Summi Pontificatus PT 37


III. O DIREITO HUMANO E O DIREITO DIVINO

38 Veneráveis irmãos, se o esquecimento da lei de caridade universal, única que pode consolidar a paz, apagando os ódios e atenuando os rancores e contrastes, é causa de gravíssimos males à convivência pacífica dos povos, não menos nocivo ao bem-estar e à prosperidade da sociedade humana, que reúne e abraça dentro dos seus confins todos os povos, se mostra o erro contido naquelas concepções que não hesitam em dispensar a autoridade civil de toda e qualquer dependência do Ente supremo, causa primeira e Senhor absoluto tanto do homem como da sociedade, e de todo o liame de lei transcendente, que deriva de Deus como de fonte primária, e lhe concedem uma ilimitada faculdade de ação, abandonada à onda inconstante do arbítrio ou tão-somente aos ditames de exigências históricas contingentes e de interesses relativos.


39 Renegada assim a autoridade de Deus e o império da sua lei, o poder civil, por conseqüência inevitável, tende a atribuir a si aquela absoluta autonomia que compete ao Autor Supremo; a substituir-se ao Onipotente; elevando o Estado ou a coletividade a fim último da vida; a critério sumo da ordem moral e jurídica, e interdizendo dessa maneira todo o apelo aos princípios da razão natural e da consciência cristã.


40 Bem sabemos, na verdade, que os princípios errados, felizmente, nem sempre exercem toda a sua influência; principalmente quando as tradiçiões cristãs, várias vezes seculares, de que se nutriram os povos, permanecem ainda, profundamente arraigadas nos corações, ainda que inconscientemente. É preciso, todavia, ter presente a essencial insuficiência e fragilidade de toda a norma de vida social, que repouse sobre alicerce exclusivamente humano, que se inspire em motivos exclusivamente terrenos e ponha a sua força na sanção de uma autoridade simplesmente exterior.


41 Onde se nega a dependência do direito humano do direito divino, onde não se apela senão para uma idéia mal segura de autoridade meramente terrena, onde se reivindica uma autonomia fundada apenas numa moral utilitária, ali o próprio direito humano perde justamente, nas suas aplicações mais gravosas, a sua força moral, que é a condição essencial para ser reconhecido e para exigir sacrifícios, se forem precisos.


42 É verdade também que o poder assim alicerçado em base tão frágil e oscilante, mercê de circunstâncias contingentes, pode às vezes conseguir sucessos materiais que assombram observadores não muito profundos; mas há de chegar a hora em que triunfará a lei inelutável que fere tudo o que tenha sido construído sobre uma latente ou clara desproporção entre a grandeza do êxito material e exterior e a fraqueza do valor interior e da sua base moral. Desproporção que subsiste sempre quando a autoridade pública desconhece ou renega o domínio do sumo legislador que, se dá o poder aos governantes, não deixa de assinalar-lhes e determinar-lhes os limites.


A tarefa do Estado

43 Quer o Criador que exista a soberania civil, como afirmou sapientemente o nosso grande predecessor Leão XIII na encíclica Immortale Dei, (4) para que regule a vida social de acordo com as prescrições de uma ordem imutável nos seus princípios universais, para que torne mais fácil à pessoa humana, na ordem temporal, alcançar a perfeição física, intelectual e moral, e para que a ajude a conseguir o fim sobrenatural.

(4) Acta Leonis XIII, vol. V, p. 118


44 Nobre prerrogativa e missão do Estado é, pois, o fiscalizar, auxiliar e ordenar as atividades particulares e individuais da vida nacional, fazendo-as convergir harmonicamente para o bem comum, que não pode ser determinado por concepções arbitrárias, nem pode receber a sua norma primariamente da prosperidade material da sociedade, mas sim do desenvolvimento harmônico e da perfeição natural do homem, a quem, como meio, é pelo Criador destinada a sociedade.


45 Considerar o Estado como fim a que tudo deve ser dirigido e subordinado, seria o mesmo que prejudicar a verdadeira e duradoura prosperidade das nações. E dá-se isso quando tal domínio ilimitado seja atribuído ao Estado, como mandatário da nação, do povo ou até de uma classe, ou quando o Estado o pretende, como senhor absoluto, independentemente de qualquer mandato.


