Mystici corporis PT




CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII


MYSTICI CORPORIS



O CORPO MÍSTICO DE JESUS CRISTO

E NOSSA UNIÃO NELE COM CRISTO




Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e demais
Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica

INTRODUÇÃO



1 A doutrina do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja (cf. Col 1,24), recebida dos lábios do próprio Redentor e que põe na devida luz o grande e nunca assaz celebrado benefício da nossa íntima união com tão excelsa Cabeça, é de sua natureza tão grandiosa e sublime que convida à contemplação todos aqueles a quem move o Espírito de Deus; e, iluminando as suas inteligências, incita-os eficazmente a obras salutares, consentâneas com a mesma doutrina. Por isso resolvemos entreter-nos convosco sobre tão relevante assunto, expondo e explicando principalmente a parte relativa à Igreja militante. Move-nos a fazê-lo não só a excepcional importância da doutrina, mas também as circunstâncias atuais da humanidade.

Propomo-nos, pois, falar das riquezas entesouradas no seio da Igreja que Cristo adquiriu com seu sangue (Ac 20,28) e cujos membros se gloriam de uma Cabeça coroada de espinhos. Isto mesmo já é prova evidente de que a verdadeira glória e grandeza não nascem senãu da dor; por isso nós quando compartilhamos dos sofrimentos de Cristo, devemos alegrar-nos, para que também na renovação da sua glória jubilemos e exultemos (cf. 1P 4,13).


3, E para começar, note-se que assim como o Redentor do gênero humano foi perseguido, caluniado, atormentado por aqueles mesmos que vinha salvar, assim a sociedade por ele fundada também neste ponto se parece com o divino Fundador. Com efeito, ainda que não neguemos, antes gostosamente e bendizendo a Deus confessemos, que também nestes tempos tão agitados há muitos que, embora separados do redil de Cristo, olham para a Igreja como para o único porto de salvação, contudo não ignoramos que a Igreja de Deus não só é soberbamente desprezada e perseguida por aqueles que, menoscabada a luz da sabedoria cristã, voltam miseramente às doutrinas, usos e costumes do antigo paganismo, mas freqüentemente é desconhecida, descurada, aborrecida por muitos cristãos, que se deixam seduzir pelas aparências, falsas doutrinas, ou arrastar pelos atrativos e corrupção do mundo. É por isso que Nós, veneráveis irmãos, obedecendo à voz da nossa própria consciência, vamos expor à vista de todos e celebrar a beleza, louvores e glória da santa madre Igreja, a quem depois de Deus tudo devemos.


4 Confiamos que estes nossos pensamentos e exortações, em conseqüência das atuais circunstâncias, produzirão os mais copiosos frutos nos fiéis; porquanto sabemos que os infinitos trabalhos e sofrimentos desta nossa tempestuosa idade que tão terrivelmente torturam gente sem número, se forem recebidos serena e resignadamente da mão de Deus, converterão como que naturalmente os corações dos bens caducos da terra aos bens celestes e eternos, e despertarão neles uma sede misteriosa das coisas espirituais e um desejo ardente que, sob o impulso do Espírito Santo, os mova e quase force a procurar com mais diligência o reino de Deus. O homem, quanto mais se desprende das vaidades do mundo e do amor desordenado dos bens presentes, tanto mais se dispõe para perceber a luz dos mistérios celestes. Ora, talvez nunca a vaidade e inanidade das coisas da terra se manifestou mais eloqüentemente que hoje, quando desabam reinos e nações, quando os abismos dos vastos oceanos engolem imensas riquezas e tesouros de toda a espécie, quando cidades e vilas e férteis campos se cobrem de imensas ruínas e se mancham de sangue fraterno.


5 Confiamos ainda que o que vamos expor sobre o Corpo Místico de Cristo não será desagradável nem inútil aos que vivem fora do seio da Igreja católica. E isto, não só porque a sua benevolência para com a Igreja parece aumentar de dia para dia, senão também porque vendo eles atualmente como as nações se erguem contra as nações e os reinos contra os reinos, e crescem indefinidamente as discórdias, os antagonismos e as sementeiras do ódio, se volverem os olhos para a Igreja, se contemplarem a sua unidade de origem divina, por virtude da qual os homens de todas as nacionalidades se unem a Cristo com vínculos fraternos, então sem dúvida ver-se-ão forçados a admirar uma tal sociedade de amor e sentir-seão atraídos com o auxílio da graça a participar da mesma unidade e caridade.


6 Há ainda uma razão especial e suavíssima pela qual nos ocorreu ao espírito e grandemente nos deleita esta doutrina. Durante o passado ano, XXV do nosso episcopado, pudemos com grandíssima consolação contemplar um espetáculo que luminosa e expressivamente fez resplandecer a imagem do corpo místico de Cristo em todas as cinco partes do mundo. Nesse sentido, apesar dessa interminável guerra de extermínio ter destruído miseramente a fraterna comunidade dos povos, por toda parte, onde temos filhos em Cristo, todos com uma só vontade e amor - refletindo em si as preocupações e ansiedades de todos -, elevavam o pensamento e o coração para o Pai comum, que governa em tempos tão adversos a nau da Igreja católica. Esse espetáculo não só demonstra a admirável unidade da família cristã, mas atesta também que assim como nós com amor paterno abraçamos os povos de todas as nações, assim também os católicos de todo o mundo, embora pertencentes a povos que se guerreiam mutuamente, olham para o vigário de Cristo como para o pai amantíssimo de todos que, mantendo perfeito equilíbrio entre ambas as partes contendentes e guiando-se por perfeita retidão de juízo, superior a todas as tempestades das perturbações humanas, recomenda e defende com todas as forças a verdade, a justiça, a caridade.


7 Também não foi menor a nossa consolação ao sabermos a boa vontade com que espontaneamente fora oferecida e reunida uma quantia para levantar na Cidade eterna um templo em honra do nosso predecessor e santo do nosso nome, Eugênio I. Ora como esse templo, levantado por desejo e com o óbolo dos fiéis, conservará perene a memória deste faustíssimo acontecimento, assim desejamos dar um atestado da nossa gratidão nesta encíclica onde precisamente se trata das pedras vivas que, colocadas sobre a pedra angular que é Cristo, formam o templo santo, muito mais sublime que qualquer templo material, isto é, a morada de Deus no Espírito (Cf. Ep 2,21-22 1P 2,5).


