Redemptor hominis PT




Ioannes Paulus PP. II

Redemptor hominis

aos veneráveis Irmãos no Episcopado

aos Sacerdotes

às Famílias religiosas

aos Filhos e Filhas da Igreja

e a todos os Homens de Boa Vontade

no início do Seu Ministério Pontifical


1979.03.04




Benção

Veneráveis Irmãos e caríssimos Filhos:

Saúde e Bênção Apostólica!





I. HERANÇA


1. No final do segundo Milénio

1 O Redentor do homem, Jesus Cristo, é o centro do cosmos e da história. Para Ele se dirigem o meu pensamento e o meu coração nesta hora solene da história, que a Igreja e a inteira família da humanidade contemporânea estão a viver. Efectivamente, este tempo, no qual, depois do predilecto Predecessor João Paulo I, por um seu misterioso desígnio Deus me confiou o serviço universal ligado com a Cátedra de São Pedro em Roma, está muito próximo já do ano Dois Mil. É difícil dizer, neste momento, o que aquele ano virá a marcar no quadrante da história humana, e como é que ele virá a ser para cada um dos povos, nações, países e continentes, muito embora se tente, já desde agora, prever alguns eventos. Para a Igreja, para o Povo de Deus que se estendeu — se bem que de maneira desigual — até aos mais longínquos confins da terra, esse ano virá a ser o ano de um grande Jubileu. Estamos já, portanto, a aproximar-nos de tal data que — respeitando embora todas as correcções devidas à exactidão cronológica — nos recordará e renovará em nós de uma maneira particular a consciência da verdade-chave da fé, expressa por São João nos inícios do seu Evangelho: « O Verbo fez-se carne e veio habitar entre nós »; 1 e numa outra passagem « Deus, de facto, amou de tal modo o mundo, que lhe deu o Seu filho unigénito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna ». 2

Estamos também nós, de alguma maneira, no tempo de um novo Advento, que é tempo de expectativa. « Deus, depois de ter falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitos modos, pelos Profetas, falou-nos nestes últimos tempos pelo Filho ... », 3 por meio do Filho-Verbo, que se fez homem e nasceu da Virgem Maria. Com este acto redentor a história do homem atingiu, no desígnio de amor de Deus, o seu vértice. Deus entrou na história da humanidade e, enquanto homem, tornou-se sujeito à mesma, um dos milhares de milhões e, ao mesmo tempo, Único! Deus, através da Encarnação, deu à vida humana aquela dimensão, que intentava dar ao homem já desde o seu primeiro início e deu-lha de maneira definitiva — daquele modo a Ele somente peculiar, segundo o seu eterno amor e a sua misericórdia, com toda a divina liberdade — e, simultaneamente, com aquela munificência, que, perante o pecado original e toda a história dos pecados da humanidade e perante os erros da inteligência, da vontade e do coração humano, nos dá azo a repetir com assombro as palavras da Sagrada Liturgia: « Ó ditosa culpa, que tal e tão grande Redentor mereceu ter ». 4

(1)
Jn 1,14.
(2) Jn 3,16.
(3) He 1,1s.
(4) Ex Praeconio paschali


2. Primeiras palavras do novo Pontificado

2 A Cristo Redentor elevei os meus sentimentos e pensamentos a 16 de Outubro do ano passado, quando, após a eleição canónica, me foi feita a pergunta: « Aceitais? » E eu respondi então: « Com obediência de fé em Cristo, meu Senhor, e confiando na Mãe de Cristo e da Igreja, não obstante as muitas dificuldades, eu aceito ». Quero hoje dar a conhecer publicamente aquela minha resposta a todos, sem excepção alguma, tornando assim manifesto que está ligado com a verdade primeira e fundamental da Encarnação o ministério que, com a aceitação da eleição para Bispo de Roma e para Sucessor do Apóstolo Pedro, se tornou meu específico dever na sua mesma Cátedra.

Escolhi os mesmos nomes que havia escolhido o meu amadíssimo Predecessor João Paulo I. Efectivamente, quando a 26 de Agosto de 1978 ele declarou ao Sacro Colégio (dos Cardeais) que queria ser chamado João Paulo — um binómio deste género não tinha antecedentes na história do Papado — já então reconheci nisso um eloquente bom auspício da graça sobre o novo Pontificado. E dado que esse Pontificado durou apenas trinta e três dias, cabe-me a mim não somente continuá-lo, mas, de certo modo, retomá-lo desse mesmo ponto de partida. Isto precisamente é confirmado pela escolha, feita por mim, desses dois nomes. E ao escolhê-los assim, em seguida ao exemplo do meu venerável Predecessor, desejei como ele também eu exprimir o meu amor pela singular herança deixada à Igreja pelos Sumos Pontífices João XXIII e Paulo VI; e, ao mesmo tempo, manifestar a minha disponibilidade pessoal para a desenvolver com a ajuda de Deus.

