Pacem in terris PT 62

Harmonização e salvaguarda eficaz dos direitos e dos deveres da pessoa

62 É, pois, função essencial dos poderes públicos harmonizar e disciplinar devidamente os direitos com que os homens se relacionam entre si, de maneira a evitar que os cidadãos, ao fazer valer os seus direitos, não atropelem os de outrem; ou que alguém, para salvaguardar os próprios direitos, impeça a outros de cumprir os seus deveres. Zelarão enfim os poderes públicos para que os direitos de todos se respeitem eficazmente na sua integridade e se reparem, se vierem a ser lesados.(38)

38. Cf. Pio XI, Carta Encicl. Divini Redemptoris, AAS 29(1937), p. 81; cf: Pio XII, Nuntius radiophonicus, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), pp. 9-24.


Dever de promover os direitos da pessoa

63 Por outro lado, exige o bem comum que os poderes públicos operem positivamente no intuito de criar condições sociais que possibilitem e favoreçam o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres por parte de todos os cidadãos. Atesta a experiência que, faltando por parte dos poderes públicos uma atuação apropriada com "respeito à economia, à administração pública, a instrução", sobretudo nos tempos atuais, as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos da pessoa tendem a perder todo seu conteúdo e compromete-se, ainda por cima, o cumprimento do dever.


64 Faz-se mister, pois, que os poderes públicos se empenhem a fundo para que ao desenvolvimento econômico corresponda o progresso social e que, em proporção da eficiência do sistema produtivo, se desenvolvam os serviços essenciais, como: construção de estradas, transportes, comunicações, água potável, moradia, assistência sanitária condições idôneas para a vida religiosa e ambiente para o espairecimento do espírito. Também é necessário que se esforcem por proporcionar aos cidadãos todo um sistema de seguros e previdência, a fim de que não lhes venha a faltar o necessário para uma vida digna em caso de infortúnio, ou agravamento de responsabilidades familiares. A quantos sejam idôneos para o trabalho esteja facultado um emprego correspondente à sua capacidade. A remuneração do trabalho obedeça às normas da justiça e da eqüidade. Nas empresas permita-se aos trabalhadores operar com senso de responsabilidade.

Facilite-se a constituição de organismos intermediários, que tornem mais orgânica e fecunda a vida social. Requer-se finalmente que todos possam participar nos bens da cultura de maneira proporcional às suas condições.


Equilíbrio entre as duas formas de intervenção dos poderes públicos

65 O bem comum exige, pois, que, com respeito aos direitos da pessoa, os poderes públicos exerçam uma dupla ação: a primeira tendente a harmonizar e tutelar esses direitos, a outra a promovê-los. Haja, porém, muito cuidado em equilibrar, da melhor forma possível, essas duas modalidades de ação. Evite-se que, através de preferências outorgadas a indivíduos ou grupos, se criem situações de privilégio. Nem se venha a instaurar o absurdo de, ao intentar a autoridade tutelar os direitos da pessoa, chegue a coarctá-los. "Sempre fique de pé que a intervenção das autoridades públicas em matéria econômica, embora se estenda às estruturas mesmas da comunidade, não deve coarctar a liberdade de ação dos particulares, antes deve aumentá-la, contanto que se guardem intactos os direitos fundamentais de cada pessoa humana".(39)

39. João XXIII, Carta Encicl. Mater et Magistra, AAS 53(1961), p.
MM 415.


66 Ao mesmo princípio deve inspirar-se a multiforme ação dos poderes públicos no sentido de que os cidadãos possam mais facilmente reivindicar os seus direitos e cumprir os seus deveres, em qualquer setor da vida social.


Estrutura e funcionamento dos poderes públicos

67 Não se pode determinar, aliás, uma vez por todas, qual a forma de governo mais idônea, quais os meios mais adequados para os poderes públicos desempenharem as suas funções, tanto legislativas, como administrativas ou judiciárias.


