Sacerdotalis caelibatus PT


CARTA ENCÍCLICA

SACERDOTALIS CAELIBATUS

DE SUA SANTIDADE O

PAPA PAULO VI

AOS BISPOS, AOS IRMÃOS

NO SACERDÓCIO

E AOS FIÉIS DE TODO O

MUNDO CATÓLICO

SOBRE O

CELIBATO SACERDOTAL






Veneráveis Irmãos e diletos filhos
saúde e bênção apostólica

O celibato consagrado nos dias de hoje


1 O celibato sacerdotal, que a Igreja guarda desde há séculos como brilhante pedra preciosa, conserva todo o seu valor mesmo nos nossos tempos, caracterizados por transformação profunda na mentalidade e nas estruturas.

Mas no clima atual de novos fermentos, manifestou-se também a tendência, e até a vontade expressa, de pedir à Igreja que torne a examinar esta sua instituição característica, cuja observância, segundo alguns, se tornou problemática e quase impossível no nosso tempo e no nosso mundo.

Uma promessa


2 Este estado de coisas, que agita a consciência e provoca perplexidades nalguns sacerdotes e jovens aspirantes ao sacerdócio, e atemoriza muitos fiéis, obriga-nos a não dilatar o cumprimento da promessa, feita aos Veneráveis Padres do Concílio, a quem declaramos o nosso propósito de imprimir novo lustre e novo vigor ao celibato sacerdotal nas circunstâncias atuais. (1) Desde então, invocamos longa e ardentemente as necessárias luzes e auxílios do Espírito Santo e examinamos diante de Deus os pareceres e solicitações que de toda a parte chegaram às nossas mãos, sobretudo de vários Pastores da Igreja de Deus.

Amplitude e gravidade da questão


3 A importante questão do celibato do Clero, na Igreja, foi-se apresentando demoradamente ao nosso espírito em toda a sua amplidão e gravidade. Deve ainda hoje subsistir essa severa e transcendente obrigação para aqueles que desejam receber as sacras ordens maiores? Será hoje possível e conveniente a observância de tal obrigação? Não terá chegado o momento de quebrar o vínculo que, na Igreja, une celibato e sacerdócio? Não poderia tornar-se facultativa esta difícil observância? Não ficaria assim favorecido o ministério sacerdotal e facilitada a aproximação ecumênica? Se a áurea lei do celibato consagrado deve ainda manter-se, quais são os motivos que provam que ela é santa e conveniente? Quais são os meios que tornam possível essa observância, e como se pode ela transformar de peso em auxílio, para a vida sacerdotal?

Realidade e problemas


4 Fixou-se a nossa atenção, de modo particular, nas objeções que, em formas diversas, foram e continuam a ser expressas contra a manutenção do celibato. Com efeito, tema de tão grande importância e complexidade obriga-nos, em virtude do nosso serviço apostólico, a considerar lealmente a realidade e os problemas que essa implica mas, como é nosso dever e nosso encargo, havemos de fazer essa consideração à luz da verdade que é Cristo, propondo-nos cumprir em tudo a vontade daquele que nos entregou a nossa missão e propondo-nos também mostrar aquilo que somos diante da Igreja, isto é, Servo dos servos de Deus.


OBJEÇÕES CONTRA O CELIBATO SACERDOTAL


Celibato e Novo Testamento


5 Pode dizer-se que, nunca como hoje, o tema do celibato eclesiástico foi com tanta agudeza examinado, sob todos os aspectos - no plano doutrinal, histórico, sociológico, psicológico e pastoral - e muitas vezes com intenções fundamentalmente retas, se bem que as palavras, de quando em quando, as tenham traído.

Consideremos honestamente as principais objeções contra a lei do celibato eclesiástico unido ao sacerdócio. A primeira provém, ao que parece, da fonte mais autorizada, o Novo Testamento, no qual se conserva a doutrina de Cristo e dos Apóstolos. O Novo Testamento não exige o celibato dos ministros sagrados, mas propõe-no simplesmente como obediência livre a uma vocação especial ou a um carisma particular (cf. Mt
Mt 19,11-12). Jesus não impôs esta condição ao escolher os Doze, como também os Apóstolos não a impuseram àqueles que iam colocando à frente das primeiras comunidades cristãs (cf. 1Tm 3,2-5 Tt 1,5-6).

