Summi Pontificatus PT


CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII

SUMMI PONTIFICATUS



SOBRE O OFÍCIO DO PONTIFICADO




Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos, Bispos e aos outros
Ordinários de lugar em paz e comunhão
com a Sé Apostólica



Programa do pontificado (*)

(*) Programa do pontificado. Constatações dolorosas: afastamento da fé, convite à renovação e à volta ao Coração de Cristo. Único desejo: ser o bom pastor para todos. Dar testemunho à verdade. O terrível desastre da guerra no horizonte. Frutos amargos de erros e movimentos anticristãos. Erros derivantes do agnosticismo religioso e moral: esquecimento da solidariedade, da origem comum, da fraternidade universal com danos graves para a convivência dos povos; negação da dependência do direito humano do divino. O Estado não possui autoridade ilimitada; deve fazer tudo convergir para o bem comum; homem e família são anteriores ao Estado. Defesa firme dos direitos da família. Respeito ao direito internacional e aos direitos das gentes como pressuposto da convivência pacífica. A nova ordem internacional não pode ser estabelecida com as armas, deve fundar-se sobre o direito natural e revelado, sobre a justiça e a caridade. Colaboração dos leigos com os sacerdotes no apostolado. A Igreja reivindica para si liberdade de ação no anúncio do evangelho. A doutrina da Igreja fundamento seguro para o homem e a sociedade. A hora das trevas, o início de eventos trágicos, a guerra na Polônia. Oração para obter o fim das tribulações e uma era nova.


1 O arcano desígnio do Senhor, sem nenhum merecimento de nossa parte, quis confiar-nos a altíssima dignidade e as gravíssimas solicitudes do Sumo Pontificado justamente no ano em que ocorre o quadragésimo aniversário da consagração da humanidade ao sacratíssimo coração do Redentor, feita pelo nosso imortal predecessor, Leão XIII, ao declinar do século passado, quando surgia já a aurora do ano santo.


2 Com que alegria, comoção e íntimo assentimento acolhemos então como mensagem celeste a Encíclica Annum Sacrum, (1) justamente quando, novo levita, pudéramos recitar: Introibo ad altare Dei (Ps 42,4). E com que ardente entusiasmo o nosso coração se uniu aos pensamentos e intenções que animavam e guiavam aquele ato verdadeiramente providencial de um Pontífice que conhecera, com tão profunda agudeza, as necessidades e chagas, claras e ocultas, do seu tempo! Portanto, como poderíamos deixar de sentir hoje profundo reconhecimento para com a Providência, que houve por bem dispor coincidisse o nosso primeiro ano de pontificado com uma recordação tão importante e cara do nosso primeiro ano de sacerdócio? E como poderíamos deixar de valer-nos, com alegria, desta ocasião para prestar culto ao "Rei dos reis e Senhor dos dominadores" (1Tm 6,15 Ap 19,16) quase como oração de entrada do nosso pontificado, no espírito do nosso inesquecível predecessor e na fiel atuação das suas intenções? Como poderíamos deixar de fazer desse culto o alfa e o ômega da nossa vontade e da nossa esperança, do nosso ensino e da nossa atividade, da nossa paciência e dos nossos sofrimentos, tudo consagrado à difusão do reino de Cristo?

(1) Acta Leonis XIII, vol. XIX, p. 71.


A fonte de indizíveis bens

3 Se, à luz da eternidade, contemplarmos os acontecimentos externos e internos que se desenvolveram nos últimos quarenta anos, e lhes medirmos as grandezas e deficiências, aquela consagração universal a Cristo-Rei, pelo seu sagrado significado, pelo seu simbolismo exortador, pelo seu escopo de purificação e de elevação, revela-se aos olhos do nosso espírito como tendente a robustecer e defender cada vez mais as almas, ao mesmo tempo que, na sua previdente sabedoria, visa a sarar e enobrecer a sociedade humana e promover o seu verdadeiro bem.

