Pastores dabo vobis PT


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA

PÓS-SINODAL

PASTORES DABO VOBIS

DE SUA SANTIDADE

JOÃO PAULO II

AO EPISCOPADO

AO CLERO E AOS FIÉIS

SOBRE A FORMAÇÃO DOS SACERDOTES

NAS CIRCUNSTÂNCIAS ACTUAIS



INTRODUÇÃO




1 «Dar-vos-ei pastores segundo o Meu coração» (Jr 3,15).

Com estas palavras do profeta Jeremias, Deus promete ao seu povo que jamais o deixará privado de pastores que o reúnam e guiem: «Eu estabelecerei para elas (as minhas ovelhas) pastores, que as apascentarão, de sorte que não mais deverão temer ou amedrontar-se» (Jr 23,4).

A Igreja, Povo de Deus, experimenta continuamente a realização deste anúncio profético e, na alegria, continua a dar graças ao Senhor. Ela sabe que o próprio Jesus Cristo é o cumprimento vivo, supremo e definitivo da promessa de Deus: «Eu sou o Bom Pastor» (Jn 10,11). Ele, «o grande Pastor das ovelhas» (He 13,20), confiou aos apóstolos e aos seus sucessores o ministério de apascentar o rebanho de Deus (cf. Jn 21,15-17 1P 5,2).

Sem sacerdotes, de facto, a Igreja não poderia viver aquela fundamental obediência que está no próprio coração da sua existência e da sua missão na história - a obediência à ordem de Jesus : «Ide, pois, ensinai todas as nações» (Mt 28,19) e «Fazei isto em minha memória» (Lc 22,19 cf. 1Co 11,24), ou seja, a ordem de anunciar o Evangelho e de renovar todos os dias o sacrifício do seu Corpo entregue e do seu Sangue derramado pela vida do mundo.

Pela fé, sabemos que a promessa do Senhor não pode deixar de cumprir-se. Esta promessa é exactamente a razão e a força que faz a Igreja alegrar-se perante o florescimento e o aumento numérico das vocações sacerdotais, que hoje se regista em algumas partes do mundo, e representa o fundamento e o estímulo para um seu acto de maior fé e de esperança mais viva, diante da grave escassez de sacerdotes que pesa noutras partes.

Todos somos chamados a partilhar a confiança plena no ininterrupto cumprimento da promessa de Deus, que os Padres sinodais quiseram testemunhar de modo claro e veemente: «O Sínodo, com plena confiança na promessa de Cristo que disse 'Eis que estarei convosco todos os dias até ao fim do mundo' (Mt 28,20) e ciente da actividade constante do Espírito Santo na Igreja, intimamente crê que nunca faltarão completamente na Igreja os ministros sagrados (...) Apesar de se verificar escassez de clero em várias regiões, a acção do Pai, que suscita as vocações, jamais cessará na Igreja» (1).

Como afirmei na conclusão do Sínodo, perante a crise das vocações sacerdotais, «a primeira resposta que a Igreja dá consiste num acto de confiança total no Espírito Santo. Estamos profundamente convictos de que este abandono confiante não há-de decepcionar, entretanto permanecermos fiéis à graça recebida» (2).

(1) Propositio 2.
(2) Discurso no final do sínodo (27 de outubro de 1990), 5: L'Osservatore Romano, 28/10/1990.



2 Permanecer fiéis à graça recebida! De facto, o dom de Deus não anula a liberdade do homem, antes a suscita, desenvolve e exige.

Por este motivo, a confiança total na incondicionada fidelidade de Deus à Sua promessa está ligada na Igreja à grave responsabilidade de colaborar com a acção de Deus que chama, de contribuir para criar e manter as condições nas quais a boa semente , semeada pelo Senhor, possa criar raízes e dar frutos abundantes. A Igreja nunca pode deixar de pedir ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe (cf.
Mt 9,38), de dirigir uma clara e corajosa proposta vocacional às novas gerações, de as ajudar a discernir a verdade do chamamento de Deus e a corresponder-lhe com generosidade, e de reservar um cuidado particular à formação dos candidatos ao presbiterado.

Na verdade, a formação dos futuros sacerdotes, tanto diocesanos como religiosos, e o assíduo cuidado, mantido ao longo de toda a vida, em vista da sua santificação pessoal no ministério e da actualização constante no seu empenho pastoral, é considerado pela Igreja como uma das tarefas de maior delicadeza e importância para o futuro da evangelização da humanidade.

