Redemptoris Mater PT 45


45 É algo essencial à maternidade o facto de ela envolver a pessoa. Ela determina sempre uma relação única e irrepetível entre duas pessoas: da mãe com o filho e do filho com a mãe. Mesmo quando uma só "mulher" é mãe de muitos filhos, a sua relação pessoal com cada um deles caracteriza a maternidade na sua própria essência. Cada um dos filhos, de facto, é gerado de modo único e irrepetível; e isto é válido tanto para a mãe como para o filho. Cada um dos filhos é circundado, de modo único e irrepetível, daquele amor materno em que se baseia a sua formação e maturação em humanidade.

Pode dizer-se que "a maternidade na ordem da graça" tem analogia com o que "na ordem da natureza" caracteriza a união da mãe com o filho. A luz disto, torna-se mais compreensível o motivo pelo qual, no testamento de Cristo no Gólgota, esta maternidade de sua Mãe é por Ele expressa no singular, em relação a um só homem: "Eis o teu filho".

Pode dizer-se, ainda, que nestas mesmas palavras está plenamente indicado o motivo da dimensão mariana da vida dos discípulos de Cristo: não só de São João, que naquela hora estava aos pés da Cruz, juntamente com a Mãe do seu Mestre, mas também de todos os demais discípulos de Cristo e de todos os cristãos. O Redentor confia sua Mãe ao discípulo e, ao mesmo tempo, dá-lha como mãe. A maternidade de Maria que se torna herança do homem é um dom: um dom que o próprio Cristo faz a cada homem pessoalmente. O Redentor confia Maria a João, na medida em que confia João a Maria. Aos pés da Cruz teve o seu início aquela especial entrega do homem à Mãe de Cristo, que ao longo da história da Igreja foi posta em prática e expressa de diversas maneiras. Quando o mesmo Apóstolo e Evangelista, depois de ter referido as palavras dirigidas por Jesus do alto da Cruz à Mãe e a si próprio, acrescenta: "E, a partir daquele momento, o discípulo levou-a para sua casa" (
Jn 19,27), esta afirmação quer dizer, certamente, que ao discípulo foi atribuído um papel de filho e que ele tomou ao seu cuidado a Mãe do Mestre que amava. E uma vez que Maria lhe foi dada pessoalmente a ele como mãe, a afirmação indica, embora indirectamente, tudo o que exprime a relação íntima de um filho com a mãe. E tudo isto pode encerrar-se na palavra "entrega". A entrega é a resposta ao amor duma pessoa e, em particular, ao amor da mãe.

A dimensão mariana da vida de um discípulo de Cristo exprime-se, de modo especial, precisamente mediante essa entrega filial em relação à Mãe de Cristo, iniciada com o testamento do Redentor no alto do Gólgota. Confiando-se filialmente a Maria, o cristão, como o Apóstolo São João, acolhe "entre as suas coisas próprias" 130 a Mãe de Cristo e introdu-la em todo o espaço da própria vida interior, isto é, no seu "eu" humano e cristão: "levou-a para sua casa". Assim procura entrar no âmbito de irradiação em que se actua aquela "caridade materna", com que a Mãe do Redentor "cuida dos irmãos do seu Filho", 131 para cuja regeneração e formação ela coopera", 132 segundo a medida do dom própria de cada um, pelo poder do Espírito de Cristo. Assim se vai actuando também aquela maternidade segundo o Espírito, que se tornou função de Maria aos pés da Cruz e no Cenáculo.

(130) Ut est notum, in Graeco textu illa dctio «e?? t? ?d?a;» significat plus quam a discipulo Mariam receptam esse in aliquod hospitium vel curam corpoream domi ipsius, potius vitae communitatem inter eos constitutam ex Christi morientis verbis: cfr. S. AUGUSTINUS, In Ioan. Evang. tract. 119, 3: CCL 36, 659: « Suscepit ergo eam in sua, non praedia, quae nulla propria possidebat, sed officia, quae propria dispensatione exequenda curabat ».
(131) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 62.
(132) Ibid., LG 63.