Revela-se-nos também cada vez mais claramente, como uma mensagem de exortação e de graça de Deus, dirigida não só à sua Igreja mas também a um mundo hoje tão necessitado de sacudimento e de guia, porquanto, imerso no culto do presente, vem desorientando-se cada vez mais e esgotando-se na fria investigação de ideais puramente terrenos; mensagem a uma humanidade que, em fileiras cada vez mais numerosas, se destaca da fé em Cristo e, mais ainda, do conhecimento e da observância da sua lei; mensagem contra uma concepção do mundo, segundo a qual a doutrina de amor e de abnegação do Sermão da montanha e a divina ação de amor da cruz não passam de escândalo e de loucura. Como o precursor de Cristo proclamava certo dia: "Eis o Cordeiro de Deus" (
Jn 1,29), advertindo que o Esperado das gentes, se bem que ainda desconhecido, habitava entre os homens; assim o representante de Cristo, esconjurando, dirigia o seu brado possante: "Eis o vosso Rei!" (Jn 19,14) aos renegadores, aos duvidosos, aos indecisos, aos hesitantes que, ou se recusavam a seguir o Redentor glorioso, sempre vivo e operante na sua Igreja, ou seguiam-no descuidados e lentos.


4 Da difusão e arraigo do culto do divino coração do Redentor, que teve esplêndido coroamento não só na consagração da humanidade, ao findar do século passado, mas também na introdução da festa da realeza de Cristo, por nosso imediato predecessor, (2) de saudosa memória, advieram indizíveis bens a inúmeras almas: um "rio cujos braços alegram a cidade de Deus" (Ps 45,5). Que época, mais do que a nossa, teve necessidade de semelhantes bens? Que época, mais do que a nossa, foi tão atormentada pela falta de espiritualidade e profunda indigência interior, apesar do progresso técnico e puramente civil? Acaso, não se poderá aplicar-lhe a palavra reveladora do Apocalipse: "Pois dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes, porém, que és tu o infeliz; miserável, pobre, cego e nu" (Ap 3,17)?

(2) Cf. Enc. Quas primas, pp. 593-610.


5 Veneráveis irmãos! Existe acaso dever maior e mais urgente do que anunciar... "as inescrutáveis riquezas de Cristo" (Ep 3,8) aos homens do nosso tempo? E haverá coisa mais nobre do que desfraldar o vexilo real diante desses que têm seguido ou seguem bandeiras falazes e conquistar para o glorioso vexilo da cruz aqueles que dele desertaram? Que coração se não deveria abrasar e sentir-se impelido a socorrer tantos irmãos e irmãs que, devido a erros e paixões, incitamentos e prejuízos, se afastaram da fé no Deus verdadeiro, destacando-se assim da jucunda e salutar mensagem de Jesus Cristo? Quem quer que pertença à milícia de Cristo - eclesiástico ou leigo - não deveria acaso sentir-se estimulado e incitado a maior vigilância, a mais decidida defesa, ao ver que as fileiras dos inimigos de Cristo cada vez aumentam mais, ao perceber que os porta-vozes dessas tendências, renegando ou praticamente descurando as verdades vivificadoras e os valores contidos na fé em Deus e em Cristo, partem sacrilegamente as tábuas dos mandamentos de Deus para substituí-las com tábuas e normas que excluem a substância ética da revelação do Sinai, o espírito do Sermão da montanha e da cruz? Quem poderia, sem sentir profunda aflição, observar como tais desvios preparam uma trágica messe, justo no meio daqueles que, nos dias de tranqüilidade e segurança se alistam entre os sequazes de Cristo, mas que - infelizmente cristãos mais de nome que de fato - quando se trata de perseverar, de lutar, de sofrer, de afrontar as perseguições claras ou simuladas, tornam-se vítimas da pusilanimidade, da fraqueza, da incerteza, e apavorados diante dos sacrifícios impostos pela sua profissão cristã, não encontram a força necessária para beber o cálice amargo dos fiéis a Jesus Cristo?



