúria Nos ofende, nem a magna desalenta o Nosso coração paterno a ponto de repelirmos para longe de Nós estes filhos tristemente enganados e saídos do caminho da verdade e da salvação; ao contrário com toda a possível solicitude os convidamos, a que voltem ao seio da Santa Madre Igreja. Oxalá que dêem ouvidos à Nossa voz! Oxalá que voltem à casa paterna donde saíram e aí permaneçam na seu posto, nas fileiras daqueles que, fieis às directivas promulgadas por Leão XIII e por Nós hoje solenemente renovadas, procuram reformar a sociedade segundo o espírito da Igreja, fazendo reflorescer a justiça e a caridade sociais. E persuadam-se que em parte nenhuma podem encontrar maior felicidade, até mesmo temporal, que junto d'Aquêle que por nós se fez pobre sendo rico, para nos enriquecer com a sua pobreza, (58) que viveu pobre e em trabalhos desde a sua juventude, que chama a si todos os que trabalham e se vêem oprimidos, para os aliviar na caridade do seu Coração, (59) que finalmente sem aceitação de pessoas exigirá mais d'aqueles a quem foi dado mais (60) e retribuirá a cada um segundo as suas obras. (61)

(58)
2Co 8,9.
(59) Mt 11,28.
(60) Cfr. Lc 12,48.
(61) Mt 16,27.


3. - REFORMA DOS COSTUMES

51 Mas se examinarmos as coisas mais a fundo, veremos à evidência, que esta restauração social tão ardentemente desejada, não se pode obter sem prévia e completa renovação do espírito cristão, do qual miseravelmente desertaram tantos economistas; porque sem ela seriam inúteis todos os esforços e fabricariam não sobre a rocha, mas sobre a areia movediça. (62)

E realmente, veneráveis Irmãos e amados Filhos, acabamos de estudar a economia actual, e achámo-la profundamente viciada. Citámos novamente a juízo o comunismo e o socialismo, e vimos quanto as suas formas ainda as mais mitigadas, se desviam dos ditames do Evangelho.

« Portanto, para usar das palavras do Nosso Predecessor, se pode curar-se a sociedade humana, só se curará voltando à vida e instituições cristãs ». (63) Só estas podem dar remédio eficaz à demasiada solicitude das coisas caducas origem de todos os vícios ; só estas podem fazer, que os homens, fascinados pelos bens deste mundo transitório, desviem deles os olhos e os levantem ao céu. Quem dirá, que este remédio não é hoje, mais que nunca, necessário à família humana?

(62) Cfr.
Mt 7,24 ss.
(63) Encícl. Rerum novarum, n. 22.

A ruína das almas

52 Todos se preocupam quase unicamente com as revoluções, calamidades e ruínas temporais. Mas, se vemos as coisas à luz da fé, que é tudo isto em comparação da ruína das almas? Bem pode dizer-se, que tais são hoje as condições da vida social e económica, que se torna muito difícil a uma grande multidão de homens ganharem o único necessário, a salvação eterna.

Nós, a quem o Príncipe dos Pastores constituiu Pastor e Guarda destas inumeráveis ovelhas, remidas com o seu sangue, não podemos contemplar a olhos enxutos o gravíssimo perigo, que elas correm. Senão que, lembrados do Nosso dever pastoral, com solicitude paterna, meditamos continuamente no modo de as ajudar, chamando em auxílio o zelo indefesso dos que a isso estão obrigados por justiça ou caridade. Pois que aproveita aos homens poderem mais facilmente lucrar o mundo inteiro com uma distribuição e uso mais racional das riquezas, se com isso mesmo vem a perder a alma? (64) Que aproveita ensinar-lhes os princípios da boa economia, se com avareza sórdida e desenfreada se deixam arrebatar de tal maneira do amor dos próprios bens, que « ouvindo os mandamentos do Senhor, fazem tudo o contrário »? (65)

(64) Cfr.
Mt 16,26.
(65) Cfr. Jg 2,17.