46 Com efeito, se o Estado se arroga e dispõe das iniciativas privadas, estas, que são governadas por delicadas e complexas normas internas, que garantem e asseguram alcançar o fim que lhes é próprio, vêem-se danificadas com desvantagem do bem público, por serem destacadas do seu ambiente natural, ou seja da responsabilidade ativa particular.


47 Também a primeira e essencial célula da sociedade, a família, com o seu bem-estar e desenvolvimento, correria então o risco de ser considerada pertença exclusiva do poder nacional, esquecendo-se assim que o homem e a família são, por natureza, anteriores ao Estado e que a ambos deu o Criador forças e direitos, comando-lhes também uma missão correspondente às incontestáveis exigências naturais de cada um.


48 A educação das novas gerações não visaria à desenvolvimento equilibrado e harmônico das forças físicas e de todas as qualidades intelectuais e morais, mas sim à formação unilateral daquelas virtudes cívicas julgadas necessárias para alcançar sucessos políticos; ao contrário deixariam de ser inculcadas aquelas virtudes que dão à sociedade o perfume de nobreza, de humanidade e de respeito, como se elas diminuíssem o brio do cidadão.


Os direitos da família

49 Diante dos nossos olhos aparecem em toda a sua dolorosa clareza os perigos que tememos possam advir a esta geração e às gerações futuras, do desconhecimento, da diminuição e da progressiva abolição dos direitos próprios da família. Por isso é que nos erguemos em defensores de tais direitos, com plena consciência do dever que nos impõe o nosso ministério apostólico. As angústias dos nossos tempos, tanto interiores como exteriores, tanto materiais como espirituais, os multíplices erros com suas inúmeras repercussões, se há alguém que os experimenta amarissimamente é a minúscula e nobre célula familiar. E preciso, às vezes, grande coragem e, na sua simplicidade, heroísmo digno de grande admiração e respeito, para suportar as durezas da vida, o peso cotidiano das misérias, as indigências e estreitezas que crescem em medida jamais experimentada; e por vezes sem razão nem necessidade: Quem se ocupa das almas e recebe as confidências dos corações, bem conhece as furtivas lágrimas de muitas mães, a dor resignada de inúmeros pais, e as muitas amarguras, que nenhuma estatística cita nem poderá citar, vê com verdadeira preocupação crescerem sempre mais esses sofrimentos, bem sabendo que as potências da subversão e destruição estão vigilantes e prontas a servir-se disso para os seus tenebrosos desígnios.


50 Quem tenha um pouco de boa vontade e olhos abertos não poderá por certo recusar ao Estado, nas circunstâncias extraordinárias em que se acha o mundo, um direito mais amplo e excepcional para acudir às necessidades do povo. Mas a ordem moral, por Deus estabelecida, exige também em tais contingências que se indague com maior sutileza e seriedade se tais providências são realmente necessárias, segundo as normas do bem comum.