8 Mas a causa principal que nos leva a tratar agora assaz difusamente desta excelsa doutrina é a nossa solicitude pastoral. É verdade que muito se tem escrito sobre este argumento; nem ignoramos que hoje não poucos se dão com grande empenho a estes estudos, com os quais também se deleita e nutre a piedade cristã. Este movimento parece dever-se ao renovado estudo da sagrada liturgia, a maior freqüência da mesa eucarística, e finalmente ao culto mais intensificado do sacratíssimo Coração de Jesus de que hoje gozamos por vê-lo mais difundido; tudo isso moveu muitos a uma mais profunda contemplação das imperscrutáveis riquezas de Cristo que se conservam na Igreja. Acrescem ainda os documentos sobre a Ação católica publicados nestes últimos tempos; os quais tornaram mais estreitos os vínculos dos fiéis entre si e com a hierarquia eclesiástica, particularmente com o romano pontífice, e contribuíram sem dúvida grandemente para pôr na devida luz esta doutrina. Todavia se isso que acabamos de dizer é muito consolador, temos de confessar que não só autores separados da verdadeira Igreja espalham graves erros nesta matéria, mas que também entre os fiéis vão serpejando opiniões ou inexatas ou de todo falsas, que podem desviar os espíritos da reta senda da verdade.


9 De fato, enquanto por um lado perdura o falso racionalismo que tem por absurdo tudo o que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro parecido, o naturalismo vulgar que não vê nem quer reconhecer na Igreja de Cristo senão uma sociedade puramente jurídica; por outro lado grassa por aí um falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador.


10 Ora esses erros entre si opostos fazem que alguns, cheios de infundado temor, considerem esta sublime doutrina como perigosa e fujam dela como do fruto do paraíso, belo e proibido. Não; os mistérios revelados por Deus não podem ser prejudiciais ao homem, nem devem permanecer infrutíferos como tesouro enterrado no campo; senão que nos foram dados por Deus, para proveito espiritual dos que piamente os contemplam. Pois como ensina o Concílio Vaticano "a razão iluminada pela fé, quando indaga com diligência, piedade e sobriedade, alcança sempre por graça de Deus alguma inteligência, sempre frutuosíssima, dos mistérios, quer pela analogia com os conhecimentos naturais, quer pela relação que os mistérios têm entre si e com o último fim do homem"; embora, como adverte o mesmo sagrado concílio, "nunca ela chegue a compreender os mistérios como as verdades que constituem o seu próprio objeto".(1)


11 Portanto, tendo nós maduramente ponderado tudo isso diante de Deus, para que a incomparável formosura da Igreja resplandeça com nova glória, para que mais esplendidamente se manifeste a excelsa e sobrenatural nobreza dos fiéis que no corpo de Cristo se unem à sua cabeça: enfim para fechar de uma vez a porta a muitos erros que pode haver nesta matéria, julgamos nosso dever pastoral expor a todo o povo cristão nesta encíclica a doutrina do corpo místico de Jesus Cristo e da união dos fiéis com o divino Redentor no mesmo Corpo, e juntamente deduzir desta suavíssima doutrina alguns ensinamentos, com os quais o maior conhecimento do mistério produza frutos cada vez mais abundantes de perfeição e santidade.



PRIMEIRA PARTE


A IGREJA CORPO, "MÍSTICO" DE CRISTO



12 Ao meditar este ponto da doutrina católica ocorrem-nos logo aquelas palavras do Apóstolo: "Onde o pecado avultou, superabundou a graça" (Rm 5,20). Sabemos que Deus constituiu o primeiro progenitor do gênero humano em tão excelsa condição, que com a vida terrena transmitiria aos seus descendentes a vida sobrenatural da graça celeste. Mas depois da triste queda de Adão toda a humana linhagem, infeccionada pela mancha original, perdeu o consórcio da natureza divina (cf. 2P 1,4) e todos ficamos sendo filhos de ira (Ep 2,3). Deus, porém, na sua infinita misericórdia "amou tanto ao mundo que lhe deu seu Filho unigênito" (Jn 3,16); e o Verbo do Eterno Pai, com a mesma divina caridade, revestiu a natureza humana da descendência de Adão, mas inocente e imaculada, para que do novo e celeste Adão dimanasse a graça do Espírito Santo a todos os filhos do primeiro pai; e estes que pelo primeiro pecado tinham sido privados da filiação adotiva de Deus, pelo Verbo encarnado, feitos irmãos segundo a carne do Filho unigênito de Deus, recebessem o poder de virem a ser filhos de Deus (cf. Jn 1,12). E assim Jesus crucificado não só reparou a justiça do Eterno Pai ofendida, senão que nos mereceu a nós, seus consangüíneos, inefável abundância de graças. Essas graças podia ele distribuí-las diretamente por si mesmo a todo o gênero humano. Quis, porém, comunicá-las por meio da Igreja visível, formada por homens, afim de que por meio dela todos fossem, em certo modo, seus colaboradores na distribuição dos divinos frutos da Redenção. E assim como o Verbo de Deus, para remir os homens com suas dores e tormentos, quis servir-se da nossa natureza, assim, de modo semelhante, no decurso dos séculos se serve da Igreja para continuar perenemente a obra começada. (2)


13 Ora, para definir e descrever esta verdadeira Igreja de Cristo - que é a santa, católica, apostólica Igreja romana (3) - nada há mais nobre, nem mais excelente, nem mais divino do que o conceito expresso na denominação "corpo místico de Jesus Cristo"; conceito que imediatamente resulta de quanto nas Sagradas Escrituras e dos santos Padres freqüentemente se ensina.


