Sacra virginitas PT




CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII


SACRA VIRGINITAS



A SAGRADA VIRGINDADE




Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos e Bispos e outros Ordinários locais,
em paz e união com a Sé Apostólica

INTRODUÇÃO




Virgindade e castidade perfeita são o mais belo florão da Igreja


1 A sagrada virgindade e a perfeita castidade consagrada ao serviço de Deus contam-se sem dúvida entre os mais preciosos tesouros deixados como herança à Igreja pelo seu Fundador.


2 Por isso, os santos padres observam que a virgindade perpétua é um bem excelso nascido da religião cristã. Com razão notam que os pagãos da antigüidade não exigiram das vestais tal estado de vida senão por certo tempo;(1) e mandando o Antigo Testamento conservar e praticar a virgindade, fazia-o só como exigência prévia do matrimônio (cf. Ex 22,16-17 Dt 22,23-29 Si 42,9); além disso, como escreve santo Ambrósio;(2) "Lemos de fato que havia virgens no templo de Jerusalém. Mas que diz delas o apóstolo? 'Todas estas coisas lhes aconteciam em figura' (1Co 10,11), para serem indícios dos tempos futuros".

(1) Cf. S. Ambrósio, De virginibus, lib. I, c. 4, n.15; De virginitate, c. 3, n.13; PL 16, 269.
(2) S. Ambrósio, De virginibus, lib. I, c. 3, n.12; PL 16,192.


3 De fato, desde os tempos apostólicos viceja e floresce esta virtude no jardim da Igreja. Quando nos Atos dos Apóstolos (Ac 21,9) se diz que as quatro filhas do diácono Filipe eram virgens, a expressão significa certamente bem mais um estado de vida do que a idade juvenil. E pouco depois, santo Inácio de Antioquia, saudando-as, nomeia as virgens (3) que então, juntamente com as viúvas, constituíam parte importante entre os cristãos da comunidade de Esmirna. No século II, como testemunha são Justino, "muitos homens e mulheres, de sessenta e setenta anos, educados desde a infância na doutrina de Cristo, mantêm perfeita integridade".(4) Pouco a pouco, cresceu o número dos que consagravam a Deus a castidade; e ao mesmo tempo aumentou consideravelmente a importância deles na Igreja, como expusemos na nossa Constituição Apostólica Sponsa Christi.(5)

(3) Cf. S. Inácio de Antioquia, Ep. ad Smyrn., c.13; ed. Funk-Diekamp, Patres Apostolici, vol. I, p. 286.
(4) S. Justino., Apol. I, pro christ., c. l5 PG 6, 349.
(5) Const.Apost. Sponsa Christi; AAS 43(1951), pp. 5-8.


4 Também os santos padres - como são Cipriano, santo Atanásio, santo Ambrósio, são João Crisóstomo, são Jerônimo, santo Agostinho e muitos outros -, escrevendo sobre a virgindade, lhe dedicaram os maiores louvores. Ora, esta doutrina dos santos padres, desenvolvida no correr dos séculos pelos doutores da Igreja e pelos mestres da ascética cristã, contribui muito para suscitar ou confirmar nos cristãos de ambos os sexos o propósito firme de se consagrarem a Deus em perfeita castidade e de perseverarem nela até à morte.

A virgindade floresceu entre os féis de todas as condições


5 Não se pode contar a multidão daqueles que, desde os começos da Igreja até aos nossos tempos, dedicaram a sua castidade a Deus, uns conservando ilibada a própria virgindade, outros consagrando-lhe para sempre a viuvez, outros finalmente escolhendo, em penitência dos seus pecados, uma vida perfeitamente casta; todos esses, porém, propuseram abster-se para sempre dos deleites da carne por amor de Deus. A doutrina dos santos padres sobre a grandeza e o mérito da virgindade seja incitamento e forte sustentáculo para todas essas almas, a fim de perseverarem no sacrifício oferecido e não retomarem para si nem a mínima parte do holocausto já colocado sobre o altar de Deus.


6 A castidade perfeita é a matéria de um dos três votos constitutivos do estado religioso (6) e exigida aos clérigos da Igreja latina para as ordens maiores (7) e também aos membros dos institutos seculares.(8) Mas é igualmente praticada por grande número de simples leigos: homens e mulheres há que, sem viverem em estado público de perfeição, fizeram o propósito ou mesmo o voto privado de se abster completamente do matrimônio e dos prazeres da carne para mais livremente servir ao próximo, e mais fácil e intimamente se unirem com Deus.

(6) Cf. CIC cân.
CIS 487.
(7) Cf. CIC cân. CIS 132 § 1.
(8) Cf. Const. apost. Provida Mater, art. III, § 2; AAS 39( 1947), p.121.