I. SOB O SINAL DE CRISTO-REI



6 Nestas condições de tempo e de espírito, veneráveis irmãos, possa a iminente festa de Cristo-Rei, em que chegará a vosso conhecimento esta nossa primeira encíclica, ser para vós um dia de graça, de profunda renovação e de novo despertar no espírito do reino de Jesus Cristo. Seja um dia no qual a consagração do gênero humano ao divino Coração, que deve ser celebrada com particular solenidade, reúna junto do trono do eterno Rei os fiéis de todos os povos e de todas as nações em adoração e desagravo, para renovarem a ele e à sua lei de verdade e de amor o juramento de fidelidade hoje e sempre. Seja um dia de graça para todos os fiéis, no qual o fogo, por Jesus Cristo trazido à terra, se ateie em chama cada vez mais luminosa e pura. Seja um dia de graça para os tíbios, os cansados, os enfastiados, em que nos seus corações, tornados pusilânimes, amadureçam novos frutos de renovação de espírito e de fortalecimento de ânimo. Seja um dia de graça também para aqueles que ainda não conhecem Cristo e para os que o perderam; um dia no qual, de milhões de corações fiéis, se eleve ao céu a oração. Possa "a luz que ilumina cada homem que vem a este mundo" (Jn 1,9) aclarar-lhes o caminho da salvação; possa a sua graça suscitar no coração inquieto dos errantes o desejo nostálgico dos bens eternos, desejo que os induzam a voltar àquele que, do doloroso trono da cruz, tem sede também das suas almas e deseja ardentemente tornar-se também para elas "caminho, verdade e vida" (Jn 14,6).


Agradecimento paterno

7 Pondo esta primeira encíclica do nosso pontificado sob o sinal de Cristo-Rei, como que nos sentimos inteiramente seguros do consenso unânime e entusiástico de todo o rebanho do Senhor. As experiências, as ansiedades e as provações da hora presente despertam, aguçam e purificam o sentimento de comunidade da família católica num grau raramente experimentado, excitando em todos os que crêem em Deus e em Jesus Cristo a consciência de uma ameaça comum por parte de um perigo comum.


8 Deste espírito de comunidade católica, potentemente acrescido em tão árduas circunstâncias, e que é recolhimento e afirmação, resolução e vontade de vitória, sentimos o bafejo consolador e inesquecível naqueles dias em que, hesitantes mas confiados em Deus, tomamos posse da cátedra que ficara vaga pela morte do nosso grande predecessor.


9 Lembrando-nos ainda das inúmeras provas de filial acatamento à Igreja e ao Vigário de Cristo, recebidas por ocasião de nossa eleição e coroação, manifestações cheias de tanta espontaneidade e ternura, apraz-nos colher esta ocasião propícia para dirigir-vos, veneráveis irmãos, e a todos os que pertencem à grei do Senhor, uma palavra de comovido agradecimento por esse pacífico plebiscito de reverente amor e de inconcussa fidelidade ao papado, com o qual se vinha reconhecer a providencial missão do sumo sacerdote e do pastor supremo. Pois que, verdadeiramente, todas aquelas manifestações não eram nem poderiam ser dirigidas à nossa pobre pessoa mas sim ao único e altíssimo cargo a que o Senhor nos elevava. E se já desde aquele primeiro momento sentíamos todo o peso das graves responsabilidades anexas ao sumo poder que nos conferia a divina Providência, também nos era de grande conforto ver aquela grandiosa e palpável demonstração da inscindível unidade da Igreja católica que tanto mais compacta se estreita à inabalável rocha de Pedro, rodeando-a de barbacãs inexpugnáveis, quanto mais cresce a ousadia dos inimigos de Cristo.


10 Este mesmo plebiscito de unidade católica mundial e de sobrenatural fraternidade de povos em torno do Pai comum, pareceu-nos tanto mais rico de felizes esperanças, quanto mais trágicas eram as circunstâncias materiais e espirituais do momento em que se dava; e a sua recordação nos veio confortando também nos primeiros meses do nosso pontiilcado, durante os quais temos já experimentado as fadigas, as ansiedades e as provações semeadas pelo caminho que vem palmilhando a esposa de Cristo através do mundo.