Causa desta ruína

53 A raiz e fonte desta defecção da lei cristã na vida social e económica, e da consequente apostasia da fé católica para muitos operários é a desordem das paixões, triste efeito do pecado original; foi ele que destruiu a admirável harmonia das faculdades humanas e dispõe o homem a deixar-se facilmente arrastar das más paixões e a preferir os bens caducos da terra aos eternos do céu. D'aqui aquela sede inextinguível de riquezas e bens temporais, que, se em todos os tempos arrastou os homens a quebrar a lei de Deus e conculcar os direitos do próximo, nas actuais condições económicas arma à fragilidade humana laços ainda mais numerosos. Com efeito a incerteza da economia e mais ainda a sua complicação exigem dos que a ela se aplicam, uma contenção de forças suma e contínua; em consequência algumas consciências calejaram de tal maneira, que julgam lícitos todos os meios de aumentar os lucros e defender contra os vaivens da fortuna a riqueza adquirida à custa de tantos esforços e cancerais. A facilidade dos lucros, que oferece a anarquia do mercado, leva muitos a darem-se ao comércio desejosos unicamente de enriquecer sem grande trabalho; os quais, com desenfreada especulação, levantam e diminuem os preços a capricho da própria cobiça e com tal frequência, que desconcertam todos os cálculos dos produtores. As instituições jurídicas destinadas a favorecer a colaboração dos capitais, por isso que dividem e diminuem os riscos, dão lugar muitas vezes aos mais repreensíveis excessos; com efeito vemos a responsabilidade tão atenuada, que já a poucos impressiona; sob a tutela de um nome colectivo praticam-se as maiores injustiças e fraudes; os gerentes destas sociedades económicas, esquecidos dos seus deveres, atraiçoam os direitos daqueles, cujas economias deviam administrar. Nem se devem finalmente deixar em silêncio os traficantes que, sem olharem à honestidade das suas artes, não temem estimular os caprichos da clientela para deles abusarem em própria vantagem.

Somente uma rígida disciplina dos costumes, energicamente apoiada pela autoridade pública, poderia ter afastado ou mesmo prevenido tão graves inconvenientes; mas infelizmente essa faltou. Quando começou a aparecer o novo regime económico, tinha o nacionalismo penetrado e lançado raízes em muitas inteligências; por isso e ciência económica, que então se formou, prescindindo da lei moral, soltava as rédeas às paixões humanas.

E assim sucedeu, que mais do que antes, muitíssimos não pensavam senão em aumentar por todos os modos as suas riquezas; e procurando-se a si mais que tudo e acima de todos, de nada tinham escrúpulo, nem sequer dos maiores delitos contra o próximo. Os primeiros a entrar por este caminho largo que leva à perdição, (66) grangearam por sua vez e facilmente muitos imitadores da sua maldade, já pelo exemplo de um êxito aparente, já pela insolente pompa das suas riquezas, ora metendo a ridículo a consciência dos outros, como se estivesse agitada de vãos escrúpulos, ora finalmente conculcando os competidores mais conscienciosos.

Desviados do bom caminho os dirigentes da economia, devia logicamente precipitar-se no mesmo abismo a multidão operária; e isto tanto mais, que muitos directores de oficinas usavam dos operários como de meros instrumentos, em nada solícitos da sua alma, não pensando sequer no sobrenatural. Sentimo-Nos horrorizados ao pensar nos gravíssimos perigos a que estão expostos nas fábricas modernas os costumes dos operários (sobre tudo jovens) e o pudor das mulheres e donzelas; ao lembrarmo-Nos de que muitas vezes o sistema económico hodierno e sobre tudo as más condições da habitação criam obstáculos à união e intimidade da vida de família; ao recordarmos os muitos e grandes impedimentos opostos à devida santificação dos domingos e festas de guarda; ao considerarmos enfim como diminuiu aquele sentimento verdadeiramente cristão, com que até os rudes e ignorantes aspiravam aos bens superiores, para dar lugar à solicitude única de procurar tão somente e por todos os meios o pão quotidiano. Deste modo o trabalho corporal, ordenado pela divina Providência, depois da. culpa de origem, para remédio do corpo e da alma, converte-se frequentemente em instrumento de perversão : da oficina só a matéria sai enobrecida, os homens ao contrário corrompem-se e aviltam-se.

(66) Cfr.
Mt 7,13.


