Redemptor hominis PT 19

A Igreja responsável pela verdade

19 Assim, à luz da sagrada doutrina do II Concílio do Vaticano, a Igreja aparece frente a nós como sujeito social da responsabilidade pela verdade divina. Ouçamos com profunda emoção o mesmo Cristo, quando diz: " A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou ". 141 Nesta afirmação do nosso Mestre, não se adverte, porventura, aquela responsabilidade pela verdade revelada, que é « propriedade » do mesmo Deus, se até Ele, o « Filho unigénito » que vive « no seio do Pai », 142 quando a transmite, como profeta e como mestre, sente necessidade de frisar bem que age em plena fidelidade à sua divina fonte? A mesma fidelidade deve ser uma qualidade constitutiva da fé da Igreja, quer quando ela a professa, quer quando ela a ensina. A fé como específica virtude sobrenatural infundida no espírito humano, faz-nos participantes no conhecimento de Deus, em resposta à sua Palavra revelada. Por isso se exige que a Igreja, quando professa e ensina a Fé esteja estritamente aderente à verdade divina, 143 e que a mesma Fé se traduza em comportamentos vividos de obséquio consentâneo à razão. 144 O próprio Cristo, preocupado com esta fidelidade à verdade divina, prometeu à Igreja a particular assistência do Espírito da verdade, concedeu o dom da infalibilidade 145 àqueles a quem confiou o mandato de transmitir tal verdade e de a ensinar 146 — doutrina esta que já havia sido claramente definida pelo I Concílio do Vaticano 147 e que, depois, foi repetida também pelo II Concílio do Vaticano 148 — e dotou ainda todo o Povo de Deus de um particular sentido da fé. l49

Por consequência, tornámo-nos participantes de tal missão de Cristo profeta; e, em virtude da mesma missão e juntamente com Ele, servimos a verdade divina na Igreja. A responsabilidade por esta verdade implica também amá-la e procurar obter a sua mais exacta compreensão, de maneira a torná-la mais próxima de nós mesmos e dos outros, com toda a sua força salvífica, com o seu esplendor e com a sua profundidade e simplicidade a um tempo. Este amor e esta aspiração por compreender a verdade devem andar juntos, como o estão a confirmar as histórias pessoais dos Santos da Igreja. Eles eram os mais iluminados pela autêntica luz que esclarece a verdade divina e que aproxima a mesma realidade de Deus, porque se acercavam desta verdade com veneração e amor: amor sobretudo para com Cristo, Palavra viva da verdade divina e, ainda, amor para com a sua expressão humana no Evangelho, na Tradição e na Teologia. De igual modo hoje são necessárias, antes de mais, tal compreensão e tal interpretação da Palavra divina; é necessária tal Teologia. A Teologia teve sempre e continua a ter uma grande importância, para que a Igreja, Povo de Deus, possa participar na missão profética de Cristo de maneira criadora e fecunda. Por isso, os teólogos, como servidores da verdade divina, dedicando os seus estudos e trabalhos a uma cada vez mais penetrante compreensão da mesma verdade, não podem nunca perder de vista o significado do seu serviço na Igreja, contido no conceito do « intellectus fidei » ou seja, da a inteligência da fé ». Este conceito funciona, por assim dizer, a um ritmo bilateral, segundo a expressão de Santo Agostinho: « intellege, ut credas - crede, ut intellegas ». 150 Depois, funciona de maneira correcta quando os mesmos teólogos procuram servir o Magistério confiado na Igreja aos Bispos, unidos pelo vínculo da comunhão hierárquica com o Sucessor de Pedro, e, ainda, quando se põem ao serviço da sua solicitude no ensino e na pastoral, como também quando se põem ao serviço dos interesses apostólicos de todo o Povo de Deus.

