Redemptor hominis PT 16

Progresso ou ameaça?

16 Se, portanto, o nosso tempo, o tempo da nossa geração, o tempo que se vai aproximando do fim do segundo Milénio da nossa era cristã, se nos manifesta como um tempo de grande progresso, ele apresenta-se também como um tempo de multiforme ameaça contra o homem, da qual a Igreja deve falar a todos os homens de boa vontade e sobre a qual ela deve constantemente dialogar com eles. A situação do homem no mundo contemporâneo, de facto, parece estar longe das exigências objectivas da ordem moral, assim como das exigências da justiça e, mais ainda, do amor social. Não se trata aqui senão daquilo que teve a sua expressão na primeira mensagem do Criador dirigida ao homem no momento em que lhe dava a terra, para que ele a « dominasse ». 100 Esta primeira mensagem de Deus foi confirmada depois, no mistério da Redenção, por Cristo Senhor. Isto foi expresso pelo II Concílio do Vaticano naqueles belíssimos capítulos do seu ensino que dizem respeito à « realeza » do homem, isto é, à sua vocação para participar na função real — o « munus regale » — do mesmo Cristo. 101 O sentido essencial desta « realeza » e deste « domínio » do homem sobre o mundo visível, que lhe foi confiado como tarefa pelo próprio Criador, consiste na prioridade da ética sobre a técnica, no primado da pessoa sobre as coisas e na superioridade do espírito sobre a matéria.

É por isso mesmo que é necessário acompanhar atentamente todas as fases do progresso hodierno: é preciso, por assim dizer, fazer a radiografia de cada uma das suas etapas exactamente deste ponto de vista. Está em causa o desenvolvimento da pessoa e não apenas a multiplicação das coisas, das quais as pessoas podem servir-se. Trata-se — como disse um filósofo contemporâneo e como afirmou o Concílio — não tanto de « ter mais », quanto de « ser mais ». 102 Com efeito, existe já um real e perceptível perigo de que, enquanto progride enormemente o domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele perca os fios essenciais deste seu domínio e, de diversas maneiras, submeta a elas a sua humanidade, e ele próprio se torne objecto de multiforme manipulação, se bem que muitas vezes não directamente perceptível; manipulação através de toda a organização da vida comunitária, mediante o sistema de produção e por meio de pressões dos meios de comunicação social. O homem não pode renunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo visível; ele não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas económicos, escravo da produção e escravo dos seus próprios produtos. Uma civilização de feição puramente materialista condena o homem a tal escravidão, embora algumas vezes, indubitavelmente, isso aconteça contra as intenções e as mesmas premissas dos seus pioneiros. Na raiz da actual solicitude pelo homem está sem dúvida alguma este problema. E não é questão aqui somente de dar uma resposta abstracta à pergunta: quem é o homem; mas trata-se de todo o dinamismo da vida e da civilização. Trata-se do sentido das várias iniciativas da vida quotidiana e, ao mesmo tempo, das premissas para numerosos programas de civilização, programas políticos, económicos, sociais, estatais e muitos outros.

Se nós ousamos definir a situação do homem contemporâneo como estando longe das exigências objectivas da ordem moral, longe das exigências da justiça e, ainda mais, do amor social, é porque isto é confirmado por factos bem conhecidos e por confrontos que se podem fazer e que, por mais de uma vez, já tiveram ressonância directa nas páginas das enunciações pontifícias, conciliares e sinodais. 103 A situação do homem na nossa época não é certamente uniforme, mas sim diferenciada de múltiplas maneiras. Estas diferenças têm as suas causas históricas, mas também têm uma forte ressonância ética. É assaz conhecido, de facto, o quadro da civilização consumística, que consiste num certo excesso de bens necessários ao homem e a sociedades inteiras — e aqui trata-se exactamente das sociedades ricas e muito desenvolvidas — enquanto que as restantes sociedades, ao menos largos estratos destas, sofrem a fome, e muitas pessoas morrem diariamente por desnutrição ou inédia. Simultaneamente sucede que se dá por parte de uns um certo abuso da liberdade, que está ligado precisamente a um modo de comportar-se consumístico, não controlado pela ética, enquanto isso limita contemporâneamente a liberdade dos outros, isto é, daqueles que sofrem notórias carências e se vêem empurrados para condições de ulterior miséria e indigência.

