Pastores dabo vobis PT 37


37 "Mas ele, entristecido por aquelas palavras, retirou-se angustiado porque possuía muitos bens" (Mc 10,22). O jovem rico do Evangelho, que não segue o chamamento de Jesus recorda-nos os obstáculos que podem bloquear ou apagar a resposta livre do homem: não apenas os bens materiais podem fechar o coração humano aos valores do espírito e às radicais exigências do Reino de Deus, mas também algumas condições sociais e culturais do nosso tempo podem constituir não poucas ameaças e impor visões distorcidas e falsas acerca da verdadeira natureza da vocação, tornando difícil, se não mesmo impossível, o seu acolhimento e a sua própria compreensão.

Muitos possuem de Deus uma idéia tão genérica e confusa a ponto de se perderem em formas de religiosidade sem Deus, nas quais a vontade divina é concebida como um destino imutável e inelutável, face ao qual o homem nada mais pode fazer que se adequar e resignar-se com plena passividade. Mas não é este o rosto de Deus que Jesus Cristo veio revelar-nos: Deus, de facto, é o Pai que com amor eterno e prévio chama o homem e o posiciona num diálogo maravilhoso e permanente com Ele, convidando-o a partilhar, como filho, a sua própria vida divina. É claro que, com uma visão errada de Deus, o homem nem sequer pode reconhecer a verdade de si mesmo, pelo que a vocação não pode ser reconhecida nem muito menos vivida no seu autêntico valor: pode quando muito ser sentida como um peso imposto e insuportável.

Também certas idéias incorrectas sobre o homem, frequentemente apoiadas em pretensos argumentos filosóficos ou "científicos", induzem-no por vezes a interpretar a própria existência e liberdade como totalmente determinadas e condicionadas por factores externos, de ordem educacional, psicológica, cultural ou ambiental. Outras vezes, a liberdade é entendida em termos de absoluta autonomia, pretende ser a única e incontestável fonte das opções pessoais, classifica-se como afirmação de si a todo o custo. Mas dessa forma se fecha o caminho para entender e viver a vocação como livre diálogo de amor, que nasce da comunicação de Deus ao homem e se conclui no dom sincero de si próprio.

No contexto actual, não falta ainda a tendência para pensar de modo individualista e intimista o relacionamento do homem com Deus, como se o chamamento de Deus atingisse cada pessoa directamente sem qualquer mediação comunitária, visando uma vantagem ou a própria salvação do indivíduo chamado e não a dedicação total a Deus no serviço da comunidade. Assim encontramos uma outra profunda e ao mesmo tempo subtil ameaça, que torna impossível reconhecer e aceitar com alegria a dimensão eclesial inscrita na origem em toda a vocação cristã, e na presbiteral de modo especial: de facto, como nos recorda o Concílio, o sacerdócio ministerial adquire o seu autêntico significado e realiza a plena verdade de si mesmo no servir e fazer crescer a comunidade cristã e o sacerdócio comum dos fiéis (104).

O contexto cultural recordado agora, cujo influxo não está ausente do meio dos próprios cristãos, e particularmente dos jovens, ajuda a compreender o difundir-se da crise das mesmas vocações sacerdotais, originada e acompanhada pela mais radical crise de fé. Declararam-no explicitamente os Padres sinodais, reconhecendo que a crise das vocações ao presbiterado tem profundas raízes no ambiente cultural e na mentalidade e práxis dos cristãos (105).

Daqui a urgência de que a pastoral vocacional da Igreja incida de modo decidido e prioritário na reconstrução da "mentalidade cristã", tal como é gerada e sustentada pela fé. É absolutamente necessária uma evangelização que não se canse de apresentar o verdadeiro rosto de Deus, o Pai que em Jesus Cristo chama cada um de nós, e o sentido genuíno da própria liberdade humana, qual princípio e força do dom responsável de si mesmo. Só dessa maneira serão colocadas as bases indispensáveis para que cada vocação, incluindo a sacerdotal, possa ser descoberta na sua verdade, amada na sua beleza e vivida com dedicação total e alegria profunda.

(104) Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 10; Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 12.
(105) Cf. Propositio 13.


Conteúdos e meios da pastoral vocacional

38 Certamente a vocação é um mistério imperscrutável, que coinvolve o relacionamento que Deus instaura com o homem na sua unicidade e irrepetibilidade, um mistério que deve ser percebido e sentido como um apelo que espera uma resposta nas profundezas da consciência, naquele "sacrário do homem onde ele se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser"(106). Mas isto não elimina a dimensão comunitária e especificamente eclesial da vocação: a Igreja está realmente presente e operante na vocação de cada sacerdote.

