Redemptoris Mater PT 13


13 "A Deus que revela é devida "a obediência da fé" (Rm 16,26 cf. Rm 1,5 2Co 10,5-6), pela qual o homem se entrega total e livremente a Deus", como ensina o Concílio. 29 Exactamente esta descrição da fé teve em Maria uma actuação perfeita. O momento "decisivo" foi a Anunciação; e as palavras de Isabel - "feliz daquela que acreditou" - referem-se em primeiro lugar precisamente a esse momento. 30

Na Anunciação, de facto, Maria entregou-se a Deus completamente, manifestando "a obediência da fé" Àquele que lhe falava, mediante o seu mensageiro, prestando-lhe o "obséquio pleno da inteligência e da vontade". 31 Ela respondeu, pois, com todo o seu "eu" humano e feminino. Nesta resposta de fé estava contida uma cooperação perfeita com a "prévia e concomitante ajuda da graça divina" e uma disponibilidade perfeita à acção do Espírito Santo, o qual "aperfeiçoa continuamente a fé mediante os seus dons". 32

A palavra de Deus vivo, anunciada pelo Anjo a Maria, referia-se a ela própria: "Eis que conceberás e darás à luz um filho" (Lc 1,31). Acolhendo este anúncio, Maria devia tornar-se a "Mãe do Senhor" e realizar-se-ia nela o mistério divino da Incarnação: "O Pai das misericórdias quis que a aceitação por parte da que Ele predestinara para mãe, precedesse a Incarnação". 33 E Maria dá esse consenso, depois de ter ouvido todas as palavras do mensageiro. Diz: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38). Este fiat de Maria - "faça-se em mim" - decidiu, da parte humana, do cumprimento do mistério divino. Existe uma consonância plena com as palavras do Filho que, segundo a Carta aos Hebreus, ao vir a este mundo, diz ao Pai: "Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas formaste-me um corpo... Eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade" (He 10,5-7). O mistério da Incarnação realizou-se quando Maria pronunciou o seu "fiat": "Faça-se em mim segundo a tua palavra", tornando possível, pelo que a ela competia no desígnio divino, a aceitação do oferecimento do seu Filho.

Maria pronunciou este "fiat" mediante a fé. Foi mediante a fé que ela "se entregou a Deus" sem reservas e "se consagrou totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra do seu Filho". 34 E este Filho - como ensinam os Padres da Igreja - concebeu-o na mente antes de o conceber no seio: precisamente mediante a fé! 35 Com justeza, portanto, Isabel louva Maria: "Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor". Essas coisas já se tinham cumprido: Maria de Nazaré apresenta-se no limiar da casa de Isabel e de Zacarias como mãe do Filho de Deus. É essa a descoberta letificante de Isabel: "A mãe do meu Senhor vem ter comigo!".


(29) Const. dogni. Dei Verbum de Divina Revelatione, DV 5.
(30) Notissimum est hoc argumentum a sancto Irenaeo iam pertractatum: « Sicut enim per inoboedientem virginem percussus est homo praecepsque datus interiit, ita sane per Virginem Dei verbo oboedientein homo regeneratus vitam accepit per vitam ... Expedivit enim decuitque ... Evam « recapitulari » in Maria ut Virgo virginis effecta patrona disiceret ac deleret virginalem inoboedientiam per oboedientiam virginalem »: Expositio praedicationis apostolicae, 33: S. Ch. 62, 83-86; cfr. etiam Adversus Haereses, V, 19, 1: S. Ch. 153, 238-250.
(31) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Dei Verbum de Divina Revelatione, DV 5.
(32) Ibid., DV 5; cfr. Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 56.
(33) CONG. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 56.
(34) Ibid., LG 56.
(35) Cfr. ibid., LG 53; S. AUGUSTINUS, De Sancta Virginitate, III, 3: PL 40, 398; Sermo 215, 4:PL 38, 1074; Sermo 196, I: PL 38, 1019; De peccatorum meritis et remissione, I, 29, 57: PL44, 142; Sermo 25, 7: PL 46, 937 S.; S. LEO MAGNUS, Tractatus 21, de natale Domini, I:CCL 138, 86.