Este confronto, universalmente conhecido, e o contraste a que dedicaram a sua atenção, nos documentos do seu magistério, os Sumos Pontífices do nosso século, mais recentemente João XXIII assim como Paulo VI, 104 representam como que um gigantesco desenvolvimento da parábola bíblica do rico avarento e do pobre Lázaro. 105

A amplitude do fenómeno põe em questão as estruturas e os mecanismos financeiros, monetários, produtivos e comerciais, que, apoiando-se em diversas pressões políticas, regem a economia mundial: eles demonstram-se como que incapazes quer para reabsorver as situações sociais injustas, herdadas do passado, quer para fazer face aos desafios urgentes e às exigências éticas do presente. Submetendo o homem às tensões por ele mesmo criadas, dilapidando, com um ritmo acelerado, os recursos materiais e energéticos e comprometendo o ambiente geofísico, tais estruturas dão azo a que se estendam incessantemente as zonas de miséria e, junto com esta, a angústia, a frustração e a amargura. 106

Encontramo-nos aqui perante o grande drama, que não pode deixar ninguém indiferente. O sujeito que, por um lado, procura auferir o máximo proveito, bem como aquele que, por outro lado, paga as consequências dos danos e das injúrias, é sempre o homem. E tal drama é ainda mais exacerbado pela proximidade com os estratos sociais privilegiados e com os países da opulência, que acumulam os bens num grau excessivo e cuja riqueza se torna, muitas vezes por causa do abuso, motivo de diversos mal-estares. A isto ajuntem-se a febre da inflação e a praga do desemprego: e eis outros sintomas de tal desordem moral, que se faz sentir na situação mundial e que exige por isso mesmo resoluções audaciosas e criativas, conformes com a autêntica dignidade do homem. 107

Uma tal tarefa não é impossível de realizar. O princípio de solidariedade, em sentido lato, deve inspirar a busca eficaz de instituições e de mecanismos apropriados: quer se trate do sector dos intercâmbios, em que é necessário deixar-se conduzir pelas leis de uma sã competição, quer se trate do plano de uma mais ampla e imediata redistribuição das riquezas e dos controlos sobre as mesmas, a fim de que os povos que se encontram em vias de desenvolvimento económico possam, não apenas satisfazer às suas exigências essenciais, mas também progredir gradual e eficazmente.

Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no caminho da indispensável transformação das estruturas da vida económica, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações. A tarefa exige a aplicação decidida de homens e de povos livres e solidários. Com muita frequência se confunde a liberdade com o instinto do interesse individual e colectivo, ou ainda com o instinto de luta e de domínio, quaisquer que sejam as cores ideológicas de que eles se revistam. E óbvio que esses instintos existem e operam; mas não será possível ter-se uma economia verdadeiramente humana, se eles não forem assumidos, orientados e dominados pelas forças mais profundas que se encontram no homem, e que são aquelas que decidem da verdadeira cultura dos povos. E é precisamente destas fontes que deve nascer o esforço, no qual se exprimirá a verdadeira liberdade do homem, e que será capaz de a assegurar também no campo económico. O desenvolvimento económico, conjuntamente com tudo aquilo que faz parte do seu modo próprio e adequado de funcionar, tem de ser constantemente programado e realizado dentro de uma perspectiva de desenvolvimento universal e solidário dos homens tomados singularmente e dos povos, conforme recordava de maneira convincente o meu Predecessor Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio. Sem isso, a simples categoria do « progresso económico » torna-se uma categoria superior, que passa a subordinar o conjunto da existência humana às suas exigências parciais, sufoca o homem, desagrega as sociedades e acaba por desenvolver-se nas suas próprias tensões e nos seus mesmos excessos.

É possível assumir este dever; testemunham-no os factos certos e os resultados, que é difícil enumerar aqui de maneira mais pormenorizada. E uma coisa, contudo, é certa: na base deste campo gigantesco é necessário estabelecer, aceitar e aprofundar o sentido da responsabilidade moral, que tem de assumir o homem. Ainda uma vez e sempre, o homem. Para nós cristãos uma tal responsabilidade torna-se particularmente evidente, quando recordamos — e devemos recordá-lo sempre — a cena do juízo final, segundo as palavras de Cristo, referidas no Evangelho de São Mateus. l08

Essa cena escatológica tem de ser sempre « aplicada » à história do homem, deve ser sempre tomada como « medida » dos actos humanos, como um esquema essencial de um exame de consciência para cada um e para todos: « Tive fome e não Me destes de comer...; estava nú e não Me vestistes...; estava na prisão e não fostes visitar-Me ». 109 Estas palavras adquirem um maior cunho de admoestação ainda, se pensamos que, em vez do pão e da ajuda cultural a novos estados e nações que estão a despertar para a vida independente, algumas vezes, se lhes oferecem, não raro com abundância, armas modernas e meios de destruição, postos ao serviço de conflitos armados e de guerras, que não são tanto uma exigência da defesa dos seus justos direitos e da sua soberania, quanto sobretudo uma forma de « chauvinismo », de imperialismo e de neo-colonialismo de vários géneros. Todos sabemos bem que as zonas de miséria ou de fome, que existem no nosso globo, poderiam ser « fertilizadas » num breve espaço de tempo, se os gigantescos investimentos para os armamentos, que servem para a guerra e para a destruição, tivessem sido em contrapartida convertidos em investimentos para a alimentação, que servem para a vida.