REMÉDIOS

A) Cristianização da vida económica

54 A esta tão deplorável crise das almas, que, enquanto dure, tornará inúteis todos os esforços de regeneração social, não pode dar-se outro remédio, mais que reconduzir os homens à profissão franca e sincera da doutrina evangélica, aos ensinamentos d'Aquele, que tem ele só palavras de vida eterna, (67) e palavras tais, que hão de perdurar eternamente, ainda depois de passarem os céus e a terra. (68) É certo que todos os verdadeiramente entendidos em sociologia, anseiam por uma reforma moldada pelas normas da razão, que restitua a vida económica à sã e recta ordem. Mas esta ordem, que também Nós ardentemente desejamos, e procuramos com o maior empenho, será de todo falha e imperfeita, se não tenderem de concerto todas as energias humanas a Imitar a admirável unidade do divino conselho e a conseguí-la, quanto ao homem é dado : chamamos perfeita aquela ordem apregoada pela Igreja com grande força e tenacidade, pedida mesmo pela razão humana, isto é : que tudo se encaminhe para Deus fim primário e supremo de toda a actividade criada, e que todos os bens criados por Deus se considerem como instrumentos dos quais o homem deve usar tanto, quanto lhe sirvam a conseguir o último fim. Nem deve julgar-se que esta filosofia rebaixa as artes lucrativas ou as considera menos conformes à dignidade humana; pelo contrário ensina a reconhecer e venerar nelas a vontade manifesta do divino Criador, que colocou o homem sobre a terra para a cultivar e usar dela segundo as suas múltiplas precisões. Nem é vedado aos que se empregam na produção, aumentar justa e devidamente a sua fortuna; antes a Igreja ensina ser justo que quem serve a sociedade e lhe aumenta os bens, se enriqueça também desses mesmos bens conforme a sua condição, contanto que isto se faça com o respeito devido à lei de Deus e salvos os direitos do próximo, e os bens se empreguem segundo os princípios da fé e da recta razão. Se esta doutrina fosse por todos, em toda a parte e sempre observada, não somente a produção e aquisição dos bens, mas também o uso das riquezas, agora tantas vezes desordenado, voltaria depressa aos limites da equidade e justa distribuição; à única e tão sórdida preocupação dos próprios interesses, que é a desonra e o grande pecado do nosso tempo, opõr-se-ia na verdade e de facto a suavíssima e igualmente poderosa lei da moderação cristã, que manda ao homem buscar primeiro o reino de Deus e a sua justiça, seguro de que também na medida do necessário a liberalidade divina, fiel às suas promessas, lhe dará por acréscimo os bens temporais. (69)

(67) Cfr.
Jn 6,70.
(68) Cfr. Mt 24,35.
(69) Mt 6,33.

B) A lei da caridade

55 Mas isto só não basta : à lei da justiça deve juntar-se a da caridade, « que é o vínculo da perfeição ». (70) Quanto se enganam por tanto os reformadores incautos, que atendendo somente a guardar a justiça comutativa, rejeitam com orgulho o concurso da caridade! De certo não pode a caridade substituir a justiça, quando o devido se nega iniquinamente. Contudo ainda que o homem alcance enfim quanto lhe é devido, restará sempre um campo imenso aberto à caridade : a justiça, bem que praticada com todo o rigor, se pode extirpar as raízes das lutas sociais, não poderá nunca sozinha congraçar os ânimos e unir os corações. Ora todas as instituições criadas para consolidar a paz e promover a colaboração social, por mais perfeitas que pareçam, tem o fundamento da sua estabilidade principalmente no vínculo que une as almas; se este falta, tornam-se ineficazes os melhores estatutos, como tantas vezes a experiência no-lo ensinou. Por isso só haverá uma verdadeira cooperação de todos para o bem comum, quando as diversas partes da sociedade sentirem intimamente, que são membros de uma só e grande família, filhos do mesmos Pai celeste, antes um só corpo em Cristo e « membros uns dos outros », (71) de modo que « se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele ». (72) Então os ricos e senhores converterão em amor solícito e operoso o antigo desprezo pelos irmãos mais pobres; acolherão os seus justos pedidos com bom rosto e coração aberto, perdoar-lhes-ão até sinceramente as culpas e os erros. Por sua vez os operários, reprimindo qualquer sentimento de ódio e inveja, de que abusam com tanta astúcia os fautores da luta de classes, não desdenharão o posto que a divina Providência lhes assinou na sociedade humana, antes o terão em grande apreço, bem persuadidos de que no seu emprego e ofício trabalham útil e honrosamente para o bem comum, e seguem mais de perto Aquele que, sendo Deus, quis na terra fazer-se operário e ser considerado como filho de operário.