Padres da Igreja


6 A relação íntima que os Padres da Igreja e os escritores eclesiásticos estabeleceram, com o andar dos séculos, entre a vocação ao sacerdócio ministerial e a virgindade consagrada origina-se em mentalidades e situações históricas bastante diferentes das nossas. Muitas vezes, nos textos patrísticos, recomenda-se ao clero, mais que o celibato, a abstinência do uso do matrimônio; e as razões, aduzidas em favor da castidade perfeita dos ministros sagrados, parecem às vezes inspiradas em pessimismo excessivo quanto à condição do homem na carne, ou ainda, num conceito particular da pureza necessária para o contato com as coisas sagradas. Além disso, os argumentos antigos já não estariam em conformidade com os ambientes sócio-culturais em que a Igreja é chamada a atuar, por meio dos sacerdotes, no mundo de hoje.

Vocação e celibato


7 Uma dificuldade, que muitos notam, consiste em fazer-se coincidir, na disciplina vigente do celibato, o carisma da vocação sacerdotal com o da perfeita castidade, considerada como estado de vida próprio do ministro de Deus. E por isso perguntam se é justo afastar do sacerdócio aqueles que parecem ter vocação ministerial, sem terem vocação de vida celibatária.

Celibato e escassez de clero


8 Manter o celibato sacerdotal na Igreja muito prejudicaria, além disso, as regiões onde a escassez numérica do clero, reconhecida e lamentada pelo Concílio, (2) provoca situações dramáticas, dificultando a plena realização do plano divino de salvação e pondo às vezes em perigo até mesmo a possibilidade do primeiro anúncio evangélico. De fato, a preocupante rarefação do clero é atribuída por alguns ao peso da obrigação do celibato.

Sombras sobre o celibato


9 Nem faltam pessoas convencidas de que o sacerdócio no matrimônio não só tiraria a ocasião de infidelidades, desordens e defecções dolorosas, que ferem e magoam a Igreja inteira, mas consentiria aos ministros de Cristo mais completo testemunho de vida cristã, mesmo no campo da família, campo que lhes está vedado pelo estado atual em que vivem.

Violência contra a natureza?


10 Há ainda quem insista em afirmar que o sacerdote se encontra, em virtude do celibato, numa situação física e psicológica artificial nociva ao equilíbrio e manutenção da sua personalidade humana; acontece, segundo dizem, que muitas vezes o sacerdote se torna insensível, falto de calor humano e de plena comunhão de vida e destino com o resto dos seus irmãos, vendo-se obrigado a uma solidão que é fonte de amargura e aviltamento.

Não indicará tudo isto violência injusta e desprezo injustificável dos valores humanos, derivados da obra divina da criação e integrados na obra da redenção realizada por Cristo?

Formação inadequada


11 Reparando, além disso, no modo como o candidato ao sacerdócio chega a aceitar tão pesado encargo, objeta-se que, na prática, esse fato é conseqüência duma atitude passiva, causada muitas vezes por formação não perfeitamente adequada, nem respeitadora da liberdade humana, mais que resultado duma decisão autenticamente pessoal, pois o grau de conhecimento e de autodecisão do jovem e a sua maturidade psicofísica são bastante inferiores, e sempre desproporcionados com a realidade, com as dificuldades objetivas e com a duração da obrigação que assumem.

Verdadeiro ponto de vista


12 Não ignoramos que se podem levantar outras objeções contra o celibato: é tema muito complexo, que toca no âmago da concepção habitual da vida e introduz nela a luz superior que vem da revelação divina; interminável série de dificuldades ocorrerá ao espírito daqueles que "não compreendem esta linguagem" (Mt 19,11), não entendem ou esquecem o "dom de Deus" (cf. Jo Jn 4,10), nem conhecem a lógica superior desse novo conceito de vida, a sua admirável eficácia e plenitude exuberante.