Os direitos da consciência

51 Em todo o caso, quanto mais onerosos são os sacrifícios materiais pelo Estado, exigidos dos indivíduos e das famílias, tanto mais sagrados e invioláveis devem ser os direitos das consciências. Poderá pretender bens e sangue, nunca porém a alma por Deus redimida. A missão que Deus confiou aos pais de se interessarem pelo bem material e espiritual da sua prole e de dar a ela uma formação harmônica e repassada de verdadeiro espírito religioso, não lhes poderá ser arrebatada sem grave lesão do direito. Esta formação deve certamente ter por finalidade também preparar a juventude para cumprir com inteligência, consciência e galhardia aqueles deveres de patriotismo que dá à pátria terrestre a devida medida de amor, de dedicação e colaboração. Mas por outra parte, uma formação que se esqueça, ou, o que é pior ainda, propositalmente descure de dirigir os olhos e o coração da juventude para a pátria sobrenatural, seria uma injustiça contra a juventude, uma injustiça contra os inalienáveis deveres e direitos da família cristã, um excesso a que se deve remediar também em favor do bem público e do Estado. Semelhante educaç?8o poderia parecer àqueles que por ela são responsáveis, fonte de maior força e vigor; na realidade seria o contrário e as tristes conseqüências encarregar-se-iam de prová-lo. O delito de lesa majestade contra o "Rei dos reis e o Senhor dos dominadores" (1Tm 6,15 Ap 19,16) perpetrado por uma educação indiferente ou contrária ao espírito cristão, a inversão do "deixai que as crianças venham a mim" (Mc 10,14) acarretaria amaríssimos frutos. Ao contrário, o Estado que tira aos dilacerados corações dos pais e das mães as suas preocupações e restabelece os seus direitos, mais não faz do que promover a própria paz interna e lançar as bases de um futuro mais feliz para a pátria. As almas dos filhos que Deus deu aos pais, assinaladas no batismo com o selo real de Cristo, são um depósito sagrado por Deus vigiado com cioso amor. O mesmo Crispo que disse "deixai que as crianças venham a mim", ameaçou também, não obstante sua bondade e misericórdia, terríveis males àqueles que escandalizam os prediletos do seu coração. E que escândalo mais nocivo e duradouro às gerações do que uma formação da juventude dirigida para uma meta que afasta de Cristo, "caminho, verdade e vida", levando-a a uma simulada ou manifesta apostasia? Este Cristo do qual querem alienar as gerações juvenis presentes e futuras, é o mesmo que recebeu do seu eterno Pai o poder no céu e na terra. Em sua mão onipotente tem ele o destino dos Estados, dos povos e das nações. A ele compete diminuir-lhes ou prolongar-lhes a vida, o desenvolvimento, a prosperidade e a grandeza. De tudo o que existe sobre a terra, somente a alma tem vida imortal. Um sistema de educação que não respeitasse o recinto sagrado da família, protegido pela santa lei de Deus, que procurasse minar-lhe os alicerces, que fechasse à juventude o caminho que conduz a Deus, às fontes de vida e de alegria do Salvador (Is 12,3), que considerasse o apostatar Cristo e a Igreja como símbolo de fidelidade ao povo ou a uma determinada classe, pronunciaria contra si mesmo a sentença de condenação, e experimentaria, a seu tempo, a inelutável verdade das palavras do profeta: "Aqueles que se afastam de ti serão escritos na terra" (Jr 17,13).


Leis morais supremas

52 A concepção que atribui ao Estado uma autoridade ilimitada, veneráveis irmãos, não é somente um erro pernicioso à vida interna das nações, à sua prosperidade e ao maior incremento do seu bem-estar, mas prejudica também as relações entre os povos, rompendo a unidade da sociedade supernacional, tirando a base e o valor ao direito das gentes, abrindo caminho à violação dos direitos alheios e tornando difícil o acordo para a convivência pacífica.


53 Embora o gênero humano, por disposição de ordem natural estabelecida por Deus, esteja dividido em grupos sociais, nações ou Estados, independentes uns dos outros, no que respeita ao modo de organizar e dirigir a sua vida interna, acha-se, contudo, ligado por recíprocos vínculos morais e jurídicos, numa grande comunidade, organizada para o bem de todos os povos e regulada por leis especiais que tutelam a sua unidade e promovem a sua prosperidade.


54 Ora, não há quem não perceba que a autonomia absoluta do Estado põe-se em aberto contraste com esta lei imanente e natural, ou melhor nega-a radicalmente, deixando à mercê da vontade dos governantes a estabilidade das relações internacionais e tirando a possibilidade de uma verdadeira união e fecunda colaboração no que respeita ao interesse geral. Porque, veneráveis irmãos, para a existência de contatos harmônicos e duradouros e de relações frutuosas, é indispensável que os povos reconheçam e observem aqueles princípios de direito natural internacional, que regulam o seu normal funcionamento e desenvolvimento. Tais princípios exigem o respeito dos relativos direitos à independência, à vida e à possibilidade de um desenvolvimento progressivo no caminho da civilização; exigem, além disso, a fidelidade aos pactos estipulados e ratificados segundo as normas do direito das gentes.


55 Não há dúvida que o pressuposto indispensável de toda a convivência pacífica entre os povos e a alma das relações jurídicas, em vigor entre eles, é a mútua confiança, a previsão e persuasão da recíproca fidelidade à palavra dada, a certeza de que tanto de uma parte como de outra existe a convicção de que "é preferível a sabedoria às armas guerreiras" (Qo 9,18) e que se está disposto a discutir e a não recorrer à força ou a ameaça da força quando surgissem tardanças, impedimentos, alterações e contendas, coisas que podem ter a sua origem não na má vontade, mas sim em circunstâncias que se modificaram ou interesses que se contrastam.


56 Mas, por outra parte, destacar o direito das gentes da âncora do direito divino, para ligá-lo à vontade autônoma dos Estados, é o mesmo que destronar esse direito e tirar-lhe os títulos mais nobres e válidos, para abandoná-lo à infausta dinâmica do interesse privado e do egoísmo coletivo, no intuito de fazer valer os próprios direitos desconhecendo ao mesmo tempos os dos outros.