É desta nova difusão do espírito evangélico no mundo, do espírito de moderação cristã e de caridade universal, que há de brotar, como esperamos, aquela tão desejada e completa restauração da sociedade humana em Cristo, e aquela « Paz de Cristo no reino de Cristo », a que desde o início do nosso Pontificado firmemente propusemos consagrai todo o Nosso cuidado e solicitude pastoral. (73) A esta obra primordial e hoje absolutamente necessária, também vós, veneráveis Irmãos, posto. pelo Espírito Santo a governar comnosco a Igreja de Deus (74) consagrais incansavelmente o melhor do vosso zelo em todas as partes do mundo, inclusivamente nas terras de missões entre infiéis. A vós o merecido louvor e comvosco a todos esses valorosos colaboradores na mesma grande empresa, clérigos ou leigos, aos Nossos amados Filhos da Acção Católica, que Nós com tanto prazer vemos dedicarem-se generosamente comNosco à solução dos problemas sociais, na persuasão de que a Igreja por fôrça da sua divina instituição tem o direito e o dever de se ocupar d'eles. A todos estes instantemente exortamos no Senhor, que não se poupem a nenhum trabalho, não se deixem vencer das dificuldades, mas cada vez cobrem maior ânimo e sejam fortes. (75) É árdua efectivamente a empresa que lhes propomos : conhecemos muito bem, que de ambas as partes surgem inúmeros obstáculos, quer das classes superiores, quer das inferiores da sociedade. Não desanimem porém; a vida do cristão é uma contínua milícia; mas assinalar-se em empresas difíceis é próprio dos que, como bons soldados, (76) mais de perto seguem a Cristo.

Portanto unicamente confiados no auxílio omnipotente d'Aquele que « a todos os homens quer salvar », (77) esforcemo-nos em ajudar estas pobres almas, afastadas de Deus, e arrancando-as aos cuidados temporais, em que vivem enredadas, ensinemos-lhes a aspirar confiadamente às coisas eternas. Nem isto é sempre tão difícil de obter, como à primeira vista parece : se nos recônditos do coração, ainda o mais perdido, como brasas debaixo da cinza, se ocultam maravilhosas energias de espírito, testemunho seguro d'aquela « alma naturalmente cristã », quanto mais as haverá nos corações d'aqueles, e são a maior parte, que mais por ignorância ou por influências externas, do que por malícia, se deixaram arrastar para o erro?

Além disto apresentam-nos já sinais lisonjeiros de restauração social as mesmas fileiras dos operários, nas quais vemos com indizível gozo da alma poderosos núcleos de jovens, que escutam com docilidade as inspirações da graça divina e se empenham com zelo incrível em ganhar a Cristo a alma de seus irmãos. E não são menos dignos de elogio os dirigentes das organizações operárias que, esquecidos dos seus interesses e solícitos sobre tudo do bem dos companheiros, procuram harmonizar prudentemente as suas justas reclamações com a prosperidade de toda a indústria, nem por nenhumas dificuldades ou suspeitas se deixam demover de tão nobre procedimento. Podem ver-se até muitos jovens destinados a ocupar brevemente ou pelo engenho ou pelas riquezas um posto de realce nas primeiras camadas da sociedade, que se consagram com o mais intenso cuidado a estas questões, dando risonha esperança de virem a dedicar-se todos à restauração social.

(70)
Col 3,14.
(71) Rm 12,5.
(72) 1Co 12,26.
(73) Cfr. Encícl. Ubi arcano, de 23 de Dezembro de 1922.
(74) Cfr. Ac 20,28.
(75) Cfr. Dt 31,7.
(76) Cfr. 2Tm 2,3.
(77) 1Tm 2,4.


Quadragesimo anno PT 37