Testemunho do passado e do presente


13 Este coro de objeções parece que sufoca a voz secular e solene dos Pastores da Igreja, dos mestres de espírito, do testemunho vivido duma legião sem número de santos e de fiéis ministros de Deus, que fizeram do celibato objeto interior e sinal exterior da sua alegre e total doação ao mistério de Cristo. Não, esta voz é ainda forte e serena; não vem só do passado, vem do presente também. Constantemente atento como estamos a observar a realidade, não podemos fechar os olhos a este fato magnífico e surpreendente: na santa Igreja de Deus, em todas as partes do mundo onde ela levantou felizmente as suas tendas, ainda hoje há inumeráveis ministros sagrados - subdiáconos, diáconos, presbíteros e bispos - que vivem de modo ilibado o celibato voluntário e consagrado; e, ao lado destes, não podemos deixar de notar as falanges imensas de religiosos, religiosas, e também de jovens e leigos, todos fiéis ao compromisso da perfeita castidade: vivem-na, não por desprezo do dom divino da vida, mas por amor superior à vida nova que brota do mistério pascal; vivem-na com austeridade corajosa, com religiosidade alegre, dum modo exemplar e íntegro, e mesmo com relativa facilidade. Este grandioso fenômeno prova a realidade singular do reino de Deus, vivo no seio da sociedade moderna, à qual presta o humilde e benéfico serviço de "luz do mundo" e de "sal da terra" (cf. Mt Mt 5,13-14). Não podemos calar a nossa admiração: neste fenômeno, sopra indubitavelmente o Espírito de Cristo.

Confirmada a validez do celibato


14 Julgamos portanto que a lei vigente do celibato consagrado deve, ainda hoje, acompanhar firmemente o ministério eclesiástico; deve tornar possível ao ministro a sua escolha, exclusiva, perene e total, do amor único e supremo de Cristo e a sua dedicação ao culto de Deus e ao serviço da Igreja, e deve ser característica do seu estado de vida, tanto na comunidade dos fiéis como na profana.

Poder da Igreja


15 É certo que o carisma da vocação sacerdotal, ordenada ao culto divino e ao serviço religioso e pastoral do Povo de Deus, se distingue do carisma que leva à escolha do celibato como estado de vida consagrada (cf. nn. 5 e 7); mas a vocação sacerdotal, ainda que divina na sua inspiração, não se torna definitiva e operante sem o exame e a aceitação de quem possui na Igreja o poder e a responsabilidade do ministério ao serviço da comunidade eclesial; e pertence por conseguinte à autoridade da Igreja estabelecer, segundo os tempos e os lugares, quais devam ser em concreto os homens e quais os requisitos exigidos para que possam considerar-se aptos para o serviço religioso e pastoral da mesma Igreja.

Finalidade da Encíclica


16 Guiando-nos pelo espírito de fé, consideramos portanto favorável a ocasião, que nos é oferecida pela Divina Providência, de explicarmos de novo e de maneira mais adaptada aos homens do nosso tempo as razões profundas do celibato consagrado, pois, se as dificuldades contra a fé "podem estimular o espírito à mais cuidadosa e profunda inteligência" da mesma, (3) não acontece diferentemente com a disciplina eclesiástica, que dirige a vida dos crentes.

Sentimo-nos vibrar de alegria ao contemplar, nestas circunstâncias e desde este ponto de vista, a divina riqueza e beleza da Igreja de Cristo que nem sempre é imediatamente decifrável a olhos humanos, sendo obra do amor do Chefe divino da mesma Igreja e manifestando-se em tal perfeição de santidade (cf. Ef
Ep 5,25-27) que maravilha o espírito do homem e ultrapassa tudo quanto as forças da criatura humana poderiam fazer para explicá-la.


PRIMEIRA PARTE


I. RAZÕES DO CELIBATO CONSAGRADO


Concílio e celibato


17 É certo, conforme declarou o Concílio Ecumênico Vaticano II, que a virgindade "não é requerida pela própria natureza do sacerdócio, como se conclui da prática da Igreja primitiva e da tradição das Igrejas Orientais". (4) Mas o mesmo Sagrado Concílio não hesitou em confirmar solenemente a antiga, sagrada e providencial lei vigente do celibato sacerdotal, expondo também os motivos que a justificam aos olhos de quem sabe apreciar com espírito de fé e com fervor íntimo e generoso os dons divinos.