Orgulhosas ilusões

57 E também verdade que, com o passar do tempo e a mudança substancial das circunstâncias, não previstas e talvez nem sequer previsíveis no ato da estipulação, um tratado ou algumas das suas cláusulas podem tornar-se ou parecer injustas, inatualizáveis ou muito onerosas a uma das partes; é claro que, se isso acontecesse, dever-se-ia proceder oportunamente a uma discussão leal para modificar ou substituir o tratado. Mas considerar os pactos, por princípio, como efêmeros e arrogar-se tacitamente a faculdade de rescindi-los unilateralmente quando não convenham mais, seria o mesmo que anular a confiança recíproca entre os Estados. Mutilar-se-ia assim a ordem natural, cavando-se ao mesmo tempo entre as nações lamentáveis abismos de separação.


58 Hoje, veneráveis irmãos, todos contemplam com terror o abismo a que levaram os erros por nós caracterizados e as suas conseqüências práticas. Ruíram por terra as orgulhosas ilusões de um progresso indefinido; e os que ainda cochilassem seriam despertados, na trágica época que atravessamos, com as palavras do profeta: "Ouvi, ó surdos, e vede ó cegos" (Is 42,18). O que exteriormente parecia ordem, não era senão uma invasão perturbadora e desbarato das normas de vida moral as quais, destacadas da majestade da lei divina, haviam contaminado todos os campos da atividade humana. Mas deixemos o passado e lancemos os nossos olhares para o futuro que, segundo o que prometem os poderosos deste mundo, apenas cessados os hodiernos e sangüinolentos encontros, consistirá numa nova reorganização do mundo, fundada na justiça e na prosperidade. Será verdadeiramente diferente tal futuro? Será sobretudo melhor? No fim desta guerra, serão os tratados de paz e a nova ordem internacional animados de justiça e eqüidade para com todos? Serão animados daquele espírito que liberta e pacifica, ou serão uma lamentável repetição dos erros antigos e recentes? Coisa vã e demonstrada pela experiência, seria esperar uma mudança radical exclusivamente do encontro bélico. A hora da vitória é sempre uma hora de um triunfo exterior por parte de quem a consegue; mas é, ao mesmo tempo, a hora da tentação, na qual o anjo da justiça luta com o demônio da violência. O coração do vencedor endurece-se muito facilmente; a moderação e uma longividente sabedoria deparam-se-lhe como fraqueza; a exaltação das paixões populares, incitada pelos sacrifícios e sofrimentos suportados, vela muitas vezes os olhos dos responsáveis e faz-lhes desprezar a voz admoestadora da humanidade e da eqüidade, sobrepujada ou aniquilada pelo inumano: "ai dos vencidos!" Resoluções e decisões nascidas em tais circunstâncias arriscam-se sempre a serem injustas se bem cobertas com o manto da justiça.


Energias renovadoras

59 Não, veneráveis irmãos, a salvação dos povos não pode vir dos meios externos; a espada que é capaz de impor condições de paz, não pode criar a paz. As energias que devem renovar a face da terra devem partir do interior, do espírito. A nova organização do mundo, da vida nacional e internacional, quando cessarem as amarguras e as cruéis lutas hodiernas, não deverá repousar mais na areia movediça das normas mutáveis e efêmeras, deixadas ao arbítrio do egoísmo coletivo e individual. Devem elas antes erguer-se sobre sólida base, sobre a rocha inabalável do direito natural e da revelação divina. Dali deverá o legislador humano atingir aquele espírito de equilíbrio, aquele apurado senso de responsabilidade moral, sem o que é fácil desconhecer os limites entre o legítimo uso e o abuso do poder. Tão-somente assim as suas decisões poderão ter consistência interna, nobre dignidade e sanção religiosa, e não ficarão à mercê do egoísmo e da paixão. Porquanto, se é verdade que os males sofridos hoje pela humanidade, procedem, em parte do desequilíbrio econômico e da luta dos interesses, no intuito de alcançar uma distribuição mais équa dos bens que Deus concedeu ao homem como meios do seu sustento e progresso, verdade é também que eles têm a sua raiz muito mais profunda a tocar nas crenças religiosas e nas convicções morais, pervertidas pelo progressivo afastamento dos povos da unidade de doutrina e de fé, de costumes e de moral, promovida um dia pela obra indefessa e benéfica da Igreja. A reeducação da humanidade, para ter qualquer resultado positivo, deverá ser sobretudo espiritual e religiosa; deverá, portanto, partir de Cristo, sua base indispensável, deverá ser atuada pela justiça e coroada pela caridade.