Como em épocas precedentes, também hoje — e talvez mais ainda — os teólogos e todos os homens de ciência na Igreja são chamados a unirem a fé com a ciência e a sapiência, a fim de contribuírem para uma recíproca compenetração das mesmas, como lemos na oração litúrgica da memória de Santo Alberto Magno, Doutor da Igreja. Este interesse ampliou-se enormemente nos dias de hoje, dado o progresso da ciência humana, dos seus métodos e das suas conquistas no conhecimento do mundo e do homem. E isto diz respeito tanto às chamadas ciências exactas, quanto igualmente às ciências humanas, bem como à Filosofia, cujos ligames estreitos com a Teologia foram recordados pelo II Concílio doVaticano. 151

Neste campo do conhecimento humano, que continuamente se alarga e a um tempo se diferencia, também a fé deve aprofundar-se constantemente, tornando manifesta a dimensão do mistério revelado e tendendo para a compreensão da verdade, que tem em Deus a única e suprema fonte. Se é lícito — e é até mesmo para desejar — que aquele trabalho imenso que está por fazer neste sentido tome em consideração um certo pluralismo de métodos, tal trabalho, todavia, não pode afastar-se da fundamental unidade no ensino da Fé e da Moral, como finalidade que lhe é própria. É indispensável, portanto, que haja uma estreita colaboração da Teologia com o Magistério. Todos os teólogos devem estar particularmente conscientes daquilo que Cristo exprimiu, quando disse: « A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou ». 152 Ninguém, por conseguinte, pode tratar a Teologia como que se ela fosse uma simples colectânea dos próprios conceitos pessoais; mas cada um deve ter a consciência de permanecer em íntima união com aquela missão de ensinar a verdade, de que é responsável a Igreja.

A participação no múnus profético do próprio Cristo plasma a vida de toda a Igreja, na sua dimensão fundamental. Uma participação particular em tal múnus compete aos Pastores da Igreja, os quais ensinam e, continuamente e de diversos modos, anunciam e transmitem a doutrina da Fé e da Moral cristãs. Este ensino, quer sob o aspecto missionário quer sob o aspecto ordinário, contribui para congregar o Povo de Deus em torno de Cristo, prepara a participação na Eucaristia e indica as vias da vida sacramental. O Sínodo dos Bispos em 1977 dedicou uma atenção especial à catequese no mundo contemporâneo; e o fruto amadurecido das suas deliberações, experiências e sugestões encontrará, dentro em breve, a sua expressão — em conformidade com a proposta dos participantes no mesmo Sínodo — num apropriado Documento pontifício. A catequese constitui, certamente, uma perene e ao mesmo tempo fundamental forma de actividade da Igreja, na qual se manifesta o seu carisma profético: testemunho e ensino andam juntos. E se bem que aqui se fale em primeiro lugar dos Sacerdotes, não se pode deixar de recordar também o grande número de Religiosos e Religiosas que se dedicam à actividade catequística por amor do divino Mestre. E seria difícil, por fim, não mencionar tantos e tantos Leigos que, nesta mesma actividade, encontram a expressão da sua fé e da sua responsabilidade apostólica.

Além disso, é preciso procurar cada vez mais que as várias formas de catequese e os seus diversos campos — a começar daquela forma fundamental que é a catequese « familiar », isto é, a catequese dos pais em relação aos próprios filhos — atestem a participação universal de todo o Povo de Deus no múnus profético do mesmo Cristo. É necessário que, coligada a este facto, a responsabilidade da Igreja pela verdade divina seja cada vez mais, e de diversas maneiras, compartilhada por todos. E assim, o que é que diremos aqui dos especialistas das diversas disciplinas, dos representantes das ciências naturais e das letras, dos médicos, dos juristas, dos homens da arte e da técnica, e dos que se dedicam ao ensino nos vários graus e especializações? Todos eles — como membros do Povo de Deus — têm a sua parte própria na missão profética de Cristo, no seu serviço à verdade divina, até só através do seu modo honesto de comportar-se em relação à verdade, seja qual for o campo a que ela pertença, ao mesmo tempo que educam os outros na verdade, ou lhes ensinam a maturar no amor e na justiça.

