Pastores dabo vobis PT 21

A configuração a Jesus Cristo Cabeça e Pastor e a caridade pastoral

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Mediante a consagração sacramental, o sacerdote é configurado a Jesus Cristo enquanto Cabeça e Pastor da Igreja e recebe o dom de um "poder espiritual" que é participação da autoridade com a qual Jesus Cristo pelo Seu Espírito conduz a Igreja (45).

Graças a esta consagração, operada pelo Espírito na efusão sacramental da Ordem, a vida espiritual do sacerdote fica assinalada, plasmada, conotada por aquelas atitudes e comportamentos que são próprios de Jesus Cristo Cabeça e Pastor e se compendiam na sua caridade pastoral.

Jesus Cristo é Cabeça da Igreja, seu Corpo. É "Cabeça" no sentido novo e original de ser "servo", segundo as suas próprias palavras: "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida em resgate por todos" (
Mc 10,45). O serviço de Jesus atinge a plenitude com a morte na cruz, ou seja, com o dum total de si mesmo, na humildade e no amor: "Despojou-se a si próprio, assumindo a condição de servo e tornando-se igual aos homens; aparecendo em forma humana, humilhou-se a si mesmo fazendo-se obediente até à morte e morte de cruz" (Ph 2,7-8). A autoridade de Jesus Cristo Cabeça coincide, portanto, com o seu serviço, o seu dom, a sua entrega total, humilde e amorosa pela Igreja. E tudo isto em perfeita obediência ao Pai: Ele é o único verdadeiro servo sofredor, conjuntamente Sacerdote e Vítima.

é a partir deste preciso tipo de autoridade, quer dizer, do serviço à Igreja, que a existência espiritual de todos e cada um dos sacerdotes é animada e vivificada, exactamente como exigência da sua configuração a Jesus Cristo Cabeça e Servo da Igreja (46). Assim Santo Agostinho alertava um bispo no dia da sua ordenação: "Quem é posto à frente do povo deve ser o primeiro a dar-se conta de que é servo de todos. E não desdenhe de o ser, repito, não desdenhe de ser servo de todos, pois não desdenhou de se tornar nosso servo Aquele que é Senhor dos senhores" (47).

A vida espiritual dos ministros do Novo Testamento deve levar, portanto, a marca desta atitude essencial de serviço ao Povo de Deus (cf. Mt 20,24-28 Mc 10,43-44), destituído de qualquer presunção ou desejo de "assenhoriar-se" do rebanho a ele confiado (cf. 1P 5,2-3). Um serviço feito de ânimo alegre, de boa vontade e segundo Deus: deste modo os ministros, os "anciãos" da comunidade, isto é, os presbíteros, poderão ser «modelo» do rebanho que, por sua vez, é chamado a assumir, frente ao mundo inteiro, essa atitude sacerdotal de serviço à plenitude da vida do homem e à sua libertação integral.

(45) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 2 PO 12.
(46) Cf. Propositio 8.
(47) Serm. Morin Guelferbytanus, 32, 1: PLS 2, 637.



22 A imagem de Jesus Cristo Pastor da Igreja, seu rebanho, retoma e repropõe, com novos e mais sugestivos matizes, os mesmos conteúdos da de Jesus Cristo Cabeça e servo. Tornando realidade o anúncio profético do Messias Salvador, cantado jubilosamente pelo Salmista e pelo profeta Ezequiel (cf. Ps 22 Ez 34,11-31), Jesus auto-apresenta-se como "o Bom Pastor" (Jn 10,11 Jn 10,14) não só de Israel mas de todos os homens (Jn 10,16). E a sua vida é uma ininterrupta manifestação, melhor, uma quotidiana realização da sua "caridade pastoral": sente compaixão pelas multidões porque estão cansadas e esgotadas como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9,35-36); procura as dispersas e tresmalhadas (cf. Mt 18,12-14) e festeja o tê-las reencontrado, recolhe-as e defende-as, conhece-as e as chama uma a uma pelo seu nome (cf. Jn 10,3), condu-las aos pastos verdejantes e às águas refrescantes (cf. Ps 22), para elas põe a mesa, alimentando-as com a Sua própria vida. Esta vida a oferece o Bom Pastor com a sua morte e ressurreição, como canta a liturgia romana da Igreja: "Ressuscitou o bom Pastor que deu a vida pelas suas ovelhas, e pelo Seu rebanho se entregou à morte. Aleluia" (48).