A tarefa materna da Igreja

60 Realizar esta obra de regeneração, adaptando os seus meios às modificadas condições dos tempos e às novas necessidades do gênero humano, eis a tarefa essencial e materna da Igreja. Agregação do Evangelho, imposta pelo seu divino fundador, em que se inculca aos homens a verdade, a justiça e a caridade, e o esforço para arraigar nas almas e nas consciências os seus preceitos, eis também o trabalho mais nobre e frutuoso em favor da paz. A grandiosidade de tal missão quase que esmorece os corações daqueles que fazem parte da Igreja militante. Mas o empenhar-se para que seja difundido o reino de Deus, coisa que cada século procurou realizar de vários modos, com diversos meios e não poucas e duras lutas, é um dever imposto a todo aquele que a graça divina arrancou das garras de Satanás e que com o batismo elegeu cidadão daquele reino. E se o pertencer a esse reino, o viver segundo o seu espírito, o trabalhar pelo seu incremento e o tornar acessíveis os seus bens também àquela porção da humanidade que ainda dele não faz parte, equivale em nossos dias a dever afrontar oposições vastas e tenazes e minuciosamente organizadas, isso a ninguém dispensa da franca e corajosa procissão de fé, mas antes deve incitar a ser firme na luta, também a custo dos maiores sacrifícios. Quem vive do espírito de Cristo não se deixa abater pelas dificuldades que lhe vêm ao encontro, mas sente-se como que impelido a empregar todas as suas forças com plena confiança em Deus; não se esquiva às estreitezas e necessidades da hora, mas afronta as suas asperezas, pronto sempre a socorrer com aquele amor que não poupa sacrifícios; é mais forte que a própria morte e não se deixa levar pelas impetuosas águas da tribulação.


61 Diariamente elevamos a Deus o nosso humilde e profundo agradecimento, veneráveis irmãos, pelo íntimo conforto e celeste alegria que nos proporciona observar em todas as partes do mundo católico sinais evidentes de um espírito que afronta corajosamente os gigantescos encargos da época presente e que, generosa e decididamente, tende a reunir em fecunda harmonia o primeiro e essencial dever da própria santificação e a atividade apostólica para a difusão sempre maior do reino de Cristo. Do movimento dos congressos eucarísticos promovidos com amorosa solicitude pelos nossos predecessores, da colaboração dos leigos formados na Ação católica e da profunda consciência da sua nobre missão, derivam fontes de graças e reservas de forças, que dificilmente se poderiam estimar como merecem, tanto delas necessitamos nos tempos atuais em que aumentam as ameaças, enquanto arde a luta entre o cristianismo e o anticristianismo.