Deste modo, portanto, o sentido de responsabilidade pela verdade é um dos fundamentais pontos de encontro da Igreja com todos e cada um dos homens; e é igualmente uma das fundamentais exigências, que determinam a vocação do homem na comunidade da Igreja. A Igreja dos nossos tempos, guiada pelo sentido de responsabilidade pela verdade, deve perseverar na fidelidade à própria natureza, à qual pertence a missão profética que provém do mesmo Cristo: « Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós ... Recebei o Espírito Santo ». 153

(141)
Jn 14,24.
(142) Jn 1,18.
(143) Cfr. Const. dogm. de divina Revelatione Dei Verbum DV 5 DV 10 DV 21: AAS 58 (1966), pp. 819; 822; 827 s.
(144) Cfr. Conc. Oecum. Vat. I, Const. dogm. de Fide catholica Dei Filius, cap. 3: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Ed. Istituto per le Scienze Religiose, Bologna 1973, p. 807.
(145) Cfr. Conc. Oecum. Vat. I, Const. dogm. I de Ecclesia Christi Pastor Aeternus: ed. cit., pp. 811-816; Conc. Oecum. Vat. II, Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium. LG 25: AAS 57 (1965), p. 30s.
(146) Cfr. Mt 28,19.
(147) Cfr. Const. dogm. I de Ecelesia Christi Pastor Aeternus: loc. cit.
(148) Cfr. Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 18-27: AAS 57 (1965), pp. 21-33.
(149) Cfr. Ibidem, LG 12 LG 35: AAS 57 (1965). pp. 16-17; 40-41.
(150) Cfr. S. Augustinus, Sermo 43, 7-9: PL 38, 257 s.
(151) Cfr. Const. past. de Ecclesia in mundo huius teinporis Gaudium et Spes, GS 44 GS 57 GS 59 GS 62:AAS 58 (1966), pp. 1064 s.; 1077 ss.; 1079 s.; 1082 ss.; Decr. de institutione sacerdotaliOptatam Totius, OT 15: AAS 58 (1966), p. 722.
(152) Jn 14,24.
(153) Jn 20,21 s.



Eucaristia e Penitência

20 No mistério da Redenção, isto é, da obra salvífica realizada por Jesus Cristo, a Igreja participa no Evangelho do seu Mestre, não apenas mediante a fidelidade à Palavra e através do serviço à verdade, mas igualmente mediante a submissão, cheia de esperança e de amor, ela participa na força da sua acção redentora, que Ele expressou e encerrou, de forma sacramental, sobretudo na Eucaristia. 154 Esta é o centro e o vértice de toda a vida sacramental, por meio da qual todos os cristãos recebem a força salvífica da Redenção, a começar do mistério do Baptismo, no qual somos imergidos na morte de Cristo, para nos tornarmos participantes da sua Ressurreição, 155 como ensina o Apóstolo. A luz desta doutrina, torna-se ainda mais clara a razão pela qual toda a vida sacramental da Igreja e de cada cristão alcança o seu vértice e a sua plenitude precisamente na Eucaristia. Neste Sacramento, de facto, renova-se continuamente, por vontade de Cristo, o mistério do sacrifício que Ele fez de si mesmo ao Pai sobre o altar da Cruz; sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que se tornou « obediente até à morte », 156 com a sua doação paterna; ou seja, com o dom da vida nova imortal na ressurreição, porque o Pai é a primeira fonte e o doador da vida desde o princípio. Essa vida nova, que implica a glorificação corporal de Cristo crucificado, tornou-se sinal eficaz do novo dom outorgado à humanidade, dom que é o Espírito Santo, mediante o qual a vida divina, que o Pai tem em si e concede ao Filho ter em si mesmo, 157 é comunicada a todos os homens que estão unidos com Cristo.

A Eucaristia é o Sacramento mais perfeito desta união. Ao celebrarmos e conjuntamente ao participarmos na Eucaristia, nós unimo-nos a Cristo terrestre e celeste, que intercede por nós junto do Pai; 158 mas unimo-nos sempre através do acto redentor do seu sacrifício, por meio do qual Ele nos remiu, de modo que fomos « comprados por um preço elevado ». 159 O « preço elevado » da nossa redenção comprova também ele o valor que o mesmo Deus atribui ao homem, comprova a nossa dignidade em Cristo. Realmente, tornando-nos « filhos de Deus », 160 filhos de adopção, 161 à sua semelhança nós tornamo-nos ao mesmo tempo « reino de sacerdotes », alcançamos o « sacerdócio real », 162 isto é, participamos naquela restituição única e irreversível do homem e do mundo ao Pai, que Ele, Filho eterno 163 e ao mesmo tempo verdadeiro Homem, operou de uma vez para sempre. A Eucaristia é o Sacramento no qual se exprime mais cabalmente o nosso novo ser, e no qual o mesmo Cristo, incessantemente e sempre de maneira nova, « dá testemunho » no Espírito Santo ao nosso espírito 164 de que cada um de nós, enquanto participante no mistério da Redenção, tem acesso aos frutos da filial reconciliação com Deus, 165 tal como Ele mesmo a actuou e continua sempre a actuar no meio de nós, mediante o ministério da Igreja.