Através destes dois nomes e dos dois pontificados, quero vincular-me a toda a tradição desta Sé Apostólica, com todos os Predecessores no espaço de tempo deste século vinte e dos séculos precedentes, ligando-me gradualmente, segundo as diversas épocas até às mais remotas, àquela linha da missão e do ministério que confere à Sé de Pedro um lugar absolutamente particular na Igreja. João XXIII e Paulo VI constituem uma etapa, à qual desejo referir-me directamente, como a um limiar do qual é minha intenção, de algum modo juntamente com João Paulo I, prosseguir no sentido do futuro, deixando-me guiar por confiança ilimitada e pela obediência ao Espírito, que Cristo prometeu e enviou à sua Igreja. Ele, efectivamente dizia aos seus Apóstolos, na véspera da sua Paixão: « É melhor para vós que eu vá; porque, se Eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, enviar-vo-lo-ei ». 5 « Quando vier o Consolador, que Eu vos hei-de enviar da parte do Pai, o Espírito da verdade que do Pai procede, ele dará testemunho de Mim. E vós também dareis testemunho de Mim, porque estais comigo desde o princípio ». 6 «Quando, porém, Ele vier, o Espírito da verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque não falará por Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e anunciar-vos-á as coisas vindouras ». 7

(5)
Jn 16,7.
(6) Jn 15,26 s.
(7) Jn 16,13.


3. Confiança no Espírito da Verdade e do Amor

3 É, pois, confiando plenamente no Espírito da verdade, que eu entro na posse da rica herança dos pontificados recentes. Esta herança acha-se fortemente radicada na consciência da Igreja de maneira absolutamente nova, nunca dantes conhecida, graças ao II Concílio do Vaticano, convocado e inaugurado por João XXIII e, em seguida, concluído felizmente e actuado com perseverança por Paulo VI, cuja actividade eu próprio pude observar de perto. Fiquei sempre maravilhado com a sua profunda sapiência e com a sua coragem, e igualmente com a sua constância e paciência no difícil período posconciliar do seu Pontificado. Como timoneiro da Igreja, barca de Pedro, ele sabia conservar uma tranquilidade e um equilíbrio providenciais mesmo nos momentos mais críticos, quando parecia que ela estava a ser abalada por dentro, mantendo sempre uma inquebrantável esperança na sua compacidade. Aquilo, de facto, que o Espírito disse à Igreja mediante o Concílio do nosso tempo, e aquilo que esta Igreja diz a todas as Igrejas 8 não pode — apesar das inquietudes momentâneas — servir para outra coisa senão para uma compacidade mais maturada ainda de todo o Povo de Deus, bem consciente da sua missão salvífica.

Desta consciência contemporânea da Igreja precisamente, Paulo VI fez o primeiro tema da sua fundamental Encíclica, que se inicia com as palavras Ecclesiam Suam; e seja-me permitido fazer referência e pôr-me em conexão, antes de mais nada, com esta Encíclica, neste primeiro e, por assim dizer, inaugural documento do presente Pontificado. Com as luzes e com o apoio do Espírito Santo a Igreja tem uma consciência cada vez mais aprofundada quer pelo que se refere ao seu mistério divino, quer pelo que se refere à sua missão humana, quer mesmo, finalmente, quanto a todas as suas fraquezas humanas: esta consciência, precisamente, é e deve permanecer a primeira fonte do amor por esta Igreja, assim como o amor, da sua parte, contribui para consolidar e para aprofundar tal consciência. Paulo VI deixou-nos o testemunho de uma consciência da Igreja assim, extremamente perspicaz. Através das multíplices e não raro sofridas componentes do seu Pontificado, ele ensinou-nos o amor destemido pela Igreja, a qual — como afirma o Concílio — é « sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ». 9

(8) Cfr.
Ap 2,7.
(9) Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 1: AAS 57 (1965), p. 5.


