Redemptoris missio PT 16

Em Cristo ressuscitado, o Reino cumpre-se e é proclamado

16 Ao ressuscitar Jesus dos mortos, Deus venceu a morte, e n'Ele inaugurou definitivamente o Seu Reino. Durante a vida terrena, Jesus é o profeta do Reino e, depois da Sua paixão, ressurreição e ascenção aos céus, participa do poder de Deus, e do Seu domínio sobre o mundo (cf Mt 28,18 Ac 2,36 Ep 1,18-21). A ressurreição confere à mensagem de Cristo, e a toda a Sua acção e missão, um alcance universal. Os discípulos constatam que o Reino já está presente na pessoa de Jesus, e pouco a pouco vai-se instaurando no homem e no mundo, por uma misteriosa ligação com a Sua pessoa. Assim depois da ressurreição, eles pregam o Reino, anunciando a morte e a ressurreição de Jesus; Filipe, na Samaria, « anunciava a Boa Nova do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo » (Ac 8,12). Paulo, em Roma, « anunciava o Reino de Deus e ensinava o que diz respeito ao Senhor Jesus Cristo » (Ac 28,31). Também os primeiros cristãos anunciam « o Reino de Cristo e de Deus » (Ep 5,5 cf. Ap Ap 11,15 Ap 12,10), ou então « o Reino eterno de Nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo » (2P 1,11). Sobre o anúncio de Jesus Cristo, com o Qual o Reino se identifica, se concentra a pregação da Igreja primitiva. Como outrora, é preciso unir hoje o anúncio do Reino de Deus (o conteúdo do « kerigma » de Jesus) e a proclamação da vinda de Jesus Cristo (o « kerigma » dos apóstolos). Os dois anúncios completam-se e iluminam-se mutuamente.


O Reino em relação a Cristo e à Igreja

17 Hoje fala-se muito do Reino, mas nem sempre em consonancia com o sentir da Igreja. De facto, existem concepções de salvação e missão que podem ser designadas « antropocêntricas », no sentido redutivo da palavra, por se concentrarem nas necessidades terrenas do homem. Nesta perspectiva, o Reino passa a ser uma realidade totalmente humanizada e secularizada, onde o que conta são os programas e as lutas para a libertação socio-económica, política e cultural, mas sempre num horizonte fechado ao transcendente. Sem negar que, a este nível, também existem valores a promover, todavia estas concepções permanecem nos limites de um reino do homem, truncado nas suas mais autênticas e profundas dimensões, espelhando-se facilmente numa das ideologias de progresso puramente terreno. O Reino de Deus, pelo contrário, « não é deste mundo (...) não é daqui debaixo » (Jn 18,36).

Existem também concepções que propositadamente colocam o acento no Reino, autodenominando-se de « reino-cêntricas », pretendendo com isso fazer ressaltar a imagem de uma Igreja que não pensa em si, mas dedica-se totalmente a testemunhar e servir o Reino. E uma « Igreja para os outros » — dizem — como Cristo é o homem para os outros. A tarefa da Igreja é orientada num duplo sentido: por um lado promover os denominados « valores do Reino », como a paz, a justiça,a liberdade, a fraternidade, por outro, favorecer o diálogo entre os povos, as culturas, as religiões, para que, num mútuo enriquecimento, ajudem o mundo a renovar-se e a caminhar cada vez mais na direcção do Reino.

Ao lado de aspectos positivos, essas concepções revelam frequentemente outros negativos. Antes de mais, silenciam o que se refere a Cristo: o Reino, de que falam, baseia-se num « teocentrismo », porque — como dizem — Cristo não pode ser entendido por quem não possui a fé n'Ele, enquanto que povos, culturas e religiões se podem encontrar na mesma e única realidade divina, qualquer que seja o seu nome. Pela mesma razão, realçam o mistério da criação, que se reflecte na variedade de culturas e crenças, mas omitem o mistério da redenção. Mais ainda, o Reino, tal como o entendem eles, acaba por marginalizar ou desvalorizar a Igreja, como reacção a um suposto eclesiocentrismo do passado, por considerarem a Igreja apenas um sinal, aliás passível de ambiguidade.



