Redemptoris Mater PT 34


34 Tamanha riqueza de louvores, acumulada pelas diversas formas da grande tradição da Igreja, poderia ajudar-nos a fazer com que a mesma Igreja torne a respirar plenamente "com os seus dois pulmões": o Oriente e o Ocidente. Como já afirmei, por mais de uma vez, isso é necessário mais do que nunca, nos dias de hoje. Seria um valioso auxílio para fazer progredir o diálogo em vias de actuação entre a Igreja católica e as Igrejas e as Comunidades eclesiais do Ocidente. 86 E seria também a via para a Igreja que está a caminho poder cantar e viver de modo mais perfeito o seu "Magnificat".

(86) Cfr. CONC. OEC. VAT. II, Decr. Unitatis Redintegratio de Oecumenismo,
UR 19.


3. O "Magnificat" da Igreja que está a caminho

35 Na fase actual da sua caminhada, a Igreja procura, pois, reencontrar a união de todos os que professam a própria fé em Cristo, para manifestar a obediência ao seu Senhor que orou por esta unidade, antes do seu iminente sacrifício. Ela vai avançando na "sua peregrinação... e anunciando a paixão e a morte do Senhor até que ele venha". 87 "Prosseguindo entre as tentações e tribulações da caminhada, a Igreja é apoiada pela força da graça de Deus, que lhe foi prometida pelo Senhor, para que não se afaste da perfeita fidelidade por causa da fraqueza humana, mas permaneça digna esposa do seu Senhor e, com o auxílio do Espírito Santo, não cesse de se renovar a si própria até que, pela Cruz, chegue á luz que não conhece ocaso". 88

A Virgem Maria está constantemente presente nesta caminhada de fé do Povo de Deus em direcção à luz. Demonstra-o de modo especial o cântico do "Magnificat", que, tendo jorrado da profundidade da fé de Maria na Visitação, não cessa de vibrar no coração da Igreja ao longo dos séculos. Prova-o a sua recitação quotidiana na liturgia das Vésperas e em muitos outros momentos de devoção, quer pessoal, quer comunitária.

"A minha alma glorifica o Senhor,
e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador,
porque olhou para a humildade da sua serva.

De hoje em diante todas as gerações
hão-de me chamar bem-aventurada.

Porque fez em mim grandes coisas o Todo-poderoso. E santo é o seu nome:
a sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que o temem.

Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos com os desígnios
que eles conceberam;

derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes

encheu de bens os famintos
e aos ricos despediu-os de mãos vazias.

Socorreu Israel, seu servo,
recordando-se da sua misericórdia,

como tinha prometido aos nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre"

(
Lc 1,46-55).

(87) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 8.
(88) Ibid., LG 9.




36 Quando Isabel saudou a jovem parente, que acabava de chegar de Nazaré, Maria respondeu com o Magnificat. Na sua saudação, Isabel tinha chamado a Maria: primeiro, "bendita" por causa do "fruto do seu ventre"; e depois, "feliz" (bem-aventurada) por causa da sua fé (cf. Lc 1,42 Lc 1,45). Estas duas palavras abençoantes referiam-se directamente ao momento da Anunciação. Agora, na Visitação, quando Isabel, na sua saudação, dá um testemunho daquele momento culminante, a fé de Maria enriquece-se de uma nova consciência e de uma nova expressão. Aquilo que no momento da Anunciação permanecia escondido na profundidade da "obediência da fé" dir-se-ia que agora daí irrompe, como uma chama clara e vivificante do espírito. As palavras usadas por Maria, no limiar da casa de Isabel, constituem uma profissão inspirada desta sua fé, na qual se exprime a resposta à palavra da revelação, com a elevação religiosa e poética de todo o seu ser no sentido de Deus. Nessas palavras sublimes, que são ao mesmo tempo muito simples e totalmente inspiradas nos textos sagrados do povo de Israel, 89 transparece a experiência pessoal de Maria, o êxtase do seu coração. Resplandece nelas um clarão do mistério de Deus, a glória da sua inefável santidade, o amor eterno que, como um dom irrevogável, entra na história do homem.