7 Dirigimo-nos com coração paterno a todos e cada um desses muito amados filhos e filhas, que de algum modo consagraram a Deus corpo e alma, e exortamo-los vivamente a confirmarem sua santa resolução e a pô-la em prática com diligência.


8 Não falta contudo quem, saindo do bom caminho, nos dias de hoje exalte o matrimônio a ponto de o colocar praticamente acima da virgindade, depreciando conseqüentemente a castidade consagrada a Deus e o celibato eclesiástico. Por isso nos pede agora a consciência do nosso cargo apostólico que declaremos e defendamos a doutrina da excelência da virgindade, para acautelarmos de tais erros a verdade católica.



I

A DOUTRINA SOBRE A VIRGINDADE


9 Antes de mais, é preciso notarmos que o essencial da doutrina sobre a virgindade o recebeu a Igreja dos próprios lábios do seu divino Esposo.


10 Pareceram aos discípulos muito pesados os vínculos e encargos do matrimônio, que manifestara o divino Mestre, e disseram-lhe: "Se tal é a condição do homem a respeito de sua mulher, não convém casar" (Mt 19,10). Respondeu-lhes Jesus Cristo que nem todos compreendem tal linguagem, mas só aqueles a quem isso é concedido, porque, se alguns são de nascença ou pela violência e malícia dos homens incapazes de se casar, outros há pelo contrário que por espontânea vontade se abstêm do matrimônio "por amor do reino dos céus"; e conclui dizendo: "Quem pode compreender, compreenda" (Mt 19,11-12).


11 Com essas palavras o divino Mestre não trata dos impedimentos físicos do casamento, mas da resolução livre e voluntária de quem, para sempre, renuncia às núpcias e aos prazeres da carne. Pois, ao comparar os que fazem renúncia espontânea com aqueles que se vêem impedidos ou pela natureza ou pela violência dos homens, não é verdade que o divino Redentor nos ensina que a castidade, para ser perfeita, deve ser perpétua?

O que é a virgindade cristã no ensino dos padres e doutores


12 Daqui se segue - como os santos padres e os doutores da Igreja claramente ensinaram - que a virgindade não é virtude cristã se não é praticada "por amor do reino dos céus" (Mt 19,12); isto é, para mais facilmente nos entregarmos às coisas divinas, para mais seguramente alcançarmos a bem-aventurança, e para mais livre e eficazmente podermos levar os outros para o reino dos céus.


13 Não podem, portanto, reivindicar o título de virgens as pessoas que se abstêm do matrimônio por puro egoísmo, ou para evitarem seus encargos, como nota santo Agostinho, (9) ou ainda por amor farisaico e orgulhoso da própria integridade corporal: já o concílio de Gangres condena a virgem e o continente que se afastam do matrimônio por o considerarem coisa abominável, e não por se moverem pela beleza e santidade da virgindade.(10)

(9) S. Augustin., De sancta virginitate, c. 22; PL 40, 407.
(10) Cf. cân. 9; Mansi, Coll. concil., II,1096.


14 Além disso, o apóstolo das gentes, inspirado pelo Espírito Santo, observa: "Quem está sem mulher, está cuidadoso das coisas que são do Senhor, como há de agradar a Deus... E a mulher solteira e virgem cuida das coisas que são do Senhor, para ser santa de corpo e de espírito" (1Co 7,32 1Co 7,34). É essa, portanto, a finalidade primordial e a razão principal da virgindade cristã: encaminhar-se apenas para as coisas de Deus e orientar, para ele só, o espírito e o coração; querer agradar a Deus em tudo; concentrar nele o pensamento e consagrar-lhe inteiramente o corpo e a alma.


15 Nunca deixaram os santos padres de interpretar desse modo a lição de Jesus Cristo e a doutrina do apóstolo das gentes: pois, desde os primitivos tempos da Igreja, consideravam a virgindade como consagração do corpo e da alma a Deus. São Cipriano pede às virgens que, "tendo-se consagrado a Cristo pela renúncia à concupiscência da carne e tendo-se dedicado a Deus de alma e corpo, não procurem agora adornar-se nem pretendam agradar a ninguém senão a Deus".(11) E mais longe vai ainda santo Agostinho: "Não honramos a virgindade por si mesma, mas por estar consagrada a Deus... Nem nós louvamos nas virgens o serem virgens, mas o estarem consagradas a Deus com piedosa continência".(12) Os príncipes da sagrada teologia, santo Tomás de Aquino (13) e são Boaventura, (14) apóiam-se na autoridade de santo Agostinho para ensinarem que a virgindade não possui a firmeza de virtude se não deriva do voto de a conservar ilibada perpetuamente. E, sem dúvida, os que mais plena e perfeitamente põem em prática a lição de Cristo neste particular são os que se obrigam com voto perpétuo a observar a continência; nem se pode afirmar com fundamento que é melhor e mais perfeita a condição dos que desejam conservar uma porta aberta, para voltarem atrás.