11 Não queremos que passe despercebido o grande eco de comovido reconhecimento que vieram suscitar em nosso coração os augúrios daqueles que, se bem não pertençam ao corpo visível da Igreja católica, não se esqueceram, em sua nobreza e sinceridade, de sentir tudo aquilo que, ou por amor à pessoa de Cristo ou pela sua crença em Deus, os unem a nós. A todos chegue a expressão da nossa gratidão. Confiamos a todos e cada um em particular à proteção e guia do Senhor e asseguramos que um único pensamento domina a nossa mente: imitar os exemplos do bom pastor, a fim de conduzir todos à verdadeira felicidade; "para que tenham a vida e a tenham abundantemente" (Jn 10,10).



A obra providencial dos Pactos Lateranenses

12 Mas o :nossa espírito sente como que imperiosa necessidade de tornar pública a sua íntima gratidão pelos sinais de reverente :homenagem recebidos de soberanos; de chefes de Estado e de autoridades públicas daquelas nações que estão em boas relações com a Santa Sé. E uma especial alegria enche o nosso coração ao podermos, nesta primeira encíclica dirigida a todo o povo cristão esparso pelo mundo, mencionar em tal número a dileta Itália, fecundo jardim da fé plantada pelos príncipes dos apóstolos, a qual, graças à providencial obra dos Pactos Lateranenses, ocupa hoje um posto de honra entre os Estados oficialmente representados junto à Sé Apostólica. Daqueles pactos teve feliz início, como aurora de tranqüila e fraternal união de almas diante dos sagrados altares e no consórcio civil, a "paz de Cristo restituída à Itália"; paz que suplicamos ao Senhor conserve, avive, dilate e corrobore fortemente e profundamente na alma do povo italiano, tão próximo de nós, e no meio do qual respiramos o mesmo hálito de vida; augurando que este povo, tão caro aos nossos predecessores e a nós, e fiel às suas gloriosas tradições católicas, sinta cada vez mais, na alta proteção divina, a verdade das palavras do salmista: "Bem-aventurado o povo que tem o Senhor por seu Deus" (Ps 143,15).


13 E esta desejada nova situação jurídica e espiritual, criada e sigilada por aquela obra destinada a deixar um sinal indelével na história da Itália e de todo o orbe católico, nunca se nos deparou tão grandiosa e unificadora, como quando, do excelso balcão da Basílica Vaticana, abrimos e levantamos pela primeira vez os nossos braços e a nossa mão para abençoar Roma, sede do papado e nossa amadíssima cidade natal, a Itália reconciliada com a Igreja e os povos do mundo inteiro.



O dever do vigário de Cristo

14 Como vigário daquele que, numa hora decisiva, diante do representante da mais alta autoridade terrena de então, pronunciou a grande palavra: "Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; quem está pela verdade, ouve a minha voz" (Jn 18,37), de nada nos sentimos mais devedores ao nosso cargo, e também ao nosso tempo, como de, com apostólica firmeza, "dar testemunho da verdade". Este dever implica necessariamente a exposição e a refutação dos erros e das culpas humanas que devem ser conhecidas para que se torne possível a cura: "conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres" (Jn 8,32). No cumprimento deste nosso dever, não nos deixaremos influenciar por considerações terrenas, nem nos deteremos diante de difidências e contrastes, de recusas e incompreensões, nem diante do temor de desprezos e falsas interpretações. Animar-nos-á sempre aquela paternal caridade que, enquanto sofre pelos males que afligem seus filhos, não deixará de indicar-lhes o remédio, esforçando-nos por imitar o divino modelo dos Pastores, o Bom Pastor Jesus Cristo que é, a um tempo, luz e amor: "Seguindo a verdade com amor" (Ep 4,15).


15 No início da caminhada que leva à indigência espiritual e moral dos tempos presentes, estão os esforços nefastos de não poucos para destronar Cristo, o desapego da lei da verdade, que ele anunciou, da lei do amor, que é o sopro vital do seu reino. O reconhecimento dos direitos reais de Cristo e a volta de cada um e da sociedade à lei da sua verdade e de seu amor são o único caminho de salvação.