No serviço à vocação sacerdotal e ao seu itinerário, ou seja, no nascimento, discernimento, e acompanhamento da vocação, a Igreja pode encontrar um modelo em André, um dos dois primeiros discípulos que se puseram a seguir Jesus. É ele mesmo que conta ao irmão o que lhe acontecera: "Encontrámos o Messias (que significa Cristo)" (
Jn 1,41). E a narração desta descoberta abre o caminho para o encontro: "E levou-o a Jesus" (Jn 1,42). Não há dúvidas sobre a iniciativa absolutamente livre e sobre a decisão soberana de Jesus. É Jesus que chama Simão e lhe dá um nome novo: "Jesus fixando nele o olhar disse: 'Tu és Simão, filho de João; vais chamar-te Cefas (que quer dizer Pedro)'" (Jn 1,42). Mas André não deixou de ter a sua iniciativa: na verdade, solicitou o encontro do irmão com Jesus.

"E levou-o a Jesus". Está aqui, em certo sentido, o coração de toda a pastoral vocacional da Igreja, pela qual ela tem em atenção o nascimento e o crescimento das vocações, servindo-se dos dons e das responsabilidades, dos carismas e do ministério recebido de Cristo e do seu Espírito. Como povo sacerdotal, profético e real, ela está empenhada em promover e servir o florescimento e a maturação das vocações sacerdotais com a oração e a vida sacramental, com o anúncio da palavra e a educação da fé, com a orientação e o testemunho da caridade.

A Igreja, na sua dignidade e responsabilidade de povo sacerdotal, tem na oração e na celebração da liturgia, os elementos essenciais e primários da pastoral vocacional. A oração cristã, de facto, nutrindo-se da Palavra de Deus, cria o espaço ideal para que cada um possa descobrir a verdade do ser e a identidade do projecto de vida pessoal e irrepetível que o Pai lhe confia. É necessário, portanto, educar em particular as crianças e jovens para que sejam fiéis à oração e à meditação da Palavra de Deus: no silêncio e na escuta poderão ouvir o chamamento do Senhor ao sacerdócio e segui-lo com prontidão e generosidade.

A Igreja deve acolher cada dia o convite persuasivo e exigente de Jesus, que pede para "rezar ao Senhor da messe para que mande operários para a sua messe" (Mt 9,38). Obedecendo ao mandamento de Cristo, a Igreja realiza, antes de mais nada, uma humilde profissão de fé: ao rezar pela vocações, ao mesmo tempo que toma consciência de toda a sua urgência para a própria vida e missão, reconhece que elas são um dom de Deus e, como tal, se devem pedir com uma súplica confiante e incessante. Esta oração, fulcro de toda a pastoral vocacional, deve todavia comprometer não apenas os indivíduos, mas também as inteiras comunidades eclesiais. Ninguém duvida da importância das iniciativas individuais de oração, dos momentos especiais reservados a esta invocação, a começar pelo Dia Mundial de Oração pelas Vocações, e do empenhamento específico de pessoas e grupos particularmente sensíveis ao problema das vocações sacerdotais. Mas, hoje mais do que nunca, a expectativa orante de novas vocações deve tornar-se um hábito constante e largamente partilhado na comunidade cristã e em toda e qualquer realidade eclesial. Poder-se-á assim reviver a experiência dos apóstolos que no Cenáculo, unidos com Maria, esperam em oração a efusão do Espírito (cf. Act Ac 1,14), o Qual não deixará mais de suscitar no Povo de Deus "dignos ministros do altar, anunciadores fortes e humildes da palavra que nos salva" (107).

Ponto culminante e fonte de toda a vida da Igreja (108), e em particular da oração cristã, a liturgia desempenha também um papel indispensável e uma incidência privilegiada na pastoral das vocações. Aquela, de facto, constitui uma experiência viva do dom de Deus e uma grande escola para a resposta ao seu chamamento. Como tal, cada celebração litúrgica, e em primeiro lugar a Eucaristia, nos revela o rosto de Deus, nos faz comungar do mistério da Páscoa, ou seja, da "hora" para a qual Jesus veio ao mundo e livre e voluntariamente se encaminhou em obediência ao chamamento do Pai (cf. Jo Jn 13,1), nos manifesta a fisionomia da Igreja como povo de sacerdotes e comunidade bem organizada na variedade e complementaridade dos carismas e das vocações. O sacrifício redentor de Cristo, que a Igreja celebra no mistério eucarístico, confere um valor particularmente precioso ao sofrimento vivido em união com o Senhor Jesus. Os Padres sinodais convidaram-nos a não esquecer nunca que "através da oferta dos sofrimentos, tão presentes na vida dos homens, o cristão doente se oferece a si próprio como vítima a Deus à imagem de Cristo, o qual por todos nós se consagrou a si mesmo (cf. Jo Jn 17,19)", e que "a oferta dos sofrimentos segundo tal intenção é uma grande ajuda para a promoção das vocações" (109).