1. A Igreja é um "corpo"

Corpo único, indiviso, visível


14 Que a Igreja é um corpo, ensinam-nos muitos passos da sagrada Escritura: "Cristo, diz o Apóstolo, é a cabeça do corpo da Igreja" (Col 1,18). Ora, se a Igreja é um corpo, deve necessariamente ser um todo sem divisão, segundo aquela sentença de Paulo: "Nós, muitos, somos um só corpo em Cristo" (Rm 12,5). E não só deve ser um todo sem divisão, mas também algo concreto e visível, como afirma nosso predecessor de feliz memória Leão XIII, na encíclica "Satis cognitum": "Pelo fato mesmo que é um corpo, a Igreja torna-se visível aos olhos". (4) Estão pois longe da verdade revelada os que imaginam a Igreja por forma, que não se pode tocar nem ver, mas é apenas, como dizem, uma coisa "pneumática" que une entre si com vínculo invisível muitas comunidades cristãs, embora separadas na fé.


15 O corpo requer também multiplicidade de membros, que unidos entre si se auxiliem mutuamente. E como no nosso corpo mortal, quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele, e os sãos ajudam os doentes; assim também na Igreja os membros não vivem cada um para si, mas socorrem-se e auxiliam-se uns aos outros, tanto para mútua consolação, como para o crescimento progressivo de todo o Corpo.

Corpo composto "orgânica" e "hierarquicamente"


16 Mais ainda. Como na natureza não basta qualquer aglomerado de membros para formar um corpo, mas é preciso que seja dotado de órgãos ou membros com funções distintas e que estejam unidos em determinada ordem, assim também a Igreja deve chamar-se corpo sobretudo porque resulta de uma boa e apropriada proporção e conjunção de partes e é dotada de membros diversos e unidos entre si. É assim que o Apóstolo descreve a Igreja quando diz: "como num só corpo temos muitos membros, e os membros não têm todos a mesma função, assim muitos somos um só corpo de Cristo, e todos e cada um membros uns dos outros" (Rm 12,4).


17 Não se julgue, porém, que esta bem ordenada e "orgânica" estrutura do corpo da Igreja se limita unicamente aos graus da hierarquia; ou, ao contrário, como pretende outra opinião, consta unicamente de carismáticos, isto é, dos féis enriquecidos de graus extraordinárias, que nunca hão de faltar na Igreja. E fora de dúvida que todos os que neste corpo estão investidos de poder sagrado, são membros primários e principais, já que são eles que, por instituição do próprio Redentor, perpetuam os ofícios de Cristo doutor, rei e sacerdote. Contudo os santos Padres, quando celebram os ministérios, graus, profissões, estados, ordens, deveres deste corpo místico, não consideram só os que têm ordens sacras, senão também todos aqueles que, observando os conselhos evangélicos, se dão à vida ativa, à contemplativa, ou à mista, segundo o próprio instituto; bem como os que, vivendo no século, se consagram ativamente a obras de misericórdia espirituais ou corporais; e, finalmente, também os que vivem unidos pelo santo matrimônio. Antes é de notar que, sobretudo nas atuais circunstâncias, os pais e as mães de família, os padrinhos e madrinhas, e notadamente todos os seculares que prestam o seu auxílio à hierarquia eclesiástica na dilatação do reino de Cristo, ocupam um posto honorífico, embora muitas vezes humilde, na sociedade cristã, e podem muito bem sob a inspiração e com o favor de Deus subir aos vértices da santidade, que por promessa de Jesus Cristo nunca faltará na Igreja.

Corpo dotado de órgãos vitais, isto é, sacramentos


18 E como o corpo humano nos aparece dotado de energias especiais com que provê à vida, saúde e crescimento seu e de todos os seus membros, assim o Salvador do gênero humano providenciou admiravelmente ao seu corpo místico enriquecendo-o de sacramentos, que com uma série ininterrupta de graças amparam o homem desde o berço até ao último suspiro, e ao mesmo tempo provêem abundantissimamente às necessidades sociais da Igreja. Com efeito, pelo Batismo os que nasceram a esta vida mortal, não só renascem da morte do pecado e são feitos membros da Igreja, senão que, assinalados com o caráter espiritual, se tornam capazes de receber os outros dons sagrados. Com a Crisma infunde-se nova força nos féis para conservarem e defenderem corajosamente a santa madre Igreja e a fé que dela receberam. Pelo sacramento da Penitência oferece-se aos membros da Igreja caídos em pecado uma medicina salutar, que serve não só a restituir-lhes a saúde, mas a preservar os outros membros do corpo místico do perigo de contágio, e até a dar-lhes estímulo e exemplo de virtude. E não basta. Pela sagrada Eucaristia alimentam-se e fortificam-se os fiéis com um mesmo alimento e se unem entre si e a divina Cabeça de todo o Corpo com um vínculo inefável e divino. Finalmente ao leito dos moribundos acode a Igreja, mãe compassiva, e com o sacramento da Extrema-unção, se nem sempre lhes dá a saúde do corpo, por Deus assim o dispor, dá-lhes às almas feridas a medicina sobrenatural, abre-lhes o céu, onde como novos cidadãos e seus novos protetores gozarão por toda a eternidade da divina bem-aventurança.


19 As necessidades sociais da Igreja proveu Cristo de modo especial com dois sacramentos que instituiu: com o Matrimônio em que os cônjuges são reciprocamente um ao outro ministros da graça, proveu ao aumento externo e bem ordenado da sociedade cristã; e, o que é ainda mais importante, à boa e religiosa educação da prole, sem a qual o corpo místico correria perigo; com a Ordem dedicam-se e consagram-se ao serviço de Deus os que hão de imolar a Hóstia eucarística, sustentar a grei dos féis com o Pão dos Anjos e com o alimento da doutrina, dirigi-la com os divinos mandamentos e conselhos e purüicá-la com o batismo e a penitência, enfim fortalecê-la com as outras graças celestes.

Corpo formado por membros determinados


20 E a esse propósito deve notar-se que assim como Deus no princípio do mundo dotou o homem de um riquíssimo organismo com que pudesse sujeitar as outras criaturas e multiplicar-se e encher a terra, assim ao princípio da era cristã proveu a Igreja dos recursos necessários para vencer perigos quase inumeráveis e povoar não só toda a terra, mas também o reino dos céus.