46 Esta relação filial, este entregar-se de um filho à Mãe, não só tem o seu início em Cristo, mas pode dizer-se que está definitivamente orientado para ele. Pode dizer-se, ainda, que Maria continua a repetir a todos as mesmas palavras, que disse outrora em Caná da Galileia: "Fazei o que ele vos disser". Com efeito, é ele, Cristo, o único Mediador entre Deus e os homens; é ele "o caminho, a verdade e a vida" (Jn 14,6); e é aquele que o Pai doou ao mundo, para que o homem "não pereça mas tenha a vida eterna" (Jn 3,16). A Virgem de Nazaré tornou-se a primeira "testemunha" deste amor salvífico do Pai e deseja também permanecer a sua humilde serva sempre e em toda a parte. Em relação a todos e cada um dos cristãos e a cada um dos homens, Maria é a primeira na fé: é "aquela que acreditou"; e, precisamente com esta sua fé de esposa e de mãe, ela quer actuar em favor de todos os que a ela se entregam como filhos. E é sabido que quanto mais estes filhos perseveram na atitude de entrega e mais progridem nela, tanto mais Maria os aproxima das "insondáveis riquezas de Cristo" (Ep 3,8). E, de modo análogo, também eles reconhecem cada vez mais em toda a sua plenitude a dignidade do homem e o sentido definitivo da sua vocação, porque "Cristo ... revela também plenamente o homem ao homem". 133

Esta dimensão mariana da vida cristã assume um relevo particular no que respeita à mulher e à condição feminina. Com efeito, a feminilidade encontra-se numa relação singular com a Mãe do Redentor, assunto que poderá ser aprofundado num outro contexto. Aqui desejaria somente salientar que a figura de Maria de Nazaré projecta luz sobre a mulher enquanto tal, pelo facto exactamente de Deus, no sublime acontecimento da Incarnação do Filho, se ter confiado aos bons préstimos, livres e activos da mulher. Pode, portanto, afirmar-se que a mulher, olhando para Maria, nela encontrará o segredo para viver dignamente a sua feminilidade e levar a efeito a sua verdadeira promoção. A luz de Maria, a Igreja lê no rosto da mulher os reflexos de uma beleza, que é espelho dos mais elevados sentimentos que o coração humano pode albergar: a totalidade do dom de si por amor; a força que é capaz de resistir aos grandes sofrimentos; a fidelidade sem limites, a perosidade incansável e a capacidade de conjugar a intuição penetrante com a palavra de apoio e encorajamento.

(133) CONC. OEC. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 22.



47 Durante o Concílio, o Papa Paulo VI afirmou solenemente que Maria é Mãe da Igreja, "isto é, Mãe de todo o povo cristão, tanto dos fiéis como dos Pastores". 134 Mais tarde, em 1968, na Profissão de Fé conhecida com o nome de "Credo do Povo de Deus", repetiu essa afirmação de forma ainda mais compromissiva, usando as palavras: "Nós acreditamos que a Santíssima Mãe de Deus, nova Eva, Mãe da Igreja, continua no Céu a sua função maternal em relação aos membros de Cristo, cooperando no nascimento e desenvolvimento da vida divina nas almas dos remidos". 135

O magistério do Concílio acentuou que a verdade sobre a Virgem Santíssima, Mãe de Cristo, constitui um subsídio eficaz para o aprofundamento da verdade sobre a Igreja. O mesmo Papa Paulo VI, ao tomar a palavra a propósito da Constituição Lumen Gentium, que acabava de ser aprovada pelo Concílio, disse: "O conhecimento da verdadeira doutrina católica sobre a Bem -aventurada Virgem Maria constituirá sempre uma chave para a compreensão exacta do mistério de Cristo e da Igreja", 136 Maria está presente na Igreja como Mãe de Cristo e, ao mesmo tempo, como a Mãe que o próprio Cristo, no mistério da Redenção, deu ao homem na pessoa do Apóstolo São João. Por isso, Maria abraça, com a sua nova maternidade no Espírito, todos e cada um na Igreja; e abraça também todos e cada um mediante a Igreja. Neste sentido, Maria, Mãe da Igreja, é também modelo da Igreja. Esta, efectivamente - como preconiza e solicita o Papa Paulo VI - deve ir "buscar na Virgem Mãe de Deus a forma mais autêntica da perfeita imitação de Cristo". 137