(106) Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no Mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 16.
(107) Missal Romano, Colecta na Missa pelas Vocações às Ordens Sacras.
(108) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium, SC 10.
(109) Propositio 15.



39 No exercício da sua missão profética, a Igreja sente como premente e irrecusável a tarefa deanunciar e testemunhar o sentido cristão da vocação, poderemos mesmo dizer o "Evangelho da vocação". Interpela-nos, também neste campo, a urgência das palavras do Apóstolo:"Ai de mim se não evangelizar!"(1Co 9,16). Tal advertência ressoa, antes de mais, em nós pastores e diz respeito, juntamente connosco, a todos os educadores na Igreja. A pregação e a catequese devem sempre manifestar a sua intrínseca dimensão vocacional: a palavra de Deus ilumina os crentes na avaliação da vida como resposta ao chamamento de Deus e leva-os a acolher na fé o dom da vocação pessoal.

Mas tudo isto, apesar de importante e essencial, não basta: é precisa "uma pregação directa sobre o mistério da vocação na Igreja, sobre o valor do sacerdócio ministerial, e sobre a sua urgente necessidade para o Povo de Deus" (110). Uma catequese orgânica e proporcionada a todas as componentes da Igreja, além de dissipar dúvidas e refutar idéias unilaterais e distorcidas sobre o ministério sacerdotal, abre os corações dos crentes à expectativa do dom e cria condições aptas ao nascimento de novas vocações. É chegado o tempo de falar corajosamente da vida sacerdotal como um valor inestimável e como forma esplêndida e privilegiada de vida cristã. Os educadores, especialmente os sacerdotes, não devem ter medo de propor de modo explícito e premente a vocação ao presbiterado como possibilidade real para aqueles jovens que demonstram possuir os dons e capacidades a ela correspondentes. Não se deve ter receio de lhes condicionar ou limitar a liberdade; pelo contrário, uma proposta precisa, feita no momento certo, pode revelar-se decisiva para provocar nos jovens uma resposta livre e autêntica. De resto, a história da Igreja como a de tantas vocações sacerdotais, desabrochadas mesmo em tenra idade, atestam amplamente a providencial presença e palavra de um padre: não só da palavra mas também da presença, isto é, de um testemunho concreto e alegre capaz de fazer despertar interrogações e de conduzir a mesmo decisões definitivas.

(110) Ibid.



40 Como povo real, a Igreja reconhece-se radicada e animada pela "lei do Espírito que dá vida" (Rm 8,2), que é essencialmente a lei régia da caridade (cf. Jc 2,8) ou a lei perfeita da liberdade (cf. Jc 1,25). Ela cumpre, por isso, a sua missão quando guia cada fiel para descobrir e para viver a própria vocação na liberdade e levá-la a bom termo na caridade.

Na sua tarefa educativa, a Igreja interessa-se, com atenção privilegiada, por suscitar nas crianças, nos adolescentes e nos jovens o desejo e a decisão de um seguimento integral e comprometido com Jesus Cristo. O trabalho educacional, mesmo que diga respeito a toda a comunidade cristã enquanto tal, deve orientar-se para a pessoa singular: Deus, de facto, com o seu chamamento, atinge o coração de cada homem, e o Espírito, que mora no íntimo de cada discípulo (cf. 1Jn 3,24), dá-se a cada cristão com carismas diversos e particulares manifestações. Cada um, portanto, deve ser ajudado a acolher o dom que, precisamente a ele como pessoa irrepetível e única, é confiado, e a escutar as palavras que o Espírito de Deus lhe dirige singularmente.

Nesta perspectiva, o cuidado pelas vocações ao sacerdócio saberá exprimir-se também numa firme e persuasiva proposta de direcção espiritual. É preciso redescobrir a grande tradição do acompanhamento espiritual pessoal, que sempre deu tantos e tão preciosos frutos, na vida da Igreja: esse acompanhamento pode, em determinados casos e em condições bem precisas, ser ajudado, mas não substituído, por formas de análise ou de ajuda psicológica (111). As crianças, os adolescentes e os jovens sejam convidados a descobrir e a apreciar o dom da direcção espiritual, e a solicitá-lo com confiante insistência aos seus educadores na fé. Os sacerdotes, pela sua parte, sejam os primeiros a dedicar tempo e energias a esta obra de educação e de ajuda espiritual pessoal: jamais se arrependerão de ter transcurado ou relegado para segundo plano muitas outras coisas, mesmo boas e úteis, se for necessário para o seu ministério de colaboradores do Espírito na iluminação e guia dos chamados.

