Pastores dabo vobis PT 29


29 Entre os conselhos evangélicos - diz o Concílio - "brilha este precioso dom da graça divina, dado pelo Pai a alguns (cf. Mt Mt 19,11 1Co 7,7), de se dedicarem unicamente a Deus, mais facilmente e com um coração indiviso (cf. 1Co 7,32-34), na virgindade e no celibato. Esta continência perfeita pelo Reino dos céus foi sempre tida em grande estima pela Igreja, como sinal e incentivo da caridade e como fonte privilegiada de fecundidade espiritual no mundo" (76). Na virgindade e no celibato, a castidade mantém o seu significado originário, o de uma sexualidade humana vivida como autêntica manifestação e precioso serviço ao amor de comunhão e de entrega interpessoal. Este mesmo significado subsiste plenamente na virgindade, que realiza, mesmo na renúncia ao matrimónio, o "significado nupcial" do corpo mediante uma comunhão e uma entrega pessoal a Jesus Cristo e à Igreja, que prefiguram e antecipam a comunhão e entrega perfeita e definitiva do além: "Na virgindade o homem está inclusive corporalmente em atitude de espera das núpcias escatológicas de Cristo com a Igreja, dando-se integralmente à Igreja na esperança de que Cristo a ela se entregue na plena verdade da vida eterna" (77).

A esta luz se podem compreender facilmente e apreciar melhor os motivos da opção multissecular que a Igreja do Ocidente tomou e manteve, não obstante todas as dificuldades e objecções surgidas ao longo dos séculos, de conferir a Ordem presbiteral apenas a homens que dêem provas de serem chamados por Deus ao dom da castidade no celibato absoluto e perpétuo.

Os Padres sinodais exprimiram com força e clareza o seu pensamento através de uma importante declaração, que merece ser integral e literalmente referida: "Sem pôr em causa a disciplina das Igrejas Orientais, o Sínodo, convicto de que a castidade perfeita no celibato sacerdotal é um carisma, recorda aos presbíteros que ela constitui um inestimável dom de Deus à Igreja e representa um valor profético para o mundo actual. Este Sínodo, nova e veementemente, afirma tudo quanto a Igreja latina e alguns ritos orientais preconizam, a saber, que o sacerdócio seja conferido somente àqueles homens que receberam de Deus o dom da vocação à castidade celibatária (sem prejuízo da tradição de algumas Igrejas Orientais e dos casos particulares de clérigos já casados provenientes de conversões ao catolicismo, ao qual se aplica a excepção prevista na Encíclica de Paulo VI sobre o celibato sacerdotal, nº 42). O Sínodo não quer deixar dúvidas na mente de ninguém sobre a firme vontade da Igreja de manter a lei que exige o celibato livremente escolhido e perpétuo para os candidatos à ordenação sacerdotal no rito latino. O Sínodo solicita que o celibato seja apresentado e explicado na sua plena riqueza bíblica, teológica e espiritual, como dom precioso de Deus à sua Igreja e como sinal do Reino que não é deste mundo, sinal também do amor de Deus por este mundo e ainda do amor indiviso do sacerdote a Deus e ao Seu povo, de modo que o celibato seja visto como enriquecimento positivo do sacerdócio" (78).

é particularmente importante que o sacerdote compreenda a motivação teológica da lei eclesiástica do celibato. Enquanto lei, exprime a vontade da Igreja, antes mesmo que seja expressa a vontade do sujeito através da sua disponibilidade. Mas a vontade da Igreja encontra a sua motivação última na conexão que o celibato tem com a Ordenação sagrada, a qual configura o sacerdote a Cristo Jesus, Cabeça e Esposo da Igreja. Esta como Esposa de Cristo quer ser amada pelo sacerdote do modo total e exclusivo com que Jesus Cristo Cabeça e Esposo a amou. O celibato sacerdotal, é então, o dom de si em e com Cristo à sua Igreja e exprime o serviço do presbítero à Igreja no e com o Senhor.