Pedro chama a Jesus o "Príncipe dos Pastores" (1P 5,4), porque a sua obra e missão continuam na Igreja através dos Apóstolos (cf. Jo Jn 21,15-17) e seus sucessores (cf. 1P 5,1-4), e através dos presbíteros. Em virtude da sua consagração, estes são configurados a Jesus Bom Pastor e são chamados a imitar e a reviver a sua própria caridade pastoral.

A entrega de Cristo à sua Igreja, fruto do seu amor, está conotada com aquela dedicação original que é própria do esposo no seu relacionamento com a esposa, como por mais de uma vez sugerem os textos sagrados. Jesus é o verdadeiro Esposo que oferece o vinho da salvação à Igreja (cf. Jn 2,1-11). Ele, que é "cabeça da Igreja (...) e salvador do seu corpo" (Ep 5,23), "amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela, a fim de a tornar santa, purificando-a por meio do banho da água acompanhado da palavra, de modo a fazer aparecer diante de si a Igreja resplandecente, sem mancha nem ruga ou qualquer coisa de semelhante, mas santa e imaculada" (Ep 5,25-27). A Igreja é efectivamente o Corpo, no qual está presente e operante Jesus Cristo Cabeça, mas é também a Esposa, que surge como nova Eva do lado aberto do Redentor sobre a cruz: por isto mesmo, Cristo está "diante" da Igreja, "alimenta-a e cuida dela" (Ep 5,29) com o dom da sua vida. O sacerdote é chamado a ser imagem viva de Jesus Cristo, Esposo da Igreja (49): certamente ele permanece sempre parte da comunidade como crente, juntamente com todos os outros irmãos e irmãs convocados pelo Espírito, mas por força da sua incorporação a Cristo Cabeça e Pastor, encontra-se na referida posição de esposo perante a comunidade. "Enquanto representa a Cristo Cabeça, Pastor e Esposo da Igreja, o sacerdote coloca-se não só na Igreja mas perante a Igreja" (50). Portanto ele é chamado, na sua vida espiritual, a reviver o amor de Cristo Esposo na sua relação com a Igreja Esposa. A sua vida deve iluminar-se e orientar-se também por este tratamento nupcial que lhe exige ser testemunha do amor nupcial de Cristo, ser, por conseguinte, capaz de amar a gente com um coração novo, grande e puro, com um autêntico esquecimento de si mesmo, com dedicação plena, contínua e fiel, juntamente com uma espécie de "ciúme" divino (cf. 2Co 11,2), com uma ternura que reveste inclusivamente os matizes do afecto materno, capaz de assumir as "dores de parto" até que "Cristo seja formado" nos fiéis (cf. Ga 4,19).

(48) Missal Romano, Antífona da Comunhão na Missa do IV Domingo de Páscoa.
(49) Carta Ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), MD 26: AAS 80 (1988) 1715-1716.
(50) Propositio 7.



23 O princípio interior, a virtude que orienta e anima a vida espiritual do presbítero, enquanto configurado a Cristo Cabeça e Pastor, é a caridade pastoral, participação da própria caridade pastoral de Cristo Jesus: dom gratuito do Espírito Santo, e ao mesmo tempo tarefa e apelo a uma resposta livre e responsável do sacerdote.

O conteúdo essencial da caridade pastoral é o dom de si, o total dom de si mesmo à Igreja, à imagem e com o sentido de partilha do dom de Cristo. "A caridade pastoral é aquela virtude pela qual nós imitamos Cristo na entrega de si mesmo e no seu serviço. Não é apenas aquilo que fazemos, mas o dom de nós mesmos que manifesta o amor de Cristo pelo seu rebanho. A caridade pastoral determina o nosso modo de pensar e de agir, o modo de nos relacionarmos com as pessoas. E não deixa de ser particularmente exigente para nós" (51).