16 Enquanto escrevemos estas linhas, veneráveis irmãos, chega-nos a apavorante notícia que se desencadeara o terrível tufão da guerra, não obstante todos os nossos esforços para esconjurá-lo. A nossa caneta como que hesita em prosseguir, quando imaginamos o abismo de sofrimentos de inúmeras pessoas, às quais sorria ainda ontem, no ambiente doméstico, um raio de modesto bem-estar. O nosso coração enche-se de angústia, ao prevermos tudo o que poderá medrar da tenebrosa semente da violência e do ódio, depositada hoje nesses sulcos sangüinosos que a espada acaba de abrir: Mas, mesmo diante destas apocalípticas previsões de desventuras iminentes e futuras, achamos que é nosso dever sugerir àqueles em cujos corações se aninha ainda um sentimento de boa vontade, que elevem os olhos ao único do qual deriva a salvação do mundo, ao único; cuja mão onipotente e misericordiosa pode fazer cessar esta tempestade, ao único, cuja verdade e cujo amor podem iluminar as inteligências e inflamar os corações de tão grande parte da humanidade imersa no erro, no egoísmo, nos contrastes e na luta, e reorganizá-la no espírito da realeza de Cristo.


17 Talvez nos sej a lícito esperar - e Deus o permita - que esta hora de máxima indigência seja também uma hora de retificação do pensar e sentir de muitos que até agora palmilhavam, com cega confiança, o caminho semeado de erros modernos, sem suspeitarem quão insidioso e falso era o terreno que pisavam. Muitos talvez, que não compreendiam a importância da missão da Igreja, perceberão melhor agora os seus avisos, por eles descurados na falsa segurança de tempos passados. As angústias do presente são uma apologia do cristianismo, e não poderia ser mais impressionante. Do gigantesco vórtice de erros e movimentos anticristãos originaram-se frutos tão amargos que constituem uma condenação, cuja eficácia supera qualquer confutação teórica.


18 Horas de tão penosa desilusão são muitas vezes horas de graça, uma "passagem: do Senhor" (Ex 12,11) nas quais; à palavra do Salvador: "Eis que estou à porta,e bato" (Ap 320) abrem-se as portas que, de outra maneira, se conservariam fechadas. Bem sabe Deus com que amor comipassivo, com que santa alegria o nosso coração se volta para aqueles que, em meio de tão dolorosas experiências, sentem nascer em si o imperioso e salutar desejo da verdade, da justiça e da paz de Cristo. Mas também por aqueles que aguardam ainda a luz superna que os ilumine, o nosso coração não conhece senão amor, e de nossos lábios não se desprendem senão preces ao Pai das luzes pedindo-lhe que faça resplandecer em suas almas, indiferentes ou inimigas de Cristo, um raio daquela luz que transformou um dia Saulo em Paulo, daquela luz que demonstrou sempre a sua força misteriosa mesmo nos tempos mais difíceis para a Igreja.


Os erros dos tempos presentes


19 Uma atitude bem definida, doutrinal e completa, contra os erros dos tempos presentes poderá ser adiada, se for preciso, para uma época menos agitada pelas desgraças dos acontecimentos externos; por ora limitar-nos-emos a algumas observações fundamentais.


20 A época atual, veneráveis irmãos, acrescentando novos erros aos desvios doutrinais do passado, levou-os a extremos dos quais se não podia originar senão desorientamento e ruína. E antes de tudo, é certo que a raiz profunda e última dos males que deploramos na sociedade moderna é a negação e repulsa de uma norma de moralidade universal, quer na vida individual, quer na vida social e das relações internacionais, isto é, o desconhecimento, tão difundido nos nossos tempos, e o esquecimento da própria lei natural, que tem o seu fundamento em Deus, criador onipotente e Pai de todos, legislador supremo e absoluto, onisciente e justo vingador das ações humanas. Quando se renega Deus, abala-se toda a base de moralidade; sufoca-se ou, pelo menos, debilita-se de muito a voz da natureza, que ensina, até aos iletrados e às tribos ainda alheias à civilização, o que é bem e o que é mal, o que é lícito e o que é ilícito, e faz sentir a responsabilidade das próprias ações perante o Juiz supremo.