(11) S. Cypr., De habitu virginum, 4; PL N, 443.
(12) S. Augustin., De sancta virginitate, cc. 8 e 11; PL 40, 400 e 401.
(13) S. Thom., Summa Th.,
II-II 152,3, até 4.
(14) 5. Bonav., De perfectione evangelica q. 3, a. 3, sol. 5.


Só a caridade inspira e anima a virgindade cristã...


16 Esse vínculo de perfeita castidade consideraram-no os santos padres como uma espécie de matrimônio espiritual da alma com Cristo; e, por isso, chegaram alguns a comparar com o adultério a violação dessa promessa de fidelidade.(15) Santo Atanásio escreve que a Igreja católica costuma chamar esposas de Cristo às virgens.(16) E santo Ambrósio diz expressamente da alma consagrada: "É virgem quem possui a Deus como esposo".(17) Mais ainda, vê-se pelos escritos do mesmo doutor de Milão, (18) que, já no quarto século, o rito da consagração das virgens era muito semelhante ao que a Igreja usa ainda hoje na bênção matrimonial.(19)

(15) Cf. S. Cypr., De habitu virginum, c. 20; PL 4, 459.
(16) Cf. S. Athanas., Apol. ad Constant., 33; PG 25, 640.
(17) S. Ambros., De virginibus, lib. I, c. 8; n. 52; PL 16, 202.
(18) Cf. Ib., lib. III, cc. l-3, nn. l-14; PL 16, 219-224, De institutione virginis, c.17, nn.104-114; PL 16, 333-336.
(19) Cf. Sacramentarium Leonianum XXX; PL 55,129; Pontificale Romanum, De benedictione et consecratione virginum.


17 Por isso os santos padres exortam as virgens a amarem com mais ardor o seu divino Esposo do que amariam os próprios maridos, e a conformarem, a todo o momento, pensamentos e atos com a vontade dele.(20) Recomenda santo Agostinho: "Amai com todo o coração o mais belo dos filhos dos homens: bem o podeis, porque o vosso coração está livre dos vínculos do casamento... Se tivésseis maridos, estaríeis obrigadas a ter-lhes grande amor; quanto mais não estais obrigadas a amar aquele por cujo amor não quisestes ter maridos? Esteja fixo no vosso coração inteiro aquele que por vós está fixo na cruz".(21) Tais são aliás os sentimentos e as resoluções que a própria Igreja exige das virgens no dia da consagração, convidando-as a pronunciar estas palavras rituais: "O reino do mundo e toda a sedução do século desprezei-os por amor de nosso Senhor Jesus Cristo, que eu vi, que eu amei, em quem confiei, a quem preferi".(22) É portanto o amor, e só o amor, que leva suavemente a virgem a consagrar completamente o corpo e a alma ao divino Redentor, segundo o pensamento que são Metódio, bispo de Olimpo, atribui tão belamente a uma delas: "Tu, Cristo, és tudo para mim. É para ti que me conservo casta, e com a lâmpada acesa vou ao teu encontro, ó meu Esposo".(23) Sim, é o amor de Cristo que persuade a virgem a encerrar-se para sempre nos muros dum mosteiro, afim de contemplar e amar, mais fácil e livremente, o celeste Esposo; e é ele ainda que a leva a praticar, com todas as forças, até à morte, as obras de misericórdia para o bem do próximo.

(20) Cf. S. Cypr., De habitu virginum, 4 e 22; PL 4, 443-444 e 462; S. Ambros., De virginibus, lib. I, c. 7, n. 37; PL 16,199.
(21) S. Augustin., De sancta virginitate, cc. 54-55; PL 40, 428.
(22) Pontificale Romanum: De benedictione et consecratione virginum.
(23) S. Methodius Olympi, Convivium decem virginum, orat. XI, c. 2; PG 16, 209.