68 Com efeito, não se pode fixar a estrutura e funcionamento dos poderes públicos sem atender muito às situações históricas das respectivas comunidades políticas, situações que variam no espaço e no tempo. Julgamos, no entanto, ser conforme à natureza humana a constituição da sociedade na base de uma conveniente divisão de poderes, que corresponda às três principais funções da autoridade pública. Efetivamente, em tal sociedade não só as funções dos poderes públicos, mas também as mútuas relações entre cidadãos e funcionários estão definidas em termos jurídicos. Isto sem dúvida constitui um elemento de garantia e clareza em favor dos cidadãos no exercício dos seus direitos e no desempenho das suas obrigações.


69 Mas para que essa organização jurídico-política das comunidades humanas surta o seu efeito, torna-se indispensável que os poderes públicos se adaptem nas competências, nos métodos e meios de ação à natureza e complexidade dos problemas que deverão enfrentar na presente conjuntura histórica. Comporta isto que, na contínua variação das situações, a atuação do poder legislativo respeite sempre a ordem moral, as normas constitucionais e as exigências do bem comum. O poder executivo aplique as leis com justiça, tratando de conhecê-las bem e de examinar diligentemente as situações concretas. O poder judiciário administre a justiça com imparcialidade humana, sem se deixar dobrar por interesses de parte. Requer-se finalmente que os cidadãos e os organismos intermédios, no exercício dos direitos e no cumprimento dos deveres, gozem de proteção jurídica eficaz, tanto nas suas relações mútuas como nas relações com os funcionários públicos.(40)

40. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), p. 21.


Organização jurídica e consciência moral

70 Não há dúvida de que, numa nação, a organização jurídica, ajustada à ordem moral e ao grau de maturidade da comunidade política, é elemento valiosíssimo de bem comum.


71 Mas hoje em dia a vida social é tão diversa, complexa e dinâmica que a organização jurídica, embora elaborada com grande competência e larga visão, muitas vezes parecerá inadequada às necessidades.


72 Além disso, as relações das pessoas entre si, as das pessoas e organismos intermediários com os poderes públicos, como também as relações destes poderes entre si no seio de uma nação, apresentam por vezes situações tão delicadas e nevrálgicas que não se podem enquadrar em termos jurídicos bem definidos. Faz-se mister, pois, que, se as autoridades quiserem permanecer, ao mesmo tempo, féis à ordem jurídica existente, considerada em seus elementos e em sua inspiração profunda, e abertas às exigências emergentes da vida social, se quiserem, por outro lado, adaptar as leis à variação das circunstâncias e resolver do melhor modo possível novos problemas que surjam, devem ter idéias claras sobre a natureza e a extensão de suas funções. Devem ser pessoas de grande equilíbrio e retidão moral, dotadas de intuição prática para interpretar com rapidez e objetividade os casos concretos, e de vontade decidida e forte para agir com tempestividade e eficiência.(41)

41. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica,da vigília do Natal de 1944, AAS 37(1945), pp.l5-16.


A participação dos cidadãos na vida pública

73 É certamente exigência da sua própria dignidade de pessoas poderem os cidadãos tomar parte ativa na vida pública, embora a modalidade dessa participação dependa do grau de maturidade da nação a que pertencem.


74 Desta possibilidade de participar na vida pública abrem-se às pessoas novos e vastos campos de ação fecunda. Assim um mais freqüente contacto e diálogo entre funcionários e cidadãos proporciona àqueles um conhecimento mais exato das exigências objetivas do bem comum. Além disso, o suceder-se dos titulares nos poderes públicos impede-lhes o envelhecimento e assegura-lhes a renovação, de acordo com a evolução social.(42)

42. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1942, AAS 35(1943), p.12.


Sinais dos tempos

75 Na moderna organização jurídica dos Estados emerge, antes de tudo, a tendência de exarar em fórmula clara e concisa uma carta dos direitos fundamentais do homem, carta que não raro é integrada nas próprias constituições.


