Pascendi PT 5

O modernista teólogo

5 Já é tempo, Veneráveis Irmãos, de passarmos a considerar os modernistas no campo teológico. Empenho árduo este, mas em poucas palavras diremos tudo. O fim a alcançar é a conciliação da fé com a ciência, ficando porém sempre incólume a primazia da ciência sobre a fé. Neste assunto o teólogo modernista se utiliza dos mesmos princípios da imanência e do simbolismo. Eis com que rapidez ele executa a sua tarefa: diz o filósofo que o princípio da fé é imanente; acrescenta o crente que esse princípio é Deus; conclui pois o teólogo: logo Deus é imanente no homem. Disto se conclui a imanência teológica. Outra adaptação: o filósofo tem por certo de que as representações da fé são puramente simbólicas; o crente afirma que o objeto da fé é Deus em si mesmo; conclui pois o teólogo: logo as representações da realidade divina são simbólicas. Segue-se daqui o simbolismo teológico. São erros enormes deveras; e quanto sejam perniciosos vamos ver de um modo luminoso, observando-lhes as conseqüências. E para falarmos desde já do simbolismo, como os símbolos são: símbolos com relação ao objeto, e instrumentos com relação ao crente, dizem os modernistas que o crente, antes de tudo, não deve apegar-se demais à fórmula, que deve servir-lhe só no intuito de unir-se com a verdade absoluta, que a fórmula ao mesmo tempo revela e esconde; isto é, esforça-se por exprimi-la, sem jamais o conseguir. Querem, em segundo lugar, que o crente use de tais fórmulas tanto quanto lhe forem úteis, porquanto elas são dadas para auxílio e não para embaraço; salvo porém o respeito que, por motivos sociais, se deve às fórmulas pelo público magistério julgadas aptas para exprimir a consciência comum, e enquanto o mesmo magistério não julgar de outro modo.

Quanto à imanência, é na verdade difícil indicar o que pensam os modernistas, pois há entre eles diversas opiniões. Uns fazem-na consistir em que Deus, operando no homem, está mais intimamente no homem do que o próprio homem em si mesmo; e esta afirmação sendo bem entendida, não merece censura. Pretendem outros que a ação divina é uma e a mesma com a ação da natureza, como a causa primeira com a causa segunda; e isto já destruiria a ordem sobrenatural. Outros explicam-na, enfim, em um sentido que tem ressaibos de panteísmo; e estes, a falar a verdade, são mais coerentes com o restante das sua doutrinas.

A este postulado da imanência ainda outro se acrescenta, que pode ser chamado da permanência divina; estes entre si diferem do mesmo modo como a experiência privada difere da experiência transmitida por tradição. Esclareçamos isto com um exemplo, e seja ele tirado da Igreja e dos Sacramentos. Não se pode crer, dizem, que a Igreja e os Sacramentos foram instituídos pelo próprio Cristo. Isto não é permitido pelo agnosticismo, que em Cristo não vê mais do que um homem, cuja consciência religiosa, como a de qualquer outro homem, pouco a pouco se formou; não o permite a lei da imanência, que não admite, como eles se exprimem, externas aplicações; proíbe-o também a lei da evolução, que para o desenvolvimento dos germens requer tempo e uma certa série de circunstâncias; proíbe-o enfim a história, que mostra que tal foi realmente o curso dos acontecimentos. Todavia deve admitir-se que a Igreja e os Sacramentos foram mediatamente instituídos por Cristo. Mas de que modo? Todas as consciências cristãs, é assim que eles o explicam, estavam virtualmente incluídas na consciência de Cristo, como a planta na semente. Ora, como os rebentos vivem a vida da semente, assim também afirmar-se deve que todos os cristãos vivem a vida de Cristo. Mas a vida de Cristo, segundo a fé, é divina; logo também a vida dos cristãos. Se pois esta vida, no correr dos séculos, deu origem à Igreja e aos Sacramentos, com toda a razão se poderá dizer que tal origem procede de Cristo e é divina. Pelo mesmo processo provam que as Escrituras e os dogmas são divinos. E com isto se conclui toda a teologia dos modernistas. É bem pouco, em verdade; porém, mais que abundante para quem professa que sempre e em tudo se devem respeitar as conclusões da ciência. Cada um entretanto poderá ir por si mesmo fazendo a aplicação destas teorias aos outros pontos, que vamos expor.