É uma verdade essencial, não só doutrinal mas também existencial, que a Eucaristia constrói a Igreja; 166 e constrói-a como autêntica comunidade do Povo de Deus, como assembleia dos féis, assinalada pelo mesmo carácter de unidade de que foram participantes os Apóstolos e os primeiros discípulos do Senhor. A Eucaristia constrói renovando-a sempre esta comunidade e unidade; constrói-a sempre e regenera-a sobre a base do sacrifício do mesmo Cristo, porque comemora a sua morte na cruz, 167 com o preço da qual fomos por Ele remidos. Por isso, na Eucaristia nós tocamos de certo modo o próprio mistério do Corpo e do Sangue do Senhor, como atestam as suas mesmas palavras no momento da instituição, em virtude da qual tais palavras se tornaram as palavras da perene celebração da Eucaristia, por parte dos chamados a este ministério na Igreja.

A Igreja vive da Eucaristia, vive da plenitude deste Sacramento, cujo maravilhoso conteúdo e significado tiveram a sua expressão no Magistério da Igreja, desde os tempos mais remotos até aos nossos dias. 168 Contudo, podemos dizer com certeza que este ensino — sustentado pela perspicácia dos teólogos, pelos homens de profunda fé e de oração e pelos ascetas e místicos, com toda a sua fidelidade ao mistério eucarístico — permanece como que no limiar, sendo incapaz de captar e de traduzir em palavras aquilo que é a Eucaristia em toda a sua plenitude, aquilo que ela exprime e aquilo que nela se actua. Ela é, de facto, o Sacramento inefável! O empenho essencial e, sobretudo, a graça visível e fonte da força sobrenatural da Igreja como Povo de Deus é o perseverar e o progredir constantemente na vida eucarística e na piedade eucarística, é o desenvolvimento espiritual no clima da Eucaristia. Com maior razão, portanto, não é lícito nem no pensamento, nem na vida, nem na acção tirar a este Sacramento, verdadeiramente santíssimo, a sua plena dimensão e o seu significado essencial. Ele é ao mesmo tempo Sacramento-Sacrifício, Sacramento-Comunhão e Sacramento-Presença. Se bem que seja verdade que a Eucaristia foi sempre e deve ser ainda agora a mais profunda revelação e celebração da fraternidade humana dos discípulos e confessores de Cristo, ela não pode ser considerada simplesmente como uma « ocasião » para se manifestar uma tal fraternidade. No celebrar o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, é necessário respeitar a plena dimensão do mistério divino, o pleno sentido deste sinal sacramental, em que Cristo, realmente presente, é recebido, a alma é repleta de graça e é dado o penhor da glória futura. 169 Daqui deriva o dever de uma rigorosa observância das normas litúrgicas e de tudo aquilo que testemunha o culto comunitário rendido ao mesmo Deus, tanto mais que Ele, neste sinal sacramental, Se nos entrega com confiança ilimitada, como se não tivesse em consideração a nossa fraqueza humana, a nossa indignidade, os nossos hábitos, a rotina, ou até mesmo a possibilidade de ultraje. Todos na Igreja, mas principalmente os Bispos e os Sacerdotes, devem vigiar por que este Sacramento de amor esteja no centro da vida do Povo de Deus e por que, através de todas as manifestações do culto devido, se proceda de molde a pagar « amor com amor » e a fazer com que Ele se torne verdadeiramente « a vida das nossas almas ». 170 Nem poderemos, ainda, esquecer nunca as seguintes palavras de São Paulo: « Examine-se, pois, cada qual a si mesmo e, assim, coma deste pão e beba deste cálice ». 171