Esta obra formadora da Igreja é uma continuação no tempo da obra de Cristo, que o evangelista Marcos indica com as seguintes palavras: «Jesus subiu a um monte e chamou os que Ele quis. E foram ter com Ele. Elegeu doze para andarem com Ele e para os enviar a pregar, com o poder de expulsar demónios» (Mc 3,13-15).

Pode afirmar-se que, na sua história, a Igreja reviveu sempre, embora com intensidades e modalidades diversas, esta página do Evangelho, mediante a obra formadora reservada aos candidatos ao presbiterado e aos próprios sacerdotes. Hoje, porém, a Igreja sente-se chamada a reviver com um novo empenho tudo quanto o Mestre fez com os seus apóstolos, solicitada como é pelas profundas e rápidas transformações das sociedades e das culturas do nosso tempo, pela multiplicidade e diversidade dos contextos em que anuncia e testemunha o Evangelho, pelo favorável desenvolvimento numérico das vocações sacerdotais que se regista em diversas Dioceses do mundo, pela urgência de uma nova constatação dos conteúdos e dos métodos da formação sacerdotal, pela preocupação dos Bispos e das suas comunidades com a persistente escassez de clero, pela absoluta necessidade de que a "nova evangelização" tenha nos sacerdotes os seus primeiros "novos evangelizadores".

Foi precisamente neste contexto histórico e cultural que se colocou a última Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, dedicada à "Formação dos Sacerdotes nas circunstâncias actuais", com a intenção de, à distância de vinte e cinco anos do final do Concílio, dar cumprimento à doutrina conciliar sobre esta matéria e torná-la mais actual e incisiva nas circunstâncias hodiernas (3).

(3) Cf. Propositio 1.



3 Em continuidade com os textos do Concílio Vaticano II, sobre a ordem dos presbíteros e a sua formação (4), e procurando aplicar às várias situações a rica e respeitável doutrina, a Igreja enfrentou várias vezes os problemas da vida, do ministério e da formação dos sacerdotes.

As ocasiões mais solenes foram os Sínodos dos Bispos. Já na a primeira Assembleia Geral, realizada em Outubro de 1967, o Sínodo dedicou cinco congregações gerais ao tema da renovação dos Seminários. Este trabalho deu impulso decisivo à elaboração, pela Congregação para a Educação Católica, do documento "Normas Fundamentais para a Formação Sacerdotal" (5).

Foi sobretudo a Segunda Assembleia Geral Ordinária de 1971 a dedicar metade dos seus trabalhos ao sacerdócio ministerial. Os frutos deste longo confronto sinodal, retomados e condensados em algumas "recomendações" confiadas ao meu predecessor, o Papa Paulo VI, e lidas na abertura do Sínodo de 1974, diziam respeito principalmente à doutrina sobre o sacerdócio ministerial e a alguns aspectos da espiritualidade e do ministério sacerdotal.

Também em muitas outras ocasiões, o Magistério da Igreja continuou a testemunhar a sua solicitude pela vida e pelo ministério dos sacerdotes. Pode dizer-se que, nos anos do pós-Concílio, não houve intervenção magisterial que, em alguma medida, não tenha contemplado, de modo explícito ou implícito, o sentido da presença dos sacerdotes na comunidade, o seu papel e a sua necessidade para a Igreja e para a vida do mundo.

Nestes anos mais recentes e de várias partes, chamou-se a atenção para a necessidade de voltar ao tema do sacerdócio, enfrentando-o de um ponto de vista relativamente novo e mais adaptado às presentes circunstâncias eclesiais e culturais. O acento deslocou-se do problema da identidade do padre para os problemas relacionados com o itinerário formativo ao presbiterado e com a qualidade de vida dos sacerdotes. Na realidade, as novas gerações dos chamados ao sacerdócio ministerial apresentam características notavelmente distintas relativamente às dos seus imediatos predecessores, e vivem num mundo, em muitos aspectos, novo e em contínua e rápida evolução. E não se pode deixar de ter em conta tudo isto na programação e na realização dos itinerários educativos para o sacerdócio ministerial.

Além disso, os sacerdotes já empenhados, há um tempo mais ou menos longo, no exercício do ministério, parecem hoje sofrer de excessiva dispersão nas sempre crescentes actividades pastorais e, perante as dificuldades da sociedade e da cultura contemporânea, sentem-se constrangidos a repensar o seu estilo de vida e as prioridades das tarefas pastorais, enquanto cada vez mais se dão conta da necessidade de uma formação permanente.