O dom de si mesmo, raiz e síntese da caridade pastoral, tem como destinatária a Igreja. Assim foi com Cristo que "amou a sua Igreja e se entregou por ela" (
Ep 5,25); assim deve ser com o presbítero. Pela caridade pastoral, que assinala o exercício do ministério sacerdotal como "amoris officium"(52), "o sacerdote que acolhe a vocação ao ministério, está em condições de fazer disto uma escolha de amor, pela qual a Igreja e as almas se tornam o seu principal interesse e, com tal espiritualidade concreta, se torna capaz de amar a Igreja universal e a porção dela que lhe é confiada, com todo o entusiasmo de um esposo na sua relação com a esposa" (53). O dom de si mesmo não tem fronteiras, porque é marcado pelo mesmo dinamismo apostólico e missionário de Cristo Bom Pastor, que disse:"Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil; também as devo conduzir; escutarão a minha voz e então haverá um só rebanho e um só pastor" (Jn 10,16).

No interior da comunidade eclesial, a caridade pastoral do sacerdote preconiza e exige de um modo particular e específico o seu relacionamento pessoal com o presbitério, unido no e com o Bispo, como explicitamente escreve o Concílio: "a caridade pastoral exige que os presbíteros, para que não corram em vão, trabalhem sempre em união com os Bispos e com os outros irmãos no sacerdócio"(54).

O dom de si à Igreja tem a ver com ela, enquanto Corpo e Esposa de Jesus Cristo. Por isso a caridade do padre se refere primariamente a Jesus Cristo: só se amar e servir a Cristo Cabeça e Esposo, a caridade se torna fonte, critério, medida, impulso de amor e de serviço do sacerdote para com a Igreja corpo e esposa de Cristo. É esta a consciência clara e viva do apóstolo Paulo, que, aos cristãos da Igreja de Corinto, escreve: "quanto a nós, somos vossos servos por amor de Jesus" (2Co 4,5). É esta sobretudo a doutrina explícita e programática de Jesus quando confia a Pedro o ministério de apascentar o rebanho, só depois da sua tríplice afirmação de amor, melhor dito, de um amor de predilecção: "Perguntou-lhe pela terceira vez: 'Simão, filho de João, tu amas-me?'. E Pedro respondeu: 'Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo'. Replicou-lhe Jesus: 'Apascenta as minhas ovelhas'"(Jn 21,17).

A caridade pastoral, que tem a sua fonte específica no sacramento da Ordem, encontra a sua plena expressão e supremo alimento na Eucaristia: "Esta caridade pastoral - diz-nos o Concílio - brota sobretudo do sacrifício eucarístico, o qual constitui, portanto, o centro e a raiz de toda a vida do presbítero, de modo que a alma sacerdotal se esforçará por espelhar em si mesma o que é realizado sobre o altar do sacrifício" (55). É na Eucaristia, de facto, que é representado, ou seja, de novo tornado presente o sacrifício da cruz, o dom total de Cristo à sua Igreja, o dom do seu Corpo entregue e do seu Sangue derramado, qual testemunho supremo do seu ser Cabeça e Pastor, Servo e Esposo da Igreja. Precisamente por isto, a caridade pastoral do sacerdote não apenas brota da Eucaristia, mas encontra na celebração desta a sua mais alta realização, da mesma forma que da Eucaristia recebe a graça e a responsabilidade de conotar em sentido "sacrificial" a sua inteira existência.

Esta mesma caridade pastoral constitui o princípio interior e dinâmico capaz de unificar as múltiplas e diferentes actividades do sacerdote. Graças a ela, pode encontrar resposta a exigência permanente e essencial de unidade entre a vida interior e tantas actividades e responsabilidades do ministério, exigência sempre mais urgente num contexto sócio-cultural e eclesial fortemente assinalado pela complexidade, desagregação e dispersão. Somente a concentração de cada instante e de cada gesto à volta da opção fundamental e qualificante de "dar a vida pelo rebanho" pode garantir esta unidade vital, indispensável para a harmonia e para o equilíbrio espiritual do sacerdote: "A unidade de vida - recorda o Concílio - pode ser conseguida pelos presbíteros seguindo, no desempenho do próprio ministério, o exemplo de Cristo Senhor, cujo alimento era o cumprimento da vontade d'Aquele que o tinha enviado a realizar a sua obra (...) Assim, representando o Bom Pastor, no mesmo exercício pastoral da caridade, encontrarão o vínculo da perfeição sacerdotal que tornará efectiva a unidade entre a sua vida e actividade" (56).