Objectivo da educação do cristão é atingir, sob o influxo do Espírito, "a plena maturidade de Cristo" (Ep 4,13). Isto verifica-se quando, imitando e partilhando a Sua caridade, se faz da própria vida um serviço de amor (cf. Jo Jn 13,14-15), oferecendo a Deus um culto espiritual que Lhe seja agradável (cf. Rm 12,1) e doando-se aos irmãos. O serviço de amor é o sentido fundamental de toda a vocação, que encontra uma realização específica na vocação do sacerdote: efectivamente ele é chamado a reviver, na forma mais radical possível, a caridade pastoral de Jesus, isto é, o amor do Bom Pastor que "dá a vida pelas ovelhas" (Jn 10,11).

Por isso, uma autêntica pastoral vocacional nunca se cansará de educar as crianças, os adolescentes e os jovens para a atracção pelo compromisso, para o sentido do serviço gratuito, para o valor do sacrifício, para a doação incondicionada de si mesmo. Torna-se então particularmente útil a experiência do voluntariado, para o qual está a crescer a sensibilidade de tantos jovens: se for um voluntariado evangelicamente motivado, capaz de educar para o discernimento das carências, vivido cada dia com dedicação e fidelidade, aberto à eventualidade de um compromisso definitivo na vida consagrada, alimentado pela oração, poderá mais seguramente sustentar uma vida de compromisso desinteressado e gratuito, e tornará quem a ele se dedica mais sensível à voz de Deus que o pode chamar ao sacerdócio. Com diferença do jovem rico, o empenhado no voluntariado poderia aceitar o convite, cheio de amor, que Jesus lhe dirige (cf. Mc Mc 10,21) ; e podê-lo-ia aceitar, porque os seus únicos bens consistem já no doar-se aos outros e no "perder" a sua vida.

(111) Cf. CIC cán. CIC 220: "A ninguém é lícito (...) violar o direito que cada pessoa tem de defender a própria intimidade"; cf. ainda cán. CIC 642.


Todos somos responsáveis pelas vocações sacerdotais

41 A vocação sacerdotal é um dom de Deus, que constitui certamente um grande bem para aquele que é o seu primeiro destinatário. Mas é também um dom para a Igreja inteira, um bem para a sua vida e missão. A Igreja, portanto, é chamada a proteger este dom, a estimá-lo e amá-lo: ela é responsável pelo nascimento e pela maturação das vocações sacerdotais. Em consequência disso, a pastoral vocacional tem como sujeito activo, como protagonista, a comunidade eclesial enquanto tal, nas suas diversas expressões: da Igreja universal à Igreja particular, e, analogamente, desta à paróquia e a todas as componentes do Povo de Deus.

é grande a urgência, sobretudo hoje, que se difunda e se radique a convicção de que todos os membros da Igreja, sem excepção, têm a graça e a responsabilidade do cuidado pelas vocações. O Concílio Vaticano II é explícito, ao afirmar que "o dever de fomentar as vocações sacerdotais pertence a toda a comunidade cristã, que as deve promover sobretudo mediante uma vida plenamentente cristã" (112). Só na base desta convicção, a pastoral das vocações poderá manifestar o seu rosto verdadeiramente eclesial, desenvolvendo uma acção concorde, servindo-se também de organismos específicos e de adequados instrumentos de comunhão e de corresponsabilidade.

A primeira responsabilidade da pastoral orientada para as vocações sacerdotais é do Bispo (113), que é chamado a vivê-la em primeira pessoa ainda, que possa e deva suscitar múltiplas colaborações. Ele é pai e amigo no seu presbitério, e é sua, antes de mais, a solicitude de "dar continuidade" ao carisma e ao ministério presbiteral, associando-lhe novos efectivos pela imposição das mãos. Ele cuidará que a dimensão vocacional esteja sempre presente em todos os âmbitos da pastoral ordinária, melhor, seja plenamente integrada e como que identificada com ela. Cabe-lhe a tarefa de promover e coordenar as várias iniciativas vocacionais (114).