Esta consideração talvez permaneça parcialmente « abstracta »; talvez dê azo a uma e à outra « parte » para se acusar reciprocamente, esquecendo cada qual as próprias culpas; talvez provoque mesmo novas acusações contra a Igreja.

Esta, porém, não dispondo de outras armas, senão das do espírito, das armas da palavra e do amor, não pode renunciar a pregar a Palavra, insistindo oportuna e inoportunamente. 110 Por isso, ela não cessa de solicitar a cada uma das partes e de pedir a todos, em nome de Deus e em nome do homem: Não mateis! Não prepareis para os homens destruições e extermínio! Pensai nos vossos irmãos que sofrem a fome e a miséria! Respeitai a dignidade e a liberdade de cada um!

(100)
Gn 1,28; cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Decr. de iustrumentis communicationis socialis Inter Mirifica, IM 6: AAS 50 (1964), p. 147; Const. past. de Ecclesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes, GS 74 GS 78: AAS 58 (1966), pp. 1095 s.; 1101 a.
(101) Cfr. Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 10 LG 36: AAS 57 (1965), pp. 14 s.; 41 s.
(102) Cfr. Const. past. de Ecclesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes, GS 35: AAS 58 (1966), p. 1053; Paulus PP. VI, Allocutio ad Viros e Legatorum Coetu, 7 Ian. 1965: AAS 57 (1965), p. 232; Litt. Encycl. Populorum Progressio, PP 14: AAS 59 (1967), p. 264.
(103) Cfr. Pius PP. XII, Nuntius radiophonicus, quinquagesimo exacto anno a Litteris Encyclicis «Rerum Novarum » a Leone PP. XIII datis (1 Iun. 1941): AAS 33 (1941), pp. 195-205; Nuntius radiophonicus in pervigilio Nativitatis D. N. Iesu Christi universo orbi datus (24 Dec. 1941): AAS34 (1942), PP. 10-21; Nuntius radiophonicus in pervigilio Nativitatis D. N. Iesu Christi universo orbi datus (24 Dec. 1942): AAS 35 (1943),- pp. 9-24; Nuntius radiophonicus in pervigilio Nativitatis D. N. Iesu Christi universo orbi datus (24 Dee. 1943): AAS 36 (1944), pp. 11-24; Nuntius radlophonleus in pervigilio Nativitatis D. N. Iesu Christi universo orbi datus (24 Dec. 1944):AAS 37 (1945), pp. 10-23; Sermo, astantibus PP. Cardinalibus, habitus (24 Dec. 1945):AAS 38 (1946), pp. 15-25; Allocutio, astantibus PP. Cardinalibus, habita (24 Dec. 1946) : AAS39 (1947), pp. 7-17; Nuntius radiophonieus in pervigilio Nativitatis D. N. Iesu Christi universo orbi datus (24 Dee. 1947): AAS 40 (1948), pp. 8-16; Ioannes PP. XXIII, Lltt. Enc.Mater et Magistra:AAS 53 (1961), pp. 401-464; Litt. Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), pp. 257304; Paulus PP. VI, Litt. Enc. Ecclesiam Suam: AAS 56 (1964), pp. 609-659; Allocutio in Consilio Nationum Unitarum habita (4 Oct. 1965) : AAS 57 (1965), pp. 877-885; Lltt. Enc. Populorum Progressio:AAS 59 (1967), pp. 257-299; Allocutio ad Columbianos agricultores v. d. « campesinos » habita (23 Aug. 1968) : AAS 60 (1968), pp. 619-623; Allocutio ad Praesules ex Amerieue Latinae regionibus habita (24 Aug. 1968): AAS 60 (1968), pp. 639-649; Allocutio Romae habita ad Consilium v. d. « Food and Agriculture Organization » (F.A.O.) (16 Nov. 1970) : AAS 62 (1970), pp. 830-814; Ep. Apost. Octogesima Adveniens: AAS 63 (1971), pp. 401-441; Allocutio ad Sacri Collegii Patres habita (23 lun. 1972): AAS 64 (1972), pp. 496-505; Ioannes Paulus PP. II, Allocutio ad III Coetum Generalem Episcoporum Americae Latinae (28 Ian. 1979): AAS 71 (1979), pp. 187 ss.; Allocutio ad « Indios », quos vulgari lingua appellant, in pago Cuilapan prole urbem Oaxacam (29 Ian. 1979) : loc. cit., pp. 207 ss.; Allocutio ad operarios in urbe Guadalaiara habita (30 Ian. 1979) : loc. cit., pp. 221 ss.; Allocutio ad operarlos in urbe Monterreyensl habita (31 Ian. 1979) loc. cit., pp. 240 ss.; Conc. Oecum. Vat. II, Declaratio de libertate religiosaDignitatis Humanae DH 1: AAS 58 (1966), pp. 929-941; Const. past. de Ecclesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes GS 1: AAS 58 (1966), pp. 1025-1115; Documenta Synodi Episcoporum, De iustitia in mando: AAS 63 (1971), pp. 923-941.
(104) Cfr. Ioannes PP. XXIII, Litt. Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. MM 418ss.; Litt. Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), pp. PT 289 ss.; Paulus PP. VI, Litt. Enc. Populorum Progressio PP 1: AAS 59 (1967), pp. 257-299.
(105) Cfr. Lc 16,19-31.
(106) Ioannes Paulus PP. II, Homilia habita Dominicopoli (25 Ian. 1979) n. 3: AAS. 71 (1979), pp. 157 ss.; Allocutio habita ad «Indios», quos v. d., probe urbem Oaxaeam (30 Ian. 1979) n. 2: loc. cit., pp. 207ss.; Allocutio ad operarios in urbe Monterreyensi habita (31 Ian. 1979), n. 4 : loc. cit., p. 241 s.
(107) Cfr. Paulus PP. VI, Ep. Apost. Octogesima Adveniens, n. 42: AAS 63 (19711, p. 431.
(108) Cfr. Mt 25,31-46.
(109) Mt 25,42 Mt 25,43 Mt 25,39.
(110) 2Tm 4,2 2Tm 4,40 s.