(51) Homilia durante a Adoração eucarística em Seul (7 de Outubro de 1989), 2: Insegnamenti, XII/2 (1989) 785.
(52) Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium Tractatus 123, 5: CCL 36, 678.
(53) Aos Sacerdotes participantes num Convénio promovido pela Conf. Ep. Italiana (4 de Novembro de 1980): Insegnamenti, III/2 (1980) 1055.
(54) Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 14.
(55) Ibid. PO 14
(56) Ibid. PO 14


A vida espiritual no exercício do ministério

24 O Espírito do Senhor consagrou Cristo e enviou-o a anunciar o Evangelho (cf. Lc 4,18). A missão não representa um elemento exterior e justaposto à consagração, mas constitui a sua meta intrínseca e vital: a consagração é para a missão. Assim, não só a consagração mas também a missão está sob o signo do Espírito, sob o seu influxo santificador.

Assim aconteceu com Jesus. Assim foi o caso dos apóstolos e dos seus sucessores. Assim é com a Igreja inteira e, dentro dela, com os presbíteros: todos recebem o Espírito como dom e apelo de santificação, no âmbito e através do cumprimento da missão (57).

Existe, portanto, uma íntima conexão entre a vida espiritual do presbítero e o exercício do seu ministério (58), que o Concílio exprime da maneira seguinte: "Exercitando o ministério do Espírito e da justiça (cf. 2Co 3,8-9), os presbíteros são consolidados na vida do Espírito, na condição, porém, que sejam dóceis aos ensinamentos do Espírito de Cristo que os vivifica e guia. De facto, os presbíteros são orientados para a perfeição da vida por força das próprias acções que desenvolvem quotidianamente, como também de todo o seu ministério que exercitam em estreita união com o Bispo e entre si. Mas a própria santidade dos presbíteros, por sua vez, contribui muitíssimo para o desempenho eficaz do seu ministério" (59).

"Vive o mistério que é colocado em tuas mãos"! é este o convite e também a interpelação que a Igreja dirige ao presbítero no rito da ordenação, no momento em que lhe são entregues as ofertas do povo santo para o sacrifício eucarístico. O "mistério" de que o presbítero é "dispensador" (cf. 1Co 4,1) é, no fundo, o próprio Jesus Cristo que, no Espírito, é fonte de santidade e apelo à santificação. O "mistério" exige ser inserido na vida real do presbítero. Por isso mesmo, exige grande vigilância e consciencialização viva. É ainda o rito da ordenação a fazer preceder as palavras recordadas da recomendação: "Toma consciência daquilo que farás". Já Paulo alertava o bispo Timóteo: "Não transcures o dom espiritual que está em ti" (1Tm 4,14 cf. 2Tm 1,6).

A relação entre a vida espiritual e o exercício do ministério sacerdotal pode encontrar uma explicação adequada, também a partir da caridade pastoral concedida pelo sacramento da Ordem. O ministério do sacerdote, precisamente porque é uma participação no ministério salvífico de Jesus Cristo Cabeça e Pastor, não pode deixar de reexprimir e reviver aquela sua caridade pastoral que é, ao mesmo tempo, a fonte e o espírito do seu serviço e do dom de si próprio. Na sua realidade objectiva, o ministério sacerdotal é "amoris officium", segundo a citada expressão de Santo Agostinho: precisamente esta realidade objectiva se coloca como fundamento e apelo para um "ethos" correspondente, que não pode ser senão aquele de viver o amor, como salienta o mesmo Santo: "Sit amoris officium pascere dominicum gregem" (60). Tal ethos, e portanto a vida espiritual, outra coisa não é senão o acolhimento na consciência e na liberdade, e consequentemente na mente, no coração, nas decisões e nas acções, da "verdade" do ministério sacerdotal comoamoris officium.