Para uma adequada vida espiritual do sacerdote, é preciso que o celibato seja considerado e vivido não como um elemento isolado ou puramente negativo, mas como um aspecto de orientação positiva, específica e característica do sacerdote: este, deixando pai e mãe, segue Jesus Bom Pastor, numa comunhão apostólica ao serviço do Povo de Deus. O celibato é, portanto, para ser acolhido por uma livre e amorosa decisão a renovar continuamente, como dom inestimável de Deus, como "estímulo da caridade pastoral" (79), como singular participação na paternidade de Deus e na fecundidade da Igreja, e como testemunho do Reino escatológico perante o mundo. Para viver todas as exigências morais, pastorais e espirituais do celibato sacerdotal, é absolutamente necessária a oração humilde e confiante, como adverte o Concílio: "No mundo de hoje, quanto mais a continência perfeita é considerada impossível por tantas pessoas, com tanta maior humildade e perseverança devem os presbíteros implorar, juntamente com a Igreja, a graça da fidelidade que nunca é negada a quem a requer, recorrendo ao mesmo tempo aos meios sobrenaturais e naturais de que todos dispõem" (80). Será ainda a oração, unida aos sacramentos da Igreja e ao empenhamento ascético, a infundir esperança nas dificuldades, confiança e coragem no retomar o caminho.

(76) Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 42.
(77) Exort. Ap. Familiares consortio, FC 16: AAS 74 (1982) 98.
(78) Propositio 11.
(79) Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 16.
(80) Ibid. PO 16



30 Da pobreza evangélica deram os Padres sinodais uma descrição concisa e profunda, apresentando-a como "submissão de todos os bens ao Bem supremo de Deus e do Seu Reino" (81). Na realidade, só quem contempla e vive o mistério de Deus como único e sumo Bem, como verdadeira e definitiva Riqueza, pode compreender e realizar a pobreza, que não é certamente desprezo e recusa dos bens materiais, mas é uso grato e cordial destes bens e conjuntamente uma alegre renúncia a eles com grande liberdade interior, ou seja, em ordem a Deus e aos seus desígnios.

A pobreza do presbítero, por força da sua configuração sacramental a Cristo Cabeça e Pastor, assume precisas conotações pastorais, sobre as quais, retomando e desenvolvendo a doutrina conciliar (82), se detiveram os Padres sinodais. Entre outras coisas, escrevem: "Os sacerdotes, a exemplo de Cristo que, rico como era, se fez pobre por nosso amor (cf.
2Co 8,9), devem considerar os pobres e os mais fracos como a eles confiados de uma maneira especial, e devem ser capazes de testemunhar a pobreza com uma vida simples e austera, sendo já habituados a renunciar generosamente às coisas supérfluas (Optatam totius OT 9 C.I.C, cán. CIC 282)" (83).

é verdade que o "operário é digno do seu salário" (Lc 10,7) e que "o Senhor determinou que aqueles que anunciam o Evangelho vivam do Evangelho" (1Co 9,14), mas é também verdade que este direito do apostolado não pode de forma alguma confundir-se com qualquer pretensão de submeter o serviço do Evangelho e da Igreja às vantagens e interesses que daí possam derivar. Só a pobreza assegura ao presbítero a disponibilidade para ser enviado onde o seu trabalho se torna mais útil e urgente, mesmo com sacrifício pessoal. É condição e premissa indispensável para a docilidade do apóstolo ao Espírito, que o torna pronto a "ir" sem laços nem amarras, seguindo apenas a vontade do Mestre (cf. Lc Lc 9,57-62 Mc 10,17-22).

Pessoalmente inserido na vida da comunidade e responsável por ela, o sacerdote deve dar também o testemunho de uma total "transparência" na administração dos bens da própria comunidade, que ele jamais deve tratar como se fossem património próprio, mas como algo de que deve dar contas a Deus e aos irmãos, sobretudo aos pobres. A consciência de pertencer a um presbitério, impulsionará depois o sacerdote no desempenho de favorecer seja uma distribuição mais equitativa dos bens entre os irmãos no sacerdócio, seja mesmo uma certa comunhão de bens (cf. Act Ac 2,42-47).