18 Ora este não é o Reino de Deus, que conhecemos pela Revelação: ele não pode ser separado de Cristo nem da Igreja.

Como já se disse, Cristo não só anunciou o Reino, mas, n'Ele, o próprio Reino se tornou presente e plenamente se realizou. E não apenas através das Suas palavras e obras: « o Reino manifesta-se principalmente na própria pessoa de Cristo, Filho de Deus e Filho do Homem, que veio 'para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos' (
Mc 10,45) ». 22 O Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito a livre elaboração, mas é, acima de tudo, uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível. 23 Se separarmos o Reino, de Jesus, ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregado, acabando por se distorcer quer o sentido do Reino, que corre o risco de se transformar numa meta puramente humana ou ideológica, quer a identidade de Cristo, que deixa de aparecer como o Senhor, a Quem tudo se deve submeter (cf. 1Co 15,27).

De igual modo, não podemos separar o Reino, da Igreja. Com certeza que esta não é fim em si própria, uma vez que se ordena ao Reino de Deus, do qual é princípio, sinal e instrumento. Mesmo sendo distinta de Cristo e do Reino, a Igreja todavia está unida indissoluvelmente a ambos. Cristo dotou a Igreja, Seu Corpo, da plenitude de bens e de meios da salvação; o Espírito Santo reside nela, dá-lhe a vida com os Seus dons e carismas, santifica, guia e renova-a continuamente. 24 Nasce daí uma relação única e singular que, mesmo sem excluir a obra de Cristo e do Espírito fora dos confins visíveis da Igreja, confere a esta um papel específico e necessário. Disto provém a ligação especial da Igreja com o Reino de Deus e de Cristo, que ela t em « a mis s ão de anunciar e est ab elecer em todos os povos ». 25



19 Nesta visão de conjunto, é que se compreende a realidade do Reino. É verdade que ele exige a promoção dos bens humanos e dos valores, que podem mesmo ser chamados « evangélicos », porque intimamente ligados à Boa Nova. Mas essa promoção, que a Igreja também toma a peito realizar, não deve ser separada nem contraposta às outras suas tarefas fundamentais, como são o anúncio de Cristo e Seu Evangelho, a fundação e desenvolvimento de comunidades que actuem entre os homens a imagem viva do Reino. Isto não nos deve fazer recear que se possa cair numa forma de eclesiocentrismo. Paulo VI, que afirmou existir « uma profunda ligação entre Cristo, a Igreja e a evangelização », 26 disse também que a Igreja « não é fim em si própria, pelo contrário, deseja intensamente ser toda de Cristo, em Cristo e para Cristo, e toda dos homens, entre os homens e para os homens ». 27


A Igreja ao serviço do Reino

20 A Igreja está efectiva e concretamente ao serviço do Reino. Em primeiro lugar, serve-o com o anúncio que chame à conversão: este é o primeiro e fundamental serviço à vinda do Reino para cada pessoa e para a sociedade humana. A salvação escatológica começa já agora, na novidade de vida em Cristo: « a todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu o poder de se tornarem filhos de Deus » (Jn 1,12).

A Igreja serve ainda o Reino, fundando comunidades, constituindo Igrejas particulares, levando-as ao amadurecimento da fé e da caridade, na abertura aos outros, no serviço à pessoa e à sociedade, na compreensão e estima das instituições humanas.

A Igreja, além disso, serve o Reino, difundindo pelo mundo os «valores evangélicos», que são a expressão do Reino, e ajudam os homens a acolher o desígnio de Deus. É verdade que a realidade incipiente do Reino se pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade na medida em que ela viva os «valores evangélicos » e se abra à acção do Espírito que sopra onde e como quer (cf. Jo Jn 3,8); mas é preciso acrescentar, logo a seguir, que esta dimensão temporal do Reino está incompleta, enquanto não se ordenar ao Reino de Cristo, presente na Igreja, em constante tensão para a plenitude escatológica. 28

As múltiplas perspectivas do Reino de Deus 29 não enfraquecem os fundamentos e as finalidades missionárias; pelo contrário, fortificam e expandem-nas. A Igreja é sacramento de salvação para toda a humanidade; a sua acção não se limita àqueles que aceitam a sua mensagem. Ela é força actuante no caminho da humanidade rumo ao Reino escatológico, é sinal e promotora dos valores evangélicos entre os homens. 30 Neste itinerário de conversão ao projecto de Deus, a Igreja contribui com o seu testemunho e actividade, expressa no diálogo, na promoção humana, no compromisso pela paz e pela justiça, na educação, no cuidado dos doentes, na assistência aos pobres e mais pequenos, mantendo sempre firme a prioridade das realidades transcendentes e espirituais, premissas da salvação escatológica.

