Mystici corporis PT 51

c) Cristo é o "sustentador" deste corpo


51 O que até aqui expusemos, veneráveis irmãos, explicando resumidamente o modo como Cristo Senhor Nosso quer que da sua divina plenitude desça sobre a Igreja a abundância de seus dons, para que ela se lhe assemelhe o mais possível, serve para explicar a terceira razão que demonstra como o corpo social da Igreja é corpo de Cristo, isto é, por ser nosso Salvador quem divinamente sustenta a sociedade que fundou.


52 Observa Belarmino, com muita sutileza, (28) que com esta denominação de corpo Cristo não quer dizer somente que ele é a cabeça do seu corpo místico, senão também que sustenta a Igreja, de tal maneira que a Igreja é como uma segunda personificação de Cristo. Afirma-o também o Doutor das gentes, quando, na epístola aos Coríntios, chama, sem mais, Cristo a Igreja (1Co 12,12), imitando de certo o divino Mestre que, quando ele perseguia a Igreja, lhe bradou do céu: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (cf. Ac 9,4 Ac 22,7 Ac 26,14). Antes são Gregório Nisseno diz-nos que o Apóstolo repetidamente chama Cristo à Igreja; (29) nem vós, veneráveis irmãos, ignorais aquela sentença de Agostinho: "Cristo prega a Cristo".(30)


53 Todavia essa nobilíssima denominação não deve entender-se como se aquela inefável união, com que o Filho de Deus assumiu uma natureza humana determinada, se estende a toda a Igreja; mas quer dizer que o Salvador comunica à sua Igreja os seus próprios bens de tal forma que ela, em toda a sua vida visível e invisível, é um perfeitíssimo retrato de Cristo. De fato em força da missão jurídica com que o divino Redentor enviou os apóstolos ao mundo, como o Pai o enviara a ele (cf. Jn 17,18 e Jn 20,21), é ele que pela sua Igreja batiza, ensina, governa, ata, desata, oferece e sacrifica. E com aquela mais elevada comunicação, interior e sublimíssima, de que falamos acima, descrevendo o modo como a cabeça influi nos membros, Cristo faz que a Igreja viva da sua vida sobrenatural, penetra com a sua divina virtude todo o corpo, e a cada um dos membros, segundo o lugar que ocupa no corpo, nutre-o e sustenta-o do mesmo modo que a videira sustenta e torna frutíferas as vides aderentes à cepa.(31)


54 Se bem considerarmos esse divino princípio de vida e atividade, dado por Cristo, enquanto constitui a própria fonte de todos os dons e graças criadas, compreenderemos facilmente que não é outra coisa senão o Espírito Paráclito que procede do Pai e do Filho e de modo peculiar se diz "Espírito de Cristo" ou "Espírito do Filho" (Rm 8,9 2Co 3,17 Ga 4,6). Com esse Espírito de graça e de verdade ornou o Filho de Deus a sua alma logo no imaculado seio da Virgem; esse Espírito deleita-se em habitar na alma do Redentor, como no seu templo predileto; esse Espírito mereceu-no-lo Cristo derramando o próprio sangue; e, soprando sobre os apóstolos, comunicou-o à Igreja para perdoar os pecados (cf. Jn 20,22); e ao passo que só Cristo o recebeu sem medida (cf. Jn 3,34), aos membros do corpo místico dá-se da plenitude de Cristo e só na medida que ele o quer dar (cf. Ep 1,8 Ep 4,7). Depois que Cristo foi glorificado na cruz, o seu Espírito é comunicado à Igreja em copiosíssima efusão para que ela e cada um dos seus membros se pareçam cada vez mais com o Salvador. É o Espírito de Cristo que nos faz filhos adotivos de Deus (cf. Rm 8,14-17 Ga 4,6-7), para que um dia "todos, contemplando a face descoberta, a glória do Senhor, nos transformemos na sua própria imagem cada vez mais resplandecente" (cf. 2Co 3,18).