Maria é a primeira a participar nesta nova revelação de Deus e, mediante ela, nesta nova "autodoação" de Deus. Por isso proclama: "Grandes coisas fez em mim ... e santo é o seu nome". As suas palavras reflectem a alegria do espírito, difícil de exprimir: "O meu espírito exulta em Deus, meu Salvador". Porque "a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos... em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação". 90 No arroubo do seu coração, Maria confessa ter-se encontrado no próprio âmago desta plenitude de Cristo. Está consciente de que em si está a cumprir-se a promessa feita aos pais e, em primeiro lugar, em favor de "Abraão e da sua descendência para sempre": que em si, portanto, como mãe de Cristo, converge toda a economia salvífica, na qual "de geração em geração" se manifesta Aquele que, como Deus da Aliança, "se recorda da sua misericórdia".

(89) Ut est notum, verba cantici « Magnificat » continent plurimos locos Veteris Testamenti vel ad eos revocantur.
(90) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Dei Verbum de Divina Revelatione, DV 2.

37 A Igreja, que desde o início modela a sua caminhada terrena pela caminhada da Mãe de Deus, repete constantemente, em continuidade com ela, as palavras do Magnificat. Nas profundidades da fé da Virgem Maria na Anunciação e na Visitação, a Igreja vai haurir a verdade acerca do Deus da Aliança; acerca de Deus que é Todo-poderoso e faz "grandes coisas" no homem: "santo é o seu nome". No Magnificat, ela vê debelado nas suas raízes o pecado do princípio da história terrena do homem e da mulher: o pecado da incredulidade e da "pouca fé" em Deus. Contra a "suspeita" que o "pai da mentira" fez nascer no coração de Eva, a primeira mulher, Maria, a quem a tradição costuma chamar "nova Eva" 91 e verdadeira "mãe dos vivos", 92 proclama com vigor a não ofuscada verdade acerca de Deus: o Deus santo e omnipotente, que desde o princípio é a fonte de todas as dádivas, aquele que "fez grandes coisas" nela, Maria, assim como em todo o universo. Deus, ao criar, dá a existência a todas as realidades; e ao criar o homem, dá-lhe a dignidade da imagem e da semelhança consigo, de modo singular em relação a todas as demais criaturas terrestres. E não se detendo na sua vontade de doação, não obstante o pecado do homem, Deus dá-se no Filho: "Amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito" (Jn 3,16) Maria é a primeira testemunha desta verdade maravilhosa, que se actuará plenamente mediante "as obras e os ensinamentos" (cf. Ac 1,1) do seu Filho e, definitivamente, mediante a sua Cruz e Ressurreição.

A Igreja, que, embora entre "tentações e tribulações", não cessa de repetir com Maria as palavras do Magnificat, "escora-se" na força da verdade sobre Deus, proclamada então com tão extraordinária simplicidade; e, ao mesmo tempo, deseja iluminar com esta mesma verdade acerca de Deus os difíceis e por vezes intrincados caminhos da existência terrena dos homens. A caminhada da Igreja, portanto, já quase no final do Segundo Milénio cristão, implica um empenhamento renovado na própria missão. Segundo Aquele que disse de si: "(Deus) mandou-me a anunciar aos pobres a boa nova" (cf. Lc 4,18), a Igreja tem procurado, de geração em geração, e procura ainda hoje cumprir esta mesma missão.

O seu amor preferencial pelos pobres acha-se admiravelmente inscrito no Magnificat de Maria. O Deus da Aliança, cantado pela Virgem de Nazaré, com exultação do seu espírito, é ao mesmo tempo aquele que "derruba os poderosos dos tronos e exalta os humildes... enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias ... dispersa os soberbos... e conserva a sua misericórdia para com aqueles que o temem".

Maria está profundamente impregnada do espírito dos "pobres de Javé" que, segundo a oração dos Salmos, esperavam de Deus a própria salvação, pondo nele toda a sua confiança (Ps 25 Ps 31 Ps 35). Ela, na verdade, proclama o advento do mistério da salvação, a vinda do "Messias dos pobres" (cf. Is 11,4 Is 61,1). Haurindo certeza do coração de Maria, da profundidade da sua fé, expressa nas palavras do Magnificat, a Igreja renova em si, sempre para melhor, essa própria certeza de que não se pode separar a verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda a dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus.