14 Por conseguinte, também a fé de Maria pode ser comparada com a de Abraão, a quem o Apóstolo chama "nosso pai na fé" (cf. Rm 4,12). Na economia salvífica da Revelação divina, a fé de Abraão constitui o início da Antiga Aliança; a fé de Maria, na Anunciação, dá início à Nova Aliança. Assim como Abraão, "esperando contra toda a esperança, acreditou que haveria de se tornar pai de muitos povos" (cf. Rm 4,18), também Maria, no momento da Anunciação, depois de ter declarado a sua condição de virgem ("Como será isto, se eu não conheço homem?"), acreditou que pelo poder do Altíssimo, por obra do Espírito Santo, se tornaria a mãe do Filho de Deus segundo a revelação do Anjo: "Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus" (Lc 1,35).

Entretanto, as palavras de Isabel: "Feliz daquela que acreditou" não se aplicam apenas àquele momento particular da Anunciação. Esta representa, sem dúvida, o momento culminante da fé de Maria na expectação de Cristo, mas é também o ponto de partida, no qual se inicía todo o seu "itinerário para Deus", toda a sua caminhada de fé. E será ao longo deste caminho, que a "obediência" por ela professada à palavra da revelação divina irá ser actuada, de modo eminente e verdadeiramente heróico ou, melhor dito, com um heroísmo de fé cada vez maior. E esta "obediência da fé" da parte de Maria, durante toda a sua caminhada, terá surpreendentes analogias com a fé de Abraão. Do mesmo modo que o patriarca do Povo de Deus, também Maria, ao longo do caminho do seu fiat filial e materno, "esperando contra toda a esperança, acreditou". Especialmente ao longo de algumas fases deste seu caminhar, a bênção concedida "àquela que acreditou" tornar-se-á manifesta com particular evidência. Acreditar quer dizer "abandonar-se" à própria verdade da palavra de Deus vivo, sabendo e reconhecendo humildemente "quanto são insondáveis os seus desígnios e imperscrutáueis as suas vias" (Rm 11,33). Maria, que pela eterna vontade do Altíssimo veio a encontrar-se, por assim dizer, no próprio centro daquelas "imperscrutáveis vias" e daqueles "insondáveis desígnios" de Deus, conforma-se a eles na obscuridade da fé, aceitando plenamente e com o coração aberto tudo aquilo que é disposição dos desígnios divinos.


15 Na Anunciação, quando Maria ouve falar do Filho de que deve tornar-se genetriz e ao qual "porá o nome de Jesus" (= Salvador), fica também a conhecer que "o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David", que ele "reinará sobre a casa de Jacob eternamente e o seu reinado não terá fim" (Lc 1,32-33). Era neste sentido que se orientava toda a esperança de Israel. O Messias prometido devia ser "grande"; e também o mensageiro celeste anuncia que "será grande": grande, quer pelo nome de Filho do Altíssimo, quer pelo facto de assumir a herança de David. Há-de, portanto, ser rei, há-de reinar "sobre a casa de Jacob". Maria tinha crescido no meio desta expectativa do seu povo: estaria ela em condições de captar, no momento da Anunciação, qual o sentido essencial que podiam ter as palavras do Anjo, e como devia ser entendido aquele "reino", que "não terá fim"?

Se bem que, mediante a fé, ela possa ter-se sentido naquele instante mãe do "Messias-rei", contudo respondeu: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38). Desde o primeiro momento, Maria professou sobretudo "a obediência da fé", abandonando-se àquele sentido que dava às palavras da Anunciação Aquele do qual elas provinham: o próprio Deus.


16 No caminho da "obediência da fé", ainda, Maria, um pouco mais tarde, ouve outras palavras: aquelas que foram pronunciadas por Simeão, no templo de Jerusalém. Estava-se já no quadragésimo dia depois do nascimento de Jesus, quando Maria e José, segundo a prescrição da Lei de Moisés, "levaram o menino a Jerusalém, para o oferecer ao Senhor" (Lc 2,22). O nascimento verificara-se em condições de extrema pobreza. Com efeito, sabemos através de São Lucas que, por ocasião do recenseamento da população ordenado pelas autoridades romanas, Maria se dirigiu com José a Belém; e não tendo encontrado "lugar na hospedaria", deu à luz o seu Filho num estábulo e "reclinou-o numa manjedoura" (cf. Lc Lc 2,7).