Falamos até agora da origem e natureza da fé. Mas, como são muito os frutos da mesma, sendo os principais a Igreja, o dogma, o culto, os livros sagrados, também a respeito destes devemos saber o que dizem os modernistas. Começando pelo dogma, já sabemos, pelo que ficou dito, qual seja a sua origem e natureza. O dogma nasce da necessidade que o crente experimenta de elaborar o seu pensamento religioso, a fim de tornar sempre mais clara a sua consciência e a de outrem. Consiste todo esse trabalho em esquadrinhar e polir a fórmula primitiva, não por certo em si mesma e racionalmente, mas segundo as circunstâncias ou, como de modo pouco inteligível dizem, vitalmente. O resultado disto é que, como já dissemos, ao redor da mesma se vão formando fórmulas secundárias, que mais tarde sintetizadas e reunidas em um único todo doutrinal, quando forem ratificadas pelo magistério público como correspondentes a consciência comum, são chamados dogmas. Destas devem cuidadosamente distinguir-se as investigações teológicas; as quais porém, posto que não vivem da vida do dogma, contudo não são inúteis, seja para harmonizar a religião com a ciência e dissipar qualquer contraste entre elas, seja para iluminar a religião e defendê-la; e talvez ainda tenham a utilidade de preparar um futuro dogma. Do culto não haveria muito que dizer, se debaixo deste nome não se achassem também os Sacramentos, a respeito dos quais muito erram os modernistas. Pretendem que o culto resulta de um duplo impulso; pois que, como vimos, pelo seu sistema, tudo se deve atribuir a íntimos impulsos. O primeiro é dar à religião, alguma coisa de sensível; o segundo é a necessidade de propagá-la, coisa esta que se não poderia realizar sem uma certa forma sensível e sem atos santificantes, que se chamam Sacramentos. Os modernistas, porém, consideram os Sacramentos como meros símbolos ou sinais, bem que não destituídos de eficácia. E para indicar essa eficácia, servem-lhes de exemplo certas palavras que facilmente vingam, por terem conseguido a força de divulgar certas idéias de grande eficácia, que muito impressionam os ânimos. E assim como aquelas palavras são destinadas a despertar as referidas idéias, assim também o são os Sacramentos com relação ao sentimento religioso; nada mais do que isto. Falariam mais claro afirmando logo que os Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé. Mas esta proposição é condenada pelo Concílio de Trento (Sess. VII, de Sacramentis in genere, cân.5): "Se alguém disser que estes Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé, seja anátema".

Já alguma coisa ficou dito sobre a natureza e origem dos livros sagrados. Segundo a mente dos modernistas, bem se pode defini-los uma coleção de experiências, não por certo das que de ordinário qualquer pessoa adquire, mas das extraordinárias e das mais elevadas que se têm dado em uma qualquer religião. É precisamente isto que os modernistas ensinam dos nossos livros do Antigo e Novo Testamento.

Todavia, a estas suas opiniões mui astutamente acrescentam que, embora a experiência deva ser do tempo presente, pode assim mesmo receber matéria do passado e do futuro, enquanto o crente pela lembrança revive o passado como se fora o presente, ou já vive do futuro por antecipação. Deste modo se explica porque os livros históricos e apocalípticos são computados entre os livros sagrados. Assim pois, nestes livros, Deus fala por meio do crente; mas, como diz a teologia modernista, só por imanência e permanência vital. Perguntar-lhes-emos, pois, que é feito da inspiração?

Respondem-nos que ela, a não ser talvez por uma certa veemência, não se distingue da necessidade que o crente experimenta de manifestar vocalmente ou por escrito a própria fé. Nota-se aqui certa semelhança com a inspiração poética; e neste sentido um deles dizia: Deus está entre nós, e agitados por ele nós nos inflamamos. Deste modo é que se deve explicar a origem da inspiração dos livros sagrados. Sustentam ainda os modernistas que a nenhuma passagem desses livros falta essa inspiração.

Neste ponto alguém poderia julgá-los mais ortodoxos do que certos exegetas recentes, que em parte restringem a inspiração como, por exemplo, nas tais citações tácitas. Mas isto não passa de aparências e palavras.

De fato, se segundo as leis do agnosticismo, consideramos a Bíblia um trabalho humano, feito por homens para utilidade de outros homens, seja embora lícito ao teólogo apelidá-la de divina por imanência, de que modo poderia restringir-se nela a inspiração?

Tal inspiração, de fato, admitem-na os modernistas; não, porém, no sentido católico.