Direitos do homem « letra » ou «espírito »

17 O nosso século tem sido até agora um século de grandes calamidades para o homem, de grandes devastações, não só materiais, mas também morais, ou melhor, talvez sobretudo morais. Não é fácil, certamente, comparar épocas e séculos sob este aspecto, uma vez que isso depende também dos critérios históricos que mudam. Não obstante, prescindido muito embora de tais comparações, importa verificar que até agora este século foi um tempo em que os homens prepararam para si mesmos muitas injustiças e sofrimentos. Este processo terá sido decididamente entravado? Em qualquer hipótese, não se pode deixar de recordar aqui, com apreço e com profunda esperança para o futuro, o esforço magnífico realizado para dar vida à Organização das Nações Unidas, um esforço que tende para definir e estabelecer os objectivos e invioláveis direitos do homem, obrigando-se os Estados-membros reciprocamente a uma observância rigorosa dos mesmos. Este compromisso foi aceito e ratificado por quase todos os Estados do nosso tempo; e isto deveria constituir uma garantia para que os direitos do homem se tornassem em todo o mundo, o princípio fundamental do empenho em prol do bem do mesmo homem.

A Igreja não precisa de confirmar quanto este problema está intimamente ligado com a sua missão no mundo contemporâneo. Ele está, com efeito, nas mesmas bases da paz social e internacional, como declararam a este propósito João XXIII, o II Concílio do Vaticano e depois Paulo VI, com documentos pormenorizados. Em última análise, a paz reduz-se ao respeito dos direitos invioláveis do homem — « efeito da justiça será a paz » — ao passo que a guerra nasce da violação destes direitos e acarreta consigo ainda mais graves violações dos mesmos. Se os direitos do homem são violados em tempo de paz, isso torna-se particularmente doloroso e, sob o ponto de vista do progresso, representa um incompreensível fenómeno de luta contra o homem, que não pode de maneira alguma pôr-se de acordo com qualquer programa que se autodefina « humanístico ». E qual seria o programa social, económico, político e cultural que poderia renunciar a esta definição? Nós nutrimos a convicção profunda de que não há no mundo de hoje nenhum programa em que, até mesmo sobre a plataforma de ideologias opostas quanto à concepção do mundo, não seja posto sempre em primeiro lugar o homem.