Um homem justo e piedoso, de nome Simeão, aparece naquele momento dos inícios do "itinerário" da fé de Maria. As suas palavras, sugeridas pelo Espírito Santo (cf. Lc Lc 2,25-27), confirmam a verdade da Anunciação. Lemos, efectivamente, que ele "tomou nos seus braços" o menino, ao qual - segundo a palavra do Anjo - deram o nome de Jesus" (cf. Lc Lc 2,21). Aquilo que Simeão diz está conforme com o significado deste nome, que quer dizer Salvador: "Deus é a salvação". Dirigindo-se ao Senhor, ele exprime-se assim: "Os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste em favor de todos os povos; luz para iluminar as nações e glória de Israel, teu povo" (Lc 2,30-32). Nessa mesma altura, porém, Simeão dirige-se a Maria com as seguintes palavras: "Ele é destinado a ser ocasião de queda e de ressurgimento para muitos em Israel e a ser um sinal de contradição... a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações"; e acrescenta, com referência directa a Maria: "E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada" (Lc 2,34-35). As palavras de Simeão colocam sob uma luz nova o anúncio que Maria tinha ouvido do Anjo: Jesus é o Salvador, é "luz para iluminar" os homens. Não foi isso que, de algum modo, se manifestou na noite de Natal, quando os pastores vieram ao estábulo? (cf. Lc Lc 2,8-20). Não foi isso o que se manifestou também e ainda mais, aquando da vinda dos Magos do Oriente? (cf. Mt Mt 2,1-12) . Ao mesmo tempo, porém, logo desde o início da sua vida, o Filho de Maria, e com ele a sua Mãe, experimentarão em si mesmos a verdade daquelas outras palavras de Simeão: "Sinal de contradição" (Lc 2,34). Aquilo que Simeão diz apresenta-se como um segundo anúncio a Maria, uma vez que indica a dimensão histórica concreta em que o Filho realizará a sua missão, ou seja, na incompreensão e na dor. Se este outro anúncio confirma, por um lado, a sua fé no cumprimento das promessas divinas da salvação, por outro, também lhe revela que ela terá que viver a sua obediência de fé no sofrimento, ao lado do Salvador que sofre, e que a sua maternidade será obscura e marcada pela dor. Com efeito, depois da visita dos Magos, depois de eles lhe terem rendido homenagem ("prostrados o adoraram") e depois da oferta dos dons (cf. Mt Mt 2,11), sucede que Maria, com o menino, tem de fugir para o Egipto sob a proteção desvelada de José, porque Herodes estava a "procurar o menino para o matar" (cf. Mt Mt 2,13). E teriam de ficar no Egipto até à morte de Herodes (cf. Mt Mt 2,15).



17 Depois da morte de Herodes, quando se dá o retorno da sagrada família a Nazaré, inicia-se o longo período da vida oculta. Aquela que "acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor" (Lc 1,45) vive no dia a dia o conteúdo dessas palavras. O Filho a quem deu o nome de Jesus está quotidianamente ao seu lado; assim, no contacto com ele, usa certamente este nome, o que não devia, aliás, causar estranheza a ninguém, tratando-se de um nome que era usual, desde havia muito tempo, em Israel. Maria sabe, no entanto, que aquele a quem foi posto o nome de Jesus, foi chamado pelo Anjo "Filho do Altíssimo" (cf. Lc 1,32). Maria sabe que o concebeu e deu à luz "sem ter conhecido homem", por obra do Espírito Santo, com o poder do Altíssimo que sobre ela estendeu a sua sombra (cf. Lc Lc 1,35), tal como nos tempos de Moisés e dos antepassados a nuvem velava a presença de Deus (cf. Ex 24,16 Ex 40,34-35 1R 8,10-12). Maria sabe, portanto, que o Filho, por ela dado à luz virginalmente, é precisamente aquele "Santo", "o Filho de Deus" de que lhe havia falado o Anjo.