4. Referência à primeira Encíclica de Paulo VI

4 Por tal razão, exactamente, a consciência da Igreja há-de andar unida com uma abertura universal, a fim de que todos possam nela encontrar « as imperscrutáveis riquezas de Cristo », 10 das quais fala o Apóstolo das gentes. Uma tal abertura, organicamente conjunta com a consciência da própria natureza, com a certeza da própria verdade, da qual o mesmo Cristo disse « não é minha, mas do Pai que me enviou », 11 determina o dinamismo apostólico, que o mesmo é dizer missionário, da Igreja, professando e proclamando integralmente toda a verdade transmitida por Cristo. E simultaneamente ela, a Igreja, deve conduzir aquele diálogo que Paulo VI na sua Encíclica Ecclesiam Suam chamou « diálogo da salvação », diferenciando com precisão cada um dos círculos no âmbito dos quais ele deveria ser conduzido. 12

Quando assim me refiro hoje a este documento programático do Pontificado de Paulo VI, não cesso de dar graças a Deus, pelo facto de este meu grande Predecessor e ao mesmo tempo verdadeiro pai ter sabido — não obstante as diversas fraquezas internas, por que foi afectada a Igreja no período posconciliar — patentear « ad extra », « para o exterior », o seu autêntico rosto. De tal maneira, também grande parte da família humana, nas diversas esferas da sua multiforme existência, se tornou — na minha opinião — mais consciente do facto de lhe ser necessária verdadeiramente a Igreja de Cristo, a sua missão e o seu serviço. E esta consciência algumas vezes demonstrou-se mais forte do que as diversas atitudes críticas, que atacavam « ab intra », vindas « de dentro », a mesma Igreja, as suas instituições e estruturas, e os homens da Igreja e as suas actividades.

Um tal crítica crescente teve sem dúvida diversas causas e, por outro lado, estamos certos de que ela não foi sempre destituída de um sincero amor à Igreja. Manifestou-se nela, indubitavelmente, entre outras coisas, a tendência para superar o chamado triunfalismo, de que se discutia com frequência durante o Concílio. No entanto, se é uma coisa acertada que a Igreja, seguindo o exemplo do seu Mestre que era « humilde de coração », 13 esteja bem assente também ela na humildade, que possua o sentido crítico a respeito de tudo aquilo que constitui o seu carácter e a sua actividade humana e que seja sempre muito exigente para consigo própria, é óbvio igualmente que também a crítica deve ter os seus justos limites. Caso contrário, ela deixa de ser construtiva, não revela a verdade, o amor e a gratidão pela graça, da qual principal e plenamente nos tornamos participantes exactamente na Igreja e mediante a Igreja. Além disto, o espírito crítico não exprime a atitude de serviço, mas antes a vontade de orientar a opinião de outrem segundo a própria opinião, algumas vezes divulgada de maneira assaz imprudente.

Deve-se gratidão a Paulo VI ainda, porque, respeitando toda e qualquer parcela de verdade contida nas várias opiniões humanas, ele conservou ao mesmo tempo o equilibrio providencial do timoneiro da Barca. 14 A Igreja que — através de João Paulo I — quase imediatamente depois dele me foi confiada, não se acha certamente isenta de dificuldades e de tensões internas. Entretanto, ela encontra-se interiormente mais premunida contra os excessos do autocriticismo; poder-se-ia dizer, talvez, que ela é mais crítica diante das diversas críticas imprudentes, e está mais resistente no que respeita às várias « novidades », mais maturada no espírito de discernimento e mais idónea para tirar do seu perene tesouro « coisas novas e coisas velhas », 15 mais centrada no próprio mistério e, graças a tudo isto, mais disponível para a missão da salvação de todos: « Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade ». 16

(10)
Ep 3,8.
(11) Jn 14,24.
(12) Cfr. Paulus PP. VI, Litt. Enc. Ecclesiam Suam: AAS 56 (1964), pp. 650 ss.
(13) Mt 11,29.
(14) Sunt hic memoranda praecipua documenta Pontificatus Pauli VI, nonnullorum ex quibus ipse mentionem fecit, cum intra Missam in Sollemnitate SS. Apostolorum Petri et Pauli anno 1978 orationem haberet: Litt. Encycl. Ecclesiam Suam: AAS 56 (1964). pp. 609-659; Ep. Apost.Investigabiles Divitias Christi: AAS 57 (1965), pp. 298-3011 Litt. Encycl. Mysterium Fidei MF 1:AAS 57 (1965), pp. 753-774; Litt. Encycl. Sacerdotalis Caelibatus: AAS 59 (1967), pp. 657-697; Sollemnis Professio Fidei: AAS 60 (1968), pp. 433-445; Litt. Enc. Humanae Vitae HV 1: AAS 60 (1968), pp. 481-503, Adhort. Apost. Quinque iam Anni: AAS 63 (1971), pp. 97-106; Adhort. Apost. Evangelica Testificatio: AAS 63 (1971), pp. 497535; Adhort. Apost. Paterna cum Benevolentia: AAS 67 (1975), pp. 5-23.; Adhort. Apost. Gaudete in Domino: AAS 67 (1975), pp. 289-322; Adhort. Apost. Evamgelii Nuntiandi EN 1: AAS 68 (1976), pp. 5-76.
(15) Mt 13,52.
(16) 1Tm 2,4.