Argumentos antigos à luz nova


18 Não foi hoje que se começou a refletir sobre a "múltipla conveniência" (1.c.) do celibato para os ministros de Deus, e, mesmo que os motivos explícitos tenham variado conforme as várias mentalidades e as diversas situações, esses motivos inspiraram-se sempre em considerações especificamente cristãs, no fundo das quais está a intuição das razões mais profundas. Estas podem ser vistas com melhor luz, mas somente por influxo do Espírito Santo, prometido por Cristo aos seus para dar conhecimento das coisas vindouras (cf. Jo Jn 16,13) e aumentar no Povo de Deus a inteligência do mistério de Cristo e da Igreja, mesmo através da experiência dimanante de maior penetração das coisas espirituais no decurso dos séculos. (5)


SIGNIFICADO CRISTOLÓGICO DO CELIBATO


Novidade de Cristo


19 O sacerdócio cristão, que é novo, só pode ser compreendido à luz da novidade de Cristo, Pontífice máximo e Sacerdote eterno, que instituiu o sacerdócio ministerial como participação do seu sacerdócio único.(6) Portanto o ministro de Cristo e administrador dos mistérios de Deus (l 1Co 4,1), encontra também nele o modelo direto e o ideal supremo (cf. 1Cor 1Co 11,1). O Senhor Jesus Cristo, Unigênito de Deus, enviado ao mundo pelo Pai, fez-se homem para que a humanidade sujeita ao pecado e à morte, fosse regenerada e, por meio dum nascimento novo (Jn 3,5 Tt 3,5), entrasse no reino dos céus. Consagrando-se inteiramente à vontade do Pai (Jn 4,34 Jn 17,4), Jesus realizou, por meio do seu mistério pascal, esta nova criação (2Co 5,17 Ga 6,15), introduzindo no tempo e no mundo uma forma de vida, sublime e divina, que transforma a condição terrena da humanidade (cf. Gl Ga 3,28).

Matrimônio e celibato na novidade de Cristo


20 O matrimônio que, por vontade de Deus, continua a obra da primeira criação (cf. Gn Gn 2,18), ao ser integrado no desígnio total da salvação, adquire novo significado e valor. Na verdade, Jesus, restituiu-lhe a dignidade primitiva (Mt 19,3-8), honrou-o (cf. Jo Jn 2,1-11) e elevou-o à dignidade de sacramento e de sinal misterioso da sua união com a Igreja (Ep 5,32). Assim, os cônjuges cristãos, no exercício do amor mútuo e no cumprimento dos próprios deveres, e tendendo para aquela santidade que lhes é própria, caminham juntos em direção à pátria celeste. Mas Cristo, Mediador dum Testamento mais excelente (He 8,6), abriu também novo caminho, em que a criatura humana, unindo-se total e diretamente ao Senhor e preocupada apenas com Ele e com as coisas que lhe dizem respeito (1Co 7,33-35), manifesta de maneira mais clara e completa a realidade profundamente inovadora do Novo Testamento.

Virgindade e sacerdócio em Cristo Mediador


21 Cristo, Filho único de Deus, está constituído, em virtude da sua mesma encarnação, Mediador entre o céu e a terra, entre o Pai e o gênero humano. Em plena harmonia com esta missão, Cristo manteve-se toda a vida no estado de virgindade, o que significa a sua dedicação total ao serviço de Deus e dos homens. Este nexo profundo em Cristo, entre virgindade e sacerdócio, reflete-se também naqueles que têm a sorte de participar da dignidade e da missão do Mediador e Sacerdote eterno, e essa participação será tanto mais perfeita quanto o ministro sagrado estiver mais livre dos vínculos da carne e do sangue.(7)

O celibato para o reino dos céus


22 Jesus que escolheu os primeiros ministros da salvação e quis que eles fossem participantes dos mistérios do reino dos céus (Mt 13,11 cf. Mc Mc 4,11 Lc 8,10), cooperadores de Deus a título especialíssimo e seus embaixadores (2Co 5,20), Jesus que lhes chamou amigos e irmãos (cf. Jo Jn 15,15 Jn 20,17), e se consagrou por eles para que também eles fossem consagrados na verdade (cf. Jo Jn 17,19), prometeu superabundante recompensa a todos quantos abandonem casa, família, mulher e filhos pelo reino de Deus (cf. Lc Lc 18,29-30). E até recomendou, (8) com palavras densas de mistério e de promessas, uma consagração mais perfeita ainda, ao reino dos céus, com a virgindade, em conseqüência dum dom especial (cf. Mt Mt 19,11-12). A correspondência a este carisma divino tem como motivo o reino dos céus (ibid. v 12); e, do mesmo modo, é neste reino (cf. Lc Lc 18,29-30), no evangelho (Mc 10,29-30) e no nome de Cristo (Mt 19,29), que se encontram motivados os convites de Jesus às difíceis renúncias apostólicas no sentido duma participação mais íntima na sua própria sorte.