Maior extensão de matéria nos oferece o que os modernistas afirmam da Igreja. Pressupõem que ela é fruto de uma dupla necessidade, uma no crente, principalmente naquele que, tendo tido alguma experiência original e singular, precisa comunicar a outrem a própria fé; outra na coletividade, depois que a fé se tornou comum a muitos, para se reunir em sociedade, e conservar, dilatar e propagar o bem comum. Que é, pois, a Igreja? É um parto da consciência coletiva, isto é, da coletividade das consciências individuais que, por virtude da permanência vital, estão todas pendentes do primeiro crente, que para os católicos foi Cristo. Ora, toda sociedade precisa de uma autoridade que a reja, e cujo mister seja dirigir os membros para o fim comum e conservar com prudência os elementos de coesão, que em uma sociedade religiosa são a doutrina e o culto. Há, por isso, na Igreja Católica uma tríplice autoridade: disciplinar, dogmática e cultural. A natureza desta autoridade deve ser deduzida da sua origem; e da natureza, por sua vez, devem coligir-se os direitos e os deveres. Foi erro das eras passadas pensar-se que a autoridade da Igreja emanou de um princípio estranho, isto é, imediatamente de Deus; e por isto, com razão era ela considerada autocrática. Estas teorias, porém, já não são para os tempos que correm.

Assim como a Igreja emanou da coletividade das consciências, a autoridade emana virtualmente da mesma Igreja. A autoridade, portanto, da mesma sorte que a Igreja, nasce da consciência religiosa, e por esta razão fica dependente da mesma; e se faltar a essa dependência, torna-se tirânica. Nos tempos que correm o sentimento de liberdade atingiu o seu pleno desenvolvimento. No estado civil a consciência pública quis um regime popular. Mas a consciência do homem, assim como a vida, é uma só. Se, pois, a autoridade da Igreja não quer suscitar e manter uma intestina guerra nas consciências humanas, há também mister curvar-se a formas democráticas; tanto mais que, se o não quiser, a hecatombe será iminente. Loucura seria crer que o vivo sentimento de liberdade, ora dominante, retroceda.

Reprimindo e enclausurando com violência, transbordará mais impetuoso, destruindo conjuntamente a religião e a Igreja. São estes os raciocínios dos modernistas que, por isto, estão todos empenhados em achar o modo de conciliar a autoridade da Igreja com a liberdade dos crentes.

Acresce ainda que não é só dentro do seu recinto que a Igreja tem com quem entender-se amigavelmente, mas também fora. Não se acha ela só no mundo a ocupá-lo; ocupam-no também outras sociedades, com as quais não pode deixar de tratar e de relacionar-se. Convém, pois, determinar quais sejam os direitos e os deveres da Igreja para com as sociedades civis; e bem se vê que tal determinação deve ser tirada da natureza da mesma Igreja, tal qual os modernistas no-la descreveram.

As regras que hão de servir para este fim são as mesmas, que acima serviram para a ciência e a fé. Tratava-se então de objetos, aqui de fins. Assim pois, como por causa do objeto se disse que a fé e a ciência são mutuamente estranhas, também o Estado e a Igreja são estranhos um à outra, por causa do fim a que tendem, temporal para o Estado, espiritual para a Igreja. Falava-se outrora do temporal sujeito ao espiritual, de questões mistas, em que a Igreja intervinha qual senhora e rainha, porque então se tinha a Igreja como instituída imediatamente por Deus, enquanto autor da ordem sobrenatural. Mas estas crenças já não são admitidas pela filosofia, nem pela história. Deve, portanto, a Igreja separar-se do Estado, e assim também o católico do cidadão. E é por este motivo que o católico, não se importando com a autoridade, com os desejos, com os conselhos e com as ordens da Igreja, e até mesmo desprezando as suas repreensões, tem direito e dever de fazer o que julgar o mais oportuno ao bem da pátria.

Querer, sob qualquer pretexto, impor ao cidadão uma norma de proceder, é por por parte do poder eclesiástico verdadeiro abuso, que se deve repelir com toda a energia. - Veneráveis Irmãos, as teorias de que dimanam todos estes erros são as mesmas que o Nosso Predecessor Pio VI condenou solenemente na Constituição apostólica Auctorem fidei (Prop. 2. A proposição que afirma que o poder foi dado por Deus à Igreja, para que fosse comunicado aos Pastores, que são os seus ministros, para a salvação das almas, entendida no sentido de que o poder do ministério e regime eclesiástico passa da comunidade dos fiéis para os pastores: é heresia. Prop. 3. Também aquele que afirma que o Romano Pontífice é chefe ministerial, entendida no sentido de que, não de Cristo na pessoa do bem-aventurado Pedro, mas da Igreja recebeu como sucessor de Pedro, verdadeiro Vigário de Cristo e chefe de toda a Igreja: é herética).