Por isso as preocupações e as reflexões deste Sínodo dos Bispos de 1990 foram dedicadas ao incremento das vocações ao presbiterado, à sua formação para que os candidatos conheçam e sigam Jesus preparando-se para celebrar e viver o sacramento da Ordem que os configura a Cristo Cabeça e Pastor, Servo e Esposo da Igreja, à especificação dos itinerários de formação permanente capazes de ajudar de modo realista e eficaz o ministério e a vida espiritual dos sacerdotes.

Pretendia-se também responder a um pedido feito pelo Sínodo precedente sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo. É que os próprios leigos tinham solicitado o empenho dos sacerdotes na formação, para serem oportunamente ajudados no cumprimento da sua missão eclesial. Na verdade, «quanto mais se desenvolve o apostolado dos leigos, tanto mais fortemente é sentida a necessidade de ter sacerdotes que sejam bem formados, sacerdotes santos. Assim, a própria vida do Povo de Deus manifesta o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a relação entre o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial ou hierárquico. Pois, no mistério da Igreja, a hierarquia tem um carácter ministerial (cf. Lumen gentium
LG 10). Quanto mais se aprofunda o sentido da vocação própria dos leigos, tanto mais se evidencia o que é próprio do sacerdócio» (6).

(4) Cf. Const. dogm. sobre a Igreja, Lumen gentium, LG 28; Decreto sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis; Decreto sobre a Formação Sacerdotal Optatam totius.
(5) Ratio fundamentalis institutions sacerdotalis (6 de Janeiro de 1970): AAS 62 (1970) 321-384.
(6) Discurso final ao Sínodo (27 de Outubro de 1990), 3: l. c.



4 Na vivência eclesial típica do Sínodo, isto é, «uma singular experiência de comunhão episcopal na universalidade, que reforça o sentido da Igreja universal, a responsabilidade dos Bispos perante a Igreja universal e a sua missão, em comunhão afectiva e efectiva à volta de Pedro» (7), fez-se sentir, clara e diligente, a voz das diversas Igrejas particulares, e neste Sínodo, pela primeira vez, a de algumas Igrejas do Leste, proclamando a sua fé no cumprimento da promessa de Deus - «Dar-vos-ei pastores segundo o Meu coração» (Jr 3,15) -, e renovando o seu empenho pastoral no cuidado das vocações e na formação dos sacerdotes, conscientes de que delas depende o futuro da Igreja, o seu desenvolvimento e a sua missão universal de salvação.

Retomando agora o rico património das reflexões, orientações e indicações que prepararam e acompanharam os trabalhos dos Padres sinodais, com esta Exortação Apostólica Pós-Sinodal uno à deles a minha voz de Bispo de Roma e de Sucessor de Pedro e dirijo-a ao coração de todos e cada um dos fiéis, em particular ao coração dos sacerdotes e de quantos estão comprometidos no delicado ministério da sua formação. Sim, com todos os sacerdotes e com cada um deles, tanto diocesanos como religiosos, desejo encontrar-me através desta Exortação.

Com os lábios e o coração dos Padres sinodais faço minhas as palavras e os sentimentos da "Mensagem final do Sínodo ao Povo de Deus": «Com a alma reconhecida e cheia de admiração, dirigimo-nos a vós, que sois os nossos primeiros cooperadores no serviço apostólico. A vossa obra na Igreja é verdadeiramente necessária e insubstituível. Vós suportais o peso do ministério sacerdotal e tendes contacto quotidiano com os fiéis. Sois os ministros da Eucaristia, os dispensadores da misericórdia divina no sacramento da Penitência, os consoladores das almas, os guias de todos os fiéis nas tempestuosas dificuldades da vida.

Saudamo-vos de todo o coração, exprimimo-vos a nossa gratidão e exortamo-vos a perseverar nesta via com ânimo alegre e pronto. Não cedais ao desencorajamento. A obra não é nossa, mas de Deus.

Aquele que nos chamou e nos convidou permanece connosco todos os dias da nossa vida. Nós, de facto, somos embaixadores de Cristo» (8).

(7) Ibid., 1: l. c.
(8) Mensagem dos Padres Sinodais ao Povo de Deus (28 de Outubro de 1990), III:L'Osservatore Romano, 29-30/10/1990.


CAPÍTULO I

ESCOLHIDO DE ENTRE OS HOMENS


A formação sacerdotal perante os desafios do final do segundo milénio


O sacerdote no seu tempo

5 "Todo o sumo sacerdote, escolhido de entre os homens, é constituído a favor dos homens nas coisas que dizem respeito a Deus" (He 5,1).