O Bispo sabe que pode contar, em primeiro lugar, com a colaboração do seu presbitério. Todos os sacerdotes são solidários com ele e corresponsáveis na procura e promoção das vocações presbiterais. De facto, como afirma o Concílio, "cabe aos sacerdotes, como educadores da fé, cuidar por si, ou por meio de outros, para que cada fiel seja levado, no Espírito Santo, a cultivar a própria vocação " (115). É esta "uma função que faz parte da própria missão sacerdotal, em virtude da qual o presbítero é feito participante da solicitude de toda a Igreja, para que jamais faltem na terra operários para o Povo de Deus" (116). A própria vida dos padres, a sua dedicação incondicional ao rebanho de Deus, o seu testemunho de amoroso serviço ao Senhor e à sua Igreja - testemunho assinalado pela opção da cruz acolhida na esperança e na alegria pascal -, a sua concórdia fraterna e o seu zelo pela evangelização do mundo são o primeiro e mais persuasivo factor de fecundidade vocacional (117).

Uma responsabilidade particularíssima está confiada à família cristã que, em virtude do sacramento do matrimónio, participa, de modo próprio e original, na missão educativa da Igreja mestra e mãe. Como disseram os Padres sinodais, "a família cristã - que é verdadeiramente 'como que a igreja doméstica' (Lumen gentium
LG 11) - sempre ofereceu e continua a oferecer as condições favoráveis para o desabrochar das vocações. Porque a imagem da família cristã se encontra hoje em perigo, deve atribuir-se grande importância à pastoral familiar, de modo que as próprias famílias, ao acolher generosamente o dom da vida humana, sejam 'como que o primeiro seminário' (Optatam totius OT 2) onde os filhos possam adquirir desde o início o sentido da piedade e da oração, e o amor à Igreja"(118). Em continuidade e sintonia com a obra dos pais e da família, deve colocar-se a escola, que é chamada a viver a sua identidade de "comunidade educadora" com uma proposta cultural também capaz de irradiar luz sobre a dimensão vocacional como valor conatural e fundamental da pessoa humana. Nesse sentido, se for oportunamente enriquecida de espírito cristão (seja através de significativas presenças eclesiais na escola estatal, segundo as várias leis nacionais, seja sobretudo no caso da escola católica), pode infundir no ânimo das crianças e dos jovens o desejo de cumprir a vontade de Deus no estado de vida mais idóneo para cada um, sem nunca excluir a vocação ao ministério sacerdotal" (119).

Também os leigos, em particular, os catequistas, professores, educadores, animadores da pastoral juvenil, cada um segundo os recursos e modalidades próprias, têm uma grande importância na pastoral das vocações sacerdotais: quanto mais aprofundarem o sentido da sua vocação e missão na Igreja, tanto melhor poderão reconhecer o valor e carácter insubstituível da vocação e da missão presbiteral.

No âmbito das comunidades diocesanas e paroquiais, são de estimar e promover aqueles grupos vocacionais cujos membros oferecem o seu contributo de oração e de sacrifício pelas vocações sacerdotais e religiosas, senão mesmo de sustento moral e material.

Deveremos recordar aqui também os grupos, movimentos e associações de fiéis leigos que o Espírito Santo faz surgir e crescer na Igreja, em ordem a uma presença cristã mais missionária no mundo. Estas diversas agregações de leigos estão-se revelando como campo particularmente fértil para a manifestação de vocações consagradas, verdadeiros e próprios lugares de proposta e de crescimento vocacional. Muitos jovens, de facto, precisamente no âmbito e graças a estes grupos, advertiram o chamamento do Senhor a segui-Lo no caminho do sacerdócio ministerial (120) e responderam com reconfortante generosidade. São, portanto, de valorizar, para que, em comunhão com toda a Igreja e para seu crescimento, dêem o seu específico contributo para o desenvolvimento da pastoral vocacional.

As várias componentes e os diversos membros da Igreja empenhados na pastoral vocacional tornarão tanto mais eficaz a sua obra quanto mais estimularem a comunidade eclesial como tal, a começar pela paróquia, a sentir que o problema das vocações sacerdotais não pode ser minimamente delegado em alguns "encarregados" (os sacerdotes em geral, e mais especialmente os sacerdotes dos seminários), porque, sendo "um problema vital que se coloca no próprio coração da Igreja" (121), deve estar no centro do amor de cada cristão pela Igreja.

(112) Decr. sobre a Formação sacerdotal Optatam totius, OT 2.
(113) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o Ministério pastoral dos Bispos na Igreja Christus dominus, CD 15.
(114) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a Formação sacerdotal Optatam totius, OT 2.
(115) Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 6.
(116) Ibid., PO 11.
(117) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a Formação sacerdotal Optatam totius, OT 2
(118) Propositio 14.
(119) Propositio 15.
(120) Cf. Propositio 16.
(121) Mensagem para a XXII Jornada Mundial de Oração pelas Vocações (13 de Abril de 1985), 1: AAS 77 (1985) 982.