IV. O TRABALHO APOSTÓLICO DOS LEIGOS

62 Quando contemplamos com tristeza a desproporção entre o número dos sacerdotes e os encargos que lhes tocam, quando vemos verificar-se ainda hoje a palavra do Salvador: "a messe é imensa e os operários são poucos" (Mt 9,37 Lc 10,2), a colaboração dos leigos no apostolado hierárquico, numerosa e animada de ardente zelo e de generosa dedicação, depara-se-nos um precioso auxílio à obra dos sacerdotes e mostra possibilidades de desenvolvimento que legitimem as mais belas esperanças. A prece da Igreja ao Senhor da messe, para que mande operários à sua vinha, foi atendida como o requerem as necessidades da hora presente e, felizmente, supre e completa as energias, por vezes impedidas e insuficientes, do apostolado sacerdotal. Uma ardente falange de homens e de mulheres e de jovens de ambos os sexos, obedecendo à voz do sumo pastor às diretrizes dos próprios bispos, consagra-se com todo o ardor de sua alma às obras do apostolado para reconduzir a Cristo as massas populares que dele se haviam separado. A todos chegue, neste momento tão importante para a Igreja e a humanidade, a nossa saudação paterna, o nosso comovido agradecimento e a nossa confiante esperança. Puseram eles, verdadeiramente, a sua vida e as suas obras sob o vexilo de Cristo-Rei e podem repetir com o Salmista: "Ao rei exponho as minhas obras" (Ps 44,1). O "venha a nós o vosso reino" é não só o voto ardente de suas preces, mas também a diretriz de suas obras. Em todas as classes, em todas as categorias, em todos os grupos esta colaboração do laicado com o sacerdócio revela preciosas energias às quais está confiada uma missão que mais elevada e consoladora não poderiam desejar corações nobres e fiéis. Esse trabalho apostólico, realizado segundo o espírito da Igreja, consagra o leigo quase "ministro de Cristo" no sentido assim explicado por santo Agostinho: "Ó irmãos, quando ouvis o Senhor dizer: 'Onde estou eu aí estará também o meu ministro', não deveis pensar somente nos bons bispos e nos bons clérigos. Também vós, a vosso modo, deveis ser ministros de Cristo, vivendo bem, fazendo esmolas, pregando o seu nome e a sua doutrina a quem puderdes, de modo que cada qual, mesmo se pai de família, reconheça dever, também por esse título, um afeto paterno à sua família. Por Cristo e pela vida eterna, ninguém deixe de exortar os seus, e os instrua, exorte, repreenda, demonstrando-lhes sempre benevolência e mantendo-os na ordem; exercerá assim em casa o ofício de clérigo e, de certo modo, o de bispo, servindo Cristo, para com ele permanecer eternamente".(5)

(5) Sobre o Ev. de são João, t. 51, n.13.


No lar doméstico

63 Ao promover esta colaboração de leigos ao apostolado, tão importante nos nossos tempos, toca uma especial missão à família, porque o espírito da família influi essencialmente sobre o espírito das gerações juvenis. Enquanto resplandecer, no lar doméstico, a chama sagrada da fé em Cristo e os pais formarem e plasmarem a vida dos filhos segundo esta fé, a juventude prontificar-se-á sempre a reconhecer o Redentor em suas prerrogativas reais, e opor-se-á a quem o tente banir da sociedade ou sacrilegamente lhe viole os direitos. Ainda que se fechem as Igrejas, que se proscreva da escola a imagem do Crucificado, a família continua a ser um refúgio providencial e, de certo qual modo, inatacável da vida cristã. E damos infinitas graças a Deus por vermos que muitíssimas famílias cumprem essa sua missão com uma fidelidade que afronta todos os ataques e sacrifícios. Uma possante falange juvenil, mesmo naquelas regiões em que a fé em Cristo significa sofrimento e perseguição, permanece firme junto do trono do Redentor, com aquela decisão e tranqüilidade que fazem lembrar os tempos mais gloriosos das lutas da Igreja. Que de torrentes de bens inundariam o mundo, de quanta luz, ordem e paz gozaria a vida social, e quantas energias preciosas e insubstituíveis promoveriam o bem da humanidade se em toda a parte se concedesse à Igreja, mestra de justiça e de amor, aquela liberdade de ação a que tem direito sagrado e incontestável, por mandato divino. Quantos males poderiam ser evitados, quanta felicidade e tranqüilidade se poderia criar, se os esforços sociais e internacionais para se restabelecer a paz se deixassem permeabilizar pelos profundos impulsos do evangelho do amor, na luta contra o egoísmo individual e coletivo!


Trabalho pacificador

64 Entre as leis que regulam a vida dos fiéis cristãos e os postulados duma genuína humanidade não existe nenhum contraste mas sim comunhão de ideais e apoio mútuo. Para vantagem da humanidade que, profundamente abalada, sofre material e moralmente, formulamos um nosso ardente desejo: e é que as angústias presentes abram os olhos de muitos, a fim de que, iluminados pela verdadeira luz, possam refletir sobre nosso Senhor Jesus Cristo e a missão da sua Igreja nesta terra, e para que os que exercem o poder se resolvam a dar à Igreja campo livre na formação das gerações, segundo os princípios da justiça e da paz. Este trabalho pacificador supõe naturalmente que não se interponham embaraços ao exercício da missão que Deus confiou à sua Igreja, que não se restrinja o campo da sua atividade, que não se subtraia ao seu benéfico influxo as massas e principalmente a juventude. Por isso nós, como representante daquele que o profeta denominou "Príncipe da paz"(Is 9,6), apelamos para os governantes e para todos os que de qualquer modo exerçam influência nos negócios públicos, a fim de que a Igreja goze sempre de plena liberdade no cumprimento da sua obra educativa que é anunciar a verdade, inculcar a justiça e inflamar os corações de caridade divina.