No entanto, à escola dos modernistas não basta que o Estado seja separado da Igreja. Assim como a fé deve subordinar-se à ciência, quanto aos elementos fenomênicos, assim também nas coisas temporais a Igreja tem que sujeitar-se ao Estado. Isto não afirmam talvez muito abertamente; mas por força de raciocínio são obrigados a admiti-lo. Em verdade, admitido que o Estado tenha absoluta soberania em tudo o que é temporal, se suceder que o crente, não satisfeito com a religião do espírito, se manifeste em atos exteriores, como, por exemplo, em administrar ou receber os Sacramentos, isto já deve necessariamente cair sob o domínio do Estado. Postas as coisas neste pé, para que servirá a autoridade eclesiástica? Visto que esta não tem razão de ser sem os atos externos, estará em tudo e por tudo sujeita ao poder civil. É esta inelutável conseqüência que leva muitos dentre os protestantes liberais a desembaraçar-se de todo o culto externo e até de toda a sociedade religiosa externa, procurando pôr em voga uma religião, que chamam individual. E se os modernistas, desde já, não se atiram francamente a esses extremos, insistem pelo menos em que a Igreja se deixe espontaneamente conduzir por eles até onde pretendem levá-la e se amolde às formas civis. Isto quanto à autoridade disciplinar.

Mais grave e perniciosos são suas afirmações relativamente à autoridade doutrinal e dogmática. Assim pensam eles acerca do magistério eclesiástico: a sociedade religiosa não pode ser uma, sem unidade de consciência nos seus membros e unidade de fórmula. Mas esta dupla unidade requer por assim dizer um entendimento comum, a que compete achar e determinar a fórmula que melhor corresponda à consciência comum; e a esse entendimento convém ainda atribuir a autoridade conveniente, para poder impor à comunidade a fórmula estabelecida. Nesta união e quase fusão da mente designadora de fórmula e da autoridade que a impõe, acham os modernistas o conceito de magistério eclesiástico. Visto pois que o magistério, afinal de contas, não é mais do que um produto das consciências individuais, e só para cômodo das mesmas consciências lhe é atribuído ofício público, resulta necessariamente que ele depende dessas consciências, e por conseguinte deve inclinar-se a formas democráticas. Proibir, portanto, que as consciências dos indivíduos manifestem publicamente as suas necessidades, e impedir à crítica o caminho que leva o dogma a necessárias evoluções, não é fazer uso de um poder dado para o bem público, mas abusar dele. - Da mesma sorte , no próprio uso do poder deve haver modo e medida. É quase tirania condenar um livro sem que o autor o saiba, e sem admitir nenhuma explicação nem discussões. Ainda aqui, portanto, deve adotar-se um meio termo, que ao mesmo tempo salve a autoridade e a liberdade. E nesse ínterim o católico poderá agir de tal sorte que, protestando o seu profundo respeito à autoridade, continue sempre a trabalhar à sua vontade. Em geral admoestam a Igreja de que, sendo o fim do poder eclesiástico todo espiritual, não lhe assentam bem essas exibições de aparato exterior e de magnificência, com que sói comparecer às vistas da multidão. E quando assim o dizem, procuram esquecer que a religião, conquanto essencialmente espiritual, não pode restringir-se exclusivamente às coisas do espírito, e que as honras prestadas à autoridade espiritual se referem à pessoa de Cristo que a instituiu.

Para concluir toda esta matéria da fé e seus diversos frutos, resta-nos por fim, Veneráveis Irmãos, ouvir as teorias dos modernistas acerca do desenvolvimento dos mesmos. Têm eles por princípio geral que numa religião viva, tudo deve ser mutável e mudar-se de fato. Por aqui abrem caminho para uma das suas principais doutrinas, que é a evolução. O dogma, pois, a Igreja, o culto, os livros sagrados e até mesmo a fé, se não forem coisas mortas, devem sujeitar-se às leis da evolução. Quem se lembrar de tudo o que os modernistas ensinam sobre cada um desses assuntos, já não ouvirá com pasmo a afirmação deste princípio. Posta a lei da evolução, os próprios modernistas passam a descrever-nos o modo como ela se efetua. E começam pela fé. Dizem que a forma primitiva da fé foi rudimentar e indistintamente comum a todos os homens; porque se originava da própria natureza e vida do homem. Progrediu por evolução vital; quer dizer, não pelo acréscimo de novas formas, vindas de fora, mas por uma crescente penetração do sentimento religioso na consciência. Esse mesmo progresso se realizou de duas maneiras: primeiro negativamente, eliminando todo o elemento estranho, como seja o sentimento de família ou de nacionalidade; em seguida positivamente, com o aperfeiçoamento intelectual e moral do homem, donde resultou maior clareza para a idéia divina e excelência para o sentimento religioso. As mesmas causas que serviram para explicar a origem da fé, explicam também o seu progresso. A estas, porém, devem acrescentar-se aqueles gênios religiosos, a que chamamos profetas, dos quais o mais iminente foi Cristo; seja porque eles na sua vida ou nas suas palavras tinham algo de misterioso, que a fé atribuía à divindade, seja porque alcançaram novas e desconhecidas experiências em plena harmonia com as exigências do seu tempo.