76 Tende-se, aliás, em cada Estado, à elaboração em termos jurídicos de uma constituição, na qual se estabeleça o modo de designação dos poderes públicos, e reciprocidade de relações entre os diversos poderes, as suas atribuições, os seus métodos de ação.


77 Determinam-se, enfim, em termos de direitos e deveres, as relações dos cidadãos com os poderes públicos; e: estatui-se como primordial função dos que governam a de reconhecer os direitos e deveres dos cidadãos, respeitá-los, harmonizá-los, tutelá-los eficazmente e promovê-los.


78 Certamente não se pode aceitar a doutrina dos que consideram a vontade humana, quer dos indivíduos, quer dos grupos, primeira e única fonte dos direitos e deveres dos cidadãos, da obrigatoriedade da constituição e da autoridade dos poderes públicos.(43)

43. Cf. Leão XIII, Epist. Apost. Annum ingressi, Acta Leonis XIII, XXII,1902-1903, pp. 52-80.


79 Mas as tendências aqui apontadas evidenciam que o homem atual se torna cada vez mais cônscio da própria dignidade e que esta consciência o incita a tomar parte ativa na vida pública do Estado e a exigir que os direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa sejam reafirmados nas instituições públicas. Mais ainda, exige-se hoje que as autoridades sejam designadas de acordo com normas constitucionais e exerçam as suas funções dentro dos limites da constituição.



3ª PARTE

RELAÇÕES DAS COMUNIDADES POLÍTICAS




Sujeitos de direitos e deveres

80 Queremos confirmar com a nossa autoridade os reiterados ensinamentos dos nossos predecessores sobre a existência de direitos e deveres internacionais, sobre o dever de regular as mútuas relações das comunidades políticas entre si, segundo as normas da verdade, da justiça, da solidariedade operante e da liberdade. A mesma lei natural que rege a vida individual deve também reger as relações entre os Estados.


81 Isto é evidente, quando se considera que os governantes, agindo em nome da sua comunidade e procurando o bem desta, não podem renunciar à sua dignidade natural e, portanto, de modo algum lhes é lícito eximir-se à lei da própria natureza, que é a lei moral.


82 De resto, seria absurdo pensar que os homens, pelo fato de serem colocados à frente do governo da nação, possam ver-se constrangidos a despojar-se da sua condição humana. Pelo contrário, chegaram a essa alta função porque escolhidos dentre os melhores elementos da comunidade, por denotarem qualidades humanas fora do comum.


83 Mais ainda, a autoridade na sociedade humana é exigência da própria ordem moral. Não pode, portanto, ser usada contra esta ordem sem que se destrua a si mesma, minando o seu próprio fundamento, segundo a admoestação divina: "Prestai atenção, vós que dominais a multidão e vos orgulhais das multidões dos povos! O domínio vos vem do Senhor e o poder, doAltíssimo, que examinará as vossas obras, perscrutará vossos desejos" (Sg 6,2-4).


84 Por último, é preciso ter em conta que, também em assunto de relações internacionais, a autoridade deve ser exercida para promover o bem comum, pois esta é a sua própria razão de ser.


85 Elemento fundamental do bem comum é o reconhecimento da ordem moral e a indefectível observância de seus preceitos. "A reta ordem entre as comunidades políticas deve basear-se sobre a rocha inabalável e imutável da lei moral, manifestada na ordem do universo pelo próprio Criador e por ele esculpida no coração do homem com caracteres indeléveis... Qual resplandecente farol deve ela, com os raios de seus princípios, indicar a rota da operosidade dos homens e dos Estados, os quais devem seguir os seus sinais admoestadores, salutares e úteis, se não quiserem abandonar à sanha das procelas e do naufrágio todo o trabalho e esforço para estabelecer uma nova ordem de coisas".(44)

44. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1941, AAS 34(1942), p.16.