(57) Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), EN 75: AAS 68 (1976) 64-67.
(58) Cf. Propositio 8.
(59) Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 12.
(60) In Iohannis Evangelium Tractatus 123, 5: l. c.



25 É essencial para a vida espiritual, que se desenvolve através do exercício do ministério, que o sacerdote renove continuamente e aprofunde sempre mais a consciência de ser ministro de Jesus Cristo em virtude da consagração sacramental e da configuração ao mesmo Cristo Cabeça e Pastor da Igreja.

Essa consciência não só corresponde à verdadeira natureza da missão que o sacerdote exerce em favor da Igreja e da humanidade, mas decide também a vida espiritual do presbítero que leva a cabo aquela missão. Efectivamente o Sacerdote não é escolhido por Cristo como uma "coisa", mas como uma "pessoa": ele não é um instrumento inerte e passivo, mas um "instrumento vivo", como diz o Concílio, precisamente no ponto onde fala da obrigação de tender para esta perfeição (61). É ainda o Concílio a designar os sacerdotes como "companheiros e colaboradores" de Deus «santo e santificador» (62).

Neste sentido, no exercício do ministério está profundamente comprometida a pessoa consciente, livre e responsável do sacerdote. O ligame a Jesus Cristo, que a configuração e a consagração do sacramento da Ordem asseguram, fundamenta e exige no sacerdote uma ulterior conexão que lhe é proporcionada pela "intenção", ou seja, pela vontade consciente e livre de fazer, mediante o gesto ministerial, aquilo que é intenção da Igreja. Uma tal ligação tende, pela sua própria natureza, a tornar-se o mais ampla e profunda possível, implicando a mente, os sentimentos, a vida, ou seja, uma série de disposições morais e espirituais correspondentes aos gestos ministeriais do padre.

Não há dúvida que o exercício do ministério sacerdotal, especialmente a celebração dos sacramentos, recebe a sua eficácia de salvação da própria acção de Cristo Jesus, tornada presente nos sacramentos. Mas por um desígnio divino, que pretende exaltar a absoluta gratuidade da salvação, fazendo do homem ao mesmo tempo um "salvado" e um "salvador" - sempre e só com Jesus Cristo, a eficácia do exercício do ministério é condicionada também pela maior ou menor receptividade e participação humana (63). Particularmente, a maior ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da Palavra, a celebração dos Sacramentos, e a condução da comunidade na Caridade. Afirma-o claramente o Concílio: "A mesma santidade dos presbíteros (...) contribui muitíssimo para o desempenho eficaz do seu ministério: com efeito, se é verdade que a graça de Deus pode realizar a obra de salvação mesmo por meio de ministros indignos, apesar de tudo, Deus prefere ordinariamente manifestar as suas grandezas por meio daqueles que, mostrando-se mais dóceis aos impulsos e direcção do Espírito Santo, possam dizer com o Apóstolo, graças à sua íntima união com Cristo e à santidade de vida: 'Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim' (
Ga 2,20)" (65).

A consciência de ser ministro de Jesus Cristo Cabeça e Pastor implica também a certeza grata e alegre de uma singular graça recebida da parte d'Ele: a de ter sido escolhido gratuitamente pelo Senhor como instrumento vivo da obra de salvação. Esta escolha testemunha o amor de Jesus Cristo pelo sacerdote. Precisamente este amor, como e mais do que qualquer outro amor, exige correspondência. Depois da ressurreição, Jesus coloca a Pedro a questão fundamental sobre o amor: "Simão, filho de João, amas-me tu mais do que estes?" E à resposta de Pedro, segue a entrega da missão: "Apascenta os meus cordeiros" (Jn 21,15). Jesus pergunta a Pedro se o ama, antes e com o fim de lhe poder entregar o rebanho. Mas, na realidade, é o amor livre e prévio de Jesus a originar a solicitação ao apóstolo e a subsequente entrega das "suas" ovelhas. Desta forma, o gesto ministerial, enquanto leva a amar e a servir a Igreja , impele a amadurecer cada vez mais no amor e no serviço a Jesus Cristo Cabeça, Pastor e Esposo da Igreja, um amor que se configura sempre como resposta ao amor prévio, livre e gratuito de Deus em Cristo. Por sua vez, o crescimento do amor a Jesus Cristo determina o crescimento do amor pela Igreja: "Somos vossos pastores (pascimus vobis), e convosco somos alimentados (pascimur vobiscum). O Senhor nos dê a força de amar-vos a tal ponto que possamos morrer por vós, de facto ou com o coração (aut effectu aut affectu)" [65].