O progresso do dogma nasce principalmente da necessidade de vencer os obstáculos da fé, derrotar os adversários, repelir as dificuldades. Deve-se ainda acrescentar um contínuo esforço, para se penetrar cada vez mais nos arcanos da fé. Deixando de parte outros exemplos, assim sucedeu com Cristo: aquilo de divino que a fé a princípio lhe atribuía, foi-se gradualmente aumentando, até que definitivamente foi tido por Deus.

O principal estímulo de evolução para o culto, é a necessidade de se adaptar aos costumes e tradições dos povos e bem assim de gozar da eficácia de certos atos, já admitidos pelo uso. A Igreja acha finalmente a razão do seu evoluir na necessidade de se acomodar às condições históricas e às formas do governo publicamente adotadas. Isto dizem os modernistas de cada um daqueles princípios. E aqui, antes de passarmos adiante, queremos insistir em que se atente nessa doutrina das necessidades, porque ela, além do que já vimos, é como que a base e o fundamento desse famoso método que chamam histórico.

Detendo-nos ainda na doutrina da evolução, observamos que, embora as necessidades sirvam de estímulo para a evolução, se ela não tivesse outros estímulos senão esses, facilmente transporia os limites da tradição, e assim desligada do primitivo princípio vital, já não levaria ao progresso, mas à ruína. Estudando, pois, mais a fundo o pensar dos modernistas, deve-se dizer que a evolução é como o resultado de duas forças que se combatem, sendo uma delas progressiva e outra conservadora. A força conservadora está na Igreja e é a tradição. O exercício desta é próprio da autoridade religiosa, quer de direito, pois que é de natureza de toda autoridade adstringir-se o mais possível à tradição; quer de fato, pois que, retraída das contingências da vida, pouco ou talvez nada sente dos estímulos que impelem ao progresso. Ao contrário, a força que, correspondendo às necessidades, arrasta ao progresso, oculta-se e trabalha nas consciências individuais, principalmente naquelas que, como eles dizem, se acham mais em contato com vida. Neste ponto, Veneráveis Irmãos, já se percebe o despontar daquela perniciosíssima doutrina que introduz na Igreja o laicato como fator de progresso.

De uma espécie de convenção entre as forças de conservação e de progresso, isto é, entre a autoridade e as consciências individuais, nascem as transformações e os progressos. As consciências individuais, ou pelo menos algumas delas, fazem pressão sobre a consciência coletiva; e esta, por sua vez, sobre a autoridade, obrigando-a a capitular e pactuar. Admitido isto, não é de admirar ver-se como os modernistas pasmam por serem admoestados ou punidos. O que se lhes imputou como culpa, consideram um dever sagrado. Ninguém melhor do que eles conhece as necessidades das consciências, porque são eles e não a autoridade eclesiástica, os que se acham mais em contato com elas. Julgam quase ter em si encarnadas todas essas necessidades; daí a persuasão que têm de falar e escrever sem medo. Nada se lhes dá das censuras da autoridade; porque se sentem fortes com a consciência do dever, e por íntima experiência sabem que merecem aplausos e não censuras. Nem tão pouco ignoram que os progressos não se alcançam sem combates, nem há combates sem vítimas, como o foram os profetas e Cristo. Ainda que a autoridade os maltrate, não a odeiam; sabem que assim está cumprindo o seu dever. Lamentam apenas que se lhes não prestem ouvidos, porque isto será causa de atraso ao progresso dos espíritos; mas, há de vir a hora de se romperem as barreiras, porque as leis da evolução poderão ser refreadas; quebradas, porém, nunca. Traçado este caminho, eles continuam; continuam, com desprezo das repreensões e condenações, ocultando audácia inaudita com o véu de aparente humildade. Simulam finalmente curvar a cabeça; mas, no entanto a mão e o pensamento prosseguem o seu trabalho com ousadia ainda maior. E assim avançam com toda a reflexão e prudência, tanto porque estão persuadidos de que a autoridade deve ser estimulada e não destruída, como também porque precisam de permanecer no seio da Igreja, para conseguirem pouco a pouco assenhorear-se da consciência coletiva, transformando-a; mal percebem porém, quando assim se exprimem, que estão confessando que a consciência coletiva diverge dos seus sentimentos, e que portanto não têm direito de declarar-se intérpretes da mesma.