21 Pois bem, a negação da base fundamental da moralidade teve, na Europa, a sua raiz originária no afastamento daquela doutrina de Cristo, de que é depositária e mestra a cátedra de são Pedro; doutrina que, em tempos idos, dera certa coesão espiritual à Europa, a qual, educada, enobrecida e civilizada pela cruz, chegara a tal grau de progresso civil que a fizera mestra de outros povos e de outros continentes. Afastando-se, ao invés, do magistério infalível da Igreja, não poucos chegaram até a subverter o dogma central do cristianismo, a divindade do Salvador, acelerando assim o processo de dissolvimento espiritual.


Indícios de paganismo


22 Narra o santo evangelho que, ao crucificarem Jesus, "escureceu-se toda a terra" (Mt 27,45); pavoroso símbolo do que acontece e continua a acontecer espiritualmente onde a incredulidade, cega e orgulhosa de si mesma, exclui Cristo da vida moderna, especialmente da vida pública, e abalando a fé em Cristo abala também a fé em Deus. E por conseguinte, os valores morais, pelos quais em outros tempos se julgavam as ações privadas e públicas, acaram como que em desuso. A tão decantada laicização da sociedade, que tem feito progressos cada vez mais rápidos, subtraindo o homem, a família e o Estado ao benéfico e regenerador influxo da idéia de Deus e do ensino da Igreja, fez ressurgir, em regiões onde por espaço de tantos séculos brilharam os fulgores da civilização cristã, indícios, cada vez mais claros, mais distintos e angustiosos de um paganismo corrompido e corruptor: "Quando crucificaram Jesus obscureceu-se toda a terra".(3)

(3) Breviário romano.


23 Muitos talvez, ao se afastarem da doutrina de Cristo, não tiveram plena consciência de serem enganados pela falsa miragem de frases brilhantes que proclamavam tal afastamento como um libertar-se da escravidão a que julgavam estar antes sujeitos; nem previam as amargas conseqüências da triste permuta entre a verdade, que liberta, e o erro que escraviza; nem pensavam que, renunciando à infinitamente sábia e paternal lei de Deus e à unificadora e nobre doutrina de amor de Cristo, se entregavam ao arbítrio de uma pobre e mutável sabedoria humana. Falavam de progresso quando retrocediam; de elevação, quando se degradavam; de ascensão ao amadurecimento, quando caíam na escravidão; não percebiam a vaidade de todo o esforço humano em substituir a lei de Cristo por alguma outra coisa que a igualasse: "tornaram-se fátuos nos seus arrazoados" (Rm 1,21).


24 Enfraquecida a fé em Deus e em Jesus Cristo, ofuscada nos ânimos a luz dos princípios morais, fica a descoberto o único e insubstituível alicerce daquela estabilidade e tranqüilidade, daquela ordem externa, e interna, privada e pública, única que pode gerar e salvaguardar a prosperidade dos Estados.


25 É verdade também que nos tempos em que a Europa se irmanara com ideais idênticos recebidos da pregação cristã, não faltaram dissídios, desordens e guerras que a desolaram; mas talvez nunca se tenha experimentado tão agudamente o desalento dos nossos dias sobre a possibilidade de conciliação; viva era então a consciência do justo e do injusto, do lícito e do ilícito, que facilita os entendimentos, enquanto freis o desencadear das paixões e deixa aberta a via a um honesto acordo. Nos nossos dias, ao contrário, os dissídios provêm não somente do ímpeto de paixões rebeldes, mas de uma profunda crise espiritual que subverte os sãos princípios da moral privada e pública.



II. O ESQUECIMENTO DA LEI DA CARIDADE

26 Entre os multíplices erros derivados da fonte envenenada do agnosticismo religioso e moral, queremos chamar a vossa atenção, veneráveis irmãos, para dois de modo especial, que são, a bem dizer, os que tornam quase impossível, ou ao menos precária e incerta, a convivência pacífica dos povos.


27 O primeiro desses erros perniciosos, hoje largamente difundidos, é o esquecimento daquela lei de caridade e solidariedade humana, sugerida e imposta, quer pela identidade de origem, e pela igualdade da natureza racional em todos os homens, sem distinção de povos, quer pelo sacrifício da redenção oferecido por Jesus Cristo sobre a cruz ao Pai celeste em favor da humanidade pecadora.