Graças a este vínculo especial, que une a Mãe de Cristo à Igreja, esclarece-se melhor o mistério daquela "mulher" que, desde os primeiros capítulos do Livro do Génesis até ao Apocalipse, acompanha a revelação do desígnio salvífico de Deus em relação à humanidade. Maria, de facto, presente na Igreja como Mãe do Redentor, participa maternalmente naquele "duro combate contra os poderes das trevas ..., que se trava ao longo de toda a história humana", 138 E em virtude desta sua identificação eclesial com a "mulher vestida de sol" (
Ap 12,1), 139 pode dizer-se que "a Igreja alcançou já na Virgem Santíssima aquela perfeição, que faz que ela se apresente sem mancha nem ruga"; todavia, os cristãos, levantando os olhos com fé para Maria, ao longo da sua peregrinação na terra "continuam ainda a esforçar-se por crescer na santidade". 140 Maria, a excelsa filha de Sião, ajuda a todos os seus filhos - onde quer que vivam e como quer que vivam - a encontrar em Cristo o caminho para a casa do Pai.

Por conseguinte, a Igreja mantém, em toda a sua vida, uma ligação com a Mãe de Deus que abraça, no mistério salvífico, o passado, o presente e o futuro; e venera-a como Mãe espiritual da humanidade e Advogada na ordem da graça.

(134) Cfr. PAULUS PP. VI, Allocutio habita die 21 Novembris 1964: AAS 56 (1964) 1015.
(135) PAULUS PP. VI, Sollemnis Professio Fidei (30 Iunii 1968), n. 15: AAS 60 (1968) 438 s.
(136) PAULUS PP. VI, Allocutio habita die 21 Novembris 1964: AAS 56 (1964) 1015.
(137) Ibid., 1016.
(138) Cfr. CONC. OEC. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes de Ecclesia in mundo huius temporis, GS 37.
(139) Cfr. S. BERNARDUS, In Dominica infra oct. Assumptionis Sermo, 1-2: S. Bernardi Opera, V, 1968, 262-274.
(140) CONC. OEC. VAT. II, Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 65.



3. O sentido do Ano Mariano

48 O vínculo especial da humanidade com esta Mãe foi precisamente o que me levou a proclamar na Igreja, no período que antecede a conclusão do Segundo Milénio do nascimento de Cristo, um Ano Mariano. Uma iniciativa semelhante a esta já se verificou no passado, quando o Papa Pio XII proclamou o ano de 1954 como Ano Mariano, para dar realce à excepcional santidade da Mãe de Cristo, expressa nos mistérios da sua Imaculada Conceição (definida exactamente um século antes) e da sua Assunção ao Céu. 141

Seguindo a linha do Concílio Vaticano II, anima-me o desejo de pôr em relevo a presença especial da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da sua Igreja. Esta é uma dimensão fundamental que dimana da Mariologia do Concílio, de cujo encerramento já nos separam mais de vinte anos. O Sínodo extraordinário dos Bispos, que se realizou em 1985, exortou a todos a seguirem fielmente o magistério e as indicações do Concílio. Pode dizer-se que em ambos - . no Concílio e no Sínodo - está contido aquilo que o Espírito Santo deseja "dizer à Igreja" (cf.
Ap 2,7 Ap 2,17 Ap 2,29 Ap 3,6 Ap 3,13 Ap 3,22) na fase presente da história.