5. Colegialidade e apostolado

5 Esta Igreja — contra todas as aparências — está mais unida na comunhão de serviço e na consciência do apostolado. Tal união nasce daquele princípio de colegialidade, recordado pelo II Concílio do Vaticano, que o próprio Cristo enxertou no Colégio Apostólico dos Doze, com Pedro na chefia, e que renova continuamente no Colégio dos Bispos, o qual cresce cada vez mais sobre toda a terra, permanecendo unido com o Sucessor de São Pedro e sob a sua orientação. O Concílio não se limitou a recordar este princípio de colegialidade dos Bispos, mas vivificou-o imensamente, além do mais, auspiciando a instituição de um órgão permanente, que Paulo VI estabeleceu constituindo o Sínodo dos Bispos, cuja actividade não somente deu uma nova dimensão ao seu Pontificado, mas, em seguida, se reflectiu claramente logo desde os primeiros dias no Pontificado de João Paulo I e no do seu indigno Sucessor.

O princípio de colegialidade demonstrou-se particularmente actual no difícil período posconciliar, quando a comum e unânime posição do Colégio dos Bispos — o qual manifestou a sua união ao Sucessor de Pedro sobretudo através do Sínodo — contribuía para dissipar as dúvidas e indicava ao mesmo tempo as justas vias da renovação da Igreja, na sua dimensão universal. Do Sínodo, efectivamente, se originou, entre outras coisas, aquele impulso essencial para a evangelização que teve a sua expressão na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, 17 acolhida com tanta alegria como programa da renovação de carácter apostólico e conjuntamente pastoral. A mesma linha foi seguida também nos trabalhos da última sessão ordinária do Sínodo dos Bispos, aquela que se realizou cerca de um ano antes da morte do Sumo Pontífice Paulo VI, a qual foi dedicada, como é sabido, à Catequese. Os resultados daqueles trabalhos requerem ainda uma sistematização e uma enunciação por parte da Sé Apostólica.

E uma vez que estamos a tratar do manifesto desenvolvimento das formas em que se exprime a Colegialidade episcopal, devemos pelo menos recordar o processo de consolidação das Conferências Episcopais Nacionais em toda a Igreja e de outras estruturas colegiais de carácter internacional ou continental. Referindo-nos, depois, à tradição secular da Igreja, convém salientar a actividade dos diversos Sínodos locais. Foi de facto ideia do Concílio, coerentemente actuada por Paulo VI, que as estruturas deste género, de há séculos comprovadas pela Igreja, bem como as outras formas de colaboração colegial dos Bispos — por exemplo a que se centra nas metrópoles, para não falar já de cada uma das dioceses singularmente tomadas — pulsassem em plena consciência da própria identidade e conjuntamente da própria originalidade, na unidade universal da Igreja.

Um idêntico espírito de colaboração e de corresponsabilidade se está a difundir também entre os sacerdotes, o que é confirmado pelos numerosos Conselhos Presbiterais que surgiram após o Concílio. O mesmo espírito se difundiu também entre os leigos, não apenas confirmando as organizações de apostolado laical já existentes, mas criando outras novas, que não raro se apresentam com um perfil diverso e uma dinâmica excepcional. Além disto, os leigos, conscientes da sua responsabilidade pela Igreja, aplicaram-se de boa vontade na colaboração com os Pastores e com os representantes dos Institutos de vida consagrada, no âmbito dos Sínodos diocesanos, e dos Conselhos pastorais nas paróquias e nas dioceses.

Para mim importa ter em mente tudo isto nos inícios do meu Pontificado, para agradecer a Deus, para exprimir um vivo encorajamento a todos os Irmãos e Irmãs e, além disto, para recordar com sentida gratidão a obra do II Concílio do Vaticano e os meus grandes Predecessores, que deram início a esta nova « vaga » a animar a vida da Igreja, movimento muito mais forte do que os sintomas de dúvida, de abalo e de crise.