A liberdade interior, que a pobreza evangélica guarda e alimenta, habilita o padre a estar ao lado dos mais débeis, a tornar-se solidário com os seus esforços pela construção de uma sociedade mais justa, a ser mais sensível e capaz de compreensão e discernimento dos fenómenos que dizem respeito ao aspecto económico e social da vida, a promover a opção preferencial pelos pobres: esta, sem excluir ninguém do anúncio e do dom da salvação, sabe inclinar-se perante os simples, os pecadores, os marginalizados de qualquer espécie, de acordo com o modelo oferecido por Jesus no desenvolvimento do seu ministério profético e sacerdotal (cf. Lc 4,18).

Não deve ser esquecido também o significado profético da pobreza sacerdotal, particularmente urgente no seio de sociedades opulentas e consumistas: " O sacerdote verdadeiramente pobre é certamente um sinal concreto do desprendimento, da renúncia e da não submissão à tirania do mundo contemporâneo que coloca toda a sua confiança no dinheiro e na segurança material" (84).

Jesus Cristo, que na cruz leva à perfeição a sua caridade pastoral por um abissal despojamento interior e exterior, é o modelo e a fonte das virtudes da obediência, castidade e pobreza, que o presbítero é chamado a viver como expressão do seu amor pastoral pelos irmãos. De acordo com o que Paulo escreve aos cristãos de Filipos, o sacerdote deve possuir os mesmos sentimentos de Jesus Cristo, despojando-se do seu próprio "eu" para encontrar, na caridade obediente, casta e pobre, a via mestra da união com Deus e da unidade com os irmãos (cf. Ph 2,5).

(81) Propositio 8.
(82) Cf. Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 17.
(83) Propositio 10.
(84) Ibid.


A pertença e a dedicação à Igreja particular

31 Como toda a vida espiritual autenticamente cristã, também a vida do sacerdote possui umaessencial e irrenunciável dimensão eclesial: é participação na santidade da própria Igreja, que no Credo professamos como "Comunhão dos Santos". A santidade do cristão deriva da da Igreja, exprime-a e ao mesmo tempo enriquece-a. Esta dimensão eclesial reveste modalidades, finalidades e significados particulares na vida espiritual do presbítero, em virtude da sua relação específica com a Igreja, sempre a partir da sua configuração a Cristo Cabeça e Pastor, do seu ministério ordenado, da sua caridade pastoral.

Nesta perspectiva, é preciso considerar como valor espiritual do presbítero a sua integração e dedicação a uma Igreja particular. Estas, na verdade, não são motivadas apenas por razões organizativas e disciplinares. Pelo contrário, o relacionamento com o Bispo no único presbitério, a partilha da sua solicitude eclesial, a dedicação ao cuidado evangélico do Povo de Deus, nas concretas condições históricas e ambientais da Igreja particular são elementos de que não se pode prescindir ao delinear o perfil próprio do sacerdote e da sua vida espiritual. Neste sentido, a "incardinação" não se esgota num vínculo puramente jurídico, mas comporta uma série de atitudes e opções espirituais e pastorais que contribuem para conferir uma fisionomia específica à figura vocacional do presbítero.

é necessário que o sacerdote tenha a consciência de que o seu "estar numa Igreja particular" constitui por natureza um elemento qualificante para viver uma espiritualidade cristã. Nesse sentido, o presbítero encontra, precisamente na sua pertença e dedicação à Igreja particular, uma fonte de significados, de critérios de discernimento e acção, que configuram quer a sua missão pastoral quer a sua vida espiritual.

Para o caminho da perfeição podem contribuir também outras inspirações ou a referência a outras tradições de vida espiritual, capazes de enriquecer a vida espiritual dos presbíteros e de dotar o presbitério de preciosos dons espirituais. É este o caso de muitas agregações eclesiais antigas e modernas, que no seu âmbito acolhem também sacerdotes: das sociedades de vida apostólica aos institutos seculares presbiterais, das várias formas de comunhão e partilha espiritual aos movimentos eclesiais. Os sacerdotes, que pertencem a ordens e congregações religiosas, são uma riqueza espiritual para todo o presbitério diocesano, ao qual proporcionam o contributo de carismas específicos e ministérios qualificados, estimulando com a sua presença a Igreja particular a viver mais intensamente a sua abertura universal (85).