21 Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do organismo do corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas. "Todos nós, diz o Apóstolo, fomos batizados num só Espírito para formar um só Corpo, judeus ou gentios, escravos ou livres" (1Co 12,13). Portanto como na verdadeira sociedade dos fiéis há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, um só batismo, assim não pode haver senão uma só fé (cf. Ep 4,5), e por isso quem se recusa a ouvir a Igreja, manda o Senhor que seja tido por gentio e publicano (cf. Mt 18,17). Por conseguinte os que estão entre si divididos por motivos de fé ou pelo governo, não podem viver neste corpo único nem do seu único Espírito divino.


22 Não se deve, porém, julgar que já durante o tempo da peregrinação terrestre, o corpo da Igreja, por isso que leva o nome de Cristo, consta só de membros com perfeita saúde, ou só dos que de fato são por Deus predestinados à sempiterna felicidade. Por sua infinita misericórdia o Salvador não recusa lugar no seu corpo místico àqueles a quem o não recusou outrora no banquete (Mt 9,11 Mc 2,16 Lc 15,2). Nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separem o homem do corpo da Igreja como fazem os cismas, a heresia e a apostasia. Nem perdem de todo a vida sobrenatural os que pelo pecado perderam a caridade e a graça santificante e por isso se tornaram incapazes de mérito sobrenatural, mas conservam a fé e a esperança cristã, e alumiados pela luz celeste, são divinamente estimulados com íntimas inspirações e moções do Espírito Santo ao temor salutar, à oração e ao arrependimento das suas culpas.


23 Tenha-se, pois, sumo horror ao pecado que mancha os membros místicos do Redentor; mas o pobre pecador que não se tornou por sua contumácia indigno da comunhão dos fiéis, seja acolhido com maior amor, vendo-se nele com caridade operosa um membro enfermo de Jesus Cristo: Pois que é muito melhor, como nota o bispo de Hipona, "curá-los no corpo da Igreja, do que amputá-los como membros incuráveis".(5) "Enquanto o membro está ainda unido ao corpo não há por que desesperar da sua saúde; uma vez amputado, nem se pode curar, nem se pode sarar".(6)

1. Sessio III, Const. Dei Filius de fide cath., c. 4.
2. Cf. Conc.Vat. I, Const. Pastor aeternus de Eccl. Christi; prol.
3. Cf. ibidem, Const. Dei Filius de fide cath., cap. 1.
4. Cf . AAS 28 (1895-96), p. 710.
5. S. Agostinho, Epist.157, 3, 22; Migne, PL, 32, 686.
6. S. Agostinho, Sermo CXXXII, 1; Migne, PL, 38, 754.


2. A Igreja é o corpo "de Cristo"


24 Temos visto até aqui, veneráveis irmãos, que a Igreja pela sua constituição se pode assemelhar a um corpo; segue-se que mostremos mais em particular, por que motivos se deve chamar não um corpo qualquer, mas o corpo de Jesus Cristo. Deduz-se isto do fato que nosso Senhor é o fundador, a cabeça, o conservador e salvador deste corpo místico.

a) Cristo foi o "Fundador" deste corpo


25 Devendo expor brevemente o modo como Cristo fundou o seu corpo social, acode-nos antes de mais nada esta sentença de nosso predecessor de feliz memória Leão XIII: "A Igreja, que já concebida, nascera do lado do segundo Adão, adormecido na cruz, manifestou-se pela primeira vez à luz do mundo de modo insigne no celebérrimo dia de Pentecostes".(7) De fato o divino Redentor começou a fábrica do templo místico da Igreja, quando na sua pregação ensinou os seus mandamentos; concluiu-a quando, glorificado, pendeu da Cruz; manifestou-a enfim e promulgou-a quando mandou sobre os discípulos visivelmente o Espírito paráclito.


26 Durante o seu ministério público escolhia os Apóstolos, enviando-os como ele próprio tinha sido enviado pelo Pai (Jn 17,18), como mestres, guias, agentes da santidade na assembléia dos fiéis; designava o chefe deles e seu vigário em terra (cf. Mt 16,18-19); fazia-lhes conhecer tudo o que tinha ouvido do Pai (Jn 15,15 Jn 17,8 Jn 17,14); indicava também o batismo (cf. Jn 3,5) como meio para os que no futuro cressem serem incorporados no Corpo da Igreja; finalmente chegando ao anoitecer da vida, durante a última ceia, instituía a Eucaristia, admirável sacrifício e admirável sacramento.


27 Ter ele consumado no patíbulo da cruz a sua obra, afirmam-no, numa série ininterrupta de testemunhos, os santos Padres, que notam ter a Igreja nascido na cruz do lado do Salvador, qual nova Eva, mãe de todos os viventes (cf. Gn 3,20). "Agora, diz o grande Ambrósio tratando do lado de Cristo aberto, é ela edificada, agora formada, agora esculpida, agora criada... Agora é a casa espiritual elevada a sacerdócio santo".(8) Quem devotamente investigar esta venerável doutrina, poderá sem dificuldade ver as razões em que ela se funda.


28 E primeiramente com a morte do Redentor, foi abrogada a antiga Lei e sucedeu-lhe o Novo Testamento; então com o sangue de Cristo foi sancionada para todo o mundo a Lei de Cristo com seus mistérios, leis, instituições e ritos sagrados. Enquanto o divino Salvador pregava num pequeno território - pois que não fora enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt 15,24) - corriam juntos a Lei e o Evangelho,(9)) mas no patíbulo, onde morreu, anulou a Lei com as suas prescrições (cf. Ep 2,15), afixou a cruz o quirógrafo do Antigo Testamento (cf. Col 2,14), estabelecendo, com o sangue, derramado por todo o gênero humano, a Nova Aliança (cf. Mt 26,28 1Co 11,25). "Então, diz S. Leão Magno falando da cruz do Senhor, fez-se a transferência da Lei para o Evangelho, da Sinagoga para a Igreja, de muitos sacrifícios para uma única hóstia, tão evidentemente, que ao exalar o Senhor o último suspiro, o místico véu, que fechava os penetrais do templo e o misterioso santuário, se rasgou improvisamente de alto a baixo".(10)