18 Acerca dos homens "que não se contaminaram com mulheres, pois são virgens" (Ap 14,4), afirma o apóstolo são João: "Estes seguem o Cordeiro para onde quer que ele vá" (Ib.). Meditemos o conselho que lhes dá santo Agostinho: "Segui o Cordeiro, porque também a sua carne é virgem... Com razão o seguis, em virgindade de coração e de carne, para onde quer que ele vá. Afinal, que é seguir senão imitar? Na verdade Cristo sofreu por nós deixando-nos exemplo, como diz o apóstolo são Pedro, 'para seguirmos as suas pisadas'" (1P 2,21).(24) De fato, todos esses discípulos e esposas de Cristo abraçaram o estado de virgindade, como diz são Boaventura, "para se conformarem com Cristo, seu esposo, a quem o mesmo estado torna as virgens semelhantes".(25) Para o amor ardente que têm a Cristo não podiam bastar os laços do afeto; era absolutamente necessário que esse mesmo amor se mostrasse pela imitação das virtudes, que nele brilham, e de modo especial pela conformidade com a sua vida, toda dedicada à salvação do gênero humano. Se os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, se todos os que de um modo ou do outro se consagraram ao serviço de Deus observam a castidade perfeita, é afinal porque o divino Mestre foi virgem até à morte. Assim se exprime são Fulgêncio: "É este o Filho unigênito de Deus, e também filho unigênito da Virgem, esposo único de todas as virgens consagradas, fruto, ornamento e prêmio da santa virgindade; dado à luz corporalmente pela santa virgindade, e à santa virgindade unido espiritualmente; ele torna fecunda a santa virgindade sem lhe destruir a integridade, adorna-a de permanente beleza e coroa-a de glória no reino eterno" (26)

(24) S. Augustin., De sancta virginitate, c. 27; PL 40, 411.
(25) S. Bonav., De perfectione evangelica, q. 3, a. 3.
(26) S. Fulgem., Epist. 3, c. 4, n. 6; PL 63, 326.


...para servir a Deus mais livre e facilmente


19 Julgamos oportuno, veneráveis irmãos, mostrar agora mais exatamente por que motivo o amor de Cristo leva as almas generosas a renunciarem ao matrimônio, e quais são os laços misteriosos que existem entre a virgindade e a perfeição da caridade cristã. Já as palavras de Jesus Cristo, que mencionamos acima, davam a entender que a perfeita abstenção do matrimônio liberta os homens dos pesados encargos e deveres deste. Inspirado pelo Espírito Santo, o apóstolo das gentes dá o motivo desta libertação: "Quero que vivais sem inquietação... O que está casado está cuidadoso das coisas que são do mundo, como há de agradar a sua mulher, e está dividido" (1Co 7,32-33). Note-se porém que o Apóstolo não repreende os maridos por estarem cuidadosos das esposas, nem as esposas por procurarem agradar aos maridos; mas nota que estão divididos os corações entre o amor do cônjuge e o amor de Deus, e que estão demasiado absorvidos pelos cuidados e obrigações da vida conjugal para poderem entregar-se facilmente à meditação das coisas divinas. Porque o dever do casamento prescreve claramente: "Serão dois numa só carne" (Gn 2,24 cf. Mt 19,5). Os esposos estão ligados um ao outro tanto na infelicidade como na felicidade (cf. 1Co 7,39). Compreende-se portanto por que é que as pessoas, que desejam dedicar-se ao divino serviço, abraçam o estado de virgindade como libertação, quer dizer, para poderem mais inteiramente servir a Deus e contribuir com todas as forças para o bem do próximo. Por exemplo, o admirável missionário são Francisco Xavier, o misericordioso pai dos pobres são Vicente de Paulo, o zelosíssimo educador da juventude são João Bosco, e a incansável "mãe dos emigrantes" santa Francisca Xavier Cabrim, como poderiam eles suportar tantos incômodos e trabalhos, se tivessem de prover às necessidades corporais e espirituais dos filhos, e da mulher ou do marido?

Facilita a elevação da vida espiritual e fecunda o apostolado


20 Mas há ainda outra razão para abraçarem o estado de virgindade todos os que se querem dedicar completamente a Deus e à salvação do próximo. Os santos padres enumeram todas as vantagens, para o progresso na vida espiritual, de uma completa renúncia aos prazeres da carne. Sem dúvida - como eles claramente fizeram notar - tal prazer, legítimo no casamento, não é repreensível em si mesmo; pelo contrário, o uso casto do casamento está nobilitado e santificado por um sacramento. Todavia, tem de se reconhecer igualmente que as faculdades inferiores da natureza humana, em conseqüência da queda do nosso primeiro pai, resistem à reta razão e algumas vezes até levam o homem a cometer atos desonestos. Como escreve o Doutor Angélico, o uso do matrimônio "impede a alma de se entregar completamente ao divino serviço".(27)

(27) S. Thom., Summa Theol.,
II-II 186,4.