A pertença do sacerdote à Igreja particular e a sua dedicação até ao dom da própria vida pela edificação da Igreja "na pessoa" de Cristo Cabeça e Pastor, ao serviço de toda a comunidade cristã, em cordial e filial referência ao Bispo, deve air reforçada na assunção de qualquer carisma que venha a fazer parte da existência sacerdotal ou se coloque a seu lado (86).

Para que a abundância dos dons do Espírito seja acolhida na alegria e feita frutificar para a glória de Deus e para o bem da Igreja inteira, exige-se da parte de todos, em primeiro lugar, o conhecimento e o discernimento dos carismas próprios e de outrem, e o seu exercício sempre acompanhado pela humildade cristã, pela coragem da autocrítica, pela intenção, predominante sobre qualquer outra preocupação de contribuir para a edificação da inteira comunidade, a cujo serviço está posto todo e qualquer carisma particular. Requer-se, portanto, de todos um sincero esforço de recíproca estima, de mútuo respeito e de coordenada valorização de todas as positivas e legítimas diversidades presentes no presbitério. Tudo isto faz parte também da vida espiritual e da contínua ascese do sacerdote.

(85) Cf. Congr.para os Religiosos e os Institutos Seculares e Congr. para os Bispos, Notas directivas para as mútuas relações entre os bispos e os religiosos na Igreja Mutuae relationes (14 de Maio de 1978), 18: AAS 70 (1978) 484-485.
(86) Cf. Propositio 25; 38.



32 A pertença e a dedicação à Igreja particular não confinam a esta, a actividade e a vida do sacerdote: não podem, de facto, ser confinadas, pela própria natureza quer da Igreja particular, (87), quer do ministério sacerdotal. A este respeito, diz o Concílio: "O dom espiritual que os presbíteros receberam na ordenação não os prepara para uma missão limitada e restrita, mas sim para a imensa e universal missão da salvação 'até aos confins da terra' (Ac 1,8); de facto, todo o ministério sacerdotal participa da mesma amplitude universal da missão confiada por Cristo aos apóstolos" (88).

Daqui se conclui que a vida espiritual dos padres deve estar profundamente assinalada pelo anseio e pelo dinamismo missionário. Compete-lhes, no exercício do ministério e no testemunho de vida, plasmar a comunidade a eles confiada como comunidade autenticamente missionária. Como escrevi na Encíclica Redemptoris missio, "todos os sacerdotes devem ter um coração e uma mentalidade missionária, devem estar abertos às necessidades da Igreja e do mundo, atentos aos mais afastados e, sobretudo, aos grupos não cristãos do próprio ambiente. Na oração e, em particular, no sacrifício eucarístico, sintam a solicitude de toda a Igreja por toda a humanidade" (89).

Se este espírito missionário animar generosamente a vida dos sacerdotes, aparecerá facilitada a resposta àquela exigência cada vez mais grave hoje na Igreja, que nasce de uma desigual distribuição do clero. Neste sentido, já o Concílio foi suficientemente preciso e incisivo: "Tenham presente os presbíteros que devem tomar a peito a solicitude por todas as Igrejas. Para tal, os presbíteros daquelas dioceses que possuem maior abundância de vocações mostrem-se de boa vontade preparados para, com o prévio consentimento ou convite do próprio Ordinário, exercer o seu ministério nas regiões, missões ou obras que sofram escassez de clero" (90).

(87) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 23.
(88) Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 10; cf. Propositio12.
(89) Cart. Enc. Redemptoris missio, (7 de Dezembro de 1990), RMi 67: AAS 83 (1991), 315-316.
(90) Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 10.


"Renova neles a efusão do Teu Espírito de santidade"

33 "O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso me consagrou e me enviou a anunciar aos pobres a Boa Nova" (Lc 4,18). Jesus faz ressoar ainda hoje, no nosso coração de sacerdotes, as palavras que pronunciou na sinagoga de Nazaré. A nossa fé, de facto, revela-nos a presença operante do Espírito de Cristo no nosso ser, no nosso agir e no nosso viver tal como o configurou, habilitou e plasmou o sacramento da Ordem.