A Carta aos Hebreus afirma claramente a "humanidade" do ministro de Deus: ele vem dos homens e está ao serviço dos homens, imitando Jesus Cristo, "Ele mesmo provado em todas as coisas, excepto no pecado" (He 4,15).

Deus chama sempre os seus sacerdotes a partir de determinados contextos humanos e eclesiais, com os quais estão inevitavelmente conotados e aos quais são mandados para o serviço do Evangelho de Cristo.

Por este motivo o Sínodo "contextualizou" o tema dos sacerdotes, inserindo-o na Igreja e na sociedade de hoje em dia e abrindo-o às perspectivas do terceiro milénio, como de resto resulta da própria formulação do tema: "A formação dos sacerdotes nas circunstâncias actuais".

Certamente, há uma fisionomia essencial do sacerdote que não muda:o padre de amanhã, não menos que o de hoje, deverá assemelhar-se a Cristo. Quando vivia sobre a terra, Jesus ofereceu em Si mesmo o rosto definitivo do presbítero, realizando um sacerdócio ministerial do qual os apóstolos foram os primeiros a ser investidos; aquele é destinado a perdurar, a reproduzir-se incessantemente em todos os períodos da história. O presbítero do terceiro milénio será, neste sentido, o continuador dos padres que, nos precedentes milénios, animaram a vida da Igreja. Também no ano Dois Mil, a vocação sacerdotal continuará a ser o chamamento a viver o único e permanente sacerdócio de Cristo" (9). Mas é igualmente certo que a vida e o ministério do sacerdote se deve "adaptar a cada época e a cada ambiente de vida (...) Da nossa parte, devemos, por isso, procurar abrir-nos o mais possível à superior iluminação do Espírito Santo, para descobrir as orientações da sociedade contemporânea, reconhecer as necessidades espirituais mais profundas, determinar as tarefas concretas mais importantes, os métodos pastorais a adoptar, e, assim, responder de modo adequado às expectativas humanas" (10).

Devendo conjugar a verdade permanente do ministério presbiteral com as solicitações e as características de hoje, os Padres sinodais procuraram responder a algumas perguntas necessárias: que problemas e, ao mesmo tempo, que estímulos positivos, o actual contexto sócio-cultural e eclesial suscita nas crianças, nos adolescentes e nos jovens que devem amadurecer um projecto de vida sacerdotal, para toda a existência? Que dificuldades e que novas possibilidades oferece o nosso tempo para o exercício de um ministério sacerdotal coerente com o dom do Sacramento recebido e com a exigência de uma vida espiritual correspondente?

Proponho-vos agora alguns elementos de análise da situação que os Padres sinodais desenvolveram, bem consciente, porém, de que a grande variedade das circunstâncias sócio-culturais e eclesiais presentes nos diversos países aconselha a assinalar só os fenómenos mais profundos e mais difundidos, em particular os que se relacionam com os problemas educativos e com a formação sacerdotal.

(9) Angelus (14 de Janeiro de 1990), 2: L'Osservatore Romano 15-16/01/1990.
(10) Ibid., 3: l. c.


O Evangelho hoje: esperanças e obstáculos

6 Múltiplos factores parecem favorecer nos homens de hoje uma consciência mais amadurecida da dignidade da pessoa e uma nova abertura aos valores religiosos, ao Evangelho e ao ministério sacerdotal.

No âmbito da sociedade, encontramos, apesar de tantas contradições, uma sede de justiça e de paz mais forte e generalizada um sentido mais vivo do cuidado do homem pela criação e pelo respeito da natureza, uma procura mais aberta da verdade e da tutela da dignidade humana, um empenho crescente, em muitas faixas da população mundial, por uma mais concreta solidariedade internacional e por uma nova ordem planetária, na liberdade e na justiça. Ao mesmo tempo que se desenvolve sempre mais o potencial de energias oferecido pelas ciências e pelas técnicas e se difunde a informação e a cultura, cresce também, a exigência ética, isto é, a exigência do sentido existencial e, consequentemente, de uma objectiva escala de valores que permita estabelecer as possibilidades e os limites do progresso.

No campo mais estritamente religioso e cristão, caiem os preconceitos ideológicos e a violenta obstrução ao anúncio dos valores espirituais e religiosos, enquanto surgem novas e inesperadas possibilidades para a evangelização e o reflorescimento da vida eclesial em muitas partes do mundo. Nota-se, com efeito, uma crescente difusão do conhecimento das Sagradas Escrituras; uma vitalidade e força expansiva de muitas Igrejas jovens com um papel cada vez mais importante na defesa e na promoção dos valores da pessoa e da vida humana; um esplêndido testemunho do martírio por parte das Igrejas do Centro-Leste europeu, como também o da fidelidade e coragem de outras Igrejas, que são ainda constrangidas a suportar perseguições e tribulações pela fé (11).