29 Portanto na cruz morreu a Lei antiga; dentro em pouco será sepultada e se tornará mortífera,(11) para ceder o lugar ao Novo Testamento, para o qual tinha Cristo escolhido ministros idôneos na pessoa dos apóstolos (cf. 2Co 3,6): e é pela virtude da cruz que o Salvador, constituído cabeça de toda a família humana já desde o seio da Virgem, exerce plenamente o seu múnus de cabeça da Igreja. "Pela vitória da cruz, segundo o doutor angélico, mereceu o poder e domínio sobre todas as gentes",(12) por ela enriqueceu imensamente aquele tesouro de graça que na glória do céu distribui incessantemente aos seus membros mortais; pelo sangue derramado na cruz fez com que, removido o obstáculo da ira divina, pudessem todos os dons celestes e em primeiro lugar as graças espirituais do Novo e Eterno Testamento correr das fontes do Salvador para a salvação dos homens, sobretudo dos fiéis; enfim na árvore da cruz adquiriu a sua Igreja, isto é, os membros do seu corpo místico, pois que estes não seriam a ele incorporados nas águas do batismo, se não fosse pela virtude salutífera da cruz, onde o Senhor já adquiriu sobre eles domínio pleníssimo.


30 Se nosso Salvador por sua morte foi feito cabeça da Igreja no pleno sentido da palavra, igualmente pelo seu sangue foi a Igreja enriquecida daquela abundantíssima comunicação do Espírito que divinamente a ilustra desde que o Filho do homem foi elevado e glorificado no seu doloroso patíbulo. Então como nota santo Agostinho,(13) rasgado o véu do templo, o orvalho dos dons do Paráclito, que até ali descera somente sobre o velo, isto é, sobre o povo de Israel, começou deixando o velo enxuto, a regar a Igreja e abundantemente toda a terra, quer dizer a Igreja católica, que não conhece fronteira de estirpe ou território. Como no primeiro instante da encarnação, o Filho do Eterno Pai ornou a natureza humana, consigo substancialmente unida, com a plenitude do Espírito Santo, para que fosse apto instrumento da divindade na hora cruenta da redenção; assim na hora da sua preciosa morte enriqueceu a sua Igreja com mais copiosos dons do Paráclito, para a tornar válido e perpétuo instrumento do Verbo encarnado na distribuição dos divinos frutos da redenção. De fato a missão jurídica da Igreja e o poder de ensinar, governar e administrar os sacramentos não têm força e vigor sobrenatural para edificar o corpo de Cristo, senão porque Cristo pendente da cruz abriu à sua Igreja a fonte das divinas graças com as quais pudesse ensinar aos homens doutrina infalível, governá-los salutarmente por meio de pastores divinamente iluminados, e inundá-los com a chuva das graças celestes.

7. Encíclica Divinum Illud; AAS 29(1896-97), p. 649.
8. S. Ambrósio, In Luc., II, 87; Migne, PL 15,1585.
9. S.'Iomás, Summa theol.
I-II 103,3, ad 2.
10. S. Leão M., Sermo 68, 3; Migne, PL 54, 374.
11. Cf. s. Jerônimo e s. Agostinho, Epist.112,14 e 116,16; Migne, PL 22, 924 et 943; S. Tomás, Summa theol., I-II, q.103, a. 3 ad 2; a. 4 ad 1; Concil. Flor., pro Iacob.: Mansi, 31,1738.
12. Cf. S. Tomás, Summa theol., III 42,1.
13. Cf. De peccato orig., XXV, 29; Migne, PL 44, 400.

31 Se considerarmos atentamente todos estes mistérios da cruz, já nos não parecerão obscuras as palavras do Apóstolo, onde ensina aos efésios que Cristo com o sangue fez um povo único de judeus e gentios "destruindo na sua carne a parede interposta", que separava os dois povos; e que ab-rogou a Antiga Lei "para dos dois formar em si mesmo um só homem novo", isto é, a Igreja; e a ambos, reunidos num só Corpo, reconciliar com Deus pela cruz (cf. Ep 2,14-16).


32 A Igreja que com seu sangue fundara, robusteceu-a com energias especiais descidas do céu, no dia de Pentecostes. Com efeito, depois de ter solenemente investido no seu ofício aquele que já antes tinha designado para seu vigário, subiu ao céu; e, sentado à direita do Pai, quis manifestar e promulgar a sua esposa com a descida visível do Espírito Santo, com o ruído do vento impetuoso e com as línguas de fogo (cf. Ac 2,1-4). Como ele próprio ao princípio do seu público ministério tinha sido manifestado pelo Eterno Pai por meio do Espírito Santo que em figura de pomba desceu e pousou sobre ele (cf. Lc 3,22 Mc 1,10), assim igualmente quando os Apóstolos estavam para começar o sagrado ofício de pregar, mandou Cristo Senhor nosso do céu o seu Espírito que, tocando-os com línguas de fogo, mostrou, como com o dedo de Deus, a missão e o múnus sobrenatural da Igreja.

b) Cristo é a "cabeça" deste corpo


33 Em segundo lugar prova-se que este corpo místico, que é a Igreja, é realmente distinguido com o nome de Cristo, porque ele deve ser considerado de fato como sua cabeça. "Ele é, diz S. Paulo, a cabeça do corpo da Igreja" (Col 1,18). Ele é a cabeça, da qual todo o corpo convenientemente organizado e coordenado recebe crescimento e desenvolvimento na sua edihcação (cf. Ep 4,16 com Col 2,19).


34 Bem sabeis, veneráveis irmãos, com que eloqüência e esplendor trataram este assunto os doutores escolásticos e principalmente o Doutor angélico e comum; e não ignorais que os seus argumentos reproduzem fielmente a doutrina dos santos Padres; os quais, por sua parte, não faziam senão expor e comentar as sentenças da divina linguagem da Escritura.