21 Para os ministros sagrados conseguirem essa liberdade espiritual de corpo e alma, e para não se embaraçarem com negócios terrenos, a Igreja latina exige-lhes que se obriguem voluntariamente à castidade perfeita.(28) "Se tal lei - afirma nosso predecessor de imortal memória Pio XI - não obriga de todo os ministros da Igreja oriental, também entre eles o celibato eclesiástico é honrado e em certos casos - sobretudo quando se trata dos mais altos graus da hierarquia - é condição necessária e obrigatória". (29)

(28) Cf. CIC cân.
CIS 132, § 1.
(29) Cf. Carta enc. Ad catholici sacerdotii, AAS 28(1936), pp. 24-25.


22 Deve notar-se, além disso, que não é apenas por causa do ministério apostólico que os sacerdotes renunciam completamente ao matrimônio. É também porque são ministros do altar. Pois, se já os sacerdotes doAntigo Testamento se abstinham do uso do matrimônio enquanto serviam no templo, com receio de serem declarados impuros pela Lei, como o resto dos homens (cf. Lv 15,16-17 Lv 22,4 1S 21,5-7),(30) com quanto mais razão não convém que os ministros de Jesus Cristo, que todos os dias oferecem o sacrifício eucarístico, se distingam pela castidade perpétua? São Pedro Damião exorta os sacerdotes à castidade perfeita com esta pergunta: "Se o nosso Redentor amou tanto a flor duma pureza intacta, que não só quis nascer dum ventre virginal, mas quis também ser entregue aos cuidados dum guarda virgem, e isso, quando ainda criança vagia no berço, dizei-me: A quem quererá ele confiar o seu corpo, agora que reina na imensidão dos céus"?(31)

(30) Cf. S. Siric. Papa, Ep. ad Himer. 7; PL 56, 558-559.
(31) S. Petrus Dam., De caelibatu sacerdotum, c. 3; PL 145, 384.


Sua excelência sobre o matrimônio


23 É sobretudo por esse motivo que se deve afirmar como ensina a Igreja - que a santa virgindade é mais excelente que o matrimônio. Já o divino Redentor a aconselhara aos discípulos como vida mais perfeita (cf. Mt 19,10-11); e são Paulo, depois de dizer que o pai que dá em casamento a filha "faz bem", acrescenta logo a seguir: "E quem não a casa, faz melhor ainda" (1Co 7,38). Ao comparar as núpcias com a virgindade, manifesta o Apóstolo mais de uma vez o seu pensamento, sobretudo ao dizer: "Eu queria que todos vós fôsseis como eu... Digo aos não casados e às viúvas que lhes é bom permanecerem assim, como também eu" (1Co 7,7-8 cf. l e 26). Se portanto a virgindade, como dissemos, é mais excelente que o matrimônio, isso vem em primeiro lugar de ela ter um fim mais alto:(32) contribui com a maior eficácia para nos dedicarmos completamente ao divino serviço, enquanto o coração das pessoas casadas sempre estará mais ou menos "dividido" (cf. 1Co 7,33).

(32) Cf. S. Thom., Summa Theol., II-II 152,3-4.


24 Considerando, porém, a abundância dos frutos que dela nascem, mais clara aparecerá ainda a excelência da virgindade "pois pelo fruto se conhece a árvore" (Mt 12,33).

Multidões de virgens foram sempre a honra e a glória da Igreja


25 Não podemos deixar de sentir profunda alegria ao pensarmos na inúmera falange das virgens e dos apóstolos que, desde os primeiros séculos da Igreja até aos nossos tempos, renunciaram ao casamento para mais fácil e inteiramente se dedicarem à salvação do próximo por amor de Cristo, e assim realizaram admiráveis obras de religião e caridade. De modo nenhum queremos diminuir os méritos dos militantes da Ação católica nem os frutos do seu apostolado: podem muitas vezes atingir almas de que não se poderiam aproximar os sacerdotes, os religiosos ou as religiosas. Todavia, é às pessoas consagradas que se deve sem, dúvida, atribuir a maioria das obras de caridade. Com ânimo generoso, acompanham e endereçam a vida dos homens de todas as idades e condições; e quando esses religiosos ou religiosas desfalecem com a idade ou as doenças, como herança passam a outros o múnus sagrado. Não raro é o recém-nascido agasalhado por mãos virginais, sem nada lhe faltar dos cuidados que nem a mãe lhe poderia prestar com maior amor; e se já chegou ao uso da razão, é confiado a educadores que o formam cristãmente e, ao mesmo tempo, o instruem e lhe modelam o caráter; se está doente, encontrará sempre enfermeiros ou enfermeiras que, por amor de Cristo, o tratem com dedicação incansável; se fica órfão, se vem a cair na miséria material ou moral, ou se é lançado numa prisão, não ficará abandonado: esses sacerdotes, esses religiosos ou religiosas reconhecerão nele um membro padecente de Cristo e lembrar-se-ão das palavras do divino Redentor: "Tive fome, e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino, e me recolhestes; nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; estava no cárcere e fostes visitar-me... Na verdade vos digo que todas as vezes que vós fizestes isso a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes" (Mt 25,35-36 Mt 25,40). Quem poderá nunca louvar devidamente os missionários que se dedicam, no meio das maiores fadigas e longe da pátria, à conversão de multidões de infiéis? Que dizer finalmente das esposas de Cristo, que lhes prestam tão preciosos serviços? A todos e cada um desses aplicamos de coração o que escrevemos na exortação apostólica Menti Nostrae: "...Por esta lei do celibato, muito longe de perder inteiramente a paternidade, o sacerdote aumenta-a imensamente, porque não gera família para a vida terrena e caduca, mas para a vida celeste que há de permanecer perpetuamente". (33)