O desejo de Deus e de uma relação viva e significativa com Ele apresenta-se hoje tão forte que, onde falta o autêntico anúncio do Evangelho de Jesus, favorece a difusão de formas de religiosidade sem Deus e de inúmeras seitas. A expansão destas, inclusive em alguns ambientes tradicionalmente cristãos, é, para todos os filhos da Igreja e para os sacerdotes em particular, um constante motivo de exame de consciência sobre a credibilidade do seu testemunho do Evangelho, mas, ao mesmo tempo, é um sinal de quão profunda e generalizada ainda hoje é a procura de Deus.

(11) Cf. Propositio 3.



7 Com estes e outros factores positivos, encontram-se, porém, entrelaçados muitos elementos problemáticos ou negativos.

Apresenta-se ainda muito difundido, o racionalismo que, em nome de uma concepção redutora da "ciência", torna insensível a razão humana ao encontro com a Revelação e com a transcendência divina.

Regista-se uma defesa exasperada da subjectividade da pessoa, que tende a fechá-la no individualismo, incapaz de verdadeiras relações humanas. Assim muitos, sobretudo entre os adolescentes e os jovens, procuram compensar esta solidão com substitutos de vária natureza, a través de formas mais ou menos agudas de hedonismo e de fuga às responsabilidades; prisioneiros do instante fugaz, procuram "consumir" experiências individuais o mais fortes e gratificantes possível no plano das emoções e das sensações imediatas, encontrando-se, porém, inevitavelmente indiferentes e como que paralisados frente ao apelo de um projecto de vida que inclua uma dimensão espiritual e religiosa e um compromisso de solidariedade.

Além disso, difunde-se por toda a parte, mesmo depois da queda das ideologias que tinham feito do materialismo um dogma e da recusa da religião um programa, uma espécie de ateísmo prático e existencial, que coincide com uma visão secularista da vida e do destino do homem. Este homem, "todo voltado para si mesmo, que se considera não só centro de todo o interesse, mas ousa dizer-se princípio e razão de toda a realidade" (12), encontra-se sempre mais empobrecido daquele "suplemento de alma" que lhe é tanto mais necessário quanto mais uma larga disponibilidade de bens materiais e de recursos o ilude na autosuficiência. Já não é necessário combater Deus, pensa-se simplesmente poder prescindir d'Ele.

Neste quadro, refira-se, em particular, a desagregação da realidade familiar e o obscurecimento ou a falsificação do verdadeiro sentido da sexualidade humana: são fenómenos que incidem de modo fortemente negativo sobre a educação dos jovens e sobre a sua disponibilidade para toda e qualquer vocação religiosa. Além disso, deve notar-se o agravamento das injustiças sociais e a concentração das riquezas nas mãos de poucos, como fruto de um capitalismo desumano, (13) que alarga cada vez mais a distância entre povos opulentos e povos indigentes: são deste modo introduzidas, na convivência humana, tensões e inquietações que perturbam profundamente a vida das pessoas e das comunidades.

Também no âmbito eclesial, se registam fenómenos preocupantes e negativos que têm influência directa sobre a vida e o ministério dos sacerdotes. Assim, a ignorância religiosa que permanece em muitos crentes; a escassa incidência da catequese, sufocada pelas mais difusas e persuasivas mensagens dos meios de comunicação de massa; o pluralismo teológico, cultural e pastoral mal compreendido que, embora partindo muitas vezes de boas intenções, acaba por tornar difícil o diálogo ecuménico e por atentar contra a necessária unidade da fé; o persistir de um sentido de desconfiança e quase insensibilidade para com o magistério hierárquico; as iniciativas unilaterais e redutoras das riquezas da mensagem evangélica, que transformam o anúncio e o testemunho da fé num exclusivo factor de libertação humana e social ou num alienante refúgio na superstição e na religiosidade sem Deus (14).

Um fenómeno de grande relevo, ainda que relativamente recente em muitos países de antiga tradição cristã, é a presença de consistentes núcleos de raças e de religiões diferentes num mesmo território. Desenvolve-se, assim, cada vez mais a sociedade multirracial e multirreligiosa. Se isto, por um lado, pode ser ocasião para um exercício de diálogo mais frequente e frutuoso, para uma abertura de mentalidade, para experiências de acolhimento e de justa tolerância, por outro pode ser causa de confusão e relativismo, sobretudo em pessoas e populações de fé menos amadurecida.