Ora, se apesar de tais premissas, os direitos do homem são violados de diversas maneiras, se na prática somos testemunhas dos campos de concentração, da violência, da tortura, do terrorismo e de multíplices discriminações, isto deve de ser uma consequência de outras premissas que minam, ou muitas vezes quase anulam a eficácia das premissas humanísticas daqueles programas e sistemas modernos. Então impõe-se necessariamente o dever de submeter os mesmos programas a uma contínua revisão sob o ponto de vista dos objectivos e invioláveis direitos do homem.

A Declaração destes direitos, juntamente com a instituição da Organização das Nações Unidas, não tinham certamente apenas a finalidade de nos apartar das horríveis experiências da última guerra mundial, mas também a finalidade de criar uma base para uma contínua revisão dos programas, dos sistemas e dos regimes, precisamente sob este fundamental ponto de vista, que é o bem do homem — digamos, da pessoa na comunidade — e que, qual factor fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas, sistemas e regimes. Caso contrário, a vida humana, mesmo em tempo de paz, está condenada a vários sofrimentos; e, ao mesmo tempo, junto com tais sofrimentos, desenvolvem-se várias formas de dominação, de totalitarismo, de neocolonialismo e de imperialismo, as quais ameaçam mesmo a convivência entre as nações. Na verdade, é um facto significativo e confirmado por mais de uma vez pelas experiências da história, que a violação dos direitos do homem anda coligada com a violação dos direitos da nação, com a qual o homem está unido por ligames orgânicos, como que com uma família maior.

Já desde a primeira metade deste século, no período em que se estavam a desenvolver vários totalitarismos de estado, os quais — como se sabe — levaram à horrível catástrofe bélica, a Igreja havia claramente delineado a sua posição defronte a estes regimes, que aparentemente agiam por um bem superior, qual é o bem do estado, enquanto que a história haveria de demonstrar que, pelo contrário, aquilo era apenas o bem de um determinado partido, que se tinha identificado com o estado. 111 Esses regimes, na realidade, haviam coarctado os direitos dos cidadãos, negando-lhes o reconhecimento daqueles direitos invioláveis do homem que, pelos meados do nosso século obtiveram a sua formulação no plano internacional. Ao compartilhar a alegria de uma tal conquista com todos os homens de boa vontade, com todos os homens que amam verdadeiramente a justiça e a paz, a Igreja, cônscia de que a « letra » somente pode matar, ao passo que só « o espírito vivifica », 112 deve, conjuntamente com estes homens de boa vontade, de contínuo perguntar se a Declaração dos direitos do homem e a aceitação da sua « letra » significam em toda a parte também a realização do seu « espírito ». Surgem, efectivamente, receios fundados de que muito frequentemente estamos ainda longe de uma tal realização, e de que por vezes o espírito da vida social e pública se acha em dolorosa oposição com a declarada « letra » dos direitos do homem. Este estado de coisas, gravoso para as respectivas sociedades, tornaria aqueles que contribuem para o determinar particularmente responsáveis, perante essas sociedades e perante a história do homem.

O sentido essencial do Estado, como comunidade política, consiste nisto: que a sociedade e, quem a compõe, o povo é soberano do próprio destino. Um tal sentido não se torna uma realidade, se, em lugar do exercício do poder com a participação moral da sociedade ou do povo, tivermos de assistir à imposição do poder por parte de um determinado grupo a todos os outros membros da mesma sociedade. Estas coisas são essenciais na nossa época, em que tem crescido enormemente a consciência social dos homens e, conjuntamente com ela, a necessidade de uma correcta participação dos cidadãos na vida política da comunidade, tendo em conta as reais condições de cada povo e o necessário vigor da autoridade pública. 113 Estes são, pois, os problemas de primária importância sob o ponto de vista do progresso do mesmo homem e do desenvolvimento global da sua humanidade.

A Igreja sempre tem ensinado o dever de agir pelo bem comum; e, procedendo assim, também educou bons cidadãos para cada um dos Estados. Além disso, ela sempre ensinou que o dever fundamental do poder é a solicitude pelo bem comum da sociedade; daqui dimanam os seus direitos fundamentais. Em nome precisamente destas premissas, respeitantes à ordem ética objectiva, os direitos do poder não podem ser entendidos de outro modo que não seja sobre a base do respeito pelos direitos objectivos e invioláveis do homem. Aquele bem comum que a autoridade no Estado serve, será plenamente realizado somente quando todos os cidadãos estiverem seguros dos seus direitos. Sem isto, chega-se ao descalabro da sociedade, à oposição dos cidadãos contra a autoridade, ou então a uma situação de opressão, de intimidação, de violência, ou de terrorismo, de que nos forneceram numerosos exemplos os totalitarismos do nosso século. É assim que o princípio dos direitos do homem afecta profundamente o sector da justiça social e se torna padrão para a sua fundamental verificação na vida dos Organismos políticos.