(61) Cf. Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 12.
(62) Ibid., PO 5.
(63) Cf. Concílio de Trento, Decretum de iustificatione, cap. 7; Decretum de sacramentas, cân. 6: DS 1529 DS 1606.
(64) Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 12.
(65) Santo Agostinho, Sermo de Nat. Sanct. Apost. Petri et Pauli ex Evangelio in quo tut: Simon Iohannis diligis me?: Bibliotheca Casinensis in G. Morin (ed.), «Miscellanea Augustiniana », vol. I, (Roma 1930) p. 404.



26 Graças aos preciosos ensinamentos do Concílio Vaticano II (66), podemos individuar as condições e as exigências, as modalidades e os frutos do íntimo relacionamento que existe entre a vida espiritual do sacerdote e o exercício do seu tríplice ministério: da Palavra, dos Sacramentos e do serviço da Caridade.

Antes de mais, o Sacerdote é ministro da Palavra de Deus, é consagrado e enviado a anunciar a todos o Evangelho do Reino, chamando cada homem à obediência da fé e conduzindo os crentes a um conhecimento e comunhão sempre mais profundos do mistério de Deus, revelado e comunicado a nós em Cristo. Por isso, o próprio sacerdote deve ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; precisa de se abeirar da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade - "o pensamento de Cristo" (
1Co 2,16) - de modo que as suas palavras, as suas opções e atitudes sejam cada vez mais uma transparência, um anúncio e um testemunho do Evangelho. Só "permanecendo" na Palavra, o presbítero se tornará perfeito discípulo do Senhor, conhecerá a verdade e será realmente livre, superando todo e qualquer condicionalismo adverso ou estranho ao Evangelho (cf. Jo Jn 8,31-32). O sacerdote deve ser o primeiro "crente" na Palavra, com plena consciência de que as palavras do seu ministério não são suas, mas d'Aquele que o enviou. Desta Palavra, ele não é dono: é servo. Desta Palavra, ele não é o único possuidor: é devedor relativamente ao Povo de Deus. Precisamente porque evangeliza e para que possa evangelizar, o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade de ser evangelizado (67). Ele anuncia a Palavra na sua qualidade de "ministro", participante da autoridade profética de Cristo e da Igreja. Por isso, para ter em si mesmo e dar aos fiéis a garantia de transmitir o Evangelho na sua integridade, presbítero é chamado a cultivar uma sensibilidade, um amor e uma disponibilidade particular relativamente à Tradição viva da Igreja e do seu Magistério: estes não são estranhos à Palavra, servem antes a sua recta interpretação e conservam-lhe o autêntico sentido (68).

é sobretudo na celebração dos Sacramentos e na Liturgia das Horas que o sacerdote é chamado a viver e a testemunhar a unidade profunda entre o exercício do ministério e a sua vida espiritual: o dom da graça oferecido à Igreja torna-se princípio de santidade e apelo de santificação. Também para o sacerdote, o lugar verdadeiramente central, quer no ministério quer na vida espiritual, é ocupado pela Eucaristia, pois nela se "encerra todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, nossa Páscoa e Pão vivo que dá aos homens a vida, mediante a sua carne vivificada pelo Espírito Santo; assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas" (69).

A vida espiritual do presbítero recebe conotações particulares dos diversos sacramentos, e em particular da graça específica e própria de cada um deles. Aquela, de facto, é estruturada e plasmada pelas múltiplas características e exigências dos diversos sacramentos celebrados e vividos.