55 A esse Espírito de Cristo, como a princípio invisível, deve atribuir-se também a união de todas as partes do corpo tanto entre si como com sua cabeça, pois que ele está todo na cabeça, todo no corpo e todo em cada um dos membros; conforme as suas funções e deveres, e segundo a maior ou menor saúde espiritual de que gozam, está presente e assiste de diversos modos. É ele que com o hálito de vida celeste em todas as partes do corpo é o princípio de toda a ação vital e verdadeiramente salutar. É ele que, embora resida e opere divinamente em todos os membros, contudo também age nos inferiores por meio dos superiores; ele enfim que cada dia produz na Igreja com sua graça novos incrementos, mas não habita com a graça santificante nos membros totalmente cortados do corpo. Essa presença e ação do Espírito de Jesus Cristo exprimiu-a sucinta e energicamente nosso sapientíssimo predecessor, de imortal memória, Leão XIII, na encíclica "Divinum Illud" por estas palavras: "Baste afirmar que, sendo Cristo cabeça da Igreja, o Espírito Santo é a sua alma".(32)


56 Se, porém, considerarmos aquela força e energia vital com que o divino Fundador sustenta toda a família cristã, não já em si mesma, mas nos efeitos criados que produz, então veremos que consiste nas dons celestes que nosso Redentor juntamente com seu Espírito dá a Igreja e juntamente com o mesmo Espírito, opera, como doador da luz sobrenatural e causa eficiente da santidade. E é por isso que a Igreja não menos que todos os santos, membros seus, pode fazer sua aquela grande sentença do Apóstolo: "Vivo; já não eu; mas vive Cristo em mim" (Ga 2,20).

d) Cristo é o "conservador" deste corpo


57 O que temos dito da "cabeça mística" (33) ficaria incompleto, se não tocássemos, ao menos brevemente, aquela outra sentença do mesmo Apóstolo: "Cristo é a cabeça da Igreja; ele é o Salvador do seu corpo" (Ep 5,23). Nestas palavras temos a última razão pela qual a Igreja é dita corpo de Cristo: Cristo é o Salvador divino desse corpo. Com razão foi pelos samaritanos proclamado "Salvador do mundo" (Jn 4,42); antes deve sem dúvida alguma dizer-se "Salvador de todos", embora com são Paulo devamos acrescentar: "sobretudo dos fiéis" (cf. 1Tm 4,10). De fato com seu sangue, mais que todos os outros, comprou ele os seus membros que constituem a Igreja (Ac 20,28). Tendo, porém, já exposto detalhadamente esse ponto quando acima tratamos da Igreja nascida da cruz, de Cristo iluminador, santificador e sustentador do seu corpo místico, não há por que demorarmo-nos em maiores explanações; meditemo-lo antes com humildade e atenção, dando contínuas graças a Deus. O que nosso divino Salvador começou outrora, pendente da cruz, não cessa de o perfazer continuamente na celeste bem-aventurança: "A nossa cabeça, diz santo Agostinho, ora por nós; acolhe uns membros, castiga outros, a outros purifica, a outros consola, a outros cria, a outros chama, a outros torna a chamar, a outros corrige, a outros reintegra".(34) A nós é dado cooperar com Cristo nesta obra, "de um e por um somos salvos e salvamos".(35)

3. A Igreja é o corpo "místico" de Cristo


58 Passamos já, veneráveis irmãos, a expor as razões com que desejamos mostrar que o corpo de Cristo, que é a Igreja, se deve denominar místico. Essa denominação, usada já por vários escritores antigos, comprovam-na não poucos documentos pontifícios. E há muitas razões para se dever adotar: pois que por ela o corpo social da Igreja, cuja cabeça e supremo regedor é Cristo, pode distinguir-se do seu corpo físico, nascido da Virgem Maria e que agora está sentado à destra do Pai ou oculto sob os véus eucarísticos; pode também distinguir-se, e isto é importante por causa dos erros atuais, de qualquer corpo natural, quer físico, quer moral.


59 De fato, enquanto no corpo natural o princípio de unidade junta de tal maneira as partes que cada uma fica sem própria subsistência, ao contrário no corpo místico a força de mútua coesão, por mais íntima que seja, une os membros de modo que conservam perfeita e própria personalidade. Além disso, se considerarmos a relação entre o todo e os diversos membros em todo e qualquer corpo físico dotado de vida, os membros particulares destinam-se, em última análise, unicamente ao bem de todo o composto, ao passo que toda a sociedade de homens, considerado o fim último da sua unidade, é finalmente ordenada ao proveito de todos e cada um dos membros, como pessoas que são. Portanto, para voltarmos ao nosso ponto, como o Filho do Eterno Pai desceu do céu por amor da nossa eterna salvação, assim fundou o corpo da Igreja e o enriqueceu do seu divino Espírito para procurar e conseguir a bem-aventurança das almas imortais, conforme aquela sentença do Apóstolo; "Todas as coisas são vossas; vós, porém, sois de Cristo; e Cristo de Deus" (1Co 3,23);(36) A Igreja como é ordenada ao bem dos fiéis, assim é destinada a glória de Deus e à daquele que ele mandou, Jesus Cristo.