Durante os anos da vida oculta de Jesus na casa de Nazaré, também a vida de Maria "está escondida com Cristo em Deus" (cf. Col 3,3) mediante a fé. A fé, efectivamente, é um contacto com o mistério de Deus. Maria está constante e quotidianamente em contacto com o mistério inefável de Deus que se fêz homem, mistério que supera tudo aquilo que foi revelado na Antiga Aliança. Desde o momento da Anunciação, a mente da Virgem-Mãe foi introduzida na "novidade" radical de autorevelação de Deus e tornada cônscia do mistério. Ela é a primeira daqueles "pequeninos" dos quais um dia Jesus dirá: "Pai, ... escondeste estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos pequeninos" (Mt 11,25). Na verdade, "ninguém conhece o Filho senão o Pai" (Mt 11,27). Como poderá então Maria "conhecer o Filho"? Certamente, não como o Pai o conhece; e no entanto, ela é a primeira entre aqueles aos quais o Pai "o quis revelar" (cf. Mt 11,26-27 1Co 2,11). Se, porém, desde o momento da Anunciação lhe foi revelado o Filho, que apenas o Pai conhece completamente, como Aquele que o gera no "hoje" eterno (cf. Ps 2,7), então Maria, a Mãe, está em contacto com a verdade do seu Filho somente na fé e mediante a fé! Portanto, é feliz porque "acreditou"; e acredita dia a dia, no meio de todas as provações e contrariedades do período da infância de Jesus e, depois, durante os anos da sua vida oculta em Nazaré, quando ele "lhes era submisso" (Lc 2,51): submisso a Maria e também a José, porque José, diante dos homens, fazia para ele as vezes de pai; e era por isso que o Filho de Maria era tido pela gente do lugar como "o filho do carpinteiro" (Mt 13,55).

A Mãe, por conseguinte, lembrada de tudo o que lhe havia sido dito acerca deste seu Filho, na Anunciação e nos acontecimentos sucessivos, é portadora em si mesma da "novidade" radical da fé: o início da Nova Aliança. Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de "noite da fé" - para usar as palavras de São João da Cruz - como que um "véu" através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. 36 Foi deste modo, efectivamente, que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé, à medida em que Jesus "crescia em sabedoria ... e graça, diante de Deus e dos homens" (Lc 2,52). Manifestava-se cada vez mais aos olhos dos homens a predilecção que Deus tinha por ele. A primeira entre estas criaturas humanas admitidas à descoberta de Cristo foi Maria que, com Ele e com José, vivia na mesma casa em Nazaré.

Todavia, na ocasião em que o reencontraram no templo, à pergunta da Mãe: "Por que procedeste assim connosco?", Jesus - então menino de doze anos - respondeu: "Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?"; e o Evangelista acrescenta: "Mas eles (José e Maria) não entenderam as suas palavras" (Lc 2,48-50). Portanto, Jesus tinha a consciência de que "só o Pai conhece o Filho" (cf. Mt 11,27); tanto assim, que até aquela a quem tinha sido revelado mais profundamente o mistério da sua filiação divina, a sua Mãe, vivia na intimidade com este mistério somente mediante a fé! Encontrando-se constantemente ao lado do Filho, sob o mesmo tecto, e "conservando fielmente a união com o Filho" Ela "avançava na peregrinação da fé", como acentua o Concílio. 37 E assim sucedeu também durante a vida pública de Cristo (cf. Mc 3,21-35) pelo que, dia a dia, se cumpriram nela as palavras abençoantes pronunciadas por Isabel, aquando da Visitação: "Feliz daquela que acreditou".

(36) Cfr. Subida del Monte Carmelo, 1. II, cap. 3, 4-6.
(37) Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 58.



18 Estas palavras abençoantes atingem a plenitude do seu significado, quando Maria está aos pés da Cruz do seu Filho (cf. Jn 19,25). O Concílio afirma que isso "aconteceu não sem um desígnio divino": "padecendo acerbamente com o seu Unigénito, associando-se com ânimo maternal ao seu sacrifício e consentindo com amor na imolação da vítima que ela havia gerado", foi deste modo que Maria "conservou fielmente a união com seu Filho até à Cruz", 38 a união mediante a fé: a mesma fé com a qual tinha acolhido a revelação do Anjo no momento da Anunciação. Nesse momento ela tinha também ouvido dizer: "será grande ..., o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de seu pai David..., reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reinado não terá fim" (Lc 1,32-33).