Testemunho dado a Cristo


23 É portanto o mistério da novidade de Cristo, de tudo o que Ele é e significa, é a soma dos mais altos ideais do evangelho e do reino, é uma manifestação particular da graça, que brota do mistério pascal do Redentor, e torna desejável e digna a escolha da virgindade por parte dos que foram chamados pelo Senhor Jesus, não só a participarem do seu ministério sacerdotal, mas a compartilharem com Ele o seu mesmo estado de vida.

Plenitude de amor


24 A correspondência à vocação divina é resposta de amor ao amor que Jesus Cristo nos mostrou de maneira sublime (cf. Jo 3,16;15,13); é resposta coberta de mistério no amor particular pelas almas a quem Ele fez sentir os apelos mais instantes (cf. Mc Mc 10,21). A graça multiplica, com força divina, as exigências do amor; este, quando autêntico, é total, exclusivo, estável e perene, e estímulo irresistível que leva a todos os heroísmos. Por isso, a escolha do celibato consagrado foi sempre considerada pela Igreja "como sinal e estímulo da caridade": (9) sinal de amor sem reservas, estímulo de caridade que a todos abraça. Numa vida de entrega tão inteira, feita pelos motivos que expusemos, quem poderá reconhecer sinais de pobreza espiritual ou de egoísmo, sendo ela e devendo ser, pelo contrário, exemplo raro e excepcionalmente expressivo duma vida impulsionada e fortalecida pelo amor, no qual o homem exprime a grandeza que é exclusivamente sua? Quem poderá duvidar da plenitude moral e espiritual duma vida, assim consagrada não a qualquer ideal, por mais nobre que seja, mas a Cristo e à sua obra em favor duma humanidade nova, em todos os lugares e em todos os tempos?

Convite ao estudo


25 Esta perspectiva bíblica e teológica, que associa o nosso sacerdócio ministerial ao de Jesus, e que, na total e exclusiva dedicação de Cristo à sua missão salvadora, encontra exemplo e razão de ser para assimilarmos, na nossa vida, a forma de caridade e de sacrifício própria de Cristo Redentor, parece-nos tão profunda e tão rica de verdades especulativas e práticas, que vos convidamos, veneráveis Irmãos, - como convidamos os que se dão ao estudo da doutrina cristã, os mestres de espírito e todos os sacerdotes capazes de intuições sobrenaturais a respeito da sua vocação - a perseverardes no estudo de tal perspectiva, e a penetrardes nas suas íntimas e fecundas realidades, de maneira que o vínculo entre sacerdócio e celibato apareça cada vez mais claro na sua lógica, luminosa e heróica, de amor único e ilimitado a Cristo Senhor e à sua Igreja.


SIGNIFICADO ECLESIOLÓGICO DO CELIBATO


Celibato e amor de Cristo e do sacerdote para com a Igreja


26 "Conquistado por Cristo Jesus" (Ph 3,12) até ao abandono total de si mesmo a Ele, o sacerdote configura-se mais perfeitamente a Cristo, também no amor com que o eterno Sacerdote amou a Igreja seu Corpo, oferecendo-se inteiramente por ela, para a tornar Esposa sua, gloriosa, santa e imaculada (cf. Ef Ep 5,25-27). A virgindade consagrada dos sacerdotes manifesta, de fato, o amor virginal de Cristo para com a Igreja e a fecundidade virginal e sobrenatural desta união em que os filhos de Deus não são gerados pela carne e pelo sangue (Jn 1,13).(10)

Unidade e harmonia da vida sacerdotal: o ministério da Palavra


27 O sacerdote, dedicando-se ao serviço do Senhor Jesus e do seu Corpo místico, em plena liberdade, facilitada pela sua oferta total, realiza, de modo mais completo, a unidade e a harmonia da vida sacerdotal; (11) torna-se mais capaz de ouvir a Palavra de Deus e de se entregar à oração. Na verdade, a Palavra de Deus, conservada pela Igreja, deixa na alma do sacerdote, que diariamente a medita, vive e anuncia, os ecos mais vibrantes e mais profundos.