60 Se compararmos o corpo místico com o moral, veremos que a diferença não é leve, mas importantíssima e gravíssima. No corpo moral não há outro princípio de unidade senão o fim comum e a comum cooperação sob a autoridade social para o mesmo fim; ao passo que no corpo místico de que falamos, a essa tendência comum do mesmo fim junta-se outro princípio interno, realmente existente e ativo, tanto de todo o composto, como em cada uma das partes, e tão excelente, que supera imensamente todos os vínculos de unidade que unem o corpo, quer físico, quer moral. Esse princípio é, como acima dissemos, de ordem não natural mas sobrenatural, antes em si mesmo absolutamente infinito e incriado: o Espírito divino, que, como diz o Angélico, "sendo um só e o mesmo enche e une toda a Igreja".(37)


61 Por conseguinte esse termo bem entendido lembra-nos que a Igreja, sociedade perfeita no seu gênero, não consta só de elementos sociais e jurídicos. Ela é muito mais excelente que quaisquer outras sociedades humanas (38) às quais excede quanto a graça supera a natureza, quanto as coisas imortais se avantajam as mortais e caducas.(39) As Comunidades humanas, sobretudo a Sociedade civil, não são para desprezar, nem para ser tidas em pouca conta; mas a Igreja não está toda em realidades desta ordem, como o homem todo não é só corpo mortal.(40) É verdade que os elementos jurídicos, em que a Igreja se estriba e de que se compõe, nascem da divina constituição que Cristo lhe deu, e servem para conseguir o fim sobrenatural; contudo o que eleva a sociedade cristã a um grau absolutamente superior a toda a ordem natural, é o Espírito do Redentor, que, como fonte de todas as graças, dons e carismas, enche perpétua e intimamente a Igreja e nela opera. O organismo do nosso corpo é por certo obra-prima do Criador, mas fica imensamente aquém da excelsa dignidade da alma; assim a constituição social da república cristã, embora apregoe a sabedoria do seu divino Arquiteto, é, contudo, de ordem muitíssimo inferior, quando se compara aos dons espirituais de que se adorna e vive, e à fonte divina donde eles dimanam.

4. A Igreja jurídica e a Igreja da caridade


62 De quanto até aqui expusemos, veneráveis irmãos, é evidente que estão em grave erro os que arbitrariamente ungem uma Igreja como que escondida e invisível; e não menos aqueles que a consideram como simples instituição humana com determinadas leis e ritos externos, mas sem comunicação de vida sobrenatural. (41) Ao contrário, assim como Cristo, cabeça e exemplar da Igreja, "não é todo se nele se considera só a natureza humana visível... ou só a natureza divina invisível... mas é um de ambas e em ambas as naturezas...: assim o seu corpo místico";(42) pois que o Verbo de Deus assumiu a natureza humana passível, para que, uma vez fundada e consagrada com seu sangue a sociedade visível, "o homem fosse reconduzido pelo governo visível às realidades invisíveis".(43)