A Igreja, portanto, está bem cônscia - e na nossa época esta sua certeza reforça-se de modo particular - não só de que não podem ser separados estes dois elementos da mensagem contida no Magnificat, mas também de que deve outrossim ser salvaguardada cuidadosamente a importância que têm os "pobres" e a "opção em favor dos pobres" na palavra de Deus vivo. Trata-se de temas e problemas organicamente conexos com o sentido cristão da liberdade e da libertação. Maria, "totalmente dependente de Deus e toda ela orientada para Ele, ao lado do seu Filho, é a ícone mais perfeita da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmos. É para Maria que a Igreja, da qual ela é Mãe e modelo, deve olhar, a fim de compreender na sua integralidade o sentido da própria missão". 93


(91) Cfr. ex. gr. S. IUSTINUS, Dialogus cum Tryphone Iudaeo, 100: Otto II, 358; S. IRENAEUS, Adversus Haereses III, 22, 4: S. Ch. 211, 439-445; TERTULLIANUS, De Carne Christi, 17, 4-6: CCL II, 904 s.
(92) Cfr. S. EPIPHANIUS, Panarion III, 2; Haer. 78, 18: PG 42, 727-730.
(93) CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI, Instructio Libertà cristiana e liberazione (22 Martii 1986), 97.




TERCEIRA PARTE - MEDIAÇÃO MATERNA


1. Maria, Serva do Senhor

38 A Igreja sabe e ensina, com São Paulo, que um só é o nosso mediador: "Não há senão um só Deus e um só é também o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos" (1Tm 2,5-6). "A função maternal de Maria para com os homens de modo nenhum obscurece ou diminui esta única mediação de Cristo; mas até manifesta qual a sua eficácia" 94 é uma mediação em Cristo.

A Igreja sabe e ensina que "todo o influxo salutar da Santíssima Virgem em favor dos homens se deve ao beneplácito divino e ... dimana da superabundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua mediação, dela depende absolutamente, haurindo aí toda a sua eficácia; de modo que não impede o contacto imediato dos fiéis com Cristo, antes o facilita". 95 Este influxo salutar é apoiado pelo Espírito Santo, que, assim como estendeu a sua sombra sobre a Virgem Maria, dando na sua pessoa início à maternidade divina, assim também continuamente sustenta a sua solicitude para com os irmãos do seu Filho.

Efectivamente, a mediação de Maria está intimamente ligada à sua maternidade e possui um carácter especificamente maternal, que a distingue da mediação das outras criaturas que, de diferentes modos e sempre subordinados, participam na única mediação de Cristo; também a mediação de Maria permanece subordinada. 96 Se, na realidade, "nenhuma criatura pode jamais colocar-se no mesmo plano que o Verbo Incarnado e Redentor", também é verdade que "a mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas uma cooperação multiforme, participada duma única fonte"; e assim, "a bondade de Deus, única, difunde-se realmente, de diferentes modos, nas criaturas". 97

O ensino do Concílio Vaticano II apresenta a verdade da mediação de Maria como "participação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo". Com efeito, lemos: "A Igreja não hesita em reconhecer abertamente essa função assim, subordinada; sente-a continuamente e recomenda-a ao amor dos fiéis, para que, apoiados nesta ajuda materna, eles estejam mais intimamente unidos ao Mediador e Salvador". 98 Tal função é, ao mesmo tempo, especial e extraordinária. Ela promana da sua maternidade divina e pode ser comprendida e vivida na fé somente se nos basearmos na plena verdade desta maternidade. Sendo Maria, em virtude da eleição divina, a Mãe do Filho consubstancial ao Pai e "cooperadora generosa" na obra da Redenção, ela tornou-se para nós "mãe na ordem da graça". 99 Esta função constitui uma dimensão real da sua presença no mistério salvífico de Cristo e da Igreja.

(94) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 60.
(95) Ibid., LG 60.
(96) Cfr. formula mediatricis « ad Mediatorem » S. BERNARDI, In Dominica intra oct.Assumptionis Sermo, 2: S. Bernardi Opera, V, 1968, 263. Maria tamquam purum speculum refert ad Filium ominem gloriam et honorem quae recipit: ID., In Nativitate B. Mariae Sermo - De acquaeductu, 12: ed. mem., 283.
(97) CONC. OEC. VAT. II. Const. dogm.Lumen Gentium de Ecclesia, LG 62.
(98) Ibid., LG 62.
(99) Ibid., LG 61.