Ofício divino e oração


28 Deste modo, como Cristo, aplicado total e exclusivamente às coisas de Deus e da Igreja (cf. Lc 2,49 1Co 7,32-33), o ministro do Senhor, à imitação do sumo Sacerdote sempre vivo na presença de Deus a interceder por nós (cf. He 9,24 He 7,25), encontra na recitação devota e atenta do Ofício divino, (12) na qual empresta a sua voz à Igreja que ora em união com o seu Esposo, alegria e impulso incessantes e sente necessidade de ser mais assíduo na oração, dever eminentemente sacerdotal (cf. Ac 6,2).

Ministério da graça e da eucaristia


29 E tudo o mais da vida do sacerdote, adquire maior plenitude de significado e de eficácia santificadora. Com efeito, o seu compromisso especial de santificação encontra novos incentivos no ministério da graça e no da eucaristia, "em que está encerrado todo o bem da Igreja": (13) operando em nome de Cristo, o sacerdote une-se mais intimamente à oferta, colocando sobre o altar a sua vida inteira, marcada com sinais de holocausto.

Vida pleníssima e fecunda


30 Quantas considerações poderíamos acrescentar ainda sobre o aumento de capacidade, de serviço, de amor e sacrifício do sacerdote em favor do Povo de Deus? Cristo disse de Si mesmo: "Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto" (Jn 12,24); e o apóstolo São Paulo não hesitava em expor-se à morte de todos os dias, para possuir nos seus fiéis a glória em Cristo Jesus (cf. 1Cor 1Co 15,31). Assim o sacerdote, na morte cotidiana a toda a sua pessoa, na renúncia ao amor legítimo de uma família própria, por amor de Jesus e do seu reino, encontrará a glória duma vida em Cristo pleníssima e fecunda, porque, como Ele e nele, ama e se entrega a todos os filhos de Deus.

Sacerdote celibatário na comunidade dos féis


31 Na comunidade dos fiéis comados aos seus cuidados, o sacerdote é Cristo presente; daqui a suma conveniência de que ele reproduza em tudo a imagem de Cristo e lhe siga o exemplo, tanto na vida íntima como na vida do próprio ministério. Para os seus filhos em Cristo, o sacerdote é sinal e penhor das realidades sublimes e novas do reino de Deus, das quais é distribuidor, possuindo-as em si no grau mais perfeito e alimentando a fé e a esperança de todos os cristãos, que, como tais, são obrigados à observância da castidade segundo o próprio estado.

Eficácia pastoral do celibato


32 A consagração a Cristo, em virtude dum título novo e excelso como é o celibato, consente, além disso, ao sacerdote, mesmo no campo prático, como é evidente, a máxima eficiência e a melhor aptidão psicológica e afetiva para o exercício contínuo daquela caridade perfeita que lhe permitirá, de maneira mais ampla e concreta, dar-se todo para o bem de todos (cf. 2Cor 2Co 12,15),(14) e garante-lhe, como é óbvio, maior liberdade e disponibilidade no ministério pastoral, (15) na sua ativa e amorosa presença no mundo, ao qual Jesus Cristo o enviou (cf. Jo Jn 17,18), a fim de que ele pague inteiramente a todos os filhos de Deus a dívida que tem para com eles (cf. Rm Rm 1,14).


SIGNIFICADO ESCATOLÓGICO DO CELIBATO


Aspiração do Pouo de Deus pelo reino celeste


33 O reino de Deus, que "não é deste mundo" (Jn 18,36), está nele presente, aqui na terra, em mistério e atingirá a sua perfeição com a vinda gloriosa do Senhor Jesus.(16) A Igreja constitui, aqui na terra, o germe e o início deste reino; e, ao passo que vai crescendo lenta mas seguramente, aspira pelo reino perfeito e ambiciona, com todas as forças, unir-se com o seu Rei na glória.(17)

O Povo de Deus peregrino encontra-se, na história, a caminho da sua verdadeira pátria (cf. Fl Ph 3,20), onde se manifestará em plenitude a filiação divina dos remidos (cf. 1Jn 3,2) e onde brilhará definitivamente a beleza transfigurada da Esposa do Cordeiro divino.(18)