63 Por isso lamentamos também e reprovamos o erro funesto dos que sonham uma Igreja ideal, uma sociedade formada e alimentada pela caridade, à qual, com certo desprezo, opõem outra que chamam jurídica. Enganam-se grandemente os que introduzem tal distinção; pois que vêem que o divino Redentor pela mesma razão por que ordenou que a sociedade humana por ele fundada fosse perfeita no seu gênero e dotada de todos os elementos jurídicos e sociais, a saber, para perdurar na terra a obra salutífera da Redenção, (44) por essa mesma razão e para conseguir o mesmo fim quis que fosse enriquecida de dons e graças celestes pelo Espírito Paráclito. O Eterno Pai quis que ela fosse "o reino do seu Filho muito amado" (Col 1,13); mas realmente um reino em que todos os fiéis prestassem homenagem plena de entendimento e de vontade, (45) e com humildade e obediência se conformassem àquele que por nós "se fez obediente até à morte" (Ph 2,8). Portanto nenhuma oposição ou contradição pode haver entre a missão invisível do Espírito Santo e o múnus jurídico dos pastores e doutores recebido de Cristo; pois que as duas coisas, como em nós o corpo e a alma, mutuamente se completam e aperfeiçoam e provêm igualmente do único Salvador nosso, que não só disse ao emitir o sopro divino: "Recebei o Espírito Santo" (Jn 20,22), mas em voz alta e clara acrescentou: "Como o Pai me enviou a mim, assim eu vos envio a vós" (Jn 20,21), e também: "Quem vos ouve a mim ouve" (Lc 10,16).


64 E se às vezes na Igreja se vê algo em que se manifesta a fraqueza humana, isso não deve atribuir-se a sua constituição jurídica, mas àquela lamentável inclinação do homem para o mal, que seu divino Fundador às vezes permite até nos membros mais altos do seu corpo místico para provar a virtude das ovelhas e dos pastores e para que em todos cresçam os méritos da fé cristã. Cristo, como acima dissemos, não quis excluir da sua Igreja os pecadores; portanto se alguns de seus membros estão espiritualmente enfermos, não é isso razão para diminuirmos nosso amor para com ela, mas antes para aumentarmos a nossa compaixão para com os seus membros.


65 Sem mancha alguma, brilha a santa madre Igreja nos sacramentos com que gera e sustenta os filhos; na fé que sempre conservou e conserva incontaminada; nas leis santíssimas que a todos impõe, nos conselhos evangélicos que dá; nos dons e graças celestes, pelos quais com inexaurível fecundidade (46) produz legiões de mártires, virgens e confessores. Nem é sua culpa se alguns de seus membros sofrem de chagas ou doenças; por eles ora a Deus todos os dias: "Perdoai-nos as nossas dívidas" e incessantemente com fortaleza e ternura materna trabalha pela sua cura espiritual.


66 Quando, por conseguinte, denominamos "místico" o corpo de Jesus Cristo, a força mesmo do termo é para nós uma grave lição; a lição que ressoa nestas palavras de são Leão: "Reconhece, ó cristão, a tua dignidade; e feito consorte da natureza divina, vê que não recaias por um comportamento indigno na tua antiga baixeza. Lembrate de que cabeça e de que corpo és membro".(47)

28. Cf. De Rom. Pont., I, 9; De Concil., II,19.
29. Cf. S. Greg. Niss., De vita Moysis; Migne, PG 44, 385.
30. Cf. Sermo 354, 1; Migne, PL 39,1563.
31. Cf. Leão XIII, enc. "Sapientiae Christianae'; AAS 22(1889-90), p. 392; enc. "Satis cognitum'; AAS 28(1895-96), p. 710.
32. AAS 29 (1896-97), p. 650.
33. Cf. s. Ambrosio, De Elia et ieiun., 10, 36-37, e in Psal. 118, serm. 20, 2; Migne, PL 14, 710 e 15,1483.
34. Comentário aos Salmos, 85,5.
35. S, Clem. Alex., Strom., VII, 2; Migne, PG 9, 413.
36. Pio XI, enc. "Divini Redemptoris": AAS 29(1937), p. 80.
37. De veritate, q. 29, a. 4 c.
38. Cf. Leão XIII, "Sapientiae Christianae"; AAS 22(1889-90), p. 392.
39. Cf. Leão XIII, enc. "Satis cognitum"; AAS 28 (1895-96), p. 724.
40. Cf. ibidem, p. 710.
41. Cf. ibidem, p. 710.
42. Cf. ibidem, p. 710.
43. S. Tomás, De Veritate, q. 29, a. 4 ad 3.
44. Conc. Vat. I, Sess. IV, Const, dogm. Pastor aeternus de Eccl., prol.
45. Conc. Vat. I, Sess. III, Const. Dei Filius de fide cath., c. 3
46. Cf. Conc. Vat. I, Sess. III, const. Dei Filius de fide cath., cap 3.
47. Sermo 21, 3; Migne, PL 54,192-193.