Na verdade

86 As relações mútuas entre os Estados devem basear-se na verdade. Esta exige que se elimine delas todo e qualquer racismo. Tenha-se como princípio inviolável a igualdade de todos os povos, pela sua dignidade de natureza. Cada povo tem, pois, direito à existência, ao desenvolvimento, à posse dos recursos necessários para realizá-lo e a ser o principal responsável na atuação do mesmo, tendo igualmente direito ao bom nome e à devida estima.


87 Atesta a experiência que subsistem muitas vezes entre os homens consideráveis diferenças de saber, de virtude, de capacidade inventiva e de recursos materiais. Mas estas diferenças jamais justificam o propósito de impor a própria superioridade a outrem. Pelo contrário, constituem fonte de maior responsabilidade que a todos incumbe de contribuir à elevação comum.


88 De modo análogo podem as nações diferênciar-se por cultura, civilização e desenvolvimento econômico. Isto, porém, não poderá jamais justificar a tendência a impor injustamente a própria superioridade às demais. Antes, pode constituir motivo de sentirem-se mais empenhadas na obra de comum ascensão dos povos.


89 Realmente não pode um homem ser superior a outro por natureza, visto que todos gozam de igual dignidade natural. Segue-se daí que, sob o aspecto de dignidade natural, não há diferença alguma entre as comunidades políticas, porque cada qual é semelhante a um corpo cujos membros são as próprias pessoas. Aliás, como bem sabemos por experiência, o que mais costuma melindrar um povo, e com toda a razão, é o que de qualquer maneira toca à sua própria dignidade.


90 Exige ainda a verdade que nas múltiplas iniciativas, através da utilização das modernas invenções técnicas, tendentes a favorecer um maior conhecimento recíproco entre os povos, se adotem rigorosamente critérios de serena objetividade. Isto não exclui ser legítima nos povos a preferência a dar a conhecer os lados positivos da sua vida. Devem, porém, ser totalmente repudiados os métodos de informação que, violando a justiça e a verdade, firam o bom nome de algum povo.(45)

45. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1940, AAS 33(1941), pp. 5-14.



Segundo a justiça

91 As relações entre os Estados devem, além disso, reger-se pelas normas da justiça. Isto comporta tanto o reconhecimento dos mútuos direitos como o cumprimento dos deveres recíprocos.


92 Os estados têm direito à existência, ao desenvolvimento, a disporem dos recursos necessários para o mesmo, e a desempenharem o papel preponderante na sua realização. Os Estados têm igualmente direito ao bom nome e à devida estima. Simultaneamente, pois, incumbe aos Estados o dever de respeitar eficazmente cada um destes direitos, e de evitar todo e qualquer ato que os possa violar. Assim como nas relações individuais não podem as pessoas ir ao encontro dos próprios interesses com prejuízo dos outros, do mesmo modo não pode uma nação, sem incorrer em grave delito, procurar o próprio desenvolvimento tratando injustamente ou oprimindo as outras. Cabe aqui a frase de santo Agostinho: "Esquecida a justiça, a que se reduzem os reinos senão a grande latrocínios?"(46)

46. De civitate Dei, 1. IV, c. 4; PL. 41,115; cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigilia do Natal de 1939, AAS 32(1940), pp. 5-13.


93 Pode acontecer, e de fato acontece, que os interesses dos Estados contrastem entre si. Essas divergências, porém, dirimem-se não com a força das armas nem com a fraude e o embuste, mas sim, como convém a pessoas humanas, com a compreensão recíproca, através de serena ponderação dos dados objetivos e equanime conciliação.


O tratamento das minorias


94 Caso peculiar desta situação é o processo político que se veio afirmando em todo o mundo, desde o século XIX, a saber, que pessoas de uma mesma raça aspirem a constituir-se em nação soberana. Entretanto, por diversas causas, nem sempre pode realizar-se este ideal. Assim dentro de uma nação vivem não raro minorias de raça diferente e daí surgem graves problemas.