Neste contexto, o Ano Mariano deverá promover também uma leitura nova e aprofundada daquilo que o Concílio disse sobre a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja, a que se referem as considerações contidas na presente Encíclica. Com esta perspectiva, trata-se não só da doutrina da fé, mas também da vida de fé; e, portanto, da autêntica "espiritualidade mariana", vista à luz da Tradição e, especialmente, daquela espiritualidade a que nos exorta o Concílio. 142 Além disso, a espiritualidade mariana, assim como a devoção correspondente, tem uma riquíssima fonte na experiência histórica das pessoas e das diversas comunidades cristãs, que vivem no seio dos vários povos e nações, sobre toda a face da terra. A este propósito, é-me grato recordar, dentre as muitas testemunhas e mestres de tal espiritualidade, a figura de São Luís Maria Grignion de Montfort, 143 o qual propõe aos cristãos a consagração a Cristo pelas mãos de Maria, como meio eficaz para viverem fielmente os compromissos baptismais. E registo ainda aqui, de bom grado, que também nos nossos dias não faltam novas manifestações desta espiritualidade e devoção.

Há, portanto, pontos de referência seguros para os quais olhar e aos quais ater-se, no contexto deste Ano Mariano.

(141) Cfr. Litt. Enc. Fulgens Corona (8 Septembris 1953): AAS 45 (1953) 577-592. Pius PP. X Litt. Enc. Ad diem illum (2 Februarii 1904) instante L anno a definito dogmate Immaculatae Conceptionis Beatae Mariae Virginis indixerat et ipse Iubilaeum extra ordinem aliquot mensium: Pii X P. M. Acta, I, 147-166.
(142) Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium de Ecclesia, LG 66 LG 67.
(143) Cfr. S. LUDOVICUS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, Traité de la vraie dévotion à la sainte Vierge. Cum hoc Sancto sociari merito potest S. Alfonsus Maria de' Liguori, cultus hoc anno celebratur bis centenarius dies mortis. Cfr. inter opera eius: Le glorie di Maria.



49 A celebração do mesmo Ano Mariano terá início na Solenidade do Pentecostes no dia 7 de Junho próximo. Trata-se, efectivamente, não apenas de recordar que Maria "precedeu" o ingresso de Cristo Senhor na história da humanidade, mas também de salientar, à luz de Maria, que, desde que se realizou o mistério da Incarnação, a história da humanidade entrou "na plenitude dos tempos" e que a Igreja é o sinal desta plenitude. Como Povo de Deus, a Igreja vai fazendo, mediante a fé, a peregrinação no sentido da eternidade no meio de todos os povos e nações, peregrinação que começou no dia do Pentecostes. A Mãe de Cristo, que esteve presente no princípio do "tempo da Igreja" quando, durante os dias de espera do Espírito Santo, era assídua na oração no meio dos Apóstolos e dos discípulos do seu Filho, "precede" constantemente a Igreja nesta sua caminhada através da história da humanidade. Ela é também aquela que, precisamente como serva do Senhor, coopera sem cessar na obra da salvação realizada por Cristo, seu Filho.

Assim, por meio deste Ano Mariano, a Igreja é chamada não só a recordar tudo o que no seu passado testemunha a especial cooperação materna da Mãe de Deus na obra da salvação em Cristo Senhor, mas também a preparar para o futuro, na parte que lhe toca, os caminhos desta cooperação salvífica, dado que, com o final do Segundo Milénio cristão, se abre como que uma nova perspectiva.



50 Como já tivemos ocasião de recordar, também entre os irmãos desunidos muitos honram e celebram a Mãe do Senhor, especialmente entre os Orientais. É uma luz mariana projectada sobre o Ecumenismo. Mas desejaria aqui recordar ainda, em particular, que durante o Ano Mariano ocorrerá o Milénio do Baptismo de São Vladimiro, Grão-Príncipe de Kiev (a. 988), que deu início ao Cristianismo nos territórios da "Rus'" de então e, em seguida, em todos os territórios da Europa oriental; e que, por esta via, mediante a obra de evangelização, o Cristianismo se estendeu também para além da Europa, até aos territórios setentrionais do Continente asiático. Desejaríamos, portanto, especialmente durante este Ano, unir-nos na oração com todos aqueles que celebram o Milénio desse Baptismo, ortodoxos e católicos, renovando e confirmando com o Concílio, a vivência de sentimentos de alegria e consolação, pelo facto de que "os Orientais ... acorrem a venerar a Mãe de Deus, sempre Virgem, com fervor ardente e ânimo devoto". 144 Embora experimentemos ainda os efeitos dolorosos da separação, que se deu alguns decénios depois (a. 1054), podemos dizer que diante da Mãe de Cristo nos sentimos verdadeiros irmãos e irmãs no âmbito daquele Povo messiânico chamado a ser uma única família de Deus sobre a face da terra, como já tive ocasião de anunciar no passado dia de Ano Novo: "Desejamos reconfirmar esta herança universal de todos os filhos e filhas desta terra". 145