35 Queremos, contudo, para comum utilidade tocar aqui brevemente este ponto. E primeiro é evidente que o Filho de Deus e da Virgem Santíssima deve chamar-se cabeça da Igreja por motivo de singularíssima excelência. A cabeça está colocada no alto. Ora quem foi colocado mais alto do que Cristo-Deus, o qual, como Verbo do Eterno Pai, deve ser considerado "primogênito de toda a criação"? (Col 1,15).

Quem, elevado a maior altura do que Cristo-homem, o qual, nascido da Virgem imaculada, é verdadeiramente e par natureza Filho de Deus, e por sua prodigiosa e gloriosa ressurreição com que triunfou da morte, é o "primogênito dos mortos" (Col 1,18 Ap 1,5). Quem, finalmente, colocado em maior altura do que aquele que de modo admirável, qual "único medianeiro entre Deus e os homens" (1Tm 2,5), ajunta a terra com o céu; que exaltado na cruz, como num trono de misericórdia, atraiu tudo a si (cf. Jn 12,32); e que, filho do homem eleito entre milhões, é amado por Deus mais que todos os homens, todos os anjos e todas as criaturas?(14)


36 E porque Cristo ocupa lugar tão sublime, com razão é ele só a reger e governar a Igreja; nova razão para se assemelhar à cabeça. Como a cabeça, para o dizer com as palavras de santo Ambrósio, é "a cidade real" do corpo,(15) e, sendo dotada de maiores qualidades, dirige naturalmente todos os membros, aos quais sobrestar para olhar por eles, (16) assim o divino Redentor empunha o timão e governa toda a república cristã. Uma vez que governar uma sociedade composta de homens não é outra coisa do que com útil providência, meios aptos e retas normas conduzi-los a um fim determinado,(17) é fácil de ver que nosso Salvador, modelo e exemplar dos bons pastores (cf. Jn 10,1-18 1P 5,1-15), exercita maravilhosamente todos estes ofícios.


37 Ele na sua vida mortal instruiu-nos com leis, conselhos, avisos, em palavras que não passarão nunca e para os homens de todos os tempos serão Espírito e vida (cf. Jn 6,63). Além disso deu aos apóstolos e seus sucessores o tríplice poder de ensinar, reger e santificar, poder definido com especiais leis, direitos e deveres, que constituem a lei fundamental de toda a Igreja.


38 Mas nosso divino Salvador governa e dirige também por si mesmo e diretamente a sociedade que fundou; pois que ele reina nas inteligências e corações dos homens e dobra e compele a seu beneplácito as vontades ainda mais rebeldes. "O coração do rei está na mão do Senhor; inclinálo-á para onde quiser" (Pr 21,1). Com este governo interno ele, qual "pastor e bispo das nossas almas" (cf. 1P 2,25) não só tem cuidado de cada um em particular, mas também de toda a Igreja; tanto quando ilumina e fortalece os sagrados pastores para que fel e frutuosamente se desempenhem de seus ofícios, como quando - em circunstâncias particularmente graves - faz surgir no seio da Igreja homens e mulheres de santidade assinalada, que sejam de exemplo aos outros fiéis, para incremento do seu corpo místico. Acresce ainda que Cristo do céu vela sempre com particular amor pela sua esposa intemerata, que labuta neste terrestre exílio; e quando a vê em perigo, ou por si mesmo, ou pelos seus anjos (cf. Ac 8,26 Ac 9,119 Ac 10,1-7 Ac 12,3-10), ou por aquela que invocamos como auxílio dos cristãos, e pelos outros celestes protetores, salva-a das ondas procelosas e, serenado e abonançado o mar, consola-a com aquela paz "que supera toda a inteligência" (Ph 4,7).


39 Não se julgue, porém, que o seu governo se limita a uma ação invisível,(18) ou extraordinária. Ao contrário, o divino Redentor governa o seu corpo místico de modo visível e ordinário por meio do seu vigário na terra. Vós bem sabeis, veneráveis irmãos, que Cristo nosso Senhor, depois de ter, durante a sua carreira mortal, governado pessoalmente e de modo visível o seu "pequeno rebanho" (Lc 12,32), quando estava para deixar este mundo e voltar ao Pai, confiou ao príncipe dos apóstolos o governo visível de toda a sociedade que fundara. E realmente, sapientíssimo como era, não podia deixar sem cabeça visível o corpo social da Igreja que instituíra. Nem se objete que com o primado de jurisdição instituído na Igreja ficava o corpo místico com duas cabeças. Porque Pedro, em força do primado, não é senão vigário de Cristo, e por isso a cabeça principal deste corpo é uma só: Cristo; o qual, sem deixar de governar a Igreja misteriosamente por si mesmo, rege-a também de modo visível por meio daquele que faz as suas vezes na terra; e assim a Igreja, depois da gloriosa ascensão de Cristo ao céu não está educada só sobre ele, senão também sobre Pedro, como fundamento visível. Que Cristo e o seu vigário formam uma só cabeça ensinou-o solenemente nosso predecessor de imortal memória Bonifácio VIII, na carta apostólica "Unam Sanctam"(19) e seus sucessores não cessaram nunca de o repetir.


40 Em erro perigoso estão, pois, aqueles que julgam poder unir-se a Cristo, cabeça da Igreja, sem aderirem fielmente ao seu vigário na terra. Suprimida a cabeça visível e rompidos os vínculos visíveis da unidade, obscurecem e deformam de tal maneira o corpo místico do Redentor, que não pode ser visto nem encontrado de quantos demandam o porto da eterna salvação.