A estes factores, e em estreita ligação com o crescimento do individualismo, acrescenta-se o fenómeno da subjectivização da fé. Com efeito, num crescente número de cristãos nota-se uma menor sensibilidade ao conjunto global e objectivo da doutrina da fé, em favor de uma adesão subjectiva ao que agrada, que corresponde à própria experiência, que não incomoda os próprios hábitos. Até o apelo à inviolabilidade da consciência individual, legítimo em si mesmo, não deixa de assumir, neste contexto, um perigoso carácter de ambiguidade.

Daqui deriva também o fenómeno de pertenças à Igreja cada vez mais parciais e condicionadas, que exercem influência negativa sobre o ressurgimento de novas vocações ao sacerdócio, sobre a própria autoconsciência do sacerdote e sobre o seu ministério na comunidade.

Enfim, em muitas realidades eclesiais, é, ainda hoje, a escassa presença e disponibilidade das forças sacerdotais a criar os problemas mais graves. Os fiéis estão abandonados, por vezes durante longos períodos, sem o adequado apoio pastoral: disso se vem a ressentir o crescimento da vida cristã no seu conjunto, e sobretudo, a sua capacidade de se tornarem ulteriormente promotores de evangelização.

(12) Paulo VI, Homilia na IX Sessão Pública do Conc. Vaticano II (7 de Dezembro de 1965): AAS58 (1966) 55.
(13) Cf. Propositio 3.
(14) Cf. Ibid.


Os jovens perante a vocação e a formação sacerdotal

8 As numerosas contradições e potencialidades que marcam as nossas sociedades e culturas e, ao mesmo tempo, as nossas comunidades eclesiais, são percebidas, vividas e experimentadas com uma intensidade muito particular pelo mundo dos jovens, com repercussões imediatas e incisivas sobre o seu caminho educativo. Deste modo, a aparição e o desenvolvimento da vocação sacerdotal nas crianças, nos adolescentes e nos jovens debate-se simultaneamente com obstáculos e solicitações.

é muito forte sobre os jovens o fascínio da chamada "sociedade de consumo", que os torna submissos e prisioneiros de uma interpretação individualista, materialista e hedonista da existência humana. O "bem-estar", entendido materialmente, tende a impor-se como único ideal de vida, um bem-estar que se obtém a qualquer preço: daqui, a recusa de tudo o que exige sacrifício e a renúncia a procurar e a viver os valores espirituais e religiosos. A "preocupação" exclusiva do ter suplanta o primado do ser, com a consequência de se interpretarem e viverem os valores pessoais e interpessoais não segundo a lógica do dom e da gratuidade, mas segundo a lógica da posse egoísta e da instrumentalização do outro.

Isto reflecte-se particularmente sobre a visão da sexualidade humana, que perde a sua dignidade de serviço à comunhão e à doação entre as pessoas, para ficar reduzida simplesmente a um bem de consumo. Assim, a experiência afectiva de muitos jovens resolve-se não num crescimento harmonioso e alegre da própria personalidade que se abre ao outro no dom de si mesmo, mas numa grave involução psicológica e ética, que não poderá deixar de ter graves condicionamentos sobre o amanhã dos jovens.

Na raiz destas tendências, está em muitos deles uma experiência distorcida da liberdade: em vez de ser obediência à verdade objectiva e universal, a liberdade é vivida como adesão cega às forças do instinto e à vontade de poder de cada um. Torna-se, então de algum modo, natural, no plano da mentalidade e do comportamento, o desmoronar-se do consenso sobre os princípios éticos e, no plano religioso, se não sempre a recusa explícita de Deus, pelo menos uma larga indiferença e, em todo o caso, uma vida que, mesmo nos seus momentos mais significativos e nas suas opções mais decisivas, acaba por ser construida como se Deus não existisse. Num tal contexto, torna-se difícil não só a realização, mas inclusive a própria compreensão do sentido de uma vocação ao sacerdócio, que é um específico testemunho do primado do ser sobre o ter, é reconhecimento do sentido da vida como dom livre e responsável de si mesmo aos outros, como disponibilidade para colocar-se inteiramente como sacerdote ao serviço do Evangelho e do Reino de Deus.