95 Deve-se declarar abertamente que é grave injustica qualquer ação tendente a reprimir a energia vital de alguma minoria, e muito mais se tais maquinações intentam exterminá-la.


96 Pelo contrário, corresponde plenamente aos princípios da justiça que os governos procurem promover o desenvolvimento humano das minorias raciais, com medidas eficazes em favor da respectiva língua, cultura, tradições, recursos e empreendimentos econômicos.(47)

47. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1941, AAS 34(1942), pp.10-21.


97 Deve-se, todavia, notar que, seja pela situação difícil a que estão sujeitas, seja por vivências históricas, não raro tendem essas minorias a exagerar os seus valores étnicos, a ponto de colocá-los acima de valores universalmente humanos, como se um valor de humanidade estivesse em função de um valor nacional. Seria, ao invés, razoável que esses cidadãos reconhecessem as vantagens que lhes advêm precisamente desta situação. O contato cotidiano com pessoas de outra cultura pode constituir precioso fator de enriquecimento intelectual e espiritual, através de um continuado processo de assimilação cultural. Isto acontecerá somente se as minorias não se fecharem à população que as rodeia, e participarem dos seus costumes e instituições, em vez de semearem dissensões, que acarretam inumeráveis danos, impedindo o desenvolvimento civil das nações.

Solidariedade dinâmica


98 Norteadas pela verdade e pela justiça, as relações internacionais desenvolvem-se em uma solidariedade dinâmica através de mil formas de colaboração econômica, social, política, cultural, sanitária, desportiva, qual é o panorama exuberante que nos oferece a época atual. Cumpre ter presente, a este propósito, que o poder público não foi constituído para encerrar os súditos dentro das fronteiras nacionais, mas para tutelar, antes de tudo, o bem comum nacional. Ora, este faz parte integrante do bem comum de toda a família humana.


99 Daí resulta que, ao procurar os próprios interesses, as nações não só não devem prejudicar-se umas às outras, mas devem mesmo conjugar os próprios esforços, quando a ação isolada não possa conseguir algum determinado intento. No caso, porém, é preciso evitar cuidadosamente que o interesse de um grupo de nações venha a danificar outras, em vez de estender também a estas os seus reflexos positivos.


100 As nações fomentem toda espécie de intercâmbio quer entre os cidadãos respectivos, quer entre os respectivos organismos intermediários. Existe sobre a terra um número considerável de grupos étnicos, mais ou menos diferenciados. Não devem, porém, as peculiaridades de um grupo étnico transformar-se em compartimento estanque de seres humanos impossibilitados de relacionar-se com pessoas pertencentes a outros grupos étnicos. Isto estaria, aliás, em flagrante contraste com a tendência da época atual em que praticamente se eliminaram as distâncias entre os povos. Tampouco se deve esquecer que, embora seres humanos de raça diferente apresentem peculiaridades, possuem, no entanto, traços essenciais que lhes são comuns. Isso os inclina a encontrar-se no mundo dos valores espirituais, cuja progressiva assimilação abre-lhes ilimitadas perspectivas de aperfeiçoamento. Deve-se-lhes, portanto, reconhecer o direito e o dever de viver em comunhão uns com os outros.

Equilíbrio entre população, terra e capitais


101 É sabido de todos que em algumas regiões subsiste a desproporção entre a extensão de terra cultivável e o número de habitantes, em outras, entre riquezas do solo e capitais disponíveis. Impõe-se, pois, a colaboração dos povos, com o fim de facilitar a circulação de recursos, capitais e mão-de-obra.(48)

48. Cf. João XXIII, Carta Encicl. Mater et Magistra, AAS 53(1961), p.
MM 439.


102 Cremos sobremaneira oportuno observar a este respeito que, na medida do possível, seja o capital que procure a mão-de-obra, e não a mão-de-obra o capital. Assim se permitirá a tantas pessoas melhorar a própria situação, sem ter que abandonar com tamanha saudade a pátria, para transplantar-se a outras plagas, reajustar-se a uma nova situação e criar-se um novo ambiente social.