Gostaria de reservar uma palavra especial para o sacramento da Penitência, do qual os sacerdotes são ministros, mas devem ser também beneficiários, tornando-se testemunhas da misericórdia de Deus pelos pecadores. Retomo quanto escrevi na Exortação Reconciliatio et Paenitentia: "A vida espiritual e pastoral do sacerdote, como a dos seus irmãos leigos e religiosos, depende, na sua qualidade e no seu fervor, da prática pessoal assídua e conscienciosa do sacramento da Penitência. A celebração da Eucaristia e o ministério dos outros sacramentos, o zelo pastoral, o relacionamento com os fiéis, a comunhão com os irmãos no sacerdócio, a colaboração com o Bispo, a vida de oração, numa palavra, toda a existência sacerdotal sofre uma inexorável decadência, caso lhe venha a faltar, por negligência ou por qualquer outro motivo, o recurso periódico e inspirado por uma verdadeira fé e devoção ao sacramento da Penitência. Num sacerdote que deixasse de se confessar ou se confessasse mal, o seu ser padre e o exercício do seu sacerdócio bem cedo ressentir-se-iam, e disso se daria conta a própria comunidade da qual ele é pastor" (70).

Enfim, o sacerdote é chamado a reviver a autoridade e o serviço de Jesus Cristo Cabeça e Pastor da Igreja, animando e guiando a comunidade eclesial, ou seja, "reunindo a família de Deus como fraternidade animada na unidade", conduzindo-a ao Pai "por meio de Cristo no Espírito Santo" (71). Este "munus regendi" é tarefa muito delicada e complexa, que inclui, para além da atenção às pessoas singulares e às diferentes vocações, a capacidade de coordenar todos os dons e carismas que o Espírito suscita na comunidade, verificando-os e valorizando-os para a edificação da Igreja, sempre em união com os Bispos. Trata-se de um ministério que requer do sacerdote uma vida espiritual intensa, rica daquelas qualidades e virtudes típicas da pessoa que "preside" e "guia" uma comunidade, do "ancião" no sentido mais nobre e rico do termo: a fidelidade, a coerência, a sapiência, o acolhimento de todos, a afável bondade, a autorizada firmeza quanto às coisas essenciais, a libertação de pontos de vista demasiado subjectivos, o desprendimento pessoal, a paciência, o gosto pela tarefa diária, a confiança no trabalho escondido da graça que se manifesta nos simples e nos pobres (cf. Tt 1,7-8).

(66) Cf. Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 4-6 PO 13.
(67) Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, (8 de Dezembro de 1975), EN 15: l. c., 13-15.
(68) Cf. Const. dogm. sobre a Divina Revelação Dei verbum, DV 8 DV 10.
(69) Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 5.
(70) Exort. Ap. Pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro de 1984) RP 31, VI: AAS77 (1985) 265-266.
(71) Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 6.


A existência sacerdotal e a radicalidade evangélica

27 "O Espírito do Senhor está sobre mim" (Lc 4,18).O Espírito Santo, infundido pelo sacramento da Ordem, é fonte de santidade e apelo à santificação, não só porque configura o sacerdote a Cristo Cabeça e Pastor da Igreja e lhe confia a missão profética, sacerdotal e régia a desempenhar em nome e na pessoa de Cristo, mas também porque anima e vivifica a sua existência quotidiana, enriquecendo-a com dons e exigências, com virtudes e impulsos, que se compendiam na caridade pastoral. Esta é a síntese unificante dos valores e virtudes evangélicas e simultaneamente a força que sustenta o seu desenvolvimento até à perfeição cristã (72).