E agora, estando ali aos pés da Cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, do desmentido cabal dessas palavras. O seu Filho agoniza, suspenso naquele madeiro como um condenado. "Desprezado e rejeitado pelos homens; homem das dores...; era menosprezado e nenhum caso fazíamos dele" ... como que destruído (cf. Is 53,3-5). Quão grande e quanto foi heróica então a "obediência da fé" demonstrada por Maria diante dos "insondáveis desígnios" de Deus! Como ela se "abandonou nas mãos de Deus" sem reservas, "prestando o pleno obséquio da inteligência e da vontade" 39 Àquele cujas "vias são imperscrutáveis!" (cf. Rm 11,33). E, ao mesmo tempo, quanto se mostra potente a acção da graça na sua alma e quanto é penetrante a influência do Espírito Santo, da sua luz e da sua virtude!

Mediante essa sua fé, Maria está perfeitamente unida a Cristo no seu despojamento. Com efeito, "Jesus Cristo, ... subsistindo na natureza divina, não julgou o ser igual a Deus, um bem a que não devesse nunca renunciar; mas despojou-se a si mesmo tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens": precisamente sobre o Gólgota "humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz" (cf. Ph 2,5-8). E aos pés da Cruz, Maria participa mediante a fé no mistério desconcertante desse despojamento. Isso constitui, talvez, a mais profunda "kénose" da fé na história da humanidade. Mediante a fé, a Mãe participa na morte do Filho, na sua morte redentora; mas, bem diferente da fé dos discípulos, que se davam à fuga, a fé de Maria era muito mais esclarecida. Sobre o Gólgota, Jesus confirmou definitivamente, por meio da Cruz, ser "o sinal de contradição" predito por Simeão. Ao mesmo tempo, cumpriram-se aí as palavras dirigidas pelo mesmo ancião a Maria: "E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada". 40

(38) Ibid., LG 58.
(39) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Dei Verbum de Divina Revelatione, DV 5.
(40) De participatione seu « compassione » Mariae cum Christi morte, cfr. S. BERNARDUS, In Dominica infra octavam Assumptionis Sermo, 14: S. Bernardi Opera, V, 1968, 273.


19 Sim, verdadeiramente, "feliz daquela que acreditou"! Estas palavras, pronunciadas por Isabel já depois da Anunciação, parecem ressoar aqui, aos pés da Cruz, com suprema eloquência; e a força que elas encerram, torna-se penetrante. Da Cruz ou, por assim dizer, do próprio coração do mistério da Redenção, se esparge a irradiação e se dilata a perspectiva daquelas palavras abençoadoras da sua fé. Elas remontam "até ao princípio" e, como participação no sacrifício de Cristo, novo Adão, tornam-se, em certo sentido, o contrabalanço da desobediência e da incredulidade presentes no pecado dos nossos primeiros pais. Assim o ensinam os Padres da Igreja, especialmente Santo Ireneu, citado na Constituição Lumen Gentium: "O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a Virgem Eva atou, com a sua incredulidade, a Virgem Maria desatou-o com a sua fé". 41 À luz desta comparação com Eva, os mesmos Padres - como recorda ainda o Concílio - chamam a Maria "mãe dos vivos" e afirmam muitas vezes: "A morte veio por Eva, a vida por meio de Maria". 42

Com razão, portanto, podemos encontrar na expressão "feliz daquela que acreditou" como que uma chave que nos abre o acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi saudada pelo Anjo como "cheia da graça". Se como "cheia de graça" ela esteve eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé, torna-se dele participante em toda a extensão do seu itinerário terreno: "avançou na peregrinação da fé" e, ao mesmo tempo, de maneira discreta, mas directa e eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo. E ainda continua a fazê-lo. E mediante o mistério de Cristo, também ela está presente entre os homens. Deste modo, através do mistério do Filho, esclarece-se também o mistério da Mãe.

(41) S. IRENAEUS, Adversus Haereses, III, 22, 4: S. Ch. 211, 438-444; cfr. Const. dogm.Lumen Gentium de Ecclesia,
LG 56, nota 8.
(42) Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 56 et Patres ibidem memorati ad notas 8 et 9.



3. Eis a tua mãe

20 O Evangelho de São Lucas regista o momento em que "uma mulher ergueu a voz do meio da multidão e disse", dirigindo-se a Jesus: "Ditoso o ventre que te trouxe e os seios a que foste amamentado!" (Lc 11,27). Estas palavras constituíam um louvor para Maria, como mãe de Jesus segundo a carne. A Mãe de Jesus talvez não fosse conhecida pessoalmente por essa mulher; de facto, quando Jesus iniciou a sua actividade messiânica, Maria não o acompanhava, mas continuava a viver em Nazaré. Dir-se-ia que as palavras dessa mulher desconhecida a fizeram sair, de algum modo, do seu escondimento.