Problema dos refugiados políticos

103 O sentimento de universal paternidade que o Senhor acendeu no nosso coração leva-nos a sentir profunda amargura ao contemplar o fenômeno dos refugiados políticos, fenômeno que assumiu, em nossos dias, amplas proporções e que oculta sempre inúmeros e lancinantes sofrimentos.


104 Ele evidência como os chefes de algumas nações restringem em demasiado os limites de uma justa liberdade que permita aos cidadãos respirar um clima humano. Muito ao contrário, em tais regimes acontece que se ponha em dúvida o próprio direito de liberdade, ou até que este se veja inteiramente sufocado. Nessas condições mina-se radicalmente a reta ordem da convivência humana, pois o poder público, por sua própria natureza, diz respeito à tutela do bem comum, e seu dever principal é o de reconhecer os justos limites da liberdade e salvaguardar os seus direitos.


105 Não é supérfluo recordar que os refugiados políticos são pessoas e que se lhes devem reconhecer os direitos de pessoa. Tais direitos não desaparecem com o fato de terem eles perdido a cidadania do seu país.


106Entre os direitos inerentes à pessoa, figura o de inserir-se na comunidade política, onde espera ser-lhe mais fácil reconstruir um futuro para si e para a própria família. Por conseguinte, incumbe aos respectivos poderes públicos o dever de acolher esses estranhos e, nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, o de lhes favorecer a integração na nova sociedade em que manifestem o propósito de inserir-se.


107Aprovamos, pois, e louvamos publicamente, nesta oportunidade, todas aquelas iniciativas que, sob o impulso da solidariedade fraterna e da caridade cristã, se empenham em lenir a dor de quem se vê constrangido a arrancar-se de seu torrão natal em demanda de outras terras.


108 Nem podemos eximir-nos de propor à consideração de todos os homens sensatos aquelas instituições internacionais que se preocupam com questão de tamanha gravidade.

Desarmamento


109 É-nos igualmente doloroso constatar como em estados economicamente mais desenvolvidos se fabricaram e ainda se fabricam gigantescos armamentos. Gastam-se nisso somas enormes de recursos materiais e energias espirituais. Impõem-se sacrifícios nada leves aos cidadãos dos respectivos países, enquanto outras nações carecem da ajuda indispensável ao próprio desenvolvimento econômico e social.

Psicose de medo e corrida aos armamentos


110 Costuma-se justificar essa corrida ao armamento aduzindo o motivo de que, nas circunstâncias atuais, não se assegura a paz senão com o equilíbrio de forças: se uma comunidade política se arma, faz com que também outras comunidades políticas porfiem em aumentar o próprio armamento. E, se uma comunidade política produz armas atômicas dá motivo a que outras nações se empenhem em preparar semelhantes armas, com igual poder destrutivo.


111 O resultado é que os povos vivem em terror permanente, como sob a ameaça de uma tempestade que pode rebentar a cada momento em avassaladora destruição. Já que as armas existem e, se parece difícil que haja pessoas capazes de assumir a responsabilidade das mortes e incomensuráveis destruições que a guerra provocaria, não é impossível que um fato imprevisível e incontrolável possa inesperadamente atear esse incêndio. Além disso, ainda que o imenso poder dos armamentos militares afaste hoje os homens da guerra, entretanto, a não cessarem as experiências levadas a cabo com uns militares, podem elas pôr em grave perigo boa parte da vida sobre a terra.