41 Tudo o que dissemos da Igreja universal deve afirmar-se igualmente das comunidades cristãs particulares, assim orientais como latinas, das quais consta e se compõe uma só Igreja católica; por isso que também a elas governa Jesus Cristo por meio da voz e autoridade dos respectivos prelados. Os bispos não só devem ser considerados como membros mais eminentes da Igreja universal, pois que se unem com nexo singularíssimo à cabeça de todo o corpo, e com razão se chamam "os primeiros dos membros do Senhor",(20) mas nas próprias dioceses, como verdadeiros pastores, apascentam e governam em nome de Cristo os rebanhos que lhes foram confiados;(21) ainda que nisto mesmo não sejam plenamente independentes, mas estão sujeitos à autoridade do romano pontífice, de quem receberam imediatamente o poder ordinário de jurisdição que possuem. Devem pois ser venerados, pelo povo cristão, como sucessores dos apóstolos por instituição divina;(22) a eles, como sagrados com a unção do Espírito Santo, muito melhor que às autoridades deste mundo, ainda que elevadas, se pode aplicar aquela sentença: "Não toqueis nos meus ungidos" (1Ch 16,22 Ps 104,15).


42 É, por isso, imensa a nossa dor quando somos informados de que não poucos de nossos irmãos no episcopado, porque de todo o coração se fizeram modelos do seu rebanho (cf. 1P 5,3) e defendem estrênua e fielmente, como devem, "o depósito da fé" a eles confiado (cf. 1Tm 6,20); porque zelam o cumprimento das leis santíssimas, impressas pela mão de Deus nos corações dos homens, e a exemplo do supremo Pastor defendem o próprio rebanho contra a rapacidade dos lobos, não só se vêem eles próprios perseguidos e vexados, mas - o que para eles é bem cruel e penoso - vêem tratadas igualmente as suas ovelhas, os colaboradores do seu apostolado, e as próprias virgens consagradas a Deus. Essas injustiças, consideramo-las como feitas a nós mesmos e repetimos a eloqüente frase do nosso predecessor de imortal memória, Gregório Magno: A nossa honra é a honra de nossos irmãos; e, então, verdadeiramente somos honrados, quando a nenhum deles se nega a honra que lhes é devida.(23)


43 Todavia não se julgue que Cristo, cabeça da Igreja, por estar posto tão alto, dispensa a cooperação do corpo; pois que deve armar-se do corpo místico o que Paulo afirma do corpo humano: "Não pode a cabeça dizer aos pés: não preciso de vós" (1Co 12,21). É mais que evidente que os fiéis precisam do auxílio do divino Redentor, pois que ele disse: "Sem mim nada podeis fazer" (Jn 15,5), e segundo o Apóstolo, todo o aumento deste corpo místico na sua edificação vem-lhe de Cristo, sua cabeça (Cf. Ep 4,16 Col 2,19). Contudo é igualmente verdade, por mais admirável que pareça, que Cristo também precisa dos seus membros. E isso, em primeiro lugar, porque a pessoa de Jesus Cristo é representada pelo sumo pontífice, e este, para não ficar esmagado sob o peso do múnus pastoral, precisa confiar a outros parte não pequena da sua solicitude, e todos os dias deve ser ajudado pelas orações de toda a Igreja. Além disso nosso Salvador, enquanto rege por si mesmo de modo invisível a Igreja, quer ser ajudado pelos membros deste corpo místico na realização da obra da redenção; não por indigência ou fraqueza da sua parte, mas ao contrário porque ele assim o dispôs para maior honra da sua esposa intemerata. Com efeito, morrendo na cruz, deu à Igreja, sem nenhuma cooperação dela, o imenso tesouro da redenção; ao tratar-se porém de distribuir este tesouro, não só faz participante a sua incontaminada esposa desta obra de santificação, mas quer que em certo modo nasça da sua atividade. Tremendo mistério, e nunca assaz meditado: Que a salvação de muitos depende das orações e dos sacrifícios voluntários, feitos com esta intenção, pelos membros do corpo místico de Jesus Cristo, e da colaboração que pastores e féis, sobretudo os pais e mães de família, devem prestar ao divino Salvador.


44 Agora aos motivos expostos para demonstrar que Cristo Senhor nosso deve dizer-se cabeça do seu corpo social, acrescentemos outros três entre si intimamente conexos.


45 Começamos pela mútua relação que existe entre a cabeça e o corpo, pelo fato de serem da mesma natureza. Neste ponto note-se que a nossa natureza, bem que inferior à angélica, a vence por bondade de Deus: "De fato Cristo, como diz o Doutor de Aquino, é cabeça dos Anjos; pois que preside aos Anjos também segundo a humanidade... e enquanto homem ilumina os Anjos e influi sobre eles. Mas quanto à conformidade de natureza Cristo não é cabeça dos Anjos, porque não assumiu os Anjos, mas, segundo o Apóstolo, a descendência de Abraão".(24) E não só assumiu Cristo a nossa natureza, mas fez-se nosso consangüíneo num corpo passível e mortal. Ora se o Verbo "se aniquilou a si mesmo tomando a forma de servo" (Ph 2,7) fê-lo também para tornar os seus irmãos segundo a carne consortes da natureza divina (cf. 2P 1,4) tanto no exílio terreno pela graça santificante, como na pátria celeste pela eterna bem-aventurança. De fato se o Unigênito do Eterno Pai quis ser falho do homem, foi para que nós nos conformássemos à imagem do Filho de Deus (cf: Rm 8,29) e nos renovássemos segundo a imagem daquele que nos criou (cf. Col 3,10). Por conseguinte todos os que se gloriam do nome de cristãos, não só olhem para o divino Salvador como para um altíssimo e perfeitíssimo exemplar de todas as virtudes, mas evitando cuidadosamente o pecado e praticando diligentemente a virtude, procurem reproduzir em seus costumes a sua doutrina e vida, de modo que, quando o Senhor aparecer, sejam semelhantes a ele na glória, vendo-o tal qual é (cf. 1Jn 3,2).


46 Deseja Cristo que cada um de seus membros se lhe assemelhe; mas deseja igualmente que se lhe assemelhe todo o corpo da Igreja. O que sucede quando ela, seguindo as pistas de seu fundador, ensina, governa, e imola o divino sacrifício; quando abraça os conselhos evangélicos, e reproduz em si mesma a pobreza, a obediência e a virgindade do Redentor; quando, nos muitos e variados institutos que como jóias a adornam, nos faz em certo modo ver Cristo, ora no monte contemplando, ora pregando às turbas, ora sarando os enfermos e feridos e convertendo os pecadores, ora, enfim, fazendo bem a todos. Não é, pois, para admirar se ela, enquanto vive nesta terra, se vê também, como Cristo, exposta a perseguições, vexações e sofrimentos.