Nada, portanto, Veneráveis Irmãos, se pode dizer estável ou imutável na Igreja, segundo o modo de agir e de pensar dos modernistas. Para o que também não lhes faltaram precursores, esses de quem o nosso predecessor Pio IX escreveu: estes inimigos da revelação divina, que exaltam com os maiores louvores o progresso humano, desejariam com temerário e sacrílego atrevimento introduzi-lo na religião católica, como se a mesma não fosse obra de Deus, mas obra dos homens, ou algum sistema filosófico, que se possa aperfeiçoar por meios humanos (Enc. "Qui pluribus", 9 de nov. de 1846). acerca da revelação particularmente, e do dogma, os modernistas nada acharam de novo; pois, a sua mesma doutrina, antes deles, já fora condenada no Silabo de Pio IX nestes termos: A divina revelação é imperfeita e por isto está sujeita a contínuo e indefinido progresso, correspondente ao da razão humana (Syllabo, proposição condenada 5); e mais solenemente ainda a proscreve o Concílio Vaticano I por estas palavras: A doutrina da fé por Deus revelada, não é proposta à inteligência humana para ser aperfeiçoada, como uma doutrina filosófica, mas é um depósito confiado à esposa de Cristo, para ser guardado com fidelidade e declarado com infalibilidade. Segue-se pois que também se deve conservar sempre aquele mesmo sentido dos sagrados dogmas, já uma vez declarado pela Santa Mãe Igreja, nem se deve jamais afastar daquele sentido sob pretexto e em nome de mais elevada compreensão (Const. "Dei Fillius", cap. IV). De maneira alguma poderá seguir-se daí que fique impedida a explicação dos nossos conhecimentos, mesmo relativamente à fé; ao contrário, isto a auxilia e promove. Neste sentido é que o Concílio prossegue dizendo: Cresça, pois, e com ardor progrida a compreensão, a ciência, a sapiência tanto de cada um como de todos, tanto de um só homem como de toda a Igreja com o passar das idades e dos séculos; mas no seu gênero somente, isto é, no mesmo dogma, no mesmo sentido, no mesmo parecer (Lugar citado).

O modernista historiador e crítico

6 Já entre os sequazes do modernismo consideramos o filósofo, o crente e o teólogo; resta agora examinarmos também o historiador, o crítico e o apologista.

Há certos modernistas que se atiram a escrever história, que parecem muito preocupados em não passar por filósofos e chegam até a declarar-se totalmente alheios aos conhecimentos filosóficos. É isto um rasgo de finíssima astúcia; para que ninguém os julgue embebidos de preconceitos filosóficos e assim pareçam, como eles dizem, completamente objetivos. Em verdade, porém, a sua história ou crítica não fala senão filosofia e as suas deduções procedem por bom raciocínio dos seus princípios filosóficos. Isto se faz manifesto a quem refletir com ponderação. Os três primeiros cânones desses tais historiadores ou críticos são aqueles mesmos princípios que acima deduzimos dos filósofos, isto é, o agnosticismo, o teorema da transfiguração das coisas pela fé, e o outro que Nos pareceu poder denominar da desfiguração. Vamos examinar-lhes já, em separado, as conseqüências. Segundo o agnosticismo, a história, bem como a ciência, só trata de fenômenos. Por conseguinte, tanto Deus como qualquer intervenção divina nas causas humanas deve ser relegado para a fé, como de sua exclusiva competência. Se tratar, pois, de uma causa em que intervier duplo elemento, isto é, o divino e o humano, como Cristo, a Igreja, os Sacramentos e coisas semelhantes, devem separar-se e discriminar-se tais elementos, de tal modo que o que é humano passe para a história, o que é divino para a fé. É este o motivo da distinção que soem fazer os modernistas entre um Cristo da história e um Cristo da fé, e uma Igreja da história e uma Igreja da fé, entre Sacramentos da história e Sacramentos da fé, e assim por diante. Em seguida, esse mesmo elemento humano que vemos o historiador tomar para si, tal qual se manifesta nos monumentos, deve ser tido como elevado pela fé, por transfiguração, acima das condições históricas. Convém, portanto, subtrair-lhe de novo os acréscimos feitos pela fé, e restituí-los à mesma fé e à história da fé;

Assim se deve proceder, tratando-se de Jesus Cristo, em tudo o que excede as condições de homem, seja natural, como a psicologia no-la apresenta, seja conforme as condições do lugar e tempo em que viveu. Demais, em virtude do terceiro princípio filosófico, também as coisas que não saem fora das condições da história, fazem-nas eles como que passar pela joeira, e eliminam, relegando à fé, tudo o que, a juízo seu não entrar na lógica dos fatos nem for conforme à índole das pessoas. Assim, querem que Cristo não tenha dito aquelas coisas que parecem não estar ao alcance do vulgo.