112 Eis por que a justiça, a reta razão e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem que se pare com essa corrida ao poderio militar, que o material de guerra, instalado em várias nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente, que sejam banidas as armas atômicas; e, finalmente, que se chegue a um acordo para a gradual diminuição dos armamentos, na base de garantias mútuas e eficazes. Já Pio XII nosso predecessor, de feliz memória, admoestou: "A todo custo se deverá evitar que pela terceira vez desabe sobre a humanidade a desgraça de uma guerra mundial, com suas imensas catástrofes econômicas e sociais e com as suas muitas depravações e perturbações morais".(49)

49. Cf. Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1941, AAS 34(1942), p. 17; et Bento XV, Adhortatio ad moderatores populorum belligerantium, do dia 1 de Agosto de 1917, p. 418.


113 Todos devem estar convencidos de que nem a renúncia à competição militar, nem a redução dos armamentos, nem a sua completa eliminação, que seria o principal, de modo nenhum se pode levar a efeito tudo isto, se não se proceder a um desarmamento integral, que atinja o próprio espírito, isto é, se não trabalharem todos em concórdia e sinceridade, para afastar o medo e a psicose de uma possível guerra. Mas isto requer que, em vez do critério de equilíbrio em armamentos que hoje mantém a paz, se abrace o princípio segundo o qual a verdadeira paz entre os povos não se baseia em tal equilíbrio, mas sim e exclusivamente na confiança mútua. Nós pensamos que se trata de objetivo possível, por tratar-se de causa que não só se impõe pelos princípios da reta razão, mas que é sumamente desejável e fecunda de preciosos resultados.


114 Antes de mais, trata-se de um objetivo imposto pela razão. De fato, como todos sabem, ou pelo menos deviam saber, as mútuas relações internacionais, do mesmo modo que as relações entre os indivíduos, devem-se disciplinar não pelo recurso à força das armas, mas sim pela norma da reta razão, isto é, na base da verdade, da justiça e de uma ativa solidariedade.


115 Em segundo lugar, afirmamos que tal objetivo é muito para desejar. Pois quem há que não almeje ardentemente que se afastem todos os perigos de guerra, que se mantenha firme a paz e se resguarde com proteções cada vez mais seguras?


116 Finalmente, trata-se de um objetivo que só pode trazer bons frutos, porque as suas vantagens se farão sentir a todos: aos indivíduos, às famílias, aos povos e a toda a comunidade humana. A este propósito ecoa ainda e vibra em nossos ouvidos este aviso sonoro do nosso predecessor Pio XII. "Nada se perde com a paz, mas tudo pode ser perdido com a guerra".(50)

50. Cf. Mensagem radiofônica, de 24 de Agosto de 1939, p. 334.


117 Por isso, nós, que somos na terra o Vigário de Jesus Cristo, Salvador do mundo e autor da paz, interpretando os vivos anseios de toda a família humana, movidos pelo amor paterno para com todos os homens, julgamos dever do nosso ofício pedir encarecidamente a todos, e sobretudo aos chefes das nações, que não poupem esforços, enquanto o curso dos acontecimentos humanos não for conforme à razão e à dignidade do homem.


118 Que nas assembléias mais qualificadas por prudência e autoridade se investigue a fundo qual a melhor maneira de se chegar a maior harmonia das comunidades politicas no plano mundial; harmonia, repetimos, que se baseia na confiança mútua, na sinceridade dos tratados e na fidelidade aos compromissos assumidos. Examinem de tal maneira todos os aspectos do problema para encontrarem no nó da questão, a partir do qual possam abrir caminho a um entendimento leal, duradouro e fecundo.


119 De nossa parte, não cessaremos de elevar a Deus a nossa súplica, para que abençõe com suas graças esses trabalhos e os faça frutificar.

Na liberdade


120 Acrescente-se que as relações mútuas entre as comunidades políticas se devem reger pelo critério da liberdade. Isto quer dizer que nenhuma naçâo tem o direito de exercer qualquer opressão injusta sobre outras, nem de interferir indevidamente nos seus negócios. Todas, pelo contrário, devem contribuir para desenvolver entre si o senso de responsabilidade, o espírito de iniciativa, e o empenho em tornar-se protagonistas do próprio desenvolvimento em todos os campos.