39 Sob este ponto de vista, temos necessidade de voltar, mais uma vez, à consideração do acontecimento fundamental na economia da salvação, ou seja, a Incarnação do Verbo de Deus, no momento da Anunciação. É significativo que Maria, reconhecendo nas palavras do mensageiro divino a vontade do Altíssimo e submetendo-se ao seu poder, diga: "Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38). O primeiro momento da submissão à única mediação "entre Deus e os homens" - a mediação de Jesus Cristo - é a aceitação da maternidade por parte da Virgem de Nazaré. Maria consente na escolha divina para se tornar, por obra do Espírito Santo, a Mãe do Filho de Deus. Pode dizer-se que este consentimento que ela dá à maternidade é fruto sobretudo da doção total a Deus na virgindade. Maria aceitou a eleição para ser mãe do Filho de Deus, guiada pelo amor esponsal, o amor que "consagra" totalmente a Deus uma pessoa humana. Em virtude desse amor, Maria desejava estar sempre e em tudo "doada a Deus", vivendo na virgindade. As palavras: "Eis a serva do Senhor!" comprovam o facto de ela desde o princípio ter aceitado e entendido a própria maternidade como dom total de si, da sua pessoa, ao serviço dos desígnios salvíficos do Altíssimo. E toda a participação materna na vida de Jesus Cristo, seu Filho, ela viveu-a até ao fim de um modo correspondente à sua vocação para a virgindade.

A maternidade de Maria, profundamente impregnada da atitude esponsal de "serva do Senhor", constitui a dimensão primária e fundamental daquela sua mediação que a Igreja Ihe reconhece, proclama 100 e continuamente "recomenda ao amor dos fiéis" porque confia muito nela. Com efeito, importa reconhecer que, primeiro do que quaisquer outros, o próprio Deus, o Pai eterno, se confiou à Virgem de Nazaré, dando-lhe o próprio Filho no mistério da Incarnação. Esta sua eleição para a sublime tarefa e suprema dignidade de Mãe do Filho de Deus, no plano ontológico, tem relação com a própria realidade da união das duas naturezas na Pessoa do Verbo (união hipostática). Este facto fundamental de ser Mãe do Filho de Deus, é desde o princípio uma abertura total à pessoa de Cristo, a toda a sua obra e a toda a sua missão. As palavras: "Eis a serva do Senhor!" testemunham esta abertura de espírito em Maria, que une em si, de maneira perfeita, o amor próprio da virgindade e o amor característico da maternidade, conjuntos e como que fundidos num só amor.

Por isso, Maria tornou-se não só a "mãe-nutriz" do Filho do homem, mas também a "cooperadora generosa, de modo absolutamente singular", 101 do Messias e Redentor. Ela - como já foi dito - avançava na peregrinação da fé e, nessa sua peregrinação até aos pés da Cruz, foi-se realizando, ao mesmo tempo, com as suas acções e os seus sofrimentos, a sua cooperação materna e esponsal em toda a missão do Salvador. Ao longo do caminho de tal colaboração com a obra do Filho-Redentor, a própria maternidade de Maria veio a conhecer uma transformação singular, sendo cada vez mais cumulada de "caridade ardente" para com todos aqueles a quem se destinava a missão de Cristo. Mediante essa "caridade ardente", visando cooperar, em união com Cristo, na restauração "da vida sobrenatural nas almas", 102 Maria entrava de modo absolutamente pessoal na única mediação "entre Deus e os homens", que é a mediação do homem Cristo Jesus. Se ela mesma foi quem primeiro experimentou em si os efeitos sobrenaturais desta mediação única - já aquando da Anunciação ela tinha sido saudada como "cheia de graça" - então tem de se dizer que, em virtude desta plenitude da graça e de vida sobrenatural, ela estava particularmente predisposta para a "cooperação" com Cristo, único mediador da salvação humana. E tal cooperação é precisamente esta mediação subordinada à mediação de Cristo.

No caso de Maria trata-se de uma mediação especial e excepcional, fundada na sua "plenitude de graça", que se traduzia na total disponibilidade da "serva do Senhor". Em correspondência com essa disponibilidade interior da sua Mãe, Jesus Cristo preparava-a cada vez mais para ela se tornar para os homens "mãe na ordem da graça". Isto acha-se indicado, pelo menos de maneira indirecta, em certos pormenores registados pelos Sinópticos (cf. Lc 11,28 Lc 8,20-21 Mc 3,32-35 Mt 12,47-50) e, mais ainda, pelo Evangelho de São João (cf. Jn 2,1-12 Jn 19,25-27), como já procurei pôr em evidência. A este propósito, são particularmente eloquentes as palavras pronunciadas por Jesus do alto da Cruz, referindo-se a Maria e a João.

100) Ibid., LG 62.
(101) Ibid., LG 61.
(102) Ibid., LG 61.