28 De fato, logo na primeira página, narra-nos a Escritura com grandiosa simplicidade que Deus, para coroar a sua obra criadora, fez o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26-27); e diz-nos a mesma Escritura que o enriqueceu de dons e privilégios sobrenaturais, destinando-o a uma eterna e inefável felicidade. Mostra-nos, além disso, como do primeiro casal tiveram origem os outros homens, dando-nos a seguir, com insuperável plasticidade de linguagem, a divisão em vários grupos e a sua dispersão pelas diversas partes do mundo. Mesmo quando se afastaram do seu Criador, Deus continuou a considerá-los como filhos que, segundo o seu misericordioso desígnio, deveriam um dia gozar ainda da sua amizade (Gn 12,3).


29 O Apóstolo das gentes faz-se depois arauto desta verdade, que irmana os homens numa grande família, quando anuncia ao povo grego que Deus "tirara de um único tronco toda a progênie dos homens, para que povoassem toda a superfície da terra, e determinara o curso da sua existência e os limites das suas habitações, a fim de que procurassem o Senhor" (Ac 17,26). Maravilhosa visão que nos faz contemplar o gênero humano na unidade de uma origem comum em Deus: um só "Deus e Pai de todos, aquele que está acima de todos, por todos e em todos" (Ep 4,6): na igualdade de natureza, igualmente constituída em todos de corpo material e alma espiritual e imortal; na unidade do fim imediato e da sua missão no mundo; na unidade de habitação, a terra, de cujos bens, por direito natural, todos os homens podem valer-se a fim de sustentar e desenvolver a vida; na unidade do fim sobrenatural, o próprio Deus, a que todos devem tender; na unidade dos meios para conseguir tal fim.


30 E o mesmo Apóstolo mostra-nos a humanidade na unidade de relações com o Filho de Deus, imagem do Deus invisível, no qual foi criado tudo o que existe; na unidade do resgate de todos operado por Cristo que, fazendo-se mediador entre Deus e os homens, mediante sua santa e acerbíssima paixão restituíra à humanidade a primitiva amizade de Deus: "Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus" (1Tm 2,5).


31 E para tornar mais íntima tal amizade entre Deus e a humanidade, este mesmo mediador divino e universal de salvação e de paz, no sagrado silêncio do Cenáculo, antes de consumar o sacrifício supremo, deixou cair de seus lábios divinos a palavra que vem sendo repetida no correr dos séculos, suscitando ao mesmo tempo heroísmos de caridade em meio de um mundo vazio de amor e dilacerado pelo ódio: "Eis o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei" (Jn 15,12).


32 Verdades sobrenaturais estas, que estabelecem bases profundas e solidíssimos vínculos de união, reforçados pelo amor de Deus e do divino Redentor, do qual recebem todos a saúde "pela edificação do corpo de Cristo, até que cheguemos todos a unidade da fé, ao pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado do homem perfeito, segundo a medida da plenitude de Cristo" (Ep 4,12-13).


33 À luz desta unidade de direito e de fato de toda a humanidade, os indivíduos não nos aparecem desligados entre si, como grãos de areia; mas sim unidos por relações, diversas com o variar dos tempos, mas orgânicas, harmoniosas e mútuas, por natural e sobrenatural destino e impulso. E os povos, evoluindo e diferenciando-se segundo as diversas condições de vida e de cultura, não são destinados a quebrar a unidade do gênero humano, mas sim a enriquecê-lo e aformoseá-lo, com a comunicação dos seus dotes peculiares e com aquela recíproca permuta dos bens, possível e ao mesmo tempo eficaz somente quando um mútuo amor e uma caridade vivamente sentida venha unir todos os filhos do mesmo Pai e todos os redimidos pelo mesmo sangue divino.