Entre estes direitos insere-se, e justamente, o direito à liberdade religiosa ao lado do direito da liberdade de consciência. O II Concílio do Vaticano considerou particularmente necessário elaborar uma mais ampla Declaração sobre este tema. É o Documento que se intitula Dignitatis humanae, 114 no qual foi expressa, não somente a concepção teológica do problema, mas também a concepção sob o ponto de vista do direito natural, ou seja da posição « puramente humana », em base àquelas premissas ditadas pela própria experiência do homem, pela razão e pelo sentido da sua dignidade. Certamente, a limitação da liberdade religiosa das pessoas e das comunidades não é apenas uma sua dolorosa experiência, mas atinge antes de mais nada a própria dignidade do homem, independentemente da religião professada ou da concepção que elas tenham do mundo. A limitação da liberdade religiosa e a sua violação estão em contraste com a dignidade do homem e com os seus direitos objectivos. O Documento conciliar acima referido diz com bastante clareza o que seja uma tal limitação e violação da liberdade religiosa. Encontramo-nos em tal caso, sem dúvida alguma, perante uma injustiça radical em relação àquilo que é particularmente profundo no homem e em relação àquilo que é autenticamente humano. Com efeito, até mesmo os fenómenos da incredulidade, da a-religiosidade e do ateísmo, como fenómenos humanos, compreendem-se somente em relação com o fenómeno de religião e da fé. É difícil, portanto, mesmo de um ponto de vista « puramente humano », aceitar uma posição segundo a qual só o ateísmo tem direito de cidadania na vida pública e social, enquanto que os homens crentes, quase por príncipio, são apenas tolerados, ou então tratados como cidadãos de segunda categoria, e até mesmo — o que já tem sucedido — são totalmente privados dos direitos de cidadania.

É necessário, embora com brevidade, tratar também deste tema, porque ele realmente faz parte do complexo das situações do homem no mundo actual, e porque ele também está a testemunhar quanto esta situação está profundamente marcada por preconceitos e por injustiças de vários géneros. Se me abstenho de entrar em pormenores neste campo precisamente, no qual me assistiria um especial direito e dever para o fazer, isso é sobretudo porque, juntamente com todos aqueles que sofrem os tormentos da discriminação e da perseguição por causa do nome de Deus, sou guiado pela fé na força redentora da cruz de Cristo. Desejo, no entanto, em virtude de meu múnus, em nome de todos os homens crentes do mundo inteiro, dirigir-me àqueles de quem, de alguma maneira, depende a organização da vida social e pública, pedindo-lhes ardentemente para respeitarem os direitos da religião e da actividade da Igreja. Não se pede nenhum privilégio, mas o respeito de um elementar direito. A actuação deste direito é um dos fundamentais meios para se aquilatar do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes.

(111) Pius PP. XI, Litt. Enc. Quadragesimo anno: AAS 28 (1931), p. 213; Litt. Enc. Non abbiamo bisogno: AAS 23 (1931), pp. 235-312; Litt. Enc. Divini Redemptoris: AAS 29 (1937), pp. 65-106, Ep. Enc. Mit brennender Sorge: AAS 29 (1937), pp. 145-167; Pius PP. XII, Litt. Enc. Summi Pontificatus: AAS 31 (1939), pp. 413-453.
(112) Cfr.
2Co 3,6 2Co 3,42.
(113) Cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Const. past. de Eeclesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes, GS 31: AAS 58 (1966), pp. 1050.
(114) Cfr. AAS 58 (1966), pp. 929-946.



IV. A MISSÃO DA IGREJA E O DESTINO DO HOMEM


18. A Igreja solicita pela vocação do homem em Cristo

18 Esta vista de olhos, necessariamente sumária, da situação do homem no mundo contemporâneo, faz-nos voltar ainda mais os nossos pensamentos e corações para Jesus Cristo, para o mistério da Redenção, no qual o problema do homem se acha inscrito com uma especial força de verdade e de amor. Se Cristo « se uniu de certo modo a cada homem », 115 a Igreja, penetrando no íntimo deste mistério, na sua linguagem rica e universal, está a viver também mais profundamente a própria natureza e missão. Não é em vão que o Apóstolo fala do Corpo de Cristo, que é a Igreja. 116 Se este Corpo Místico de Cristo, depois, é Povo de Deus — como dirá por seu turno o II Concílio do Vaticano, baseando-se em toda a tradição bíblica e patrística — isto quer dizer que todos os homens nele são penetrados por aquele sopro de vida que provém de Cristo. Deste modo, o voltar-se para o homem, voltar-se para os seus reais problemas, para as suas esperanças e sofrimentos, para as suas conquistas e quedas, também faz com que a mesma Igreja como corpo, como organismo e como unidade social, perceba os mesmos impulsos divinos, as luzes e as forças do Espírito que provêm de Cristo crucificado e ressuscitado; e é por isto precisamente que ela vive a sua vida. A Igreja não tem outra vida fora daquela que lhe dá o seu Esposo e Senhor. De facto, precisamente porque Cristo no seu mistério de Redenção se uniu a ela, a Igreja deve estar fortemente unida com cada um dos homens.