(17) Pauli PP. VI, Adhort. Apost. Evamgelii Nuntiandi
EN 1: AAS (1976). pp. 5-76.



Caminho para a união dos cristãos

6 E que dizer de todas aquelas iniciativas que se originaram da nova orientação ecuménica? O inesquecível Papa João XXIII, com clareza evangélica, pôs e enquadrou o problema da união dos cristãos como simples consequência da vontade do próprio Jesus Cristo, nosso Mestre, afirmada por mais de uma vez e expressa, de modo particular, durante a oração no Cenáculo, na véspera da sua morte: « Rogo ... Pai ... que todos sejam uma só coisa ». 18 E o II Concílio do Vaticano respondeu a esta exigência de forma concisa com o Decreto sobre o Ecumenismo. O Papa Paulo VI, por sua vez, valendo-se da colaboração do Secretariado para a União dos Cristãos, começou a dar os primeiros difíceis passos na caminhada para o conseguimento de uma tal união.

Já teríamos andado muito nesta caminhada? Sem querer dar uma resposta pormenorizada, podemos dizer que fizemos verdadeiros e importantes progressos. E uma coisa é certa: temos trabalhado com perseverança e coerência; e conjuntamente connosco têm vindo a aplicar-se também os representantes de outras Igrejas e de outras Comunidades cristãs, pelo que lhes estamos sinceramente obrigados. Depois, é certo também que na presente situação histórica da cristiandade e do mundo, não se apresenta outra possibilidade para se cumprir a missão universal da Igreja pelo que respeita aos problemas ecuménicos, senão esta: procurar lealmente, com perseverança, com humildade e também com coragem as vias de aproximação e de união daquele modo que nos deixou o exemplo pessoal o Papa Paulo VI. Devemos buscar a união, portanto, sem nos deixarmos vencer pelo desânimo perante as diculdades que se possam apresentar ou acumular ao longo de tal caminho; caso contrário, não seríamos fiéis à palavra de Cristo, não executaríamos o Seu testamento. E será lícito correr um tal risco?

Há pessoas que, encontrando-se diante das dificuldades, ou julgando negativos os resultados dos trabalhos iniciais no campo ecuménico, teriam tido vontade de voltar atrás. Há mesmo alguns que exprimem a opinião de que estes esforços são nocivos para a causa de Evangelho e levam a uma ulterior ruptura na Igreja, provocam a confusão de idéias nas questões da fé e da moral e vão desembocar a um específico indiferentismo. Talvez seja um bem que os porta-voz de tais opiniões exprimam os seus receios; no entanto, também pelo que se refere a este ponto, é necessário manter-se dentro dos devidos limites. É claro que esta nova fase da vida da Igreja exige de nós uma fé particularmente consciente, aprofundada e responsável. A verdadeira actividade ecuménica comporta abertura, aproximação, disponibilidade para o diálogo e busca em comum da verdade no pleno sentido evangélico e cristão; mas tal actividade de maneira nenhuma significa nem pode significar renunciar ou causar dano de qualquer modo aos tesouros da verdade divina, constantemente confessada e ensinada pela Igreja.

A todos aqueles que, por qualquer motivo, quereriam dissuadir a Igreja de buscar a unidade universal dos cristãos, é necessário repetir ainda uma vez: Ser-nos-á lícito deixar de o fazer? Poderemos nós — não obstante toda a fraqueza humana, todas as deficiências acumuladas nos séculos passados — não ter confiança na graça de Nosso Senhor, tal como ela se manifestou nos últimos tempos, mediante a palavra do Espírito Santo, que ouvimos durante o Concílio? Se procedessemos assim, negaríamos a verdade que diz respeito a nós mesmos e que o Apóstolo expressou de maneira tão eloquente: « Pela graça de Deus sou aquilo que sou, e a graça que Ele me conferiu não foi estéril em mim ». 19

Se bem que de um modo diverso e com as devidas diferenças, importa aplicar isto que acabámos de dizer agora à actividade que intenta a aproximação com os representantes das religiões não-cristãs e que se exprime também ela através do diálogo, dos contactos, da oração em comum e da busca dos tesouros da espiritualidade humana, os quais, como bem sabemos, não faltam também aos membros destas religiões. Não acontece, porventura, algumas vezes, que a crença firme dos sequazes das religiões não-cristãs — crença que é efeito também ela do Espírito da verdade operante para além das fronteiras visíveis do Corpo Místico — deixa confundidos os cristãos, não raro tão dispostos, por sua vez, a duvidar quanto às verdades reveladas por Deus e anunciadas pela Igreja, e tão propensos ao relaxamento dos princípios da moral e a abrir o caminho ao permissivismo ético? É nobre o estar-se predisposto para compreender cada um dos homens, para analisar todos os sistemas e para dar razão àquilo que é justo; isso, porém, não significa absolutamente perder a certeza da própria fé 20 ou então enfraquecer os princípios da moral, cuja falta bem depressa se fará ressentir na vida de inteiras sociedades, causando aí, além do mais, deploráveis consequências.