65 Se, por uma parte, a Igreja não pode renunciar ao exercício desta sua missão que tem por fim último atuar neste mundo o divino desígnio de restaurar tudo em Cristo, por outra, esta sua obra de restauração revela-se, hoje mais do que nunca, necessária; visto a triste experiência vir demonstrando que os meios externos, as providências humanas e os expedientes políticos, por si sós, são incapazes de dar um alívio eficaz à humanidade atribulada por tantos males.


66 Convencidos da dolorosa falência dos expedientes humanos, e para esconjurar as tempestades que ameaçam arrastar a civilização para tenebrosa voragem, muitos são os que voltam seus olhares esperançosos para a Igreja, para a cátedra de Pedro, rocha de verdade e de amor, certos de que tão-somente dali pode partir aquela unidade de doutrina religiosa e moral que, em tempos idos, tanta consistência deu às relações pacíficas entre os povos. Unidade para a qual dirigem também seus olhares nostálgicos tantos homens responsáveis pelos destinos das nações, os quais estão vendo hoje quão incapazes sejam os meios em que um dia depositaram tanta confiança; unidade desejada por muitíssimos dos nossos filhos que invocam cotidianamente o Deus de paz e de amor; unidade aguardada por tantos espíritos nobres, se bem afastados de nós, os quais, em sua fome e sede de justiça e de paz, volvem seus olhares para a Sé Apostólica, dela esperando diretriz e conselho.


67 Reconhecem eles na Igreja católica a bimilenária estabilidade das normas de fé e de vida, a inabalável solidez da hierarquia eclesiástica que, unida ao sucessor de Pedro, se prodigaliza em iluminar as mentes com a doutrina do evangelho, em guiar e santificar os homens; e se é de grande condescendência para com todos, é também firme, ainda que a custo de tormentos e de martírio, quando deve dizer: "Não é permitido".


Infundadas suspeitas

68 Entretanto, veneráveis irmãos, tanto a doutrina de Cristo, única que pode dar aos homens uma base de fé que lhes alargue a vista e lhes dilate divinamente o coração; única que pode remediar eficazmente às hodiernas e gravíssimas dificuldades, como a operosidade da Igreja em desenvolver e difundir tal doutrina são, às vezes, alvos de infundadas suspeitas como se visassem abalar as bases da autoridade civil ou usurpar-lhes os direitos.


69 Para desfazer tais suspeitas, declaramos com apostólica sinceridade - confirmando todavia tudo o que o nosso predecessor Pio XI, de veneranda memória, ensinou em sua encíclica Quas primas, de 11 de dezembro de 1925, acerca da potestade de Cristo-Rei e da sua Igreja - que a Igreja jamais visou nem visa a tais fins, e se alarga os braços para este mundo não é para dominar mas para servir. Não pretende ela intrometer-se no campo próprio das demais autoridades legítimas, mas oferece-lhes o seu auxílio, a exemplo e com o espírito do seu divino Fundador que "passou fazendo o bem" (Ac 10,38).


70 A Igreja prega e inculca obediência e respeito às autoridades terrenas que em Deus tem sua nobre origem, atendo-se ao ensinamento de Cristo que disse: "Dai a César o que é de César" (Mt 22,21); não tem miras usurpadoras e canta na sua liturgia: "não arrebata os reinos terrestres, Aquele que dá os reinos celestes".(6) Não deprime as energias humanas, mas antes as orienta para o que é magnânimo e generoso, e forma caracteres que não transigem com a consciência. Ela, que civilizou os povos, nunca se opôs ao progresso da humanidade, do qual se compraz e goza com maternal ufania. O fim da sua autoridade declaram-no admiravelmente os anjos que adejavam sobre o berço do Verbo encarnado, quando cantavam glória a Deus e anunciavam paz aos homens de boa vontade. Esta paz que o mundo não pode dar, deixou-a, por herança aos seus discípulos o divino Redentor: "Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz" (Jn 14,27); e assim, seguindo a doutrina sublime de Cristo, por ele mesmo compendiada no duplo preceito do amor a Deus e ao próximo, milhões de almas conseguiram essa paz, conseguem-na ainda hoje e hão de consegui-la sempre. A história, por um célebre orador romano sabiamente denominada "mestra da vida",(7) há quase dois mil anos vem demonstrando a veracidade da palavra da Escritura que afirma: "não terá paz quem resiste a Deus" (cf. ). Porque somente Cristo é a "pedra angular" (Ep 2,20), sobre a qual o homem e a sociedade podem encontrar estabilidade e salvação.