Também no âmbito eclesial o mundo dos jovens constitui, tantas vezes, um "problema". Dado que neles, ainda mais que nos adultos, está presente uma forte tendência para a subjectivização da fé cristã e uma pertença apenas parcial e condicionada à vida e à missão da Igreja, torna-se difícil, por uma série de razões, lançar na comunidade eclesial, uma pastoral juvenil actualizada e corajosa: corre-se o risco de deixar os jovens entregues a si mesmos, na sua fragilidade psicológica, insatisfeitos e críticos perante um mundo de adultos que, não vivendo de modo coerente e maduro a sua fé, não se lhes apresentam como modelos credíveis.

Torna-se então evidente a dificuldade de propor aos jovens uma experiência integral e envolvente de vida cristã e eclesial. e de os educar para ela. Assim a perspectiva da vocação ao sacerdócio permanece longínqua dos seus interesses concretos e vivos.



9 Todavia não faltam situações e estímulos positivos, que suscitam e alimentam no coração dos adolescentes e dos jovens uma nova disponibilidade, isto é, uma procura verdadeira e própria de valores éticos e espirituais que, pela sua natureza, oferecem o terreno propício para um itinerário vocacional em vista do dom total de si a Cristo e à Igreja no sacerdócio.

é de acentuar, antes de mais, como se atenuaram alguns fenómenos que, num passado recente, tinham provocado não poucos problemas, tais como a contestação radical, os impulsos anárquicos, as reivindicações utópicas, as formas indiscriminadas de socialização, a violência.

Deve reconhecer-se, além disso, que os jovens de hoje, com a força e a pujança típicas da idade, são portadores dos ideais que fazem caminho na história: a sede da liberdade, o reconhecimento do valor incomensurável da pessoa, a necessidade da autenticidade e da transparência, um novo conceito e estilo de reciprocidade nas relações entre homem e mulher, a procura sincera e apaixonada de um mundo mais justo, solidário e unido, a abertura e o diálogo com todos, o empenho a favor da paz.

O desenvolvimento, tão rico e vivo em muitos jovens do nosso tempo, de numerosas e variadas formas de voluntariado presente nas situações mais esquecidas e difíceis da nossa sociedade, representa hoje um recurso educativo particularmente importante, porque estimula e ajuda os jovens a um estilo de vida mais desinteressado, aberto e solidário com os pobres. Isto pode facilitar a compreensão, o desejo e o acolhimento de uma vocação para o serviço estável e total aos outros, no caminho da plena consagração a Deus por uma vida sacerdotal.

A queda recente das ideologias, o modo fortemente crítico de situar-se frente ao mundo dos adultos que nem sempre oferecem um testemunho de vida apoiado em valores morais e transcendentes, a própria experiência dos companheiros que procuram evasões na droga e na violência, muito contribui para tornar mais aguda e iniludível a pergunta fundamental sobre os valores que são verdadeiramente capazes de dar plenitude de significado à vida, ao sofrimento e à morte. Em muitos jovens, torna-se mais explícita a questão religiosa e a necessidade de espiritualidade: daqui o desejo de oração, o retorno a uma leitura mais pessoal e frequente da Palavra de Deus e ao estudo da teologia.

Tal como sucede no âmbito do voluntariado social, também no da comunidade eclesial, os jovens se tornam cada vez mais activos e protagonistas, sobretudo pela participação nas várias agregações, desde as tradicionais uma vez renovadas, às mais recentes: a experiência de uma Igreja solicitada para a "nova evangelização" pela fidelidade ao Espírito que a anima e pelas exigências do mundo afastado de Cristo mas necessitado d'Ele, como também a experiência de uma Igreja cada vez mais solidária com o homem e com os povos na defesa e promoção da dignidade pessoal e dos direitos humanos de todos e de cada um, abre o coração e a vida da juventude a ideais fascinantes e comprometedores, que podem encontrar a sua concreta realização no seguimento de Cristo e do sacerdócio.

Naturalmente não de pode prescindir desta situação humana e eclesial, caracterizada por uma forte ambivalência, seja na pastoral das vocações e na obra de formação dos futuros sacerdotes, seja no âmbito da vida e do ministério dos sacerdotes e da sua formação permanente. Assim, se se podem compreender as várias formas de "crises", às quais os sacerdotes de hoje estão sujeitos no exercício do ministério, na sua vida espiritual e na própria interpretação da natureza e do significado do sacerdócio ministerial, devem-se todavia assinalar com alegria e esperança as novas potencialidades que o actual momento histórico oferece àqueles para o cumprimento da sua missão.