CAPÍTULO V

ESTABELECEU DOZE QUE ESTIVESSEM COM ELE


A formação dos candidatos ao sacerdócio


Viver no seguimento de Cristo como os apóstolos

42 "Subiu ao monte, chamou para junto de si aqueles que entendeu e eles foram ter com Ele. Estabeleceu doze que estivessem com Ele e também para os enviar a pregar e para que tivessem o poder de expulsar demónios" (Mc 3,13-15).

"Que estivessem com Ele": nestas palavras, não é difícil ler o "acompanhamento vocacional" dos apóstolos por parte de Jesus. Depois de os ter chamado e antes de os enviar, melhor, para os poder enviar a pregar, o Senhor pede-lhes um "tempo" de formação, destinado a desenvolver uma relação de comunhão e de amizade profunda Consigo mesmo. A estes, reserva Ele uma catequese mais aprofundada relativamente à do povo (cf. Mt Mt 13,11) e quer-los testemunhas da Sua silenciosa oração ao Pai (cf. Jo Jn 17,1-26 Lc 22,39-45).

Na sua solicitude relativamente às vocações sacerdotais, a Igreja de todos os tempos inspira-se no exemplo de Cristo. Foram, e em boa parte são ainda agora, muito diversas as formas concretas, segundo as quais a Igreja se foi empenhando na pastoral vocacional, destinada não só a discernir, mas também a "acompanhar" as vocações ao sacerdócio. Mas o espírito, que as deve animar e sustentar, permanece idêntico: o de conduzir ao sacerdócio só aqueles que foram chamados e levá-los adequadamente formados, ou seja, com uma consciente e livre resposta de adesão e envolvimento de toda a sua pessoa com Jesus Cristo que chama à intimidade de vida com Ele e à partilha da sua missão de salvação. Neste sentido, o "seminário" nas suas diversificadas formas, e de modo análogo a "casa de formação" dos sacerdotes religiosos, antes de ser um lugar, um espaço material, representa um espaço espiritual, um itinerário de vida, uma atmosfera que favorece e assegura um processo formativo, de modo que aquele que é chamado por Deus ao sacerdócio possa tornar-se, pelo sacramento da Ordem, uma imagem viva de Cristo Cabeça e Pastor da Igreja. Na sua Mensagem final, os Padres sinodais intuíram de modo imediato e profundo o significado original e qualificante da formação dos candidatos ao sacerdócio, ao afirmarem que "viver em seminário, escola do Evangelho, significa viver o seguimento de Cristo como os apóstolos, significa deixar-se iniciar por Ele no serviço do Pai e dos homens, sob a orientação do Espírito Santo; significa deixar-se configurar a Cristo Bom Pastor, para um melhor serviço sacerdotal na Igreja e no mundo. Formar-se para o sacerdócio significa habituar-se a dar uma resposta pessoal à questão fundamental de Cristo: 'Tu amas-me?'. A resposta, para o futuro sacerdote, não pode ser senão o dom total da sua própria vida" (122).

Trata-se de traduzir este espírito, que não poderá jamais esmorecer na Igreja, nas condições sociais, psicológicas, políticas e culturais do mundo actual, aliás tão variadas quanto complexas, como testemunharam os Padres sinodais relativamente às diferentes Igrejas particulares. Com uma incidência carregada de notória preocupação mas também de grande esperança, eles puderam conhecer e reflectir longamente sobre o esforço de investigação e de actualização dos métodos de formação dos candidatos ao sacerdócio, presente em todas as suas Igrejas.

Esta Exortação pretende recolher o fruto dos trabalhos sinodais, estabelecendo alguns dados adquiridos, mostrando algumas metas irrenunciáveis, colocando à disposição de todos a riqueza de experiências e de itinerários formativos já experimentados positivamente. Ao longo das suas páginas, considera-se de forma distinta a formação "inicial" e a formação "permanente", sem nunca esquecer, no entanto, o laço profundo que as une e que deve fazer das duas um único itinerário orgânico de vida cristã e sacerdotal. A Exortação detém-se nas diversas dimensões da formaçãohumana, intelectual, espiritual e pastoral, como também nos ambientes e nos responsáveis pela própria formação dos candidatos ao sacerdócio.

(122) Mensagem dos Padres Sinodais ao Povo de Deus (28 de Outubro de 1990), IV: l. c.