SEGUNDA PARTE


UNIÃO DOS FIÉIS COM CRISTO



67 Agrada-nos agora, veneráveis irmãos, tratar da nossa união com Cristo no corpo da Igreja; a qual, como bem diz santo Agostinho, (48) por ser uma coisa grande, misteriosa e divina, acontece muitas vezes ser mal-entendida e explicada. Primeiramente é claro que é uma união estreitíssima: na Sagrada Escritura não só se compara à união do casto matrimônio, e à unidade vital dos sarmentos com a videira e dos membros do nosso corpo (cf. Ep 5,22-23 Jn 15,1-5 Ep 4,16), mas descreve-se como tão íntima, que a tradição antiquíssima continuada nos Padres e fundada naquela sentença do Apóstolo: "ele (Cristo) é a cabeça do corpo da Igreja" (Col 1,18), ensina que o divino Redentor forma com seu corpo social uma única pessoa mística, ou como diz santo Agostinho: o Cristo total. (49) O próprio Salvador na sua oração sacerdotal não duvidou comparar esta união à maravilhosa unidade com que o Pai está no Filho e o Filho no Pai (Jn 17,21-23).

1. Vínculos jurídicos e sociais


68 A nossa união em Cristo e com Cristo vê-se em primeiro lugar do fato que, sendo a família cristã por vontade de seu Fundador um corpo social e perfeito, deve necessariamente possuir a união dos membros que resulta da conspiração destes para o mesmo fim. E quanto mais nobre é o fim a que tende esta conspiração, quanto mais é divina a fonte donde ela procede, tanto mais excelente é a união. Ora o fim é altíssimo: a contínua santificação dos membros do mesmo corpo para a glória de Deus e do Cordeiro que foi sacrificado (Ap 5,12-13). A fonte diviníssima: não só o beneplácito do Eterno Pai e a vontade expressa do Salvador, mas também a interna inspiração e moção do Espírito Santo nas nossas inteligências e corações. E realmente se não podemos fazer o mais pequenino ato salutar senão no Espírito Santo, como podem inumeráveis multidões de todas as gentes e estirpes tender de comum acordo para a suprema glória do Deus uno e trino, senão por virtude daquele que procede como único e eterno amor do Pai e do Filho?


69 E porque este corpo social de Cristo, como acima dissemos, por vontade do seu Fundador deve ser visível, é força que aquela conspiração de todos os membros se manifeste também externamente, pela profissão da mesma fé, pela recepção dos mesmos sacramentos, pela participação ao mesmo sacrifício, pela observância prática das mesmas leis. E ainda absolutamente necessário que haja um chefe supremo visível a todos, que coordene e dirija eficazmente para a consecução do fim proposto a atividade comum; e este é o vigário de Cristo na terra. Pois que, como o divino Redentor enviou o Paráclito, Espírito de verdade, para que em sua vez (cf. Jn 14,16 e Jn 14,26) tomasse o governo invisível da Igreja, assim mandou a Pedro e aos seus sucessores que, representando na terra a sua pessoa, tomassem o governo visível da família cristã.

2. Virtudes teologais


70 A esses vínculos jurídicos, que já por si excedem grandemente os de qualquer outra sociedade humana, mesmo suprema, junta-se necessariamente outra causa de união naquelas três virtudes que nos unem estreitissimamente com Deus: a fé, a esperança e a caridade cristã. "Um só Senhor, uma só fé", como diz oApóstolo (Ep 4,5): aquela fé com que aderimos a um só Deus e àquele que ele mandou, Jesus Cristo (cf. Jn 17,3). Quão intimamente por meio desta fé nos unimos a Deus, ensinam-no as palavras do discípulo amado: "Quem confessar que Jesus é Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus" (1Jn 4,15). Nem é menor a união, que por ela se estabelece entre nós e com a divina cabeça; pois que todos os fiéis que "temos o mesmo Espírito de fé" (2Co 4,13), somos iluminados pela mesma luz de Cristo, sustentados pelo mesmo manjar de Cristo, e governados pela mesma autoridade e magistério de Cristo. E se em todos floresce o mesmo Espírito de fé, todos vivemos também a mesma vida "na fé do Filho de Deus que nos amou e se entregou a si mesmo por nós" (cf. Ga 2,20); e Cristo, nossa cabeça, recebido em nós pela fé viva e habitando em nossos corações (cf. Ep 3,17), como é autor da nossa fé, será também o seu consumador (cf. He 12,2).