A Igreja serve o Reino tembém com a sua intercessão, uma vez que aquele, por sua natureza, é dom e obra de Deus, como lembram as parábolas evangélicas e a própria oração que Jesus nos ensinou. Devemos suplicá-lo, para que seja acolhido e cresça em nós; mas devemos simultaneamente cooperar a fim de que seja aceite e se consolide entre os homens, até Cristo « entregar o Reino a Deus Pai », altura essa em que « Deus será tudo em todos » (1Co 15,24 1Co 15,28).



CAPÍTULO III - O ESPÍRITO SANTO PROTAGONISTA DA MISSÃO

21 « No ápice da missão messianica de Jesus, o Espírito Santo aparece-nos, no mistério pascal, em toda a Sua subjectividade divina, como Aquele que deve continuar agora a obra salvífica, radicada no sacrifício da cruz. Esta obra, sem dúvida, foi confiada aos homens: aos Apóstolos e à Igreja. No entanto, nestes homens e por meio deles, o Espírito Santo permanece o sujeito protagonista transcendente da realização dessa obra, no espírito do homem e na história do mundo ». 31

Verdadeiramente o Espírito Santo é o protagonista de toda a missão eclesial: a Sua obra brilha esplendorosamente na missão ad gentes, como se vê na Igreja primitiva pela conversão de Cornélio (cf. At
Ac 10), pelas decisões acerca dos problemas surgidos (cf. At Ac 15), e pela escolha dos territórios e povos (cf. At Ac 16,6 s). O Espírito Santo age através dos Apóstolos, mas, ao mesmo tempo, opera nos ouvintes: « pela Sua acção a Boa Nova ganha corpo nas consciências e nos corações humanos, expandindo-se na história. Em tudo isto, é o Espírito Santo que dá a vida ». 32



O envio «até aos confins da terra » (AC 1,8)

22 (Ac 1,8)
Todos os evangelistas, ao narrarem o encontro de Cristo Ressuscitado com os Apóstolos, concluem com o mandato missionário: « foi-Me dado todo o poder no céu e na terra Ide, pois, ensinai todas as nações (...) Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo » (Mt 28,18-20 cf. Mc 16,15-18 Lc 24,46-49 Jn 20,21-23).

Esta missão é envio no Espírito, como se vê claramente no texto de S. João: Cristo envia os Seus, ao mundo, como o Pai O enviou a Ele; e, para isso, concede-lhes o Espírito. Lucas põe em estreita relação o testemunho que os Apóstolos deverão prestar de Cristo com a acção do Espírito, que os capacitará para cumprir o mandato recebido.



23 As várias formas do « mandato missionário » contêm pontos em comum, mas também acentuações próprias de cada evangelista; dois elementos , de facto , encontram- se em to das as versões. Antes de mais, a dimensão universal da tarefa confiada aos Apóstolos: « todas as nações » (Mt 28,19); « pelo mundo inteiro, a toda a criatura » (Mc 16,15); « todos os povos » (Lc 24,47); « até aos confins do mundo » (Ac 1,8). Em segundo lugar, a garantia, dada pelo Senhor, de que, nesta tarefa, não ficarão sozinhos, mas receberão a força e os meios para desenvolver a sua missão; estes são a presença e a potência do Espírito e a assistência de Jesus: « eles, partindo, foram pregar por toda a parte, e o Senhor cooperava com eles » (Mc 16,20).

Quanto às diferenças de acentuação no mandato, Marcos apresenta a missão como proclamação ou kerigma: « anunciai o Evangelho » (Mc 16,15). O seu evangelho tem como objectivo levar o leitor a repetir a confissão de Pedro: « Tu és o Cristo » (Mc 8,29) e a dizer como o centurião romano diante de Jesus morto na cruz: « verdadeiramente este Homem era o Filho de Deus » (