I. AS DIMENSÕES DA FORMAÇÃO SACERDOTAL


A formação humana, fundamento de toda a formação sacerdotal

43 "Sem uma oportuna formação humana, toda a formação sacerdotal ficaria privada do seu necessário fundamento" (123). Esta afirmação dos Padres sinodais exprime não apenas um dado, quotidianamente sugerido pela razão e confirmado pela experiência, mas também uma exigência que encontra a sua motivação mais profunda e específica na própria natureza do presbítero e do seu ministério. Com efeito, chamado a ser "imagem viva de Jesus Cristo Cabeça e Pastor da Igreja, ele deve procurar reflectir em si mesmo, na medida do possível, aquela perfeição humana que resplandece no Filho de Deus feito homem e que transparece com particular eficácia nas suas atitudes com os outros, tal como os evangelistas as apresentam. O ministério do sacerdote é, sim, o de anunciar a Palavra, de celebrar os sacramento, conduzir na caridade a comunidade cristã, "em nome e na pessoa de Cristo", mas isto, dirigindo-se sempre a homens concretos: "todo o sumo sacerdote, tomado de entre os homens, é constituído em favor dos homens nas coisas que dizem respeito a Deus" (He 5,1). Por isso mesmo, a formação humana dos padres revela a sua particular importância relativamente aos destinatários da sua missão: precisamente para que o seu ministério seja humanamente mais credível e aceitável, é necessário que ele modele a sua personalidade humana de modo a torná-la ponte e não obstáculo para os outros, no encontro com Jesus Cristo Redentor do homem; é preciso que, a exemplo de Jesus, que"sabia o que existe no interior de cada homem" (Jn 2,25 cf. Jn 8,3-11), o sacerdote seja capaz de conhecer em profundidade a alma humana, intuir dificuldades e problemas, facilitar o encontro e o diálogo, obter confiança e colaboração, exprimir juízos serenos e objectivos.

Portanto, não só para uma justa e indispensável maturação e realização de si mesmo, mas também com vista ao ministério, os futuros presbíteros devem cultivar uma série de qualidades humanas necessárias à construção de personalidades equilibradas, fortes e livres, capazes de comportar o peso das responsabilidades pastorais. É precisa, pois, a educação para o amor à verdade, a lealdade, o respeito por cada pessoa, o sentido da justiça, a fidelidade à palavra dada, a verdadeira compaixão, a coerência, e, particularmente, para o equilíbrio de juízos e comportamentos (124). Um programa simples e empenhativo para esta formação humana é proposto pelo apóstolo Paulo aos Filipenses: "Tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honrado, o que é virtude e digno de louvor, é o que deveis ter no pensamento" (Ph 4,8). É interessante notar como Paulo, precisamente nestas qualidades profundamente humanas, se apresente a si próprio como modelo para os seus fiéis: "O que aprendestes - prossegue imediatamente - recebestes, escutastes e vistes em mim, é o que deveis fazer" (Ph 4,9).

De particular importância, se afigura a capacidade de relacionamento com os outros, elemento verdadeiramente essencial para quem é chamado a ser responsável por uma comunidade e a ser "homem de comunhão". Isto exige que o sacerdote não seja arrogante nem briguento mas afável, hospitaleiro, sincero nas palavras e no coração, (125) prudente e discreto, generoso e disponível para o serviço, capaz de oferecer pessoalmente e de suscitar em todos relações francas e fraternas, pronto a compreender, perdoar e consolar (cf. também 1Tm 3,1-5 Tt 1,7-9). A humanidade de hoje, muitas vezes condenada a situações de massificação e de solidão, nomeadamente nas grandes concentrações urbanas, torna-se cada vez mais sensível ao valor da comunhão: este constitui hoje um dos sinais mais eloquentes e uma das vias mais eficazes para a mensagem evangélica.

Neste contexto se insere, como momento qualificante e decisivo, a formação do candidato ao sacerdócio para uma maturidade afectiva, resultante de uma educação para o amor verdadeiro e responsável.

(123) Propositio, 21.
(124) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a Formação sacerdotal Optatam totius, OT 11; Decr. sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes Presbyterorum ordinis, PO 3; Congr. para a Educação Católica, Ratio fundamentalis institutionis sacerdotalis (6 de Janeiro de 1970), 51: 1. c., 356-357.
(125) Cf. Propositio, 21



44 A maturidade afectiva supõe a consciência do lugar central do amor na existência humana. Na realidade, como escrevi na Encíclica Redemptor hominis, "o homem não pode viver sem amor. Permanece para si mesmo um ser incompreensível, a sua vida fica privada de sentido, se não lhe for revelado o amor, se não se encontra com o amor, se não o experimenta e não o faz seu, se não participa nele vivamente" (126).