Sim, o Espírito do Senhor é o grande protagonista da nossa vida espiritual. Ele cria o "coração novo", anima e guia-o com a "nova lei" da caridade, da caridade pastoral. No desenvolvimento da vida espiritual, é fundamental a consciência de que nunca falta ao sacerdote a graça do Espírito Santo, como dom totalmente gratuito e tarefa responsabilizadora. A consciência do dom infunde e sustém a inabalável confiança do padre nas dificuldades, nas tentações, nas fraquezas que se encontram no seu caminho espiritual.

Reproponho a todos os sacerdotes aquilo que já numa outra ocasião disse a muitos deles: "a vocação sacerdotal é essencialmente uma chamada à santidade na forma que nasce do sacramento da Ordem. A santidade é intimidade com Deus, é imitação de Cristo pobre, casto e humilde; é amor sem reserva às almas e entrega pelo seu próprio bem; é amor à Igreja que é santa e nos quer santos, porque assim é a missão que Cristo lhe confiou. Cada um de vós deve ser santo também para ajudar os irmãos a seguir a sua vocação à santidade.

Como não reflectir (...) sobre o papel essencial que o Espírito Santo desempenha na específica chamada à santidade, que é própria do ministério sacerdotal? Recordemos as palavras do rito da ordenação sacerdotal que são consideradas centrais na fórmula sacramental: 'Concedei, Pai Omnipotente a estes vossos filhos a dignidade do presbiterado. Renovai neles a efusão do vosso Espírito de santidade; cumpram fielmente, Senhor, o ministério do segundo grau sacerdotal de Vós recebido e com o seu exemplo guiem a todos para uma íntegra conduta de vida'.

Mediante a Ordenação, caríssimos, recebestes o mesmo Espírito de Cristo que vos torna semelhantes a Ele, a fim de que possais agir em seu nome e viver em vós os seus próprios sentimentos. Esta comunhão íntima com o Espírito de Cristo, enquanto garante a eficácia da acção sacramental que vós realizais "in persona Christi", exige também exprimir-se no fervor da oração, na caridade pastoral de um ministério incansavelmente orientado para a salvação dos irmãos. Requer, numa palavra, a vossa santificação pessoal" (91).

(91) Homilia a 5.000 sacerdotes vindos de todo o mundo (9 de outubro de 1984): Insegnamenti, VIII/2 (1984) 839.


CAPÍTULO IV

VINDE VER


A vocação sacerdotal na pastoral da Igreja


Procurar, seguir, permanecer

34 "Vinde ver" (Jn 1,39). Desta forma responde Jesus aos dois discípulos de João Baptista, que lhe perguntavam onde habitava. Nestas palavras, encontramos o significado da vocação.

Eis como o evangelista narra o chamamento de André e de Pedro: "No dia seguinte, João estava ainda lá com dois dos seus discípulos e, lançando o olhar para Jesus que passava, disse: 'Eis o Cordeiro de Deus!'. E os dois discípulos ouvindo-o falar daquela maneira, seguiram Jesus. Jesus voltou-se então e, vendo que o seguiam, disse: 'Que procurais?' Responderam-lhe: 'Rabbi, (que significa Mestre) onde moras?' Disse-lhes: 'Vinde ver'. Foram então e viram onde morava e permaneceram com Ele naquele dia. Era pelas quatro horas da tarde.

Um dos dois que tinham escutado as palavras de João e que O tinham seguido era André, irmão de Simão Pedro. Encontrou em primeiro lugar o seu irmão Simão e disse-lhe: 'Encontrámos o Messias (que significa Cristo)' e levou-o a Jesus. Jesus, fixando nele o olhar disse: 'Tu és Simão, filho de João. Chamar-te-ás Cefas (que quer dizer Pedro')" (Jn 1,35-42).