Ao anunciar o Ano de Maria, eu precisava ainda que o seu encerramento será no ano seguinte, na solenidade da Assuncão de Nossa Senhora ao Céu, querendo realçar "o sinal grandioso no céu" de que fala o Apocalipse. Deste modo, queremos também pôr em prática a exortação do Concílio, que olha para Maria como um "sinal de esperança segura e de consolação para o Povo de Deus peregrino". E essa exortação foi espressa pelo Concílio com as seguintes palavras: "Dirijam todos os fiés súplicas instantes à Mãe de Deus e Mãe dos homens, para que ela, que assistiu com suas orações aos começos da Igreja, também agora, no Céu, exaltada acima de todos os bem-aventurados e dos anjos, interceda junto de seu Filho, na comunhão de todos os santos, até que todas as famílias dos povos, quer as que ostentam o nome cristão, quer as que ignoram ainda o seu Salvador, se reúnam felizmente, em paz e concórdia, no único Povo de Deus, para glória da santíssima e indivisa Trindade". 146

(144) Const. dogm. Lumen gentium de Ecclesia,
LG 69.
(145) Homilia in Petriana Basilica habita die 1 Ianuarii 1987.
(146) Const. dogm. Lumen gentium de Ecclesia, LG 69.



CONCLUSÃO

51 Ao terminar a Liturgia das Horas quotidiana, entre outras, eleva-se esta invocação da Igreja a Maria:

"Ó Santa Mãe do Redentor, porta do Céu sempre aberta, estrela do mar, socorrei o vosso povo, que cai e anela por erguer-se. Vós que gerastes, com grande admiração de todas as criaturas, o vosso santo Genitor"!

"Com grande admiração de todas as criaturas"! Estas palavras da antífona exprimem aquela admiração de fé, que acompanha o mistério da maternidade divina de Maria. E acompanha-o, em certo sentido, no coração de tudo o que foi criado e, directamente, no coração de todo o Povo de Deus, no coração da Igreja.

Quão admiravelmente Deus, Criador e Senhor de todas as coisas, se deixou levar longe na "revelação de si mesmo" ao homem! 147 Quanto se nos torna patente que ele traspôs todos os espaços daquela "distancia" infinita que separa o Criador da criatura! Se Ele, em si mesmo, per manece inefável e imperscrutável, é ainda mais inefável e imperscrutável na realidade da sua Incarnação, no facto de "se ter feito homem", nascendo da Virgem de Nazaré.

Se Ele quis chamar eternamente o homem para ser "participante da natureza divina" (cf.
2P 1,4), pode dizer-se que predispôs a "divinização" do homem em função das suas condições históricas, de modo que, mesmo depois do pecado, está disposto a "resgatar" por elevado preço o desígnio eterno do seu amor, mediante a "humanização" do Filho, que lhe é consubstancial. Tudo o que foi criado e, mais directamente, o homem não pode deixar de ficar estupefacto diante deste dom, de que se tornou participante no Espírito Santo: "Com efeito, Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito" (Jn 3,16).

No centro deste mistério, no mais vivo desta admiração de fé está Maria. Santa Mãe do Redentor, ela foi a primeira a experimentá-la: "Vós que gerastes, com grande admiração de todas as criaturas, o vosso santo Genitor"!