O discernimento evangélico

10 A complexa situação actual, rapidamente evocada em traços largos e de modo exemplificativo, necessita de ser conhecida, e sobretudo interpretada. Só assim se poderá responder de modo adequado à questão fundamental: como formar sacerdotes que estejam verdadeiramente à altura destes tempos, capazes de evangelizar o mundo de hoje? (15).

é importante o conhecimento da situação. Não basta, porém, um simples levantamento dos factos; ocorre uma investigação «científica» para se delinear um quadro preciso e concreto das reais circunstâncias sócio-culturais e eclesiais.

Ainda mais importante é a interpretação da situação. Essa é exigida pela ambivalência e por vezes contradição com que está marcada a situação, que regista, profundamente entrelaçadas, dificuldades e potencialidades, elementos negativos e razões de esperança, obstáculos e aberturas, como o campo evangélico no qual estão semeados e "convivem" o bom trigo e a cizânia (cf.
Mt 13,24-30).

Nem sempre é fácil uma leitura interpretativa que saiba distinguir entre o bem e o mal, entre sinais de esperança e ameaças. Na formação dos sacerdotes, não se trata única e simplesmente de acolher os factores positivos e de rejeitar frontalmente os negativos. Mas tem-se de submeter os próprios factores positivos a um atento discernimento, para que não se isolem uns dos outros nem entrem em oposição entre si, absolutizando-se e combatendo-se mutuamente. O mesmo se diga dos factores negativos : não são de rejeitar em bloco e sem distinções, porque em cada um deles pode ocultar-se algum valor que espera ser liberto e reconduzido à sua verdade plena.

Para o crente, a interpretação da situação histórica encontra o seu princípio cognoscitivo e o critério das opções operativas consequentes, numa realidade nova e original, ou seja, no discernimento evangélico; é a interpretação que se verifica à luz e com a força do Evangelho, do Evangelho vivo e pessoal de Jesus Cristo, e com o dom do Espírito Santo. Deste modo, o discernimento evangélico vê, na situação histórica e nas suas vicissitudes e circunstâncias, não um simples "dado" a registar com precisão, frente ao qual é possível permanecer na indiferença ou na passividade, mas uma "tarefa", um desafio à liberdade responsável quer do indivíduo quer da comunidade. É um "desafio" que está ligado a um "apelo", que Deus faz ressoar na própria situação histórica: também nele e através dele, Deus chama o crente , e antes ainda a Igreja, a fazer com que "o Evangelho da vocação e do sacerdócio" exprima a sua verdade perene nas novas circunstâncias da vida. Também à formação dos sacerdotes são de aplicar as palavras do Concílio Vaticano II: "é dever permanente da Igreja auscultar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho de modo que, de uma forma adaptada a cada geração, ela possa responder às perenes interrogações dos homens sobre o sentido da vida presente e futura e sobre a sua relação recíproca. É necessário, de facto, conhecer e compreender o mundo em que vivemos e também as suas esperanças, as suas aspirações e a sua índole por vezes dramática" (16).

Este discernimento evangélico tem o seu fundamento na confiança no amor de Jesus Cristo, que sempre e incansavelmente toma o cuidado da sua Igreja (cf. Ep 5,29), Ele que é o Senhor e Mestre, a chave, o centro e o fim de toda a história humana (17); nutre-se da luz e da força do Espírito Santo, que suscita por toda a parte e em qualquer circunstância a obediência da fé, a coragem alegre do seguimento de Cristo, o dom da sabedoria que tudo julga e não é julgada por ninguém (cf. 1Co 2,15); repousa sobre a fidelidade do Pai às suas promessas.

Deste modo, a Igreja sente que pode enfrentar as dificuldades e os desafios deste novo período da história e garantir, já no presente e para o futuro, sacerdotes bem, formados que sejam convictos e fervorosos ministros da "nova evangelização", servidores fiéis e generosos de Jesus Cristo e dos homens.

Não ignoramos as dificuldades. Não são poucas nem pequenas. Mas, para vencê-las, está a nossa esperança, a nossa fé no indefectível amor de Cristo, a nossa certeza da insubstituibilidade do ministério sacerdotal na vida da Igreja e do mundo.

(15) Cf. Sínodo dos Bispos, VIII Assem. Ger. Ord., A formação dos sacerdotes nas circunstâncias actuais 1, « Lineamenta », 5-6.
(16) Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 4.
(17) Cf. Sínodo dos Bispos, VIII Assem. Ger. Ord., Mensagem dos Padres Sinodais ao Povo de Deus (28 de Outubro de 1990), I: l. c.


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