Esta exortação do Apóstolo indica, pelo menos indirectamente, o estreito ligame existente entre a Eucaristia e a Penitência. Com efeito, se a primeira palavra do ensino de Cristo, a primeira frase do Evangelho-Boa Nova, foi « fazei penitência e acreditai na Boa-Nova » (metanoèite), l72 o Sacramento da Paixão, da Cruz e Ressurreição parece reforçar e consolidar, de modo absolutamente especial, um tal convite às nossas almas. A Eucaristia e a Penitência tornam-se assim, num certo sentido, uma dimensão dúplice e, a um tempo, intimamente conexa, da autêntica vida segundo o espírito do Evangelho, da vida verdadeiramente cristã. Cristo, que convida para o banquete eucarístico, é sempre o mesmo Cristo que exorta à penitência, que repete o « convertei-vos ». 173 Sem este constante e sempre renovado esforço pela conversão, a participação na Eucaristia ficaria privada da sua plena eficácia redentora, falharia ou, de qualquer modo, ficaria enfraquecida nela aquela particular disponibilidade para oferecer a Deus o sacrifício espiritual, 174 no qual se exprime de modo essencial e universal a nossa participação no sacerdócio de Cristo. Em Cristo, de facto o sacerdócio está unido com o próprio sacrifício, com a sua entrega ao Pai; e uma tal entrega, precisamente porque é ilimitada, faz nascer em nós — homens sujeitos a multíplices limitações — a necessidade de nos voltarmos para Deus, de uma forma cada vez mais amadurecida e com uma constante conversão, cada vez mais profunda.

Nos últimos anos muito se fez para pôr em realce — em conformidade, aliás, com a mais antiga tradição da Igreja — o aspecto comunitário da penitência e, sobretudo, do sacramento da Penitência na prática da Igreja. Estas iniciativas são úteis e servirão certamente para enriquecer a prática penitencial da Igreja contemporânea. Não podemos esquecer, no entanto, que a conversão é um acto interior de uma profundidade particular, no qual o homem não pode ser substituído pelos outros, não pode fazer-se « substituir » pela comunidade. Muito embora a comunidade fraterna dos fiéis, participantes na celebração penitencial, seja muito útil para o acto da conversão pessoal, todavia, definitivamente é necessário que neste acto se pronuncie o próprio indivíduo, com toda a profundidade da sua consciência, com todo o sentido da sua culpabilidade e da sua confiança em Deus, pondo-se diante d'Ele, à semelhança do Salmista, para confessar: « Pequei contra vós! ». 175 A Igreja, pois, ao observar fielmente a plurissecular práctica do Sacramento da Penitência — a prática da confissão individual, unida ao acto pessoal de arrependimento e ao propósito de se corrigir e de satisfazer — defende o direito particular da alma humana. É o direito a um encontro mais pessoal do homem com Cristo crucificado que perdoa, com Cristo que diz, por meio do ministro do sacramento da Reconciliação: « São-te perdoados os teus pecados »; 176 « Vai e doravante não tornes a pecar ». 177 Como é evidente, isto é ao mesmo tempo o direito do próprio Cristo em relação a todos e a cada um dos homens por Ele remidos. É o direito de encontrar-se com cada um de nós naquele momento-chave da vida humana, que é o momento da conversão e do perdão. A Igreja, ao manter o sacramento da Penitência, afirma expressamente a sua fé no mistério da Redenção, como realidade viva e vivificante, que corresponde à verdade interior do homem, corresponde à humana culpabilidade e também aos desejos da consciência humana. « Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados ». 178 O sacramento da Penitência é o meio para saciar o homem com aquela justiça que provém do mesmo Redentor.

Na Igreja que, sobretudo nos nossos tempos, se reune especialmente em torno da Eucaristia e deseja que a autêntica comunidade eucarística se torne sinal da unidade de todos os cristãos, unidade esta que vai maturando gradualmente, deve estar viva a necessidade da penitência, quer no seu aspecto sacramental, 179 quer também no que respeita à penitência como virtude. Este segundo aspecto foi expresso por Paulo VI na Constituição Apostólica Paenitemini. 180 Uma das obrigações da Igreja é o pôr em prática a doutrina que aí se contém. Trata-se de matéria que deverá, certamente, ser ainda mais aprofundada por nós, em comum reflexão, e tornada objecto de muitas decisões ulteriores, em espírito de colegialidade pastoral, com respeito pelas diversas tradições relacionadas com este ponto e pelas diversas circunstâncias da vida dos homens do nosso tempo. Todavia, é certo que a Igreja do novo Advento, a Igreja que se prepara continuamente para a nova vinda do Senhor, tem de ser a Igreja da Eucaristia e da Penitência. Somente com este perfil espiritual da sua vitalidade e actividade, ela é a Igreja da missão divina, a Igreja in statu missionis (em estado de missão), conforme nos foi revelado o rosto da mesma pelo II Concílio do Vaticano.