Uma tal união de Cristo com o homem é em si mesma um mistério, do qual nasce o « homem novo », chamado a participar na vida de Deus, 117 criado novamente em Cristo para a plenitude da graça e da verdade. 118 A união de Cristo com o homem é a força e a nascente da força, segundo a incisiva expressão de São João no prólogo do seu Evangelho: « O Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus ». 119 É esta força que transforma interiormente o homem, qual princípio de uma vida nova que não fenece nem passa, mas dura para a vida eterna. 120 Esta vida, prometida e proporcionada a cada homem pelo Pai em Jesus Cristo, eterno e unigénito Filho, encarnado e nascido da Virgem Maria « ao chegar a plenitude dos tempos », 121 é o complemento final da vocação do homem; é, de alguma maneira, o cumprir-se daquele « destino » que, desde toda a eternidade, Deus lhe preparou. Este « destino divino » torna-se via, por sobre todos os enigmas, as incógnitas, as tortuosidades e as curvas, do « destino humano » no mundo temporal. Se, de facto, tudo isto, não obstante toda a riqueza da vida temporal, leva por inevitável necessidade à fronteira da morte e à meta da destruição do corpo humano, apresenta-se-nos Cristo para além desta meta: « Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em Mim ... não morrerá jamais ». 122 Em Jesus Cristo crucificado, deposto no sepulcro e depois ressuscitado, « brilha para nós a esperança da feliz ressurreição... a promessa da imortalidade futura », 123 em direcção à qual o homem caminha, através da morte do corpo, partilhando com tudo o que é creado e visível esta necessidade a que está sujeita a matéria. Nós intentamos e procuramos aprofundar cada vez mais a linguagem desta verdade que o Redentor do homem encerrou na frase: « O espírito é que vivifica, a carne para nada serve ». 124 Estas palavras, malgrado as aparências, exprimem a mais alta afirmação do homem: a afirmação do corpo, que o espírito vivifica!

A Igreja vive esta realidade, vive desta verdade sobre o homem, o que lhe permite transpor as fronteiras da temporaneidade e, ao mesmo tempo, pensar com particular amor e solicitude em tudo aquilo que, nas dimensões desta temporaneidade, incide na vida do homem, na vida do espírito humano, onde se afirma aquela inquietude perene, expressa nas palavras de Santo Agostinho: « Fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto, até que não repouse em Vós ». 125 Nesta inquietude criativa bate e pulsa aquilo que é mais profundamente humano: a busca da verdade, a insaciável necessidade do bem, a fome da liberdade, a nostalgia do belo e a voz da consciência. A Igreja, ao procurar ver o homem como que com « os olhos do próprio Cristo », torna-se cada vez mais cônscia de ser a guarda de um grande tesouro, que não lhe é lícito dissipar, mas que deve continuamente aumentar. Com efeito, o Senhor Jesus disse: « Quem não ajunta comigo, dispersa ». 126 Aquele tesouro da humanidade, enriquecido do inefável mistério da filiação divina, 127 da graça de « adopção como filhos » 128 no Unigénito Filho de Deus, mediante a qual dizemos a Deus « Abbá, Pai », 129 é ao mesmo tempo uma força potente que unifica a Igreja sobretudo por dentro e que dá sentido a toda a sua actividade. Por tal força a Igreja une-se com o Espírito de Cristo, com aquele Espírito Santo que o Redentor havia prometido e que comunica continuamente, e cuja descida, revelada no dia do Pentecostes, perdura sempre. Assim, no homem revelam-se as forças do Espírito, 130 os dons do Espírito, 131 os frutos do Espírito Santo. 132 E a Igreja do nosso tempo parece repetir cada vez com maior fervor e com santa insistência: « Vinde, Espírito Santo! ». Vinde! Vinde! « Lavai o que se apresenta sórdido! Regai o que está árido! Sarai o que está ferido! Abrandai o que é rígido! Aquecei o que está frígido! Guiai o que se acha transviado! ». 133