71 Se, nesta vida, pela fé aderimos a Deus qual fonte da verdade, pela virtude da esperança cristã desejamo-lo qual fonte da bem-aventurança, "esperando a bem-aventurada esperança e o advento da glória do grande Deus" (Tt 2,13). Por causa daquele comum desejo do reino dos céus pelo qual renunciamos a ter pátria permanente aqui na terra, mas demandamos a celeste (cf. He 13,14), e anelamos a glória eterna, não duvidou dizer o Apóstolo das gentes: "Um corpo só e um só Espírito, como é uma a esperança da vocação com que fostes chamados" (Ep 4,4); mais ainda, Cristo reside em nós como esperança da glória (cf. Col 1,27).


72 Mas se os vínculos da fé e da esperança, que nos unem com o Redentor divino no seu corpo místico, são fortes e importantes, não são menos importantes e eficazes os laços da caridade. Se até naturalmente nada há mais excelente do que o amor, fonte da verdadeira amizade, que dizer daquele amor soberano, que o próprio Deus infunde nas nossas almas? "Deus é caridade, e quem permanece na caridade permanece em Deus e Deus nele" (1Jn 4,16). A caridade, como por força de uma lei estabelecida por Deus, faz com que ele desça a morar nas almas que o amam, dando-lhes amor por amor, segundo aquela sentença: "Se alguém me ama, também meu Pai o amará e viremos a ele e estabeleceremos nele a nossa morada" (Jn 14,23): Portanto a caridade une-nos com Cristo mais intimamente que qualquer outra virtude; em cujo amor inflamados tantos filhos da Igreja jubilam de por ele sofrer afrontas e tolerar e suportar tudo; por árduo que fosse, até ao último alento e à efusão do próprio sangue. Por isso nos exorta vivamente o Salvador com estas palavras: "Permanecei no meu amor". E porque a caridade é vã e aparente se não se demonstra e torna efetiva com boas obras, por isso acrescenta logo: "Se observardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; como eu observei os mandamentos de meu Pai e parmaneço no seu amor" (Jn 15,9-10).


73 Mas a esse amor de Deus e de Cristo é preciso que corresponda a caridade para com o próximo. E realmente como podemos nós afirmar que amamos o Redentor divino, se odiamos aqueles que ele, para os fazer membros do seu corpo místico, remiu com seu precioso sangue? Por isso o Apóstolo, entre todos predileto de Cristo, nos adverte: "Se alguém disser que ama a Deus, e odiar a seu irmão, mente. Pois quem não ama a seu irmão, a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê? E nós recebemos este mandamento, que quem ama a Deus ame também a seu Irmão" (1Jn 4,20-21). Antes devemos afirmar que tanto mais unidos estaremos com Deus, e com Cristo, quanto mais "formos membros uns dos outros" (Rm 12,25), solícitos uns pelos outros (1Co 12,25); e por outra parte, tanto mais viveremos entre nós unidos e estreitados pela caridade, quanto mais ardente for o amor que nos unir a Deus e à nossa divina cabeça.


74 O Filho unigênito de Deus já antes do princípio do mundo nos abraçou no seu infinito conhecimento e eterno amor. Amor que ele demonstrou palpavelmente e de modo verdadeiramente assombroso assumindo a nossa natureza em unidade hipostática; donde segue, como ingenuamente nota Máximo de Turim, que "em Cristo nos ama a nossa carne".(50)


75 Esse amorosíssimo conhecimento que o divino Redentor de nós teve desde o primeiro instante da sua encarnação, excede tudo quanto a razão humana pode alcançar; pois que ele pela visão beatífica de que gozou apenas concebido no seio da Mãe Santíssima, tem continuamente presente todos os membros do seu corpo místico e a todos abraça com amor salvífico. Ó admirável dignação da divina bondade para conosco! Ó inconcebível ordem da imensa caridade! No presépio, na cruz, na glória sempiterna do Pai, Cristo vê e abraça todos os membros da Igreja muito mais claramente, com muito maior amor do que a mãe o filho que tem no regaço, do que cada um de nós se conhece e ama a si mesmo.