(154) Cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Const. de Sacra Liturgia Sacrosanctum Concilium,
SC 10:AAS 56 (1964), p. 102.
(155) Cfr. Rm 6,3 ss.
(156) Ph 2,8.
(157) Cfr. Jn 5,26 1Jn 5,11.
(158) Cfr. He 9,24 1Jn 2,1.
(159) Cfr. 1Co 6,20.
(160) Jn 1,12.
(161) Cfr. Rm 8,23.
(162) Ap 5,10 1P 2,9 1P 2,54.
(163) Cfr. Jn 1,1-4 Jn 1,18 Mt 3,17 Mt 11,27 Mt 17,5 Mc 1,11 Lc 1,32 Lc 1,35 Lc 3,22; Rm 1,4 2Co 1,19 1Jn 5,5 1Jn 5,20 2P 1,17 He 1,2.
(164) Cfr. 1Jn 5,5-11.
(165) Cfr. Rm 5,10 Rm 5,11 2Co 5,18 s.; Col 1,20 Col 1,22.
(166) Cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 11: AAS 57 (1965), p. 15 s.; Paulus PP. VI, Allocutio d. 15 Sept. 1965 habita : Insegnamenti di Paolo VI, III, 1965, p. 1036.
(167) Cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Const. de Sacra Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 47: AAS 56 (1964), p. 113.
(168) Cfr. Paulus PP. VI, Litt. Enc. Mysterium Fidei MF 1: AAS 57 (1965), pp. 553-574.
(169) Cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Const. de Sacra Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 47: AAS 56 (1964), p. 113. 56.
(170) Cfr. Jn 6,52 Jn 6,58 Jn 14,6 Ga 2,20.
(171) 1Co 11,28.
(172) Mc 1,15 Mc 1,17.
(173) Ibidem.Mc 1,15 Mc 1,17
(174) Cfr. 1P 2,5.
(175) Ps 50,6 (51), 6.
(176) Mc 2,5.
(177) Jn 8,11.
(178) Mt 5,6.
(179) Cfr. S. Congregatio pro Doctrina Fidei. Normae pastorales circa absolutionem generali modo impertiendam: AAS 64 (1972), 510-514; Paulus PP. VI, Allocutio ad nonnullos Episcopos e Foederatis Civitatibus Americae Septentrionalis. oblata occasione eorum visitationis «Ad limina » habita (20 Apr. 19781: AAS 70 (1978), pp. 328-332; Ioannes Paulus PP. II. Allocutio ad quosdam sacros Praesules nationis Canadensis habita, eorum visitationis «Ad limina » oblata occasione (17 Nov. 1978): AAS 71 (1979) pp. 32-36.
(180) AAS 55 (l966) pp. 177-198. 59.



Vocação cristã: servir e reinar

21 O II Concílio do Vaticano, ao elaborar a partir dos próprios fundamentos a imagem da Igreja como Povo de Deus — mediante a indicação da tríplice missão do mesmo Cristo, participando na qual nós nos tornamos verdadeiramente Povo de Deus — pôs em realce também aquela característica da vocação cristã que se pode definir « real ». Para apresentar toda a riqueza da doutrina conciliar sobre isto, seria necessário fazer aqui referência a numerosos capítulos e parágrafos da Constituição Lumen Gentium, bem como a muitos outros Documentos conciliares. No meio de toda esta riqueza, porém, há um elemento que parece emergir: a participação na missão real de Cristo, isto é, o facto de redescobrir em si e nos outros aquela particular dignidade da nossa vocação, que se pode designar por « realeza ». Uma tal dignidade exprime-se na disponibilidade para servir, segundo o exemplo de Cristo, o qual « não veio para ser servido, mas para servir ». 181

Se, portanto, à luz da atitude de Cristo, se pode verdadeiramente « reinar » somente « servindo », ao mesmo tempo este « servir » exige uma tal maturidade espiritual, que se tem de definí-la precisamente como « reinar ». Para se poder servir os outros digna e eficazmente, é necessário saber dominar-se a si mesmo, é preciso possuir as virtudes que tornam possível um tal domínio. A nossa participação na missão real de Cristo — exactamente na sua « função real » ( munus) — anda intimamente ligada com toda a esfera da moral cristã e também humana.