Esta oração ao Espírito Santo, elevada precisamente com a intenção de obter o Espírito, é a resposta a todos os « materialismos » da nossa época. São estes que fazem nascer tantas formas de insaciabilidade do coração humano. Esta súplica faz-se ouvir de diversas partes e parece que frutifica também de modos diversos. Poder-se-á dizer que, nesta súplica, a Igreja não está sozinha? Sim, pode-se dizer, porque « a necessidade » daquilo que é espiritual é exprimida também por pessoas que se encontram fora dos confins visíveis da Igreja. 134 Ou não será isto mesmo confirmado, talvez, por aquela verdade sobre a Igreja, posta em evidência com tanta perspicácia pelo recente Concílio na Constituição dogmática Lumen Gentium, naquela passagem em que ensina ser a Igreja « sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano? ». 135

Esta invocação ao Espírito e pelo Espírito não é outra coisa senão um constante introduzir-se na plena dimensão do mistério da Redenção, no qual Cristo, unido ao Pai e com cada homem, nos comunica sem cessar esse mesmo Espírito que põe em nós os sentimentos do Filho e nos orienta para o Pai. 136 É por isso que a Igreja da nossa época — época particularmente faminta de Espíríto, porque faminta de justiça, de paz, de amor, de bondade, de fortaleza, de responsabilidade e de dignidade humana — deve con centrar-se e reunir-se em torno de tal mistério da Redenção, encontrando nele a luz e a força indispensáveis para a própria missão. Com efeito, se o homem — como dizíamos em precedência — é a via da vida quotidiana da Igreja, é preciso que a mesma Igreja esteja sempre consciente da dignidade da adopção divina que o homem alcança, em Cristo, pela graça do Espírito Santo, 137 e da sua destinação à graça e à glória. 138

Ao reflectir sempre de modo renovado sobre tudo isto, e aceitando-o com uma fé cada vez mais consciente e com um amor cada vez mais firme, a Igreja torna-se simultaneamente mais idónea para aquele serviço do homem, para o qual a chama Cristo Senhor, quando diz: « O Filho do homem ... veio não para ser servido, mas para servir ». 139 A Igreja exerce este seu ministério, participando na « tríplice função » que é própria do seu mesmo Mestre e Redentor. Esta doutrina, com o seu fundamento bíblico, foi posta em plena luz pelo II Concílio do Vaticano, com grande vantagem para a vida da Igreja. Quando, de facto, nos tornamos conscientes dessa participação na tríplice missão de Cristo, no seu tríplice múnus — sacerdotal, profético e real 140 — simultânea e paralelamente tornamo-nos mais conscientes também daquilo que deve servir a Igreja toda, como sociedade e comunidade do Povo de Deus sobre a terra, compreendendo, além disso, qual deva ser a participação de cada um de nós nesta missão e neste serviço.

(115) Conc. Oecum. Vat. II, Const. past. de Ecclesia in mundo huius temporis Gaudium et Spes,
GS 22: AAS 58 (1966), p. 1042.
(116) Cfr. 1Co 6,15 1Co 11,3 1Co 12,12 s.; Ep 1,22 s.; Ep 2,15 s.; Ep 4,4 s.; Ep 5,30 Col 1,18 Col 3,15 Rm 12,4 s.; Ga 3,28.
(117) Cfr. 2P 1,4.
(118) Cfr. Ep 2,10 Jn 1,14 Jn 1,16.
(119) Jn 1,12.
(120) Cfr. Jn 4,11.
(121) Ga 4,4.
(122) Jn 11,25 s.
(123) Praefatio I in Missis Defunctorum.
(124) Jn 6,63.
(125) Confess., I, 1: CSEL 33, p. 1.
(126) Mt 12,30.
(127) Cfr. Jn 1,12.
(128) Ga 4,3.
(129) Col 4,6 Rm 8,15.
(130) Cfr. Rm 15,13 1Co 1,24.
(131) Cfr. Is 11,2 s.; Ac 2,38.
(132) Cfr. Ga 5,22 s.
(133) Missale Rom., Sequentia in sollemnitate Pentecostes.
(134) Cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 16: AAS 57 (1965), p. 20.
(135) Ibidem, LG 1: I. c., p. 5.
(136) Cfr. Rm 8,15 Ga 4,6.
(137) Cfr. Rm 8,15 Rm 8,48
(138) Cfr. Rm 8,30.
(139) Mt 20,28.
(140) Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 31-36: AAS 57 (1965), pp. 37-42.




Redemptor hominis PT 16