Esta página do Evangelho é uma das muitas da Sagrada Escritura onde se descreve o "mistério" da vocação, no nosso caso o mistério da vocação para ser apóstolo de Jesus. A página de São João, que tem também um significado para a vocação cristã enquanto tal, reveste um valor emblemático no caso da vocação sacerdotal. A Igreja, comunidade dos discípulos de Jesus, é chamada a fixar o seu olhar sobre esta cena que, de certo modo, se renova continuamente na história. É convidada a aprofundar o sentido original e pessoal da vocação para o seguimento de Cristo no ministério sacerdotal e o laço indissociável entre a graça divina e a responsabilidade humana, encerrado e revelado nos dois termos que mais vezes encontramos no Evangelho: vem e segue-me (cf. Mt Mt 19,21). É solicitada a decifrar e a percorrer o dinamismo próprio da vocação, o seu desenvolvimento gradual e concreto nas fases do procurar Jesus, do segui-Lo e do permanecer com Ele.

A Igreja identifica neste "Evangelho da vocação" o paradigma, a força e o impulso da sua pastoral vocacional, ou seja, da sua missão destinada a cuidar do nascimento, discernimento e acompanhamento das vocações, particularmente das vocações ao sacerdócio. Precisamente porque "a falta de sacerdotes é por certo a tristeza de cada Igreja" (92), a pastoral vocacional exige, sobretudo hoje, ser assumida com um novo, vigoroso e mais decidido compromisso por parte de todos os membros da Igreja, na consciência de que aquela não é um elemento secundário ou acessório, nem um momento isolado ou sectorial, quase uma simples "parte", ainda que relevante, da pastoral global da Igreja: é sim, como repetidamente afirmaram os Padres sinodais, uma actividade intimamente inserida na pastoral geral de cada Igreja (93), um cuidado que deve ser integrado e plenamente identificado com a "cura de almas" dita ordinária, (94) a, uma dimensão conatural e essencial da pastoral da Igreja, ou seja, da sua vida e da sua missão (95).

Sim, a dimensão vocacional é conatural e essencial à pastoral da Igreja. A razão está no facto de que a vocação define, em certo sentido, o ser profundo da Igreja, ainda antes do seu operar. No próprio nome da Igreja, Ecclesia, está indicada a sua íntima fisionomia vocacional, porque ela é verdadeiramente "convocação", assembleia dos chamados: "A todos aqueles que olham com fé para Jesus, como autor da salvação e princípio da unidade e da paz, Deus convocou-os e constituiu com eles a Igreja, para que seja para todos e cada um o sacramento visível desta unidade salvífica"(96).

Uma leitura propriamente teológica da vocação sacerdotal e da pastoral que lhe diz respeito pode brotar apenas da leitura do mistério da Igreja como mysterium vocationis.

(92) Discurso final ao Sínodo (27 de Outubro de 1990), 5: l. c.
(93) Cf. Propositio 6.
(94) Cf. Propositio 13.
(95) Cf. Propositio 4.
(96) Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 9.


A Igreja e o dom da vocação

35 Cada vocação cristã encontra o seu fundamento na eleição prévia e gratuita por parte do Pai ,"que nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais nos céus em Cristo. Nele nos escolheu antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença na caridade, predestinando-nos para sermos seus filhos adoptivos por Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade" (Ep 1,3-5).

Toda a vocação cristã vem de Deus, é dom divino. Todavia, ela nunca é oferecida fora ou independentemente da Igreja, mas passa sempre na Igreja e mediante a Igreja, porque, como nos recorda o Concílio Vaticano II, "aprouve a Deus santificar e salvar os homens, não individualmente, e excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo, que O conhecesse na verdade e santamente O servisse" (97).

A Igreja não só abarca em si todas as vocações que Deus lhe oferece, no seu caminho de salvação, mas ela própria se configura como mistério de vocação, qual luminoso e vivo reflexo do mistério da Santíssima Trindade. Na realidade, a Igreja, "povo reunido pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo" (98), leva em si o mistério do Pai que, não chamado nem enviado por ninguém (cf. Rom Rm 11,33-35), a todos chama a santificar o Seu nome e a cumprir a Sua vontade; guarda em si o mistério do Filho que é chamado e enviado pelo Pai a anunciar a todos o Reino de Deus e que a todos chama ao seu seguimento; é depositária do mistério do Espírito Santo que consagra para a missão aqueles que o Pai chama mediante o Seu Filho Jesus Cristo.