O II Concílio do Vaticano, ao apresentar o quadro completo do Povo de Deus, recordando qual o lugar que nele ocupam, não apenas os sacerdotes, mas também os leigos, e não apenas os representantes da Hierarquia, mas também as e os representantes dos Institutos de vida consagrada, não deduziu essa imagem somente de uma premissa sociológica. A Igreja, enquanto sociedade humana, pode sem dúvida alguma ser examinada e definida segundo aquelas categorias de que se servem as ciências humanas. Mas tais categorias não são suficientes. Para toda a comunidade do Povo de Deus e para cada um dos seus membros, não se trata somente de um específico « pertencer socialmente », mas sobretudo é essencial, para cada um e para todos, uma particular « vocação » A Igreja, realmente, enquanto Povo de Deus — segundo a doutrina acima aludida de São Paulo, recordada de modo admirável por Pio XII — é também « Corpo Místico de Cristo ». 182 O pertencer a tal « Corpo » deriva de um chamamento particular, junto com a acção salvífica da graça. Portanto, se quisermos ter presente esta comunidade do Povo de Deus, tão vasta e sumamente diferenciada, devemos antes de mais ver Cristo, que diz, de um certo modo, a cada um dos membros desta mesma comunidade: « Segue-me ». 183 Esta é a comunidade dos discípulos, cada um dos quais, de maneira diversa, por vezes muito consciente e coerentemente, e por vezes pouco conscientemente e muito incoerentemente, segue Cristo. Nisto manifesta-se também o aspecto profundamente « pessoal » e a dimensão desta sociedade, a qual — não obstante todas as deficiências da vida comunitária, no sentido humano desta palavra — é uma comunidade precisamente pelo facto de que todos a constituem juntamente com o mesmo Cristo, se não por outro motivo, ao menos porque têm nas suas almas o sinal indelével de quem é cristão.

O II Concílio do Vaticano aplicou uma atenção muito particular em demonstrar de que maneira esta comunidade « ontológica » dos discípulos e dos confessores se deve tornar cada vez mais, também « humanamente », uma comunidade consciente da própria vida e actividade. As iniciativas do Concílio quanto a isto encontraram a sua continuidade em numerosas iniciativas ulteriores, de carácter sinodal, apostólico e organizativo. Devemos ter sempre presente, no entanto, a verdade de que toda e qualquer iniciativa em tanto serve para uma verdadeira renovação da Igreja e em tanto contribui para aportar a autêntica luz de Cristo, 184 em quanto se baseia sobre uma adequada consciência da vocação e da responsabilidade por esta graça singular, única e que não se pode repetir, mediante a qual cada um dos cristãos na comunidade do Povo de Deus edifica o Corpo de Cristo. Este princípio, que é a regra-chave de toda a prática cristã — prática apostólica e pastoral, e prática da vida interior e da vida social — deve ser aplicado, em proporção adequada, a todos os homens e a cada um deles. Também o Papa, assim como todos os Bispos, o devem aplicar a si mesmos. A este princípio devem igualmente ser fiéis os sacerdotes, os religiosos e as religiosas. Com base nele, ainda, devem construir a sua vida os esposos, os pais, as mulheres e os homens de condições e de profissões diversas, a começar por aqueles que ocupam na sociedade os cargos mais elevados e a acabar por aqueles que fazem os trabalhos mais simples. É este justamente o princípio daquele « serviço real », que impõe a cada um de nós, seguindo o exemplo de Cristo, o dever de exigir de si próprio exactamente aquilo para que somos chamado, e a que — para corresponder à vocação — nós nos obrigámos pessoalmente, com a graça de Deus.

Uma tal fidelidade à vocação recebida de Deus, mediante Cristo, acarreta consigo aquela solidária responsabilidade pela Igreja, para a qual o II Concílio do Vaticano desejou educar todos os cristãos. Na Igreja, de facto, enquanto na comunidade do Povo de Deus, guiada pela acção do Espírito Santo, cada um possui « o próprio dom », conforme ensina São Paulo. 185 Este « dom », porém, embora seja uma vocação pessoal e uma forma também pessoal de participação na obra salvífica da Igreja, serve igualmente para os outros e constrói a Igreja e as comunidades fraternas nas várias esferas da existência humana sobre a terra.