34 A Igreja de Cristo, fidelíssima depositária de uma sabedoria divina e educativa, não pode cogitar nem cogita em criticar ou menosprezar as características especiais que cada povo guarda, com ciosa devoção e compreensível ufania, e considera como patrimônio precioso. O seu escopo é a unidade sobrenatural no amor universal, sentido e praticado, e não a uniformidade, exclusivamente exterior, superficial, e por isso mesmo debilitante. A Igreja saúda jubilosa e acompanha com seus votos maternais todas as diretrizes e solicitudes que visem a criterioso e ordenado desenvolvimento de forças e tendências particulares e têm suas raízes nos mais recônditos escaninhos de cada estirpe, contanto que não contrastem com os deveres da humanidade derivados da unidade de origem e comum destino. Na sua atividade missionária, a Igreja vem afirmando repetidamente que tal norma é a estrela polar do seu apostolado universal. Inúmeras pesquisas e investigações de pioneiros, realizadas com sacrifício, amor e dedicação pelos missionários de todos os tempos, propunham-se facilitar a compreensão interior e o respeito das diversas formas de civilização, e tornar fecundos os valores espirituais por meio da pregação viva e vital do evangelho de Cristo. Tudo o que em tais usos e costumes não seja indissoluvelmente ligado a erros religiosos, será sempre benevolamente examinado, e quando possível, promovido e tutelado. E o nosso imediato predecessor, de santa e veneranda memória, ao aplicar tais normas a uma questão de singular delicadeza, tomou decisões generosas que elevaram um monumento à vastidão do seu intuito e ao ardor do seu espírito apostólico. É escusado dizer-vos, veneráveis irmãos, que entendemos prosseguir por esta via sem a menor hesitação. Todos aqueles que passam a fazer parte da Igreja, qualquer seja a sua origem ou língua, devem saber que têm igual direito de filhos na casa do Senhor, onde impera a lei e a paz de Cristo. De acordo com estas normas de igualdade, a Igreja consagra as suas solicitudes à formação de numeroso clero indígena e ao aumento gradual do episcopado indígena. E para dar uma prova destas nossas intenções, escolhemos a iminente festa de Cristo-Rei para elevar à dignidade episcopal sobre o túmulo do príncipe dos apóstolos, doze representantes de diversos povos e estirpes.


35 Entre os dilacerantes contrastes que dividem a família humana, possa este ato solene proclamar a todos os nossos filhos, esparsos pelo mundo, que o espírito, o ensino e a obra da Igreja nunca poderão ser diversos daquilo que pregava o Apóstolo das gentes: "E vos revestistes do homem novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador. Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro; cita, escravo, livre, mas Cristo é tudo e em todos" (Col 3,10-11).


O amor cristão da pátria

36 Nem se deve recear que a consciência da fraternidade universal, fomentada pela doutrina cristã, e o sentimento que ela inspira, estejam em contraste com o amor às tradições e glórias da própria pátria, ou impeçam que se promovam a prosperidade e os interesses legítimos, porquanto essa mesma doutrina ensina que existe uma ordem estabelecida por Deus no exercício da caridade, segundo a qual se deve amar mais intensamente e auxiliar de preferência os que estão a nós unidos com vínculos especiais. E o divino Mestre deu também exemplo dessa preferência pela sua pátria, chorando sobre as ruínas da Cidade Santa. Mas o legítimo e justo amor à própria pátria não deve excluir a universalidade da caridade cristã que faz considerar também aos outros e a sua prosperidade, na luz pacificadora do amor.


37 Tal é a maravilhosa doutrina de amor e de paz, que tão nobremente tem contribuído para o progresso civil e religioso da humanidade. E os arautos que, movidos por caridade sobrenatural, a anunciaram, não só arrotearam terrenos e curaram enfermidades, mas bonificaram, plasmaram e elevaram a vida a alturas divinas, impelindo-a para os cimos da santidade, que faz contemplar tudo à iuz de Deus. Elevaram monumentos e templos que demonstram a que geniais alturas conduz o ideal cristão, mas sobretudo transformaram os homens, sábios ou ignorantes, poderosos ou fracos, em templos vivos de Deus e ramos da mesma videira, Cristo. Transmitiram às gerações futuras os tesouros de arte e sabedoria antiga, não só, mas tornaram-nas participantes daquele inefável dom da sabedoria eterna, que irmana e une os homens com vínculo de sobrenatural dependência.



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