(18)
Jn 17,21; cfr. Jn 17,11 Jn 17,22 s.; Jn 10,10 Lc 9,49 s. Lc 9,54.
(19) 1Co 15,10.
(20) " Cfr. Conc. Oec. Vat. I Const. dogm. de Fide catholica Dei Filius, Cann. III. De fide, n. 6:Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Ed. Istituto per le Scienze Religiose, Bologna 1973, p. 811.





II. O MISTÉRIO DA REDENÇÃO


7. No Mistério de Cristo

7 Entretanto, se as vias a seguir, para as quais o Concílio do nosso século orientou a Igreja, vias que nos indicou na sua primeira Encíclica o saudoso Papa Paulo VI, permanecerão de modo perduradoiro exactamente as vias que nós todos devemos seguir, ao mesmo tempo nesta nova fase podemos justamente interrogar-nos: Como? De que maneira será conveniente prosseguir? O que será necessário fazer, para que este novo advento da Igreja, conjugado com o já iminente fim do segundo Milénio, nos aproxime d'Aquele que a Sagrada Escritura chama « Pai perpétuo », Pater futuri saeculi? 21 Esta é a pergunta fundamental que o novo Sumo Pontífice tem de pôr-se, desde o momento em que aceitou, em espírito de obediência de fé, o chamamento em conformidade com a ordem mais de uma vez dirigida a Pedro: « Apascenta os meus cordeiros »; 22 o que quer dizer: « Sê pastor do meu rebanho »; e depois: « ... e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos ». 23

É precisamente aqui neste ponto, caríssimos Irmãos, Filhos e Filhas, que se impõe uma resposta fundamental e essencial, a saber: a única orientação do espírito, a única direcção da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direcção de Cristo, Redentor do homem; na direcção de Cristo, Redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só n'Ele, Filho de Deus, está a salvação, renovando a afirmação de Pedro: « Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens as palavras de vida eterna ». 24

Através da consciência da Igreja, tão desenvolvida pelo Concílio, através de todos os graus desta consciência, através de todos os campos de actividade onde a Igreja se afirma presente, se encontra e se consolida, devemos tender constantemente para Aquele « que é a Cabeça », 25 para « Aquele de quem tudo provém e nós somos criados para Ele », 26 para Aquele que é, ao mesmo tempo, « o caminho e a verdade » 27 e « a ressurreição e a vida », 28 para Aquele ao ver o Qual vemos o Pai, 29 para Aquele, enfim, que devia ir, deixando-nos 30 — entende-se aqui a alusão à sua morte na Cruz e depois à sua Ascensão ao Céu — para que o Consolador viesse a nós e continue a vir constantemente como o Espírito da verdade. 31 N'Ele estão « todos os tesouros da sabedoria e da ciência » 32 e a Igreja é o seu Corpo. 33 A Igreja « em Cristo é como que um sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano »; 34 e disto é Ele a fonte! Ele mesmo! Ele o Redentor!

A Igreja não cessa de ouvir as suas palavras, continuamente as relê e reconstrói com a máxima devoção todos os pormenores da sua vida. Estas palavras são escutadas também pelos não cristãos. A vida de Cristo fala ao mesmo tempo também a muitos homens que ainda não se acham em condições de repetir com Pedro: « Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo ». 35 Ele, Filho de Deus vivo, fala aos homens também como Homem: é a sua própria vida que fala, a sua humanidade, a sua fidelidade à verdade e o seu amor que a todos abraça. Fala, ainda, a sua morte na Cruz, isto é, a imperscrutável profundidade do seu sofrimento e do seu abandono. A Igreja não cessa nunca de reviver a sua morte na Cruz e a sua Ressurreição, que constituem o conteúdo da vida quotidiana da mesma Igreja. De facto, é por mandato do próprio Cristo, seu Mestre, que a Igreja celebra incessantemente a Eucaristia, encontrando nela « a fonte da vida e da santidade », 36 o sinal eficaz da graça e da reconciliação com Deus e o penhor da vida eterna. A Igreja vive o seu mistério e nele vai haurir sem jamais se cansar, e busca continuamente as vias para tornar este mistério do seu Mestre e Senhor próximo do género humano: dos povos, das nações, das gerações que se sucedem e de cada um dos homens em particular, como se repetisse sempre, seguindo o exemplo do Apóstolo: « Tomei a resolução de não saber, entre vós, outra coisa, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado ». 37 A Igreja permanece na esfera do mistério da Redenção, que se tornou precisamente o princípio fundamental da sua vida e da sua missão.