Através de tais palavras lampejou no meio da multidão, ao menos por um instante, o evangelho da infância de Jesus. É o evangelho em que Maria está presente como a mãe que concebe Jesus no seu seio, o dá à luz e maternamente o amamenta: a mãe-nutriz, a que alude aquela mulher do povo. Graças a esta maternidade, Jesus - Filho do Altíssimo (cf. Lc 1,32) - é um verdadeiro filho do homem. É "carne", como todos os homens. é "o Verbo (que) se fez carne" (cf. Jn 1,14). É carne e sangue de Maria! 43

Mas, às palavras abençoantes proferidas por aquela mulher em relação à sua genetriz segundo a carne, Jesus responde de modo significativo: "Ditosos antes os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática" (Lc 11,28). Ele quer desviar a atenção da maternidade entendida só como um vínculo do sangue, para a orientar no sentido daqueles vínculos misteriosos do espírito, que se formam com o prestar ouvidos e com a observância da palavra de Deus.

A mesma transferência, na esfera dos valores espirituais, delineia-se ainda mais claramente numa outra resposta de Jesus, relatada por todos os Sinópticos. Quando foi anunciado ao mesmo Jesus que a sua "mãe e os seus irmãos estavam lá fora e desejavam vê-lo", ele respondeu: "Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática" (cf. Lc 8,20-21). Disse isto "percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele", como lemos em São Marcos (Mc 3,34) ou, segundo São Mateus (Mt 12,49), "indicando com a mão os seus discípulos".

Estas expressões parecem situar-se na linha daquilo que Jesus - então menino de doze anos - respondeu a Maria e José, quando foi reencontrado, depois de três dias, no templo de Jerusalém.

Agora, uma vez que Jesus já tinha saído de Nazaré para dar início à sua vida pública por toda a Palestina, estava doravante completa e exclusivamente "ocupado nas coisas do Pai" (cf. Lc 2,49). Ocupava-se em anunciar o Reino: o "Reino de Deus" e as "coisas do Pai", que dão também uma dimensão nova e um sentido novo a tudo aquilo que é humano; e, por conseguinte, a todos os laços humanos, em relação com os fins e as funções estabelecidos para cada um dos homens. Com esta nova dimensão, também um laço, como o da "fraternidade" significa algo de diverso da "fraternidade segundo a carne", que provém da origem comum dos mesmos pais. E até mesmo a "maternidade", vista na dimensão do Reino de Deus, na irradiação da paternidade do próprio Deus, alcança um outro sentido. Com as palavras referidas por São Lucas, Jesus ensina precisamente este novo sentido da maternidade.

Ter-se-á afastado, por causa disto, daquela que foi sua mãe, a sua genetriz segundo a carne? Desejará, porventura, deixá-la na sombra do escondimento, que ela própria escolheu? Embora assim possa parecer, se nos ativermos só ao som material daquelas palavras, devemos observar, no entanto, que a maternidade nova e diversa, de que Jesus fala aos seus discípulos, refere-se precisamente a Maria e de modo especialíssimo. Não é, acaso, Maria a primeira dentre "aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática"? E portanto, não se referirão sobretudo a ela aquelas palavras abençoantes pronunciadas por Jesus, em resposta às palavras da mulher anónima? Maria é digna, sem dúvida alguma, de tais palavras de bênção, pelo facto de se ter tornado Mãe de Jesus segundo a carne ("Ditoso o ventre que te trouxe e os seios a que foste amamentado"); mas é digna delas também e sobretudo porque, logo desde o momento da Anunciação, acolheu a palavra de Deus e porque nela acreditou e sempre foi obediente a Deus; ela, com efeito, "guardava" a palavra, meditava-a "no seu coração" (cf. Lc 1,38-45 Lc 2,19 Lc 2,51) e cumpria-a com toda a sua vida. Podemos, portanto, afirmar que as palavras de bem-aventurança pronunciadas por Jesus não se contrapõem, apesar das aparências, àquelas outras que foram proferidas pela mulher desconhecida; mas antes, que com elas se coadunam na pessoa desta Mãe-Virgem, que a si mesma se designou simplesmente como "serva do Senhor" (Lc 1,38). Se é verdade que "todas as gerações a chamarão bem-aventurada" (cf. Lc 1,48), pode dizer-se que aquela mulher anónima foi a primeira a confirmar, sem disso ter consciência, aquele versículo profético do Magnificat de Maria e a dar início ao Magnificat dos séculos.