(6) Hino da festa da Epifania.
(7) Cícero, Oração 1, II, 9

71 Sobre esta pedra angular foi educada a Igreja, e por isso contra ela nunca poderão prevalecer as potências adversas: "as portas do inferno não prevalecerão" (Mt 16,18), nem poderão nunca enfraquecê-la, porquanto as lutas, tanto internas como externas, só poderão dar-lhe mais força e aumentar o número de coroas das suas gloriosas vitórias. Ao contrário, qualquer outro edifício que não tenha suas bases na doutrina de Cristo, apóia-se sobre areia movediça e estará fadado a ruir miseramente (cf. Mt Mt 7,26-27).



V. A ANGUSTIOSA HORA PRESENTE

72 Veneráveis irmãos, o momento em que vos chega às mãos esta nossa primeira encíclica, bem pode ser qualificado, sob vários aspectos, de uma verdadeira "hora das trevas" (Lc 22,53), na qual o espírito da violência e da discórdia verte sobre a humanidade a sangüinolenta ânfora de dores inomináveis. Será porventura necessário assegurar-vos que o nosso coração, repassado de compassivo amor, está nesta hora bem próximo de todos os seus filhos, e especialmente dos atribulados, dos oprimidos e perseguidos? Os povos arrastados para essa trágica voragem, que é a guerra, estão ainda, por assim dizer, no "princípio das dores" (Mt 24,8), mas reinam já, em milhares de famílias, morte e desolação, pranto e miséria. Do sangue de inúmeros seres humanos, mesmo de não combatentes, desprende-se lancinante brado, especialmente nessa dileta nação como a Polônia que, pela sua fidelidade à Igreja, pelos seus grandes méritos na defesa da civilização cristã, gravados em caracteres indeléveis nos fatos da história, tem direito à simpatia humana e fraterna do mundo, e aguarda, confiante na poderosa intercessão de Maria, "Socorro dos cristãos", a hora de uma ressurreição que corresponde aos princípios da justiça e da verdadeira paz.


73 O que aconteceu há pouco e o que ainda está acontecendo, passara diante de nossos olhos como uma visão quando, havendo ainda alguma esperança, nada deixamos de fazer do que nos sugeria o nosso ministério apostólico e os meios que tínhamos à nossa disposição, para impedir que se recorresse às armas e para conservar aberto o caminho que levaria a um entendimento honroso para ambas as partes. Convencidos de que o uso da força por uma das partes obrigaria a outra a recorrer às armas, julgamos dever imprescindível do nosso ministério apostólico e do amor cristão, fazer tudo o que pudéssemos para poupar à humanidade toda e à cristandade os horrores de uma guerra mundial, ainda que as nossas intenções e as nossas vistas corressem risco de serem mal interpretadas. Os nossos conselhos, se bem ouvidos com respeito, nem por isso foram seguidos. E enquanto o nosso coração de pastor, cheio de amargura e preocupação, observa o que se passa, como que aparece aos nossos olhos a figura do bom pastor, que é como se devêssemos, em seu nome, repetir ao mundo a queixa: "ah! se conhecesses a mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus olhos" (Lc 19,42).


74 No meio deste mundo, hoje em estridente contraste com a paz de Cristo no reino de Cristo, a Igreja e os seus fiéis acham-se em tempos e anos de provações, raramente conhecidos na sua história de lutas e de sofrimentos. Mas em semelhantes ocasiões, quem se conserva firme na fé e tem coração robusto, sabe também que Cristo-Rei nunca lhe está tão próximo como na hora da provação, que é a hora da fidelidade. Com o coração dilacerado pelos sofrimentos de tantos dos seus filhos, mas ao mesmo tempo com aquela coragem e firmeza que lhe vem das promessas do Senhor, a esposa de Cristo vai ao encontro dessas ondas procelosas. Sabe que a verdade que anuncia, e a caridade que ensina e pratica, serão os conselheiros e cooperadores indispensáveis dos homens de boa vontade que desejem reconstruir um mundo novo, fundado na justiça e no amor, apenas a humanidade se canse de percorrer o caminho do erro e de provar os amargos frutos do ódio e da violência.



Summi Pontificatus PT 37