A fidelidade à vocação, ou seja, a perseverante disponibilidade para o « serviço real », tem um significado particular para esta multíplice construção, sobretudo pelo que se refere às tarefas mais compromissivas, as quais têm maior influência na vida do nosso próximo e de toda a sociedade. Devem distinguir-se pela fidelidade à própria vocação os esposos, como resulta da natureza indissolúvel da instituição sacramental do matrimónio. Devem distinguir-se por uma análoga fidelidade à própria vocação os sacerdotes, dado o carácter indelével que o sacramento da Ordem imprime nas suas almas. Ao receber este Sacramento, nós, na Igreja Latina, consciente e livremente comprometemo-nos a viver no celibato; e por isso, cada um de nós deve fazer todo o possível, com a graça de Deus, por ser reconhecido por este dom e fiel ao vínculo assumido para sempre. E isto não diversamente dos esposos: eles devem tender, com todas as suas forças, para perseverar na união matrimonial, construindo com este testemunho de amor a comunidade familiar e educando as novas gerações de homens para serem capazes de consagrar, também eles, toda a sua vida à própria vocação, ou seja, àquele « serviço real » do qual nos foram dados o exemplo e o modelo mais belo por Jesus Cristo.

A Igreja de Cristo, que nós todos formamos, é « para os homens », no sentido de que, baseando-nos no exemplo do mesmo Cristo 186 e colaborando com a graça que Ele nos obteve, nós podemos atingir um tal « reinar », que o mesmo é dizer, realizar uma maturada humanidade em cada um de nós. Humanidade maturada significa pleno uso do dom da liberdade, que recebemos do Criador, no momento em que Ele chamou à existência o homem feito à sua imagem e semelhança. Este dom encontra a sua plena realização na doação, sem reservas, de toda a própria pessoa humana, em espírito de amor esponsal a Cristo e, com o mesmo Cristo, a todos aqueles aos quais Ele envia homens e mulheres que a Ele são totalmente consagrados segundo os conselhos evangélicos. Este é o ideal da vida religiosa, assumido pelas Ordens e Congregações, tanto antigas como recentes, e pelos Institutos seculares.

Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se, erroneamente, que a liberdade é fim para si mesma, que cada homem é livre na medida em que usa da liberdade como quer, e que para isto é necessário tender-se na vida dos indivíduos e das sociedades. Mas a liberdade, ao contrário, só é um grande dom quando dela sabemos usar conscientemente, para tudo aquilo que é o verdadeiro bem. Cristo ensina que o melhor uso da liberdade é a caridade, que se realiza no dom e no serviço. Foi para tal liberdade « que Cristo nos libertou » 187 e nos liberta sempre. A Igreja vai haurir aqui a incessante inspiração, o estímulo e o impulso para a sua missão e para o seu serviço no meio de todos os homens. A verdade plena sobre a liberdade humana acha-se profundamente gravada no mistério da Redenção. A Igreja presta verdadeiramente um serviço à humanidade, quando tutela esta verdade, com infatigável aplicação, com amor ardente e com diligência maturada; e, ainda, quando, em toda a própria comunidade, através da fidelidade à vocação de cada um dos cristãos, a mesma Igreja a transmite e a concretiza na vida humana. Deste modo é confirmado aquilo a que já nos referimos em precedência, isto é, que o homem é e continuamente se torna a « via » da vida quotidiana da Igreja.

(181)
Mt 20,28.
(182) Pius PP. XII, Litt. Enc. Mystici Corporis: AAS 35 (1943), pp. 193-248.
(183) Jn 1,43.
(184) Cfr. Conc. Oecum Vat. II, Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, LG 1: AAS. 57 (1965), p. 5.
(185) 1Co 7,7: cfr. 1Co 12,7 1Co 12,27 Rm 12,6.
(186) Cfr. Conc. Oecum. Vat. II, Const. dogm. de Ecclesia Lumen Gentium, n. LG 36: AAS 57 (1965), pp. 41 s.
(187) Ga 5,1; cfr. ibidem LG 13.




Redemptor hominis PT 19