Celibato como sinal dos bens celestes


34 O nosso Senhor e Mestre disse que "na ressurreição, nem eles se casam, e nem elas se dão em casamento, mas são todos como anjos no céu" (Mt 22,30). No mundo do homem, tão absorvido nos cuidados terrenos e dominado muitas vezes pelos desejos da carne (cf. 1Jn 2,16), o precioso dom divino da continência perfeita, por amor do reino dos céus, constitui exatamente "um sinal particular dos bens celestes", (19) anuncia a presença na terra dos últimos tempos da salvação (cf.l 1Co 7,29-31) com o advento dum mundo nova, e antecipa, de alguma maneira, a consumação do reino, armando os valores supremos do mesmo, que um dia hão de brilhar em todos os filhos de Deus. É, por isso, testemunho da tensão necessária do Povo de Deus orientada para a meta última da peregrinação terrestre e é incitamento para todos erguerem o olhar às coisas do alto, onde o Senhor está sentado à direita do Pai e onde a nossa vida está escondida com Cristo em Deus, até se manifestar na glória (cf. Cl CL 3,1-4).


II. O CELIBATO NA VIDA DA IGREJA


Antigüidade


35 Muito instrutivo seria, embora demasiado longo, o estudo dos documentos históricos sobre o celibato eclesiástico. Uma alusão apenas. Os Padres e escritores eclesiásticos da antiguidade cristã dão testemunho da difusão, tanto no Oriente como no Ocidente, da livre prática do celibato nos sagrados ministros,(20) em virtude da grande conveniência dele com a total dedicação ao serviço de Cristo e da Igreja.

Igreja do Ocidente


36 Desde os inícios do século IV, a Igreja do Ocidente, por meio das decisões de vários Concílios provinciais e dos Sumos Pontífices, corroborou, difundiu e sancionou esta prática.(21) Foram sobretudo os supremos Pastores e Mestres da Igreja de Deus, guardas e intérpretes do patrimônio da fé e dos santos costumes cristãos, quem promoveu, defendeu e restaurou o celibato eclesiástico nas épocas sucessivas da história, ainda mesmo quando no próprio clero surgiam oposições a ele e os costumes da sociedade favoreciam pouco os heroísmos da virtude. A obrigação do celibato foi solenemente sancionada pelo Concílio Ecumênico de Trento (22) e por fim inserida no Código de Direito Canônico (can.132 § 1).

Recente magistério pontifício


37 Os Sumos Pontífices mais recentes empregaram o seu ardentíssimo zelo e doutrina em iluminar o clero e estimulá-lo a essa observância. (23) Não queremos deixar de render aqui especial homenagem à piíssima memória do nosso imediato predecessor, ainda vivo no coração do mundo, o qual, no Sínodo Romano e com a sincera anuência do nosso clero da Urbe, pronunciou as seguintes palavras: "Amargura-nos saber... que alguns fantasiam sobre o desejo ou a conveniência, que haveria para a Igreja católica, em renunciar ao que por tantos séculos foi e continua a ser uma das mais nobres e mais puras glórias do sacerdócio. A lei do celibato eclesiástico, com o empenho de fazê-la prevalecer, continua a evocar as batalhas dos tempos heróicos, quando a Igreja teve que lutar e venceu, evoca o triunfo do seu trinômio glorioso, que será sempre emblema de vitória: Igreja de Cristo, livre, casta e católica".(24)

Igreja do Oriente


38 Se é diferente a legislação da Igreja Oriental em matéria de disciplina celibatária para o clero, como foi finalmente estabelecido no Concílio Trulano do ano 692 (25) e abertamente reconhecido pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, (26) deve-se a uma situação histórica, também diversa, daquela parte nobilíssima da Igreja, à qual o Espírito Santo conformou providencial e sobrenaturalmente o seu influxo.

Aproveitamos esta ocasião para exprimir os nossos sentimentos de estima e de respeito por todo o clero das Igrejas Orientais, e para reconhecer nele os exemplos de fidelidade e de zelo que o tornam digno de sincera veneração.