Por isto eliminam da sua história real e transportam para a fé todas as alegorias que se encontram nos seus discursos. E com que critério, perguntamos, se guiam eles nesta escolha? Pela consideração do caráter do homem, das condições em que se achou a sociedade, da educação, das circunstâncias de cada fato; em uma palavra, por uma norma que, se bem a entendemos, se resume em mero subjetivismo. Isto é, procuram apoderar-se da pessoa de Jesus Cristo e como que revestir-se dela, e assim lhe atribuem, nem mais nem menos, tudo o que eles mesmos fariam em circunstâncias idênticas. Assim pois, para concluirmos, a priori, e partindo de certos princípios que admitem, embora afirmem que os ignoram, na história real afirmam que Cristo nem foi Deus, nem fez coisa alguma de divino; e como homem, que ele fez e disse apenas aquilo que eles, referindo-se ao tempo em que viveu, acham que podia ter feito e dito.

Assim pois, como a história recebe da filosofia as suas conclusões, assim também a crítica, por sua vez, as recebe da história. O crítico, seguindo a pista do historiador, divide todos os documentos em duas partes. Depois de fazer o tríplice corte acima referido, passa todo o restante para a história real, e entrega a outra parte à história da fé, ou noutros termos, à história interna. Os modernistas põem grande empenho em distinguir estas duas histórias; e, note-se bem, contrapõem à história da fé a história real, enquanto real. Daí resulta, como já vimos, um duplo Cristo; um real, e outro que, de fato, nunca existiu, mas pertence à fé; um que viveu em determinado lugar e tempo, outro que se encontra nas piedosas meditações da fé; tal, por exemplo, é o Cristo descrito no Evangelho de São João, o qual Evangelho, pretendem-no os modernistas, do princípio ao fim é mera meditação.

Mas o domínio da filosofia na história ainda vai além. Feita, como dissemos, a divisão dos documentos em duas partes, apresenta-se de novo o filósofo com o seu princípio de imanência vital, e prescreve que tudo o que se acha na história da Igreja deve ser aplicado por emanação vital. E visto como a causa ou condição de qualquer emanação vital procede de alguma necessidade, todo acontecimento deve ser a conseqüência de uma necessidade, e deve considerar-se historicamente posterior a ela.

Que faz então o historiador? Entregue de novo ao estudo dos documentos, tanto nos livros sacros quanto nos demais, vai formando um catálogo de cada uma das necessidades que por sua vez se apresentaram à Igreja, quer relativos ao dogma, quer ao culto ou a outras matérias. Feito este catálogo, passa-o ao crítico. Este, pois, manuseia os documentos destinados à história da fé e os distribui de idade em idade, de maneira que correspondam ao elenco que lhe foi dado; e tudo isto faz tendo sempre em vista o preceito de que o fato é precedido da necessidade, e a narração, do fato.

Bem poderia ser que certas partes da Escritura Sagrada, como as Epístolas, também fossem um fato criado pela necessidade. Seja como for, o certo porém é que não se pode determinar a idade de nenhum documento, senão pela época em que cada necessidade se manifestou na Igreja. Convém ainda distinguir entre o começo de um fato e o seu desenrolar; porquanto, o que pode nascer em um dia, não cresce senão com o tempo. Esta é a razão pela qual o crítico ainda deve bipartir os documentos, já dispostos segundo as idades, segregando os que se referem às origens de um fato dos que pertencem ao seu desenvolvimento, e dispondo de novo estes últimos em ordem cronológica.

Feito isto, reaparece o filósofo e obriga o historiador a conformar os seus estudos com os preceitos e as leis da evolução. E o historiador, conformando-se, torna a esquadrinhar os documentos; a procurar com cuidado as circunstâncias em que se achou a Igreja, no correr dos tempos, as necessidades internas e externas que a impeliram ao progresso, os obstáculos que se levantaram, numa palavra, tudo o que puder servir para determinar o modo pelo qual se realizaram as leis da evolução. Concluído este trabalho, ele esboça em suas linhas principais a história do desenvolvimento dos fatos. Segue-se-lhe o crítico, que a este esqueleto histórico adapta os demais documentos.