(21)
Is 9,6.
(22) Jn 21,15.
(23) Lc 22,32.
(24) Jn 6,68; cfr. Ac 4,8-12.
(25) Cfr. Ep 1,10 Ep 1,22 Ep 4,25 Col 1,18.
(26) 1Co 8,6; cfr. Col 1,17.
(27) Jn 14,6.
(28) Jn 11,25.
(29) Cfr. Jn 14,9.
(30) Cfr. Jn 16,7.
(31) Cfr. Jn 16,7 Jn 16,13.
(32) Col 2,3.
(33) Cfr. Rm 12,5 1Co 6,15 1Co 10,17 1Co 12,12 1Co 12,27 Ep 1,23 Ep 2,16 Ep 4,4 Col 1,24 Col 3,15.
(34) Conc.Oecum. Vat. II, Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 1: AAS 57 (1965), p. 5.
(35) Mt 16,16.
(36) Cfr. Litaniae SS. Cordis Iesu.
(37) 1Co 2,2.


Redenção: renovada criação

8 Redentor do mundo! N'Ele se revelou de um modo novo, de maneira admirável, aquela verdade fundamental respeitante à criação que o Livro do Génesis atesta quando repete mais de uma vez: Deus viu que as coisas eram boas. 38 O bem tem a sua nascente na Sapiência e no Amor. Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem 39 — aquele mundo que, entrando nele o pecado, foi submetido à caducidade 40 - readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor. Com efeito, « Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito ». 41 Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi de novo reatado. 42 Não nos convencem, porventura, a nós homens do século vinte, as palavras do Apóstolo das gentes, pronunciadas com uma arrebatadora eloquência, acerca da « criação inteira que geme e sofre, em conjunto, as dores do parto, até ao presente », 43 e « atende ansiosamente a revelação dos filhos de Deus », 44 acerca da criação que « foi submetida à caducidade »? O imenso progresso nunca dantes conhecido, que se verificou particularmente no decorrer do nosso século, no campo do domínio sobre o mundo por parte do homem, não revela acaso ele próprio e ainda por cima em grau nunca dantes conhecido, aquela multiforme submissão « à caducidade »? Basta recordar aqui certos fenómenos, como por exemplo a ameaça do inquinamento do ambiente natural nos locais de rápida industrialização, ou então os conflitos armados que rebentam e se repetem continuamente, ou ainda as perspectivas de autodestruição mediante o uso das armas atómicas, das armas com hidrogénio e com os neutrões e outras semelhantes e a falta de respeito pela vida dos não-nascidos. O mundo da época nova o mundo dos vôos cósmicos, o mundo das conquistas científicas e técnicas, nunca alcançadas antes, não será ao mesmo tempo o mundo que « geme e sofre » 45 e « atende ansiosamente a revelação dos filhos de Deus »? 46

O II Concílio do Vaticano, na sua penetrante análise do « mundo contemporâneo », chegava aquele ponto que é o mais importante do mundo visível, o homem, descendo — como Cristo — até ao profundo das consciências humanas, tocando mesmo o mistério interior do homem, que na linguagem bíblica (e também não bíblica) se exprime com a palavra « coração ». Cristo, Redentor do mundo, é Aquele que penetrou, de uma maneira singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e entrou no seu « coração ». Justamente, portanto, o mesmo II Concílio do Vaticano ensina: « Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, de facto, o primeiro homem, era figura do futuro (
Rm 5,14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocação sublime ». E depois, ainda: « Imagem de Deus invisível (Col 1,15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que n'Ele a natureza humana foi assumida, sem ter sido destruída, por isso mesmo também em nosso benefício ela foi elevada a uma dignidade sublime. Porque, pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos de homem, pensou com uma mente de homem, agiu com uma vontade de homem e amou com um coração de homem. Nascendo da Virgem Maria, Ele tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado ». 47 Ele, o Redentor do homem.