A voz dos Padres Orientais


39 Mas a apologia que os Padres Orientais fizeram da virgindade é-nos igualmente motivo de conforto para perseverarmos na observância da disciplina sobre o celibato do clero. Ainda hoje faz eco no nosso coração, por exemplo, a voz de São Gregório Nisseno, quando nos recorda que "a vida virginal é a imagem da felicidade que nos espera no mundo que há de vir". (27) Nem é menos confortante o louvor, em que ainda hoje meditamos, dado por São João Crisóstomo ao sacerdócio quando pretendia fazer ressaltar a necessária harmonia que deve reinar entre a vida particular do ministro do altar e a dignidade de que está revestido, em função dos seus deveres sagrados: "...quem se aproxima do sacerdócio, deve ser puro como se estivesse no céu". (28)

Indicações significativas na tradição oriental


40 Além disso, não será inútil observar que, mesmo no Oriente, somente os sacerdotes celibatários são sagrados bispos, e nunca os sacerdotes podem contrair matrimônio depois da ordenação; o que faz compreender como também aquelas venerandas Igrejas possuem, em certo modo, o princípio do sacerdócio celibatário e o de certa conveniência do celibato para o sacerdócio cristão, do qual os bispos têm o auge e a plenitude. (29)

Fidelidade da Igreja ocidental à própria tradição


41 Em todo o caso, a Igreja ocidental nâo pode faltar em sua fidelidade à própria antiga tradiçâo; nem poderá passar pela cabeça de ninguém que ela tenha seguido durante séculos um caminho que, em vez de favorecer a riqueza espiritual dos indivíduos e do Povo de Deus, a tenha de algum modo comprometido, ou levado a oprimir, com arbitrárias intervenções jurídicas, a livre expansão das mais profundas realidades da natureza e da graça.

Alguns casos particulares


42 Em virtude da norma fundamental do governo da Igreja católica, a que aludimos acima (n.15), se, por um lado, permanece firme a lei que exige a escolha livre e perpétua do celibato naqueles que são admitidos às Ordens sacras, por outro, poderá admitir-se o estudo das condições peculiares de sacerdotes casados, membros de Igrejas ou comunidades cristãs ainda separadas da comunhão católica, os quais desejando aderir à plenitude desta comunhão e nela exercer o sagrado ministério, forem admitidos às funções sacerdotais. Mas há de ser de tal forma que não causem prejuízo à disciplina vigente sobre o sagrado celibato.

E como prova de que a autoridade da Igreja não se recusa ao exercício deste poder, temos o fato, previsto pelo recente Concílio Ecumênico, da concessão do diaconado também a homens casados de idade madura. (30)

Confirmação


43 Tudo isto porém não significa relaxamento da lei vigente, nem tampouco deve ser interpretado como prelúdio da sua abolição. Em vez de se favorecer esta hipótese que enfraquece nos ânimos a força e o amor, pelos quais o celibato se torna seguro e feliz, e obscurece a verdadeira doutrina que justifica a sua existência e glorifica o seu esplendor, há de promover-se o estudo em defesa do conceito espiritual e do valor moral da virgindade e do celibato. (31)

Confiança da Igreja


44 A virgindade consagrada é certamente dom especial. Mas a Igreja inteira da nossa época, representada solene e universalmente pelos seus Pastores responsáveis, e respeitando, como dizíamos, a disciplina das Igrejas orientais, manifestou a sua plena certeza no Espírito de "que o dom do celibato, tão em harmonia com o sacerdócio do Novo Testamento, será concedido liberalmente pelo Pai, desde que os participantes do sacerdócio de Cristo pelo sacramento da Ordem, e toda a Igreja, humilde e insistentemente o peçam". (32)

Oração do Povo de Deus


45 Nós convocamos em espírito todo o Povo de Deus para que em cumprimento do dever de fomentar as vocações sacerdotais, (33) se dirija insistentemente ao Pai comum, ao divino Esposo da Igreja e ao Espírito Santo que é a sua alma, pedindo que pela intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Cristo e da Igreja, derramem especialmente no nosso tempo esse dom divino, do qual o Pai não é certamente avaro, e façam que as almas se disponham a recebê-lo com espírito de fé profunda, e de amor generoso. Assim, neste nosso mundo que necessita da glória de Deus (cf. Rom Rm 3,23), os sacerdotes, tornando-se cada vez mais perfeitamente conformes ao único e sumo Sacerdote, serão irradiante glória de Cristo (cf. 2Cor 2Co 8,23), e por meio deles resplandecerá "a glória da graça" de Deus, no mundo atual (cf. Ef Ep 1,6).


Sacerdotalis caelibatus PT