Ascensão das comunidades políticas em fase de desenvolvimento econômico


121 Todos os seres humanos estão vinculados entre si pela comunhão na mesma origem, na mesma redenção por Cristo e no mesmo destino sobrenatural, sendo deste modo chamados a formar uma única família cristã. Por isso na encíclica Mater et Magistra exortamos as nações economicamente mais desenvolvidas a auxiliarem por todos os meios as outras nações em vias de desenvolvimento econômico.(51)

51. AAS 53(1961), pp. 440-441.


122 Podemos constatar agora, com grande satisfação, que o nosso apelo foi largamente acolhido, e esperamos que, no futuro, continue a sê-lo ainda mais amplamente, afim de que as nações mais pobres alcancem o mais depressa possível um grau de desenvolvimento econômico que proporcione a todos os cidadãos um nível de vida mais consentâneo com a sua dignidade de pessoas.

Nunca se insistirá demasiado na necessidade de atuar a referida cooperação de tal maneira que esses povos conservem incólume a própria liberdade e sintam que, nesse desenvolvimento econômico e social, são eles quem desempenha o papel preponderante e sobre quem recai a principal responsabilidade.


123 Já o nosso predecessor, de feliz memória, Pio XII, proclamava que "uma nova ordem baseada nos princípios morais exclui em absoluto que sejam lesadas a liberdade, a integridade e segurança das outras nações, sejam quais forem a sua extensão territorial e capacidade de defesa. Se é inevitável que as grandes nações, dadas as suas maiores possibilidades e superior potência, tracem o roteiro de colaboração econômica com as mais pequenas e fracas, de modo nenhum se pode negar a estas nações menores, em pé de igualdade com as outras, e para o bem comum de todas, o direito à autonomia politica e à neutralidade nas contendas entre as nações, de que se podem valer, segundo as leis do direito natural e internacional. Outro direito que possuem estas nações mais pequenas, é a tutela do seu desenvolvimento econômico. Só desta maneira poderão realizar adequadamente o bem comum, o bem-estar material e espiritual do próprio povo".(52)

52. Cf. Pio XII, Mensagem radiofônica, da vigília do Natal de 1941, AAS 34(1942), pp. l6-17.


124 As nações economicamente desenvolvidas que, de qualquer modo, auxiliam as mais pobres, devem portanto respeitar ao máximo as características de cada povo e as suas ancestrais tradições sociais, abstendo-se cuidadosamente de qualquer pretensão de domínio. Se assim procederem, "dar-se-á uma contribuição preciosa para a formação de uma comunidade mundial dos povos, na qual todos os membros sejam conscientes dos seus direitos e dos seus deveres e trabalhem em igualdade de condições para a realização do bem comum universal".(53)

53. JOÃO XXIII, Carta Encicl. Mater et Magistra, AAS 53(1961), p.
MM 443.


Sinais dos tempos


125 Difunde-se cada vez mais entre os homens de nosso tempo a persuasão de que as eventuais controvérsias entre os povos devem ser dirimidas com negociações e não com armas.


126 Bem sabemos que esta persuasão está geralmente relacionada com o terrível poder de destruição das armas modernas e é alimentada pelo temor das calamidades e das ruínas desastrosas que estas armas podem acarretar. Por isso, não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados.


127 Infelizmente, porém, reina muitas vezes entre os povos a lei do temor, que os induz a despender em armamentos fabulosas somas de dinheiro, não com o intento de agredir, como dizem - e não há motivo para não acreditarmos - mas para conjurar eventuais perigos de agressão.


128 Contudo, é lícito esperar que os homens, por meio de encontros e negociações, venham a conhecer melhor os laços comuns da natureza que os unem e assim possam compreender a beleza de uma das mais profundas exigências da natureza humana, a de que reine entre eles e seus respectivos povos não o temor, mas o amor, um amor que antes de tudo leve os homens a uma colaboração leal, multiforme, portadora de inúmeros bens.



Pacem in terris PT 62