Deste modo a Igreja, que por inata constituição é "vocação", é geradora e educadora de vocações. é-o no seu ser de "sacramento", enquanto "sinal" e "instrumento" no qual ressoa e se realiza a vocação de cada cristão; é-o no seu operar, ou seja, no desempenho do seu ministério de anúncio da Palavra, de celebração dos Sacramentos e de serviço e testemunho da Caridade.

Agora pode-se compreender a essencial dimensão eclesial da vocação cristã: ela não só deriva "da" Igreja e da sua mediação, não só se faz reconhecer e realiza "na" Igreja, mas se configura - no fundamental serviço a Deus - também e necessariamente como serviço "à" Igreja. A vocação cristã, em qualquer das suas formas, é um dom destinado à edificação da Igreja, ao crescimento do Reino de Deus no mundo (99).

O que dizemos de todas as vocações cristãs encontra uma realização específica na vocação sacerdotal: esta é chamada, através do sacramento da Ordem, recebido na Igreja, a pôr-se ao serviço do Povo de Deus com uma peculiar pertença e configuração a Jesus Cristo e com a autoridade de actuar "no nome e na pessoa" d'Ele, Cabeça e Pastor da Igreja.

Nesta perspectiva, se entende o que dizem os Padres sinodais: "A vocação de cada sacerdote subsiste na Igreja e para a Igreja: para ela se realiza uma semelhante vocação. Daqui se segue que cada presbítero recebe a vocação do Senhor, através da Igreja, como um dom gratuito, uma gratia gratis data (charisma).Pertence ao Bispo ou ao Superior competente não só submeter a exame a idoneidade e a vocação do candidato, mas também reconhecê-la. Esta dimensão eclesiástica é inerente à vocação para o ministério presbiteral como tal. O candidato ao presbiterado deve receber a vocação, não impondo as próprias condições pessoais, mas aceitando as normas e as condições que a própria Igreja, pela sua parte de responsabilidade, coloca" (100).

(97) Ibid. LG 9
(98) S Cipriano, De dominica Oratione, 23: CCL 3/A, 105.
(99) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, AA 3.
(100) Propositio 5.


O diálogo vocacional: a iniciativa de Deus e a resposta do homem

36 A história de cada vocação sacerdotal, como aliás de qualquer outra vocação cristã, é a história de um inefável diálogo entre Deus e o homem, entre o amor de Deus que chama e a liberdade do homem que no amor responde a Deus. Estes dois aspectos indissociáveis da vocação, o dom gratuito de Deus e a liberdade responsável do homem, emergem de modo tão extraordinário quanto eficaz das brevíssimas palavras com as quais o evangelista Marcos apresenta a vocação dos Doze: Jesus "subiu depois ao monte, chamou a si aqueles que quis e eles foram ter com Ele" (Mc 3,13). De um lado está a decisão absolutamente livre de Jesus, do outro o "ir" dos doze, ou seja, o "seguir" Jesus.

é este o paradigma constante, o dado irrecusável de cada vocação: a dos profetas, a dos apóstolos, dos sacerdotes, dos religiosos, dos leigos, de toda e qualquer pessoa.

Mas inteiramente prioritária, mais, prévia e decisiva é a intervenção livre e gratuita de Deus que chama. A iniciativa do chamamento pertence a Ele. É esta, por exemplo, a experiência do profeta Jeremias: "Foi-me dirigida a Palavra do Senhor: 'Antes de te formares no ventre materno, eu te conhecia, antes que viesses à luz eu te tinha consagrado; constituí-te profeta das nações'" (Jr 1,4-5). É a mesma verdade apresentada pelo apóstolo Paulo que fundamenta toda a vocação na eterna eleição de Cristo, levada a cabo "antes da criação do mundo" e "segundo o beneplácito da sua vontade" (Ep 1,5). O absoluto primado da graça na vocação encontra a sua perfeita proclamação na palavra de Jesus: "Não fostes vós que Me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos estabeleci para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça" (Jn 15,16).