(33) AAS 42(1950), p. 663.


26 Todavia a virgindade não é só fecunda pelas obras exteriores, às quais permite uma dedicação mais pronta e mais completa, mas também por formas de caridade perfeita com o próximo, como a oração por intenção dele e os graves sacrifícios por ele suportados da melhor vontade. A essa missão consagraram toda a sua vida, de modo especial, aqueles servos e esposas de Cristo que vivem nos claustros.


27 Enfim, a virgindade consagrada a Cristo constitui, por si mesma, tal testemunho de fé no reino dos Céus e tal prova de amor ao divino Redentor, que não é de admirar dê frutos tão abundantes de santidade. Inumeráveis são as virgens e os apóstolos que professam a castidade perfeita; constituem a honra da Igreja pela excelsa santidade da sua vida. De fato, a virgindade dá às almas força espiritual capaz de as levar até ao martírio: é a lição manifesta da história, que propõe à admiração de todos grande multidão de virgens, desde santa Inês até santa Maria Goretti.

A "virtude angélica" atesta o amor ardente da Igreja por seu divino Esposo


28 A virgindade merece bem o nome de virtude angélica. São Cipriano lembra-o com razão às virgens: "O que nós havemos de ser todos, já vós o começastes a ser. Possuis já neste mundo a glória da ressurreição; vós passais através do mundo sem as manchas do mundo. Enquanto perseverais castas e virgens, sois iguais aos anjos de Deus".(34) A alma sequiosa de vida pura e abrasada pelo desejo de possuir o reino dos Céus, oferece a virgindade "como uma pérola preciosa", por amor da qual a alma "vende tudo o que tem e a compra" (Mt 13,46). Às pessoas casadas e mesmo aos que se revolvem no lodo do vício, a presença das virgens revela muitas vezes o esplendor da pureza e inspira o desejo de vencer os prazeres dos sentidos. Se santo Tomás pôde afirmar "que se atribui à virgindade a mais alta beleza", (35) foi porque sem dúvida o exemplo da virgindade é atraente. Pela castidade perfeita, não dão todos esses homens e mulheres a prova mais brilhante de que o domínio do espírito sobre o corpo é efeito da ajuda divina e sinal de sólida virtude?

(34) S. Cypr., De habitu virginum, 22; PL 4, 462; cf. S. Ambros., De virginibus, lib. I, c. 8, n. 52; P1,16, 202.
(35) S. Thom., Summa Theol., II-II 152,5.


29 Apraz-nos considerar especialmente que o fruto mais suave da virgindade está em as virgens manifestarem, só pela sua existência, a virgindade perfeita da mãe delas, a Igreja, e a santidade da união íntima que têm com Cristo. No rito da consagração das virgens, o bispo pede a Deus "que haja almas mais elevadas a quem não seduza o atrativo das relações carnais, mas aspirem ao mistério que elas representam, não imitando o que se pratica no matrimônio, mas amando o que ele significa".(36)

(36) Pontificale Romanum: De benedictione et consecratione virginum.

30 A maior glória das virgens está em serem elas imagens vivas da perfeita integridade que une a Igreja com o seu Esposo divino; e esta sociedade fundada por Cristo alegra-se o mais possível ao ver que as virgens são o sinal maravilhoso da sua santidade e da sua fecundidade espiritual, como escreve tão bem são Cipriano: "São flor nascida da Igreja, beleza e esplendor da graça espiritual, alegria da natureza, obra perfeita e merecedora de toda a honra e louvor, imagem em que se reflete a santidade do Senhor, a mais ilustre porção do rebanho de Cristo. Compraz-se nelas a Igreja e nelas floresce exuberante a sua gloriosa fecundidade; de modo que, quanto mais aumenta o número de virgens, tanto mais cresce a alegria da mãe".(37)

(37) S. Cypr., De habitu virginum, 3; PL 4, 443.