76 Do dito até aqui vê-se facilmente, veneráveis irmãos, por que é que o Apóstolo Paulo repete tantas vezes que Cristo está em nós e nós em Cristo. O que se demonstra também com uma razão mais sutil. Cristo está em nós como acima demoradamente expusemos, pelo seu Espírito que ele nos comunica, e pelo qual opera em nós de modo que tudo o que o Espírito Santo opera em nós de divino, deve dizer-se que é Cristo também que o opera.(51) "Se alguém não tem o Espírito de Cristo, diz o Apóstolo, esse não pertence a ele; mas se Cristo está em vós... o Espírito é vida pela justiça" (Rm 8,9-10).


77 Dessa mesma comunicação do Espírito de Cristo segue que a Igreja vem a ser como o complemento e plenitude do Redentor; por isso que todos os dons, virtudes e carismas que se encontram na cabeça de modo eminente, superabundante e eficiente, dela derivam a todos os membros da Igreja e neles, conforme o lugar que ocupam no corpo místico de Cristo, dia a dia se aperfeiçoam, e Cristo como que se completa na Igreja. (52) Nessas palavras acenamos a razão por que, segundo a doutrina de Agostinho, já antes brevemente indicada, a cabeça mística que é Cristo, e a Igreja, que é na terra como outro Cristo e faz as suas vezes, constituem um só homem novo, em quem se juntam o céu e a terra para perpetuar a obra salvífica da cruz; este homem novo é Cristo cabeça e corpo, o Cristo total.

48. Cf. s. Agostinho, Contra Faust., 21,8; Migne, PL 42, 392.
49. Cf. Comentário aos Salmos, 17,51 e 90,2,1.
50. Sermo 29; Migne, PL 57, 594.
51. Cf, s. Tomás, Comm. in Ep. ad Eph., cap. 2, lect. 5.
52. Cf. s. Tomás, Comm. in Ep, ad Eph., cap. l, lect. 8.


3. A inabitação do Espírito Santo


78 Certamente não desconhecemos quão difícil de entender e de explicar é esta doutrina da nossa união com o divino Redentor, e especialmente da habitação do Espírito Santo nas almas, pelos véus do mistério que a recatam e tornam obscura à investigação da fraca inteligência humana. Mas sabemos também que da investigação bem feita e persistente e do conflito e concurso das várias opiniões, se a investigação for orientada pelo amor da verdade e pela devida submissão à Igreja, brotam faíscas e se acendem luzes com que, mesmo neste gênero de ciências sagradas, se pode obter verdadeiro progresso. Por isso não censuramos os que, por diversos caminhos, se esforçam por atingir e quanto possível declarar este tão sublime mistério da nossa admirável união com Cristo. Uma coisa, porém, devem todos ter por certa e indubitável, se não querem desviar-se da verdadeira doutrina e do reto magistério da Igreja: rejeitar toda a explicação desta mística união que pretenda elevar os fiéis tanto acima da ordem criada, que cheguem a invadir a divina, a ponto de se atribuir em sentido próprio um só que seja dos atributos de Deus. Retenham também firmemente aquele outro princípio certíssimo, que nestas matérias é comum à SS. Trindade tudo o que se refere e enquanto se refere a Deus como suprema causa eficiente.


79 Note-se também que se trata de um mistério recôndito, que neste exílio terrestre nunca se poderá completamente desvendar ou compreender nem explicar em linguagem humana. Diz-se que as Pessoas divinas habitam na criatura inteligente enquanto presentes nela de modo imperscrutável, dela são atingidas por via de conhecimento e amor, (53) de modo porém absolutamente íntimo e singular, que transcende a natureza humana. Para formarmos disto uma idéia ao menos aproximativa, não devemos descurar o caminho e método que o Concílio Vaticano tanto recomenda nestas matérias, para obter luz com que se possa vislumbrar alguma coisa dos divinos arcanos, isto é, a comparação dos mistérios entre si e com o bem supremo a que se dirigem. E é assim que Nosso sapientíssimo Predecessor de feliz memória Leão XIII, tratando desta nossa união com Cristo e da habitação do Espírito Paráclito em nós, muito oportunamente fixa os olhos na visão beatífica, que um dia no céu completará e consumará esta união mística. "Esta admirável união, diz ele, que com termo próprio se chama "inabitação", difere apenas daquela com que Deus no céu abraça e beatifica os bem-aventurados, só pela nossa condição (de viajores na terra)".(55) Naquela visão poderemos com os olhos do Espírito, elevados pelo lume da glória, contemplar de modo inefável o Pai, o Filho e o Divino Espírito, assistir de perto por toda a eternidade às processões das divinas Pessoas e gozar de uma bem-aventurança semelhantíssima àquela que faz bem-aventurada a santíssima e indivisível Trindade.