40 Depois dos acontecimentos da Ressurreição e da Ascensão, Maria, entrando com os Apóstolos no Cenáculo enquanto esperavam o Pentecostes, estava aí presente como Mãe do Senhor glorificado. Era não só aquela que "avançou na peregrinação da fé" e conservou fielmente a sua união com o Filho "até à Cruz", mas também a "serva do Senhor" deixada por seu Filho como mãe no seio da Igreja nascente: "Eis a tua mãe". Assim começou a estabelecer-se um vínculo especial entre esta Mãe e a Igreja. Com efeito, a Igreja nascente era fruto da Cruz e da Ressurreição do seu Filho. Maria, que desde o princípio se tinha entregado sem reservas à pessoa e à obra do Filho, não podia deixar de derramar sobre a Igreja, desde os inícios, esta sua doação materna. Depois da "partida" do Filho a sua maternidade permanece na Igreja, como mediação materna: intercedendo por todos os seus filhos, a Mãe coopera na obra salvífica do Filho-Redentor do mundo. De facto, o Concílio ensina: "a maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção... até à consumação perpétua de todos os eleitos". 103 Com a morte redentora do seu Filho, a mediação materna da serva do Senhor revestiu-se de uma dimensão universal, porque a obra da Redenção abrange todos os homens. Assim se manifesta, de modo singular, a eficácia da única e universal mediação de Cristo "entre Deus e os homens". A cooperação de Maria participa, com o seu carácter subordinado, na universalidade da mediação do Redentor, único Mediador. Isto é claramente indicado pelo Concílio com as palavras acima citadas.

De facto - lemos ainda - depois de elevada ao céu, Maria não abandonou este papel de salvação, mas com a sua múltipla intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna".104 Com este carácter de a intercessão", que se manifestou pela primeira vez em Caná da Galileia, a mediação de Maria continua na história da Igreja e do mundo. Lemos que Maria, "com a sua caridade materna, cuida dos irmãos de seu Filho, que ainda peregrinam e se debatem entre perigos e angústias, até que sejam conduzidos à pátria bem-aventurada". 105 Deste modo, a maternidade de Maria perdura incessantemente na Igreja, como mediação que intercede; e a Igreja exprime a sua fé nesta verdade invocando-a sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, (Perpétuo) Socorro e Medianeira. 106

(103) Ibid.,
LG 62.
(104) Ibid., LG 62.
(105) Ibid., LG 62. Etiam in suis precibus Ecclesia confitetur celebratque « munus maternum » Mariae: munus « intercessionis et veniae, impetrationis et gratiae, reconciliationis et pacis » (cfr. praefatio Missae de Beata Maria Virgine, Matre et Mediatrice gratiae, Collectio Missarum de Beata Maria Virgine, ed, typ. 1987, I, 120).
(106) Ibid., LG 62.



41 Pela sua mediação, subordinada à mediação do Redentor, Maria contribui de maneira especial para a união da Igreja peregrina na terra com a realidade escatológica e celeste da comunhão dos santos, tendo já sido "elevada ao Céu". 107 A verdade da Assunção, definida por Pio XII, é reafirmada pelo Vaticano II, que exprime a fé da Igreja nestes termos: "Finalmente, a Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha da culpa original, terminado o curso da sua vida terrena, foi assumida à glória celeste em corpo e alma e exaltada pelo Senhor como Rainha do universo, para que se conformasse mais plenamente com o seu Filho, Senhor dos senhores (cf. Ap 19,16) e vencedor do pecado e da morte", 108 Com esta doutrina, Pio XII situava-se na continuidade da Tradição, que ao longo da história da Igreja teve expressões múltiplas, tanto no Oriente como no Ocidente.

Com o mistério da Assunção ao Céu, actuaram-se em Maria definitivamente todos os efeitos da única mediação de Cristo, Redentor do mundo e Senhor ressuscitado: "Todos receberão a vida em Cristo. Cada um, porém, na sua ordem: primeiro Cristo, que é a primícia; depois, à sua vinda, aqueles que pertencem a Cristo" (1Co 15,22-23). No mistério da Assunção exprime-se a fé da Igreja, segundo a qual Maria está "unida por um vínculo estreito e indissolúvel a Cristo", pois, se já como mãe-virgem estava a Ele unida singulamente na sua primeira vinda, pela sua contínua cooperação com Ele o estará também na expectativa da segunda: "Remida dum modo mais sublime, em atenção aos méritos de seu Filho", 109 ela tem também aquele papel, próprio da Mãe, de medianeira de clemência, na vinda definitiva, quando todos os que são de Cristo forem vivificados e quando "o último inimigo a ser destruído será a morte" (1Co 15,26). 110