Se a vocação sacerdotal testemunha de modo inequívoco o primado da graça, a livre e soberana decisão de Deus de chamar o homem exige absoluto respeito, não pode de modo algum ser forçada por qualquer pretensão humana, não pode ser substituída por qualquer decisão humana. A vocação é um dom da graça divina e jamais um direito do homem, da mesma forma que "não se pode considerar a vida sacerdotal como uma promoção simplesmente humana, nem a missão do ministro como um simples projecto pessoal" (101). Fica assim radicalmente excluída qualquer vaidade ou presunção dos chamados (cf. Heb He 5,4-5). Todo o espaço espiritual do seu coração é tomado por uma maravilhada e comovida gratidão, por uma confiança e esperança inabaláveis, porque os chamados sabem que estão assentes não nas próprias forças, mas sobre a incondicional fidelidade de Deus que chama.

"Chamou aqueles que quis e estes foram ter com Ele" (Mc 3,1). Este "ir", que se identifica com o "seguir" Jesus, exprime a resposta livre dos Doze ao chamamento do Mestre. Foi assim o caso de Pedro e de André: "E disse-lhes: 'segui-me e farei de vós pescadores de homens'. E eles, imediatamente deixando as redes, seguiram-no" (Mt 4,19-20). Idêntica foi a experiência de Tiago e João (cf. Mt Mt 4,21-22). É sempre assim: na vocação, resplandece conjuntamente o amor gratuito de Deus e a exaltação mais alta possível da liberdade do homem - a da adesão ao chamamento de Deus e do confiar-se a Ele.

Na realidade, graça e liberdade não se opõem entre si. Pelo contrário, a graça anima e sustenta a liberdade humana, livrando-a da escravidão do pecado (cf. Jo Jn 8,34-36), sanando e elevando-a na sua capacidade de abertura e de acolhimento do dom de Deus. E se não se pode atentar contra a iniciativa absolutamente gratuita de Deus que chama, também não pode atentar contra a extrema seriedade com que o homem é desafiado na sua liberdade. Assim, ao "vem e segue-me" de Jesus, o jovem rico opõe uma recusa, sinal - mesmo que negativo - da sua liberdade: "mas ele, entristecido por aquelas palavras, retirou-se abatido porque possuía muitos bens" (Mc 10,22).

A liberdade, portanto, é essencial à vocação, uma liberdade que na resposta positiva se qualifica como adesão pessoal profunda, como doação de amor, ou melhor, de reentrega ao Doador que é Deus que chama, como oblação. "O chamamento - dizia Paulo VI - avalia-se pela resposta. Não pode haver vocações que não sejam livres; se elas não forem realmente oferta espontânea de si mesmo, conscientes, generosas, totais (...) Oblações, digamos: aqui se encontra praticamente o verdadeiro problema (...) é a voz humilde e penetrante de Cristo que diz, hoje como ontem, e mais do que ontem: "vem!". A liberdade é colocada na sua base suprema: exactamente a da oblação, da generosidade, do sacrifício" (102).

A oblação livre que constitui o núcleo íntimo e mais precioso da resposta do homem a Deus que chama, encontra o seu incomparável modelo, mais, a sua raiz viva na libérrima oblação de Jesus Cristo, o primeiro dos chamados, à vontade do Pai: "Por isso, ao entrar no mundo, Cristo disse: 'Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas preparaste-me um corpo (...) Então eu disse: Eis que venho (...) para fazer, ó Deus, a tua vontade" (He 10,5-7).

Em íntima comunhão com Cristo, Maria, a Virgem Mãe, foi a criatura que, mais do que qualquer outra, viveu a plena verdade da vocação, porque ninguém como ela respondeu com um amor tão grande ao amor imenso de Deus (103).

(101) Angelus (3 de Dezembro de 1989), 2: Insegnamenti, XII/2 (1989) 1417.
(102) Mensagem para a V Jornada mundial de Oração pelas vocações sacerdotais (19 de Abril de 1968): Insegnamenti, VI (1968), 134-135.
(103) Cf. Propositio 5.



Pastores dabo vobis PT 29