47 Depois Cristo é cabeça da Igreja, porque avantajando-se na plenitude e perfeição dos dons sobrenaturais, desta plenitude haure o seu corpo místico. Com efeito, notam muitos Padres, assim como no corpo humano a cabeça possui todos os cinco sentidos, ao passo que o resto do corpo possui unicamente o tato, assim todas as virtudes, dons e carismas que há na sociedade cristã, resplandecem de modo singularíssimo na cabeça, Cristo. "Aprouve que nele habitasse toda a plenitude" (Col 1,19); a ele exornam todos os dons que acompanham a união hipostática; porquanto nele habita o Espírito Santo com tal plenitude de graças, que não se pode conceber maior. A ele foi dado poder sobre a carne (cf. Jn 17,2); nele se encerram "todos os riquíssimos tesouros de sabedoria e ciência" (Col 2,3). A própria ciência de visão é nele tal que supera absolutamente em compreensão e clareza a ciência correspondente de todos os bem-aventurados. Enfim, é ele tão cheio de graça e verdade, que todos nós recebemos da sua inexaurível plenitude (cf. Jn 1,14-16).


48 Essas palavras do discípulo, a quem Jesus amava com singular caridade, levam-nos a expor a última razão que de modo particular demonstra ser Cristo Senhor Nosso cabeça de seu corpo místico. E é que assim como da cabeça partem os nervos, que; difundindo-se por todos os membros do corpo, lhes comunicam sensibilidade e movimento, assim também o divino Salvador infunde na sua Igreja força e vigor, com que os fiéis conhecem mais claramente e mais avidamente apetecem as coisas de Deus. Dele provém ao corpo da Igreja toda a luz que ilumina divinamente os féis, e toda a graça com que se fazem santos como ele é santo.


49 Cristo ilumina toda a sua Igreja: prova-o um sem número de passos da Sagrada Escritura e dos santos Padres. "A Deus nunca ninguém o viu; foi o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, que no-lo deu a conhecer" (cf. Jn 1,18). Vindo da parte de Deus como Mestre (cf. Jn 3,2), para dar testemunho a verdade (cf. Jn 18,37) iluminou com tanta luz a primitiva Igreja dos apóstolos, que o príncipe deles exclamava: "Senhor, para quem iremos? Vós tendes palavras de vida eterna" (cf. Jn 6,68). Assistiu do céu os evangelistas, que como membros de Cristo, escreveram o que ele, como cabeça, lhes ditou e ensinou.(25) E hoje a nós que moramos neste exílio terrestre é autor da fé, como na pátria é o seu consumador (cf. He 12,2). Ë ele que infunde nos féis a luz da fé; ele que aos pastores e doutores e sobre todos ao seu vigário na terra enriquece divinamente com os dons sobrenaturais de ciência, entendimento e sabedoria, para que conservem fielmente o tesouro da fé, o defendam corajosamente, piedosa e diligentemente o expliquem e valorizem; Ele é enfim o que invisível preside e dirige os concílios da Igreja.(26)


50 Cristo é autor e operador de santidade. Já que nenhum ato salutar pode haver que dele não derive como fonte soberana: "Sem mim, diz ele, nada podeis fazer" (cf. Jn 15,5). Se nos sentimos movidos à dor e contrição dos pecados cometidos, se com temor e esperança filial nos convertemos a Deus, é sempre a sua graça que nos comove. A graça e a glória brotam da sua inexaurível plenitude. Sobretudo aos membros mais eminentes de seu corpo místico enriquece o Salvador continuamente com os dons de conselho, fortaleza, temor, piedade, para que todo o corpo cresça cada dia mais em santidade e perfeição. E quando com rito externo se ministram os sacramentos da Igreja, é ele que opera o efeito deles nas almas.(27) É ele também que, nutrindo os fiéis com a própria carne e sangue, serena os movimentos desordenados das paixões; é ele que aumenta as graças e prepara a futura glória das almas e dos corpos. Todos esses tesouros da divina bondade reparte ele aos membros do seu corpo místico não só enquanto os obtém do Eterno Pai como vítima eucarística na terra e como vítima glorificada no céu, mostrando as suas chagas e apresentando as suas súplicas, mas também porque "segundo a medida do dom de Cristo" (Ep 4,7) escolhe, determina, distribui a cada um as suas graças. Donde se segue que do divino Redentor, como de fonte manancial, "todo o corpo bem organizado e unido recebe por todas as articulações, segundo a medida de cada membro, o influxo e energia que o faz crescer e aperfeiçoar na caridade" (Ep 4,16 cf. Col 2,19).

14. Cf. Cirilo Alex., Comm. in Joh. I, 4; Migne PG 73, 69; S. Tomás, Summa theol.; I, q. 20, a. 4 ad 1.
15. Hexaëm., VI. 55; Migne, PL 14, 265.
16. Cf. s. Agostinho, De agon. Christ. XX, 22; Migne, PL 40, 301.
17. Cf. s. Tomás, Summa theol.; I 22,1-4.
18. Cf. Leão XIII, enc. Satis Cognitum, AAS 28(1895-9fi), p. 725.
19. Cf. Corpus luris Canonici, Extr. comm., I, 8,1.
20. S. Greg. Magno, Moralia, XIV, 35, 43; Migne, PL LXXV,1062.
21. Cf. Conc. Vat. I, Const. Pastor aeternus de Eccl., cap. 3.
22. Cf. Cod. Iur. Can., cân. CIS 329, § 1.
23. Cf. Epist. ad Eulog., 30; Migne, PL 77, 933.
24. Comm. in Ep. ad Eph., cap. l, lect 8; Hb. 2,16-17.
25. Cf. s. Agostinho, De cons. evang., I, 35, 54; Migne, PL 34,1070.
26. Cf . s.Cirilo Alex., Ep. 55 de Symb.; Migne, PG 77, 293.
27. Cf. s. Tomás, Summa theol., III 64,3.



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