(38) Cfr. Gn 1, passim.
(39) Cfr. Gn 1,26-30.
(40) Rm 8,20; ibidem, Rm 8,19-22; Conc. Oecum. Vat. II, Const. de Ecclesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes, GS 2 GS 13: AAS 58 (1966), pp. 1026; 1034 s. 15
(41) Jn 3,16.
(42) Cfr. Rm 5,12-21.
(43) Rm 8,22.
(44) Rm 8,19.
(45) Rm 8,22.
(46) Rm 8,19.
(47) Const. past. de Ecelesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes, GS 22: AAS 58 (1966), pp. 1042 s.


Dimensão divina do mistério da Redenção

9 Ao reflectirmos novamente sobre este texto admirável do Magistério conciliar, não esqueçamos, nem sequer por um momento, que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou a nossa reconciliação junto do Pai. 48 Ele precisamente e só Ele satisfez ao eterno amor do Pai, àquela paternidade que desde o princípio se expressou na criação do mundo, na doação ao homem de toda a riqueza do que foi criado, ao fazê-lo « pouco inferior aos anjos », 49 enquanto criado « à imagem e à semelhança de Deus »; 50 e, igualmente satisfez àquela paternidade de Deus e àquele amor, de um certo modo rejeitado pelo homem, com a ruptura da primeira Aliança 51 e das alianças posteriores que Deus « repetidas vezes ofereceu aos homens ». 52 A redenção do mundo — aquele tremendo mistério do amor em que a criação foi renovada 53 — é, na sua raiz mais profunda, a plenitude da justiça num Coração humano: no Coração do Filho Primogénito, a fim de que ela possa tornar-se justiça dos corações de muitos homens, os quais, precisamente no Filho Primogénito, foram predestinados desde toda a eternidade para se tornarem filhos de Deus 54 e chamados para a graça, chamados para o amor. A cruz no Calvário, mediante a qual Jesus Cristo — Homem, Filho de Maria Virgem, filho putativo de José de Nazaré — « deixa » este mundo, é ao mesmo tempo uma nova manifestação da eterna paternidade de Deus, o Qual por Ele (Cristo) de novo se aproxima da humanidade, de cada um dos homens, dando-lhes o três vezes santo « Espírito da verdade ». 55

Com esta revelação do Pai e efusão do Espírito Santo, que imprimem um sigilo indelével no mistério da Redenção, se explica o sentido da cruz e da morte de Cristo. O Deus da criação revela-se como Deus da redenção, como Deus « fiel a si próprio », 56 fiel ao seu amor para com o homem e para com o mundo, que já se revelara no dia da criação. E este seu amor é amor que não retrocede diante de nada daquilo que nele mesmo exige a justiça. E por isto o Filho « que não conhecera o pecado, Deus tratou-o, por nós, como pecado ». 57 E se « tratou como pecado » Aquele que era absolutamente isento de qualquer pecado, fê-lo para revelar o amor que é sempre maior do que tudo o que é criado, o amor que é Ele próprio, porque « Deus é amor ». 58 E sobretudo o amor é maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que « a caducidade do que foi criado », 59 mais forte do que a morte; é amor sempre pronto a erguer e a perdoar, sempre pronto para ir ao encontro do filho pródigo, 60 sempre em busca da « revelação dos filhos de Deus », 61 que são chamados para a glória futura. 62 Esta revelação do amor é definida também misericórdia; 63 e tal revelação do amor e da misericórdia tem na história do homem uma forma e um nome: chama-se Jesus Cristo.

(48) Cfr.
Rm 5,11 Col 1,20.
(49) Ps 8,6.
(50) Cfr. Gn 1,26.
(51) Cfr. Gn 3,6-13.
(52) Cfr, Missale Romanum, IV Prex Enucharistica.
(53) Cfr. Conc.. Oecum. Vat. II, Const. past. de Ecclesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes, GS 37: AAS 58 (1966), pp. 1054s; Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 48: AAS 57 (1965), pp. 53s.
(54) Cfr. Rm 8,29s.; Ep 1,5.
(55) Cfr. Jn 16,13.
(56) Cfr. 1Th 5,24.
(57) 2Co 5,21; cfr. Ga 3,13.
(58) 1Jn 4,8 1Jn 4,16.
(59) Cfr. Rm 8,20.
(60) Cfr. Lc 15,11-32.
(61) Rm 8,19.
(62) Cfr. Rm 8,18.




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