53. Cf. s. Tomás, Summa theol.,
I 43,3.
54. Sess. III, const. Dei Filius de fide cath., c. 4.
55. Cf. enc. "Divinum illud" ; AAS 29(1896-97), p. 653.

4. A Eucaristia sinal de unidade


80 A precedente exposição da doutrina da íntima união do corpo místico de Cristo com a sua cabeça afigura-se-nos incompleta sem uma breve referência neste lugar a santíssima Eucaristia, pela qual a união nesta vida mortal é levada ao seu auge.


81 Ordenou Cristo Senhor nosso que esta admirável e nunca assaz louvada união que nos une entre nós e com a nossa cabeça divina, fosse manifestada aos féis de modo especial pelo sacrifício eucarístico; no qual o celebrante faz às vezes não só do divino Salvador, mas também de todo o corpo místico e de cada um dos féis; e, por sua parte, os fiéis unidos nas orações e votos comuns, pelas mãos do celebrante, apresentam ao eterno Pai o Cordeiro imaculado - presente no altar à voz unicamente do sacerdote -, como vítima agradável de louvor e propiciação pelas necessidades de toda a Igreja. E do mesmo modo que, morrendo na cruz, o divino Redentor se ofereceu a si mesmo ao Pai como cabeça de todo o gênero humano, assim nesta "oblação pura" (Ml 1,11) não só se oferece a si mesmo ao Pai celeste, como cabeça da Igreja, mas em si oferece os seus membros místicos; pois que a todos, até os fracos e enfermos, tem amorosissimamente encerrados no Coração.


82 O sacramento da eucaristia ao mesmo tempo que é viva e admirável imagem da unidade da Igreja - pois que o pão da hóstia é um, resultante de muitos grãos (56) dá-nos o próprio autor da graça sobrenatural, para dele haurirmos o Espírito da caridade que nos fará viver não a nossa, mas a vida de Cristo e amar o próprio Redentor em todos os membros do seu corpo social.

56. Cf. Didaché IX,4.


83 Se, portanto, nas angustiosas circunstâncias atuais houver muitíssimos que se abracem com Jesus escondido sob os véus eucarísticos de tal maneira que nem a tribulação, nem a angústia, nem a fome, nem a nudez, nem os perigos, nem a perseguição, nem a espada os possa separar da sua caridade (cf. Rm 8,35), então sem dúvida a sagrada comunhão, providencialmente restituída em nossos dias a um uso mais freqüente desde a infância, poderá ser fonte daquela fortaleza que não raro produz e sustenta o heroísmo entre os cristãos.



TERCEIRA PARTE


EXORTAÇÃO PASTORAL




1. Erros relativos à vida ascética

a) Falso misticismo


84 Estas verdades, veneráveis irmãos, se os fiéis as compreenderem e recordarem bem diligentemente, ajudá-los-ão a acautelar-se dos erros a que expõe a investigação deste difícil assunto, quando feita a capricho, como alguns a fazem, não sem grande perigo para a fé católica e perturbação das almas. Com efeito, não faltam alguns que, por não considerarem bastante que S. Paulo falava nesta matéria só por metáforas, nem distinguirem, como é absolutamente necessário, os sentidos particulares e próprios dos termos corpo físico, moral, místico, introduzem uma falsa noção de unidade, afirmando que o Redentor e os membros da Igreja formam uma pessoa física, e ao passo que atribuem aos homens propriedades divinas, fazem Cristo Senhor nosso sujeito a erros e à humana inclinação para o mal. A tais falsidades opõem-se a fé católica e os sentimentos dos santos Padres; mas opõem-se igualmente o pensamento e a doutrina do apóstolo das gentes, que se bem une Cristo e o seu corpo místico com uma união admirável, contudo contrapôs-nos um ao outro como Esposo à esposa (cf. Ep 5,22-23).


Mystici corporis PT 51