Para todos os cristãos, sem exclusão de ninguém, a radicalidade evangélica é uma exigência fundamental e irrecusável, que brota do apelo de Cristo a segui-Lo e imitá-Lo, em virtude da íntima comunhão de vida com Ele operada pelo Espírito (cf. Mt 8,18-27 Mt 10,37-42 Mc 8,34-38 Mc 10,17-21 Lc 9,57-62). Essa mesma exigência, com maior razão, se põe aos sacerdotes, não só porque estão na Igreja, mas também porque se encontram à frente da Igreja, enquanto configurados a Cristo Cabeça e Pastor, habilitados e comprometidos com o ministério ordenado, e vivificados pela caridade pastoral. Ora, no âmbito e como manifestação da radicalidade evangélica, encontra-se um rico florescimento de múltiplas virtudes e exigências éticas que se tornam decisivas para a vida pastoral e espiritual do sacerdote, como, por exemplo, a fé, a humildade perante o mistério de Deus, a misericórdia e a prudência. Expressão privilegiada da radicalidade são os diversos "conselhos evangélicos", que Jesus propõe no Sermão da Montanha (cf. Mt Mt 5-7), e, entre estes, os conselhos, intimamente coordenados entre si, da obediência, pobreza e castidade (73): o sacerdote é chamado a vivê-los segundo as modalidades, e mais profundamente segundo as finalidades e significado original, que derivam e exprimem a identidade própria do presbítero.

(72) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 42.
(73) Cf. Propositio 9.



28 "Entre as virtudes que se afiguram mais necessárias no ministério dos presbíteros, convém recordar aquela disposição de ânimo pela qual estão sempre prontos a procurar não a própria vontade, mas a d'Aquele que os enviou (cf. Jn 4,34 Jn 5,30 Jn 6,38)" (74). Trata-se da obediênciaque, no caso da vida espiritual do sacerdote, reveste algumas características particulares.

É, antes de mais, uma obediência "apostólica", no sentido que reconhece, ama e serve a Igreja na sua estrutura hierárquica. Não existe, efectivamente ministério sacerdotal senão na comunhão com o Sumo Pontífice e com o Colégio Episcopal, e de uma forma particular com o próprio Bispo diocesano, aos quais se deve guardar "o filial respeito e a obediência" prometidos no rito da ordenação. Esta "submissão" a quantos estão investidos da autoridade eclesial não tem nada de humilhante, antes deriva da liberdade responsável do presbítero, que acolhe não só as exigências de uma vida eclesial orgânica e organizada, mas também aquela graça de discernimento e de responsabilidade nas decisões eclesiais, que Jesus garantiu aos apóstolos e seus sucessores, a fim de ser conservado com fidelidade o mistério da Igreja e para que a coesão da comunidade cristã seja servida no seu unitário caminho para a salvação.

A obediência cristã autêntica, rectamente motivada e vivida sem servilismos, ajuda o presbítero a exercitar com evangélica transparência a autoridade que lhe é confiada perante o Povo de Deus: sem autoritarismos ou preferências demagógicas. Só quem sabe obedecer em Cristo, sabe como requerer, segundo o Evangelho, a obediência de outrem.

A obediência presbiteral reveste, além disso, uma exigência "comunitária": não se trata da obediência de um indivíduo singular que como tal se relaciona com a autoridade, mas pelo contrário, de uma obediência profundamente inserida na unidade do presbitério que, como tal, é chamado a viver a colaboração harmoniosa com o Bispo e, por meio dele, com o Sucessor de Pedro (75).

Este aspecto da obediência do sacerdote requer uma notável ascese, seja no sentido de um hábito a não se prender demasiado às próprias preferências ou a pontos de vista particulares, seja na linha de deixar espaço aos irmãos no sacerdócio para que possam valorizar os seus talentos e capacidades, fora de qualquer ciúme, inveja ou rivalidade. A do sacerdote é uma obediência vivida em comum, que parte da pertença a um único presbitério e que, sempre no interior dele e com ele, exprime orientações e opções corresponsáveis.

Finalmente, a obediência sacerdotal possui um particular carácter de "pastoralidade".A saber, vive-se num clima de constante disponibilidade para se deixar agarrar, como que "devorar", pelas necessidades e exigências do rebanho. Estas últimas devem revestir uma justa racionalidade, e por vezes terão de ser seleccionadas e sujeitas a controle, mas é inegável que a vida do presbítero é "ocupada" de modo pleno pela fome de Evangelho, de fé, de esperança e de amor de Deus, e do seu mistério, a qual mais ou menos conscientemente está presente no Povo de Deus a ele confiado.

(74) Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 15.
(75) Cf. Ibid. PO 15



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