Trata-se de um amor que compromete a pessoa inteira, nas suas dimensões e componentes físicas, psíquicas e espirituais, e se exprime no "significado nupcial" do corpo humano, graças ao qual a pessoa faz entrega de si mesma a outra e a acolhe. Para a compreensão e realização desta "verdade" do amor humano, tende a educação sexual rectamente entendida. Efectivamente, devemos dar-nos conta de uma situação social e cultural difundida "que 'banaliza' em grande parte a sexualidade humana porque a interpreta e a vive de modo redutor e empobrecido, relacionando-a unicamente com o corpo e com o prazer egoísta" (127). Frequentemente as próprias situações familiares, de onde provêem as vocações sacerdotais, revelam a este respeito não poucas carências, e por vezes até graves desequilíbrios.

Num tal contexto, torna-se mais difícil, mas também mais urgente, uma educação para a sexualidade que seja verdadeira e plenamente pessoal e que, portanto, dê lugar à estima e ao amor pela castidade, como "virtude que desenvolve a autêntica maturidade da pessoa e que a torna capaz de respeitar e promover o 'significado nupcial' do corpo" (128).

Ora a educação para o amor responsável e a maturidade afectiva da pessoa tornam-se absolutamente necessárias para quem, como o presbítero, é chamado ao celibato, ou seja, a oferecer, pela graça do Espírito e com a resposta livre da própria vontade, a totalidade do seu amor e da sua solicitude a Jesus Cristo e à Igreja. Em vista do compromisso celibatário, a maturidade afectiva deve saber incluir, no âmbito das relações humanas de serena amizade e de profunda fraternidade, um grande amor vivo e pessoal a Jesus Cristo. Como escreveram os Padres sinodais, "é de capital importância no suscitar a maturidade afectiva o amor de Cristo, prolongado numa dedicação universal. Assim o candidato, chamado ao celibato, encontrará na maturidade afectiva um fulcro seguro para viver a castidade na fidelidade e na alegria" (129).

Pois que o carisma do celibato, mesmo quando é autêntico e provado, deixa intactas as tendências da afectividade e as excitações do instinto, os candidatos ao sacerdócio precisam de uma maturidade afectiva capaz de prudência, de renúncia a tudo o que a pode atacar, de vigilância sobre o corpo e o espírito, estima e respeito pelas relações interpessoais com homens e mulheres. Uma ajuda preciosa pode ser dada por uma adequada educação para a verdadeira amizade, à imagem dos vínculos de fraterno afecto que o próprio Cristo viveu na sua existência (cf. Jo
Jn 11,5).

A maturidade humana em geral, e a afectiva em particular, exigem uma formação clara e sólida parauma liberdade que se configura como obediência convicta e cordial à "verdade" do próprio ser, e ao "significado" do próprio existir, ou seja, ao "dom sincero de si mesmo" como caminho e fundamental conteúdo da autêntica realização do próprio ser" (130). Assim entendida, a liberdade requer que a pessoa seja verdadeiramente dona de si mesma, decidida a combater e a superar as diversas formas de egoísmo e de individualismo, que atacam a vida de cada um, pronta a abrir-se aos outros, generosa na dedicação e no serviço do próximo. Isto é importante para a resposta a dar à vocação, e de uma forma especial à sacerdotal, e para a fidelidade a essa vocação bem como aos compromissos com ela conexos, mesmo nos momentos difíceis. Neste itinerário educativo para uma amadurecida liberdade responsável, um auxílio pode vir da própria vida comunitária do Seminário(131).

Intimamente ligada à formação para a liberdade responsável, está a educação da consciência moral: esta, enquanto solicita do íntimo do próprio "eu" a obediência às obrigações morais, revela o significado profundo de tal obediência, isto é, o de ser uma resposta consciente e livre, e por conseguinte amorosa, às exigências de Deus e do Seu amor. "A maturidade humana do sacerdote - escrevem os Padres sinodais - deve incluir especialmente a formação da sua consciência. O candidato, de facto, para poder fielmente satisfazer às suas obrigações para com Deus e a Igreja e para poder sapientemente orientar as consciências dos fiéis, deve ser habituado a escutar a voz de Deus que lhe fala no íntimo do coração e a aderir com amor e firmeza à sua vontade" (132).

(126) Carta Enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979) RH 10: AAS 71 (1979) 274.
(127) Exort. Ap. Familiares consortio, FC 37: 1. c., 128.
(128) Ibid. FC 37
(129) Propositio, 21.
(130) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no Mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 24.
(131) Cf. Propositio 21.
(132) Propositio 22.



Pastores dabo vobis PT 37