Se Maria, mediante a fé, se tornou a genetriz do Filho que lhe foi dado pelo Pai com o poder do Espírito Santo, conservando íntegra a sua virgindade, com a mesma fé ela descobriu e acolheu a outra dimensão da maternidade, revelada por Jesus no decorrer da sua missão messiânica. Pode dizer-se que esta dimensão da maternidade era possuída por Maria desde o início, isto é, desde o momento da concepção e do nascimento do Filho. Desde então ela foi "aquela que acreditou". Mas, à medida que se ia esclarecendo aos seus olhos e no seu espírito a missão do Filho, ela própria, como Mãe, se ia abrindo cada vez mais para aquela "novidade" da maternidade, que devia constituir a sua "parte" ao lado do Filho. Não declarara ela, desde o princípio: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra"? (Lc 1,38). Maria continuava, pois, mediante a fé, a ouvir e a meditar aquela palavra, na qual se tornava cada vez mais transparente, de um modo "que excede todo conhecimento" (Ep 3,19), a autorevelação de Deus vivo. E assim, Maria Mãe tornava-se, em certo sentido, a primeira "discípula" do seu Filho, a primeira a quem ele parecia dizer: "Segue-me", mesmo antes de dirigir este chamamento aos Apóstolos ou a quaisquer outros (cf. Jn 1,43).


(43) « Veritas Christus in mente Mariae, caro Christus in ventre Mariae »: S. AUGUSTINUS,Sermo 25 (Sermones inediti), 7: PL 46, 938.



21 Sob este ponto de vista, é particularmente eloquente aquele texto do Evangelho de São João, que nos apresenta Maria nas bodas de Caná. Maria aparece aí como Mãe de Jesus, que estava nos princípios da sua vida pública: "Celebravam-se umas bodas em Caná de Galileia; e encontrava-se lá a mãe de Jesus. Foi também convidado para as bodas Jesus, com os seus discípulos (Jn 2,1-2). Do texto resultaria que Jesus e os seus discípulos foram convidados juntamente com Maria, quiçá por motivo da presença dela nessa festa: o Filho parece ter sido convidado em atenção à Mãe. É conhecida a sequência dos factos relacionados com esse convite: aquele "início dos milagres" feitos por Jesus - a água transformada em vinho - que leva o Evangelista a dizer: Jesus "manifestou a sua glória e os seus discípulos acreditaram nele" (Jn 2,11).

Maria está presente em Caná de Galileia como Mãe de Jesus e contribui, de modo significativo, para aquele "início dos milagres", que revelam o poder messiânico do seu Filho. "Ora, vindo a faltar o vinho, a Mãe de Jesus disse-lhe: "não têm mais vinho". E Jesus respondeu-lhe: "Que importa isso, a mim e a ti, ó mulher? Ainda não chegou a minha hora"" (Jn 2,3-4). No Evangelho de São João aquela "hora" significa o momento estabelecido pelo Pai, em que o Filho levará a cabo a sua obra e há-de ser glorificado (cf. Jn 7,30 Jn 8,20 Jn 12,23 Jn 12,27 Jn 13,1 Jn 17,1 Jn 19,27). Muito embora a resposta de Jesus à sua Mãe tenha as aparências de uma recusa (sobretudo se, mais do que na interrogação, se reparar naquela afirmação firme: "Ainda não chegou a minha hora"), mesmo assim Maria dirige-se aos que serviam e diz-lhes: "Fazei aquilo que ele vos disser" (Jn 2,5). Então Jesus ordena a esses servos que encham as talhas de água; e a água transforma-se em vinho, melhor do que aquele que fora servido anteriormente aos convidados do banquete nupcial.