Com tal exaltação da "excelsa Filha de Sião" 111 mediante a Assunção ao Céu, está conexo o mistério da sua glória eterna. A Mãe de Cristo, efectivamente, foi glorificada como "Rainha do universo". 112 Ela, que na altura da Anunciação se definiu "serva do Senhor", permaneceu fiel ao que este nome exprime durante toda a vida terrena, confirmando desse modo ser uma verdadeira "discípula" de Cristo, que teve ocasião de acentuar fortemente o carácter de serviço da sua missão: o Filho do homem "não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate de muitos" (Mt 20,28). Por isso, Maria tornou-se a primeira entre aqueles que, "servindo a Cristo também nos outros, conduzem os seus irmãos, com humildade e paciência, àquele Rei, servir ao qual é reinar"; 113 e alcançou plenamente aquele "estado de liberdade real" que é proprio dos discípulos de Cristo: servir quer dizer reinar!

"Cristo, tendo-se feito obediente até à morte, foi por isso mesmo exaltado pelo Pai (cf. Ph 2,8-9) e entrou na glória do seu Reino; a ele estão submetidas todas as coisas, até que ele se sujeite a si mesmo e consigo todas as criaturas ao Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos (cf. 1Co 15,27-28)". 114 Maria, serva do Senhor, tem parte neste Reino do Filho. 115 A glória de servir não cessa de ser a sua exaltação real: elevada ao céu, não suspende aquele seu serviço salvífico em que se exprime a mediação materna, "até à consumação perpétua de todos os eleitos". 116 Assim, aquela que, aqui na terra, "conservou fielmente a sua união com o Filho até à Cruz", permanece ainda unida a ele, uma vez que "tudo lhe está submetido, até que ele sujeite ao Pai a sua pessoa e todas as criaturas". Mais, com a sua Assunção ao Céu, Maria está como que envolvida por toda a realidade da comunhão dos santos; e a sua própria união com o Filho na glória está toda propendente para a plenitude definitiva do Reino, quando a Deus for tudo em todos".

Também nesta fase a mediação materna de Maria não deixa de estar subordinada àquele que é o único Mediador, até à definitiva actuação "da plenitude dos tempos": "a de em Cristo recapitular todas as coisas" (Ep 1,10).


(107) Ibid., LG 62; cfr. S. IOANNES DAMASCENUS, Hom. in Dormitionem I 11, II 2 14; III, 2: 8. Ch. 80. 111 s.; 127-131; 157-161; 181-185; S. BERNARDUS, In Assumptione Beata; Mariae 8ermo, 1-2: S. Bernardi Opera, V, 1968, 228-238.
(108) Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, 59; cfr. PIUS PP. XII, Const. Ap.Munificentissimus Deus (1 Novembris 1950): AAS 42 (1950) 769-771; S. Bernardus ostendit Mariam circumfusam splendore gloriae Filii: In Dominica infra oct. Assumptionis Sermo, 3: S. Bernardi Opera, V, 1968, 263 s.
(109) CONC OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 53.
(110) Quod attinet ad hanc praecipuam partem intercessionis Mariae ut impetratricis clementiaeapud « Filium Iudicem », cfr. S. BERNARDUS, In Dominica infra oct. Assumptionis Sermo, 1-2: S. Bernardi Opera, V, 1968, 262 s.; LEO PP. XIII, Ep. Enc. Octobri Mense (22 Septembris 1891): Acta Leonis, IX, 299-315.
(111) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 55.
(112) Ibid., LG 59.
(113) Ibid., LG 36.
(114) Ibid., LG 36.
(115) De Maria Regina, cfr. S. IOANNES DAMASCENUS, Hom. in Nativitatem, 6; 12; Hom. in Dormitionem, I, 12,14; II,11; III, 4: S. Ch. 80, 59 S.; 778.; 838.; 1138.; 117; 1519.; 189-193.
(116) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 62.


2. Maria na vida da Igreja e de cada cristão

42 O Concílio Vaticano II, situando-se na linha da Tradição, projectou uma nova luz sobre o papel da Mãe de Cristo na vida da Igreja. "A bem-aventurada Virgem Maria ... pelo dom da maternidade divina, que a une com o seu Filho Redentor, e ainda pelas suas graças e funções singulares, encontra-se também intimamente unida à Igreja: a Mãe de Deus é a figura da Igreja... e isso, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo". 117 Já vimos anteriormente que Maria permanece desde o princípio com os Apóstolos, enquanto esperam o Pentecostes, e que, sendo a "feliz porque acreditou", de geração em geração ela está presente no meio da Igreja que faz a sua peregrinação na fé, sendo para ela igualmente modelo da esperança que não decepciona (cf. Rom Rm 5,5).

Maria acreditou que se cumpririam aquelas coisas que lhe tinham sido ditas da parte do Senhor. Como Virgem, acreditou que conceberia e daria à luz um filho: o "Santo", ao qual corresponde o nome de "Filho de Deus", o nome de "Jesus" (= Deus que salva). Como serva do Senhor, permaneceu perfeitamente fiel à pessoa e à missão deste seu Filho. Como Mãe, "pela sua fé e obediência... gerou na terra o próprio Filho de Deus, sem ter conhecido homem, mas por obra e graça do Espírito Santo". 118

Por estes motivos "Maria ... é com razão honrada pela Igreja com culto especial; ... já desde os tempos mais antigos, a Santíssima Virgem é venerada com o título de "Mãe de Deus" e sob a sua protecção se acolhem os fiéis, que a imploram em todos os perigos e necessidades", 119 Este culto é absolutamente singular: contém em si e exprime aquele vínculo profundo que existe entre a Mãe de Cristo e a Igreja. 120 Como virgem e mãe, Maria permanece um "modelo perene" para a Igreja. Pode, portanto, dizer-se que sobretudo sob este aspecto, isto é, como modelo ou, melhor, como "figura", Maria, presente no mistério de Cristo, permanece também constantemente presente no mistério da Igreja. Com efeito, também a Igreja "é chamada mãe e virgem"; e estes nomes têm profunda justificação bíblica e teológica. 121

(117) Ibid., LG 63.
(118) Ibid., LG 63.
(119) Ibid., LG 66.
(120) Cfr. S. AMBROSIUS, De Institutione Virginis, XIV, 88-89: PL 16, 341s.; S. AUGUSTINUS, Sermo 215, 4: PL 38, 1074; De Sancta Virginitate, II, 2; V, 5; VI, 6: PL 40. 397; 398 s.; 399; Sermo 191, II, 3: PL 38, 1010 s.
(121) Cfr. CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 63.



43 A Igreja "torna-se mãe ... pela fiel recepção da palavra de Deus" 122 Como Maria, que foi a primeira a acreditar, acolhendo a palavra de Deus que lhe foi revelada na Anunciação e a ela permanecendo fiel em todas as provações até à Cruz, assim também a Igreja se torna mãe quando, acolhendo com fidelidade a palavra de Deus, pela pregação e pelo baptismo, gera para uma vida nova e imortal os filhos, concebidos por obra do Espírito Santo e nascidos de Deus". 123 Esta característica "materna" da Igreja foi expressa dum modo particularmente vívido pelo Apóstolo das Gentes, quando escreveu: "Meus filhinhos, por quem sofro novamente as dores de parto, até que Cristo não se tenha formado em vós"! (Ga 4,19). Nestas palavras de São Paulo está contida uma indicação interessante: da consciência que tinha a Igreja primitiva da função maternal, que andava ligada ao seu serviço apostólico entre os homens. Tal consciência permitia e constantemente permite à Igreja encarar o mistério da sua vida e da sua missão à luz do exemplo da Genetriz do Filho de Deus, que é "o primogénito entre muitos irmãos" (Rm 8,29).

A Igreja, em certo sentido, apreende de Maria também o que é a própria maternidade: ela reconhece esta dimensão maternal da própria vocação, como algo ligado essencialmente à sua natureza sacramental, "contemplando a sua santidade misteriosa, imitando a sua caridade e cumprindo fielmente a vontade do Pai". 124 O facto de a Igreja ser sinal e instrumento da íntima união com Deus tem a sua base na maternidade que lhe é própria: porque, vivificada pelo Espírito Santo, "gera" filhos e filhas da família humana para uma vida nova em Cristo. Com efeito, assim como Maria está ao serviço do mistério da Incarnação, também a Igreja permanece ao serviço do mistério da adopção como filhos mediante a graça.

Ao mesmo tempo, a exemplo de Maria, a Igreja permanece a virgem fiel ao próprio Esposo: "Também ela é virgem, que guarda íntegra e pura a fé jurada ao Esposo", 125 A Igreja, de facto, é a esposa de Cristo, como resulta das Cartas paulinas (cf. Ef Ep 5,21-33 2Co 11,2) e da maneira como São João a designa: "a Esposa do Cordeiro" (Ap 21,9). Se a Igreja como esposa "guarda a fé jurada a Cristo", esta fidelidade, embora no ensino do Apóstolo se tenha tornado imagem do matrimónio (cf. Ef Ep 5,23-33), possui também o valor de ser o tipo da total doação a Deus no celibato "por amor do Reino dos céus", ou seja, da virgindade consagrada a Deus (cf. Mt 19,11-12 2Co 11,2). Esta virgindade precisamente, a exemplo da Virgem de Nazaré, é fonte de uma especial fecundidade espiritual: é fonte da maternidade no Espírito Santo.

Mas a Igreja guarda também a fé recebida de Cristo: a exemplo de Maria, que guardava e meditava no seu coração (cf. Lc 2,19 Lc 2,51) tudo o que dizia respeito ao seu divino Filho, ela está empenhada em guardar a Palavra de Deus, apurando as suas riquezas com discernimento e prudência, para dar sempre da mesma, ao longo dos tempos, testemunho fiel a todos os homens. 126

(122) Ibid., LG 64.
(123) Ibid., LG 64
(124) ibid., LG 64.
(125) Ibid., LG 64.
(126) Cfr. CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Dei Verbum de Divina Revelatione, DV 8; S. BONAVENTURA, Comment. in Evang. Lucae, Ad Claras Aquas, VII, 53, n. 40; 68, n. 109.



44 Existindo esta relação de exemplaridade, a Igreja descobre-se em Maria e procura tornar-se semelhante a ela: "A imitação da Mãe do seu Senhor e por virtude do Espírito Santo, conserva virginalmente íntegra a fé, sólida a esperança e sincera a caridade" 127 Maria está presente, portanto, no mistério da Igreja como modelo. Mas o mistério da Igreja consiste também em gerar os homens para uma vida nova e imortal: é a sua maternidade no Espírito Santo. E nisto, Maria não é só modelo e figura da Igreja; mas é muito mais do que isso. Com efeito, "ela coopera com amor de mãe para a regeneração e formação" dos filhos e filhas da mãe Igreja. A maternidade da Igreja realiza-se não só segundo o modelo e a figura da Mãe de Deus, mas também com a sua "cooperação". A Igreja vai haurir copiosamente nesta cooperação de Maria, isto é, na mediação materna que é característica de Maria, no sentido de que já na terra ela cooperou na regeneração e formação dos filhos e das filhas da Igreja, sempre como Mãe daquele Filho" que Deus constituiu o primogénito entre muitos irmãos". 128

Para isto "cooperou - como ensina o Concílio Vaticano II - com amor de mãe. 129 Descobre-se aqui o valor real das palavras de Jesus, na hora da Cruz, à sua Mãe: "Mulher, eis o teu filho", e ao discípulo: "Eis a tua mãe" (
Jn 19,26-27). São palavras que determinam o lugar de Maria na vida dos discípulos de Cristo e exprimem - como já disse - a sua nova maternidade como Mãe do Redentor: a maternidade espiritual, que nasceu do mais íntimo do mistério pascal do Redentor do mundo. Trata-se de uma maternidade na ordem da graça, porque invoca o dom do Espírito Santo que suscita os novos filhos de Deus, remidos pelo sacrifício de Cristo: daquele mesmo Espírito que, conjuntamente com a Igreja, também Maria recebeu no dia do Pentecostes.

Esta sua maternidade é particularmente advertida e vivida pelo povo cristão no Banquete sagrado - celebração litúrgica do mistério da Redenção - no qual se torna presente Cristo, no seu verdadeiro Corpo nascido da Virgem Maria.

Com boa razão, pois, a piedade do povo cristão vislumbrou sempre uma ligação profunda entre a devoção à Virgem Santíssima e o culto da Eucaristia: pode comprovar-se este facto, na liturgia, tanto ocidental como oriental, na tradição das Famílias religiosas, na espiritualidade dos movimentos contemporâneos, mesmo dos movimentos juvenis, e na pastoral dos santuários marianos. Maria conduz os fiéis à Eucaristia.

(127) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 64.
(128) Ibid., LG 63.
(129) Cfr. ibid. LG 63



Redemptoris Mater PT 34