II

REFUTAÇÃO DOS ERROS OPOSTOS

À VIRGINDADE E AO CELIBATO



31 Esta doutrina da excelência da virgindade e do celibato, e da superioridade de ambos em relação ao matrimônio, tinha sido declarada, como dissemos, pelo divino Redentor e pelo apóstolo das gentes; do mesmo modo foi também definida solenemente no concílio Tridentino(38) como dogma de fé, e comentada sempre unanimemente pelos santos padres e doutores da Igreja. Além disso, os nossos predecessores e nós próprio a explicamos muitas vezes e recomendamos insistentemente. Mas, perante recentes ataques a esta doutrina tradicional da Igreja, e por causa do perigo que eles constituem e do mal que produzem entre os fiéis, somos levado pelo dever do nosso cargo a desmascarar nesta encíclica e a reprovar de novo esses erros, tantas vezes propostos sob aparências de verdade.

(38) Sess. XXIV, cân. 10.


A castidade não é nociva ao organismo humano


32 Primeiramente, apartam-se do senso comum, a que a Igreja sempre atendeu, aqueles que vêem no instinto sexual a mais importante e mais profunda das tendências humanas, e concluem daí que o homem não o pode coibir durante toda a sua vida sem perigo para o organismo e sem prejuízo do equilíbrio da sua personalidade.


33 Ora, segundo a acertada observação de santo Tomás, a mais profunda das inclinações naturais é o instinto da conservação: o instinto sexual não vem senão em segundo lugar. Além disso, compete à razão, privilégio singular da nossa natureza, regular essas tendências e instintos profundos e, por meio da direção que lhes dá, enobrecê-los.(39)

(39) Cf. S. Thom., Summa Theol.,
I-II 94,2.


34 Infelizmente, depois do pecado de Adão, as faculdades e as paixões do corpo, estando alteradas, não só procuram dominar os sentidos mas até o espírito, obscurecendo a razão e enfraquecendo a vontade. Mas é-nos dada a graça de Cristo, especialmente nos sacramentos, para nos ajudar a manter o nosso corpo em servidão e a viver do espírito (cf. Ga 5,25 1Co 9,27). A virtude da castidade não exige de nós que nos tornemos insensíveis ao estímulo da concupiscência, mas que o subordinemos à razão e à lei da graça, esforçando-nos, segundo as próprias forças, por seguir o que é mais perfeito na vida humana e cristã.


35 Para conseguir, porém, o domínio perfeito do espírito sobre a vida dos sentidos, não basta abstermo-nos apenas dos atos diretamente contrários à castidade, mas é absolutamente necessário renunciar com generosidade a tudo o que ofende de perto ou de longe esta virtude: poderá então o espírito reinar plenamente no corpo e ver a sua vida espiritual em paz e liberdade. Quem não verá, à luz dos princípios católicos, que a castidade perfeita e a virgindade, bem longe de prejudicarem o desenvolvimento normal do homem e da mulher, os elevam pelo contrário à mais alta nobreza moral?

A santificação não é mais fácil no matrimônio que na virgindade


36 Reprovamos recentemente com tristeza a opinião que apresenta o casamento como meio único de garantir à personalidade humana o seu desenvolvimento e a sua perfeição natural.(40) Alguns afirmam, de fato, que a graça, comunicada ex opere operato pelo sacramento do matrimônio, santifica o uso do casamento a ponto de o tornar instrumento mais eficaz que a mesma virgindade para unir as almas a Deus, porque o casamento cristão é um sacramento, mas não o é a virgindade. Nós declaramos porém essa doutrina falsa e nociva. Sem dúvida, o sacramento concede aos esposos a graça de cumprirem santamente o dever conjugal e reforça os laços do afeto recíproco que os une; mas não foi instituído para fazer do uso do matrimônio o meio mais apto, em si, para unir com o próprio Deus a alma dos esposos pelos laços da caridade.(41) Quando o apóstolo são Paulo reconhece aos esposos o direito de se absterem algum tempo do uso do casamento para se entregarem a oração (cf. 1Co 7,5), não é exatamente porque tal renúncia torna a alma mais livre para se dar às coisas divinas e orar?