Que entendimento profundo terá havido entre Jesus e a sua Mãe? Como se poderá explorar o mistério da sua íntima união espiritual? De qualquer modo, o facto é eloquente. Naquele evento é bem certo que já se delineia bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da maternidade de Maria. Esta tem um significado que não está encerrado exclusivamente nas palavras de Jesus e nos diversos episódios referidos pelos Sinópticos (Lc 11,27-28 e Lc 8,19-21 Mt 12,46-50 Mc 3,31-35). Nestes textos Jesus tem o intuito, sobretudo, de contrapor a maternidade que resulta do próprio facto do nascimento, àquilo que esta "maternidade" (assim como a "fraternidade") deve ser na dimensão do Reino de Deus, na irradiação salvífica da paternidade do mesmo Deus. No texto de São João, ao contrário, a partir da descrição dos factos de Caná, esboça-se aquilo em que se manifesta concretamente esta maternidade nova, segundo o espírito e não somente segundo a carne, ou seja, a solicitude de Maria pelos homens, o seu ir ao encontro deles, na vasta gama das suas carências e necessidades. Em Caná da Galileia torna-se patente só um aspecto concreto da indigência humana, pequeno aparentemente e de pouca importância ("Não têm mais vinho"). Mas é algo que tem um valor simbólico: aquele ir ao encontro das necessidades do homem significa, ao mesmo tempo, introduzi-las no âmbito da missão messiânica e do poder salvífico de Cristo. Dá-se, portanto, uma mediação: Maria põe-se de permeio entre o seu Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências e dos seus sofrimentos. Põe-se de "permeio", isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode - ou antes, "tem o direito de" - fazer presente ao Filho as necessidades dos homens. A sua mediação, portanto, tem um carácter de intercessão: Maria "intercede" pelos homens. E não é tudo: como Mãe deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a libertar o homem do mal que, sob diversas formas e em diversas proporções, faz sentir o peso na sua vida. Precisamente como o profeta Isaías tinha predito acerca do Messias, no famoso texto a que Jesus se refere na presença dos seus conterrâneos de Nazaré: "Para anunciar aos pobres a boa-nova me enviou, para proclamar aos prisioneiros a libertação e aos cegos a vista ..." (cf. Lc 4,18).

Outro elemento essencial desta função maternal de Maria pode ser captado nas palavras dirigidas aos que serviam à mesa: "Fazei aquilo que ele vos disser". A Mãe de Cristo apresenta-se diante dos homens como porta-voz da vontade do Filho, como quem indica aquelas exigências que devem ser satisfeitas, para que possa manifestar-se o poder salvífico do Messias. Em Caná, graças à intercessão de Maria e à obediência dos servos, Jesus dá início à "sua hora". Em Caná, Maria aparece como quem acredita em Jesus: a sua fé provoca da parte dele o primeiro "milagre" e contribui para suscitar a fé dos discípulos.


22 Podemos dizer, por conseguinte, que nesta página do Evangelho de São João encontramos como que um primeiro assomo da verdade acerca da solicitude maternal de Maria. Esta verdade teve a sua expressão também no magistério do recente Concílio. É importante notar que a função maternal de Maria é por ele ilustrada na sua relação com a mediação de Cristo. Com efeito, podemos aí ler: "A função maternal de Maria para com os homens, de modo algum obscurece ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia", porque "um só é o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus" (1Tm 2,5). Esta função maternal de Maria promana, segundo o beneplácito de Deus, "da superabundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia". 44 É precisamente neste sentido que o evento de Caná da Galileia nos oferece como que um preanúncio da mediação de Maria, toda ela orientada para Cristo e propendente para a revelação do seu poder salvífico.

Do texto joanino transparece que se trata de uma mediação materna. Como proclama o Concílio: Maria "foi para nós mãe na ordem da graça". Esta maternidade na ordem da graça resultou da sua própria maternidade divina: porque sendo ela, por disposição da divina Providência, mãe-nutriz do Redentor, foi associada à sua obra, de maneira única, como "amiga generosa" e humilde "serva do Senhor", que "cooperou ... na obra do Salvador com a obediência e com a sua fé, esperança e caridade ardente, para restaurar nas almas a vida sobrenatural". 45 "E esta maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção... até à consumação perpétua de todos os eleitos". 46

(44) Const. dogm. Lumen Gentium, de Ecclesia, LG 60.
(45) Ibid., LG 61.
(46) Ibid., LG 62.


Redemptoris Mater PT 13