Escreve-se então a narração; está completa a história; - mas agora perguntamos, essa história a quem se deve atribuir? Ao historiador ou ao crítico? A nenhum dos dois, por certo; mas ao filósofo. Tudo foi exarado por apriorismo, e certamente por um apriorismo abundante em heresias. São na verdade para lastimar esses homens, dos quais o Apóstolo disse: Desvairaram em seus pensamentos...gabando-se de sábios, estultos é que se tornaram (
Rm 1,21-22); mas ao mesmo tempo provocam a indignação, quando acusam a Igreja de corromper os documentos para fazê-los servir aos próprios interesses. Isto é, atiram sobre a Igreja aquilo de que a própria consciência manifestamente os acusa.

Dessa desagregação e da disseminação dos documentos pelo decurso do tempo, segue-se naturalmente que os livros sagrados não podem absolutamente ser atribuídos aos autores de quem trazem o nome. E esta é a razão porque os modernistas não hesitam em afirmar a miúdo que esses livros, especialmente o Pentateuco e os três primeiros Evangelhos, de uma breve narração primitiva, foram pouco a pouco se avolumando por acréscimos e interpolações, seja a modo de interpretações teológicas ou alegóricas, seja a modo de transições para ligarem entre si as diversas partes.

Noutros termos mais breves e mais claros, querem que se deva admitir a evolução vital dos livros sacros, nascida da evolução da fé e correspondente à mesma. Acrescentam ainda que os sinais de tal evolução aparecem tão manifestos, que se poderia escrever a história dos mesmos. E chegam mesmo a escrever essa história, e com tanta persuasão que parecem eles mesmos ter visto com seus próprios olhos cada um dos escritores, que nos diversos séculos estenderam a mão sobre a Escritura para ampliá-la. Para confirmá-lo, recorrem à crítica que chamam textual, e se esforçam em persuadir que este ou aquele fato, estes ou aqueles dizeres não se acham no seu lugar, e aduzem ainda outras razões deste mesmo quilate. Dir-se-ia, na verdade, que se preestabeleceram certos tipos de narrações ou alocuções que servem de critério certíssimo para julgar se uma coisa está no seu lugar ou fora dele. Com semelhante método, julgue quem puder fazê-lo, se eles podem ser capazes de discernir. E no entanto, quem os ouvir discorrer a respeito dos seus estudos relativos à Escritura, na qual lograram descobrir tantas incongruências, é levado a crer que antes deles ninguém manuseou aqueles livros, e que não houve uma infinita multidão de Doutores, em talento, em sabedoria, e na santidade da vida muito superiores a eles, que os esquadrinharam em todos os sentidos.

E para esses sapientíssimos doutores tão longe estavam as Sagradas Escrituras de ter alguma coisa de repreensível que, ao contrário, quanto mais eles as aprofundavam, tanto mais agradeciam a Deus ter-se dignado de assim falar aos homens.

Mas é que os nossos doutores não se entregaram ao estudo da Escrituras com os meios de que se proviram os modernistas! Isto é, não se deixaram amestrar nem guiar por uma filosofia que tem a negação de Deus por ponto de partida, e nem se arvoraram a si mesmos em norma de bem julgar. Parece-nos, pois, já estar bem declarado o método histórico dos modernistas. O filósofo abre o caminho; segue-o o historiador; logo após, por seu turno, a crítica interna e textual. E como é próprio da primeira causa comunicar sua virtude às segundas, claro está que tal crítica não é uma qualquer crítica, mas por direito deve chamar-se agnóstica, imanentista, evolucionista; e por isso quem a professa ou dela se utiliza, professa os erros que se contém nela e se põe em oposição com a doutrina católica. Por esta razão é muito de admirar que tal gênero de crítica possa hoje ter tão grande aceitação entre católicos. Isto assim sucede por dois motivos: primeiro é a aliança íntima que há entre os historiadores e críticos desse gênero, não obstante qualquer diversidade de nacionalidade ou de crenças; o outro é a incrível audácia com que, qualquer parvoíce que algum deles diga, é pelos outros sublimada e decantada como progresso da ciência; se alguém o negar leva a pecha de ignorante; se, porém, o aceitar e defender, será coberto de louvores. Disto se segue que não poucos ficam enganados; entretanto, se melhor considerassem as coisas, ficariam, ao contrário, horrorizados. Desta prepotente imposição dos extraviados, deste incauto assentimento dos pusilânimes produz-se uma certa corrupção de atmosfera, que penetra em toda a parte e difunde o contágio. Mas passemos ao apologista.


Pascendi PT 5