(40) Cf. Allocutio ad Moderatrices supremas Ordinum et Institutorum Religiosarum, de 15 de setembro de 1952; AAS 44(1952), p. 824.
(41) Cf. Decretum S. Officii, De matrimonii finibus, de 1° de abril de 1944; AAS 36(1944), p.103.


37 Finalmente, não se pode afirmar, como fazem alguns, que "a ajuda mútua",(42) que os esposos procuram no matrimônio cristão, é ajuda mais perfeita para conseguir a santidade do que a apregoada solidão do coração das virgens e dos continentes. Pois, não obstante a renúncia a tal amor humano, não se pode dizer que as pessoas, que abraçam o estado de perfeita castidade, empobrecem por isso mesmo a sua personalidade humana. De fato, recebem do próprio Deus um socorro espiritual muito superior à "mútua ajuda" prestada pelos cônjuges entre si. Dedicando-se completamente àquele que é seu princípio e lhes dá a participação da sua vida divina, longe de se diminuírem a si mesmos, só se engrandecem o mais possível. Quem, com mais verdade que os virgens, pode aplicar a si aquelas admiráveis palavras do apóstolo são Paulo: "Vivo, já não eu, mas é Cristo que vive em mim"? (Ga 2,20).

(42) Cf. CIC cân. CIS 1013 § 1.

38 Por esse motivo, a Igreja mantém sapientissimamente o celibato dos padres; sabe que ele é e há de ser fonte de graças espirituais e de união com Deus, cada vez mais íntima.

O apostolado não é mais eficaz no matrimônio do que na virgindade


39 Parece-nos útil dizer também alguma coisa dos que apartam a juventude dos seminários e institutos religiosos, esforçando-se por incutir a idéia de que hoje a Igreja tem maior necessidade do auxílio e da profissão da vida cristã dos casados, vivendo no século como os demais, do que dos sacerdotes e das religiosas, que por assim dizer se separaram do mundo pelo voto de castidade. Semelhante idéia, veneráveis irmãos, é completamente falsa e muito perniciosa.


40 Não é certamente intenção nossa negar a fecundidade do testemunho que os esposos católicos podem dar, com o exemplo da vida e a eficácia da virtude, em todos os lugares e circunstâncias. Mas invocar esse motivo para aconselhar que se prega o matrimônio à consagração total a Deus é inverter e transtornar a reta ordem das coisas. Muito desejamos, veneráveis irmãos, que não só se ensinem a tempo aos já casados ou aos noivos os deveres de pais e mães, mas que se esclareçam também sobre o testemunho que devem dar aos outros da sua fé e do exemplo das suas virtudes. Mas, como o exige a consciência do nosso dever, não podemos deixar de reprovar em absoluto os maus conselheiros, que apartam jovens de entrarem nos seminários ou na vida religiosa, sob o pretexto que farão maior bem como pais ou mães de família, professando a vida cristã publicamente à vista de todos. Melhor fariam tais conselheiros exortando as inúmeras pessoas casadas a cooperarem nas obras de apostolado, do que teimando em apartar da virgindade os poucos jovens que desejam consagrar-se ao divino serviço. A esse propósito lembra santo Ambrósio: "Sempre foi próprio da graça sacerdotal lançar a semente da integridade e excitar o amor da virgindade".(43)

(43) S. Ambros., De virginitate, c. 5, n. 26; PL 16, 272.


41 Também julgamos dever notar que é completamente falso dizer que as pessoas que professam castidade perfeita, deixam, em certo modo, de pertencer à comunidade humana. As religiosas que dedicam a vida toda a servir os pobres e os doentes, sem distinção de raça, de categoria social ou religião, acaso não se associam intimamente a essas desgraças e dores, e porventura não se compadecem delas como se fossem verdadeiras mães? E o sacerdote não é o bom pastor, que, a exemplo do divino mestre, conhece as suas ovelhas e as chama pelos seus nomes? (cf. Jn 10,14 Jn 10,3). Ora foi exatamente a castidade perfeita que permitiu que esses sacerdotes e religiosos, e essas religiosas, pudessem se dedicar a todos e amar a todos por amor de Cristo. E também os contemplativos e contemplativas, oferecendo a Deus as suas orações e a sua própria imolação pela salvação do próximo, contribuem muito para o bem da Igreja; mais ainda: como nas circunstâncias presentes se dão ao apostolado e às obras de caridade, segundo as normas estabelecidas pela nossa carta apostólica Sponsa Christi,(44) merecem todo o louvor por este novo motivo; nem podem ser considerados como estranhos à sociedade humana, pois trabalham desses dois modos para o bem espiritual dela.

(44) Cf. AAS 43(1951), p. 20.


Sacra virginitas PT