(147) Const. dogm. Dei Verbum de Divina Revelatione, DV 2: « Hac itaque revelatione Deus invisibilis ... ex abundantia caritatis suae homines tamquam amicos alloquitur ... et cum eis conversatur ... ut eos ad societatem Secum invitet in eamque suscipiat ».



52 Nas palavras desta antífona litúrgica está expressa também a verdade da "grande mudança de situação" para o homem, determinada pelo mistério da Incarnação. Trata-se de uma autêntica reviravolta, que afecta toda a sua história, desde aquele princípio que nos é revelado nos primeiros capítulos do Génesis, até ao termo derradeiro, na perspectiva do fim do mundo, de que Jesus não nos revelou "o dia nem a hora" (cf. Mt 25,13). É uma mudança de situação incessante e contínua, entre o cair e o erguer-se, entre o homem do pecado e o homem da graça e da justiça. A liturgia, especialmente no Advento, coloca-se no ponto nevrálgico desta reviravolta e alude ao seu incessante "aqui e agora", ao mesmo tempo que exclama: "Socorrei o vosso povo, que cai e anela por erguer-se"!

Estas palavras referem-se a cada um dos homens, a todas as comunidades humanas, às nações e aos povos, às gerações e às épocas da história humana: referem-se à nossa época, a estes anos do Milénio que está a caminhar para o fim: Socorrei, sim, socorrei o vosso povo que cai"!

É esta a invocação dirigida a Maria, "Santa Mãe do Redentor"; é a invocação dirigida a Cristo, que por meio de Maria entrou na história da humanidade. De ano para ano, a antífona é elevada ao Céu, em louvor de Maria, evocando o momento em que se realizou esta essencial reviravolta histórica, que perdura irreversivelmente: a mudança de situação entre "o cair" e "o erguer-se".

A humanidade fez descobertas admiráveis e alcançou resultados portentosos, no campo da ciência e da técnica; realizou grandes obras nos caminhos do progresso e da civilização; e, nos tempos mais recentes, dir-se-ia que conseguiu acelerar o curso da história; mas a transformação fundamental, a reviravolta que pode dizer-se "original", essa acompanha sempre a caminhada do homem e, através das diversas vicissitudes históricas, acompanha a todos e a cada um dos homens. É a mudança de situação entre "o cair" e "o erguer-se", entre a morte e a vida. Tal reviravolta constitui também um desafio incessante às consciências humanas, um desafio a toda a consciência histórica do homem: o desafio para seguir os caminhos do "não cair", com os recursos sempre antigos e sempre novos, e do "ressurgir", se caiu.

À medida que a Igreja se vai aproximando, juntamente com toda a humanidade, da fronteira entre os dois Milénios, ela por sua parte, com toda a comunidade dos que acreditam em Deus e em comunhão com todos os homens de boa vontade, aceita o grande desafio que se encerra nas palavras da antífona sobre "o povo que cai e anela por erguer-se"; e, conjuntamente, dirige-se ao Redentor e à sua Mãe com a invocação: "Socorrei"! Com efeito, a mesma Igreja vê - e atesta-o esta oração litúrgica - a Bem-aventurada Mãe de Deus no mistério salvífico de Cristo e no seu próprio mistério; vê-a radicada profundamente na história da humanidade, na eterna vocação do homem, segundo o desígnio providencial que Deus predispôs eternamente para ele; vê-a presente como mãe e a participar nos múltiplos e complexos problemas que hoje acompanham a vida das pessoas individualmente, das famílias e das nações; vê-a como auxílio do povo cristão, na luta incessante entre o bem e o mal, para que "não caia" ou, se caiu, para que "se erga".

Faço ardentes votos de que também as reflexões contidas na presente Encíclica aproveitem, para que se renove esta visão no coração de todos os que acreditam.

Como Bispo de Roma, eu envio a todos aqueles a quem estas considerações são destinadas, o ósculo da paz, com saudações e a bênção em nosso Senhor Jesus Cristo. Amen!



Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 25 de Março - Solenidade da Anunciação do Senhor - do ano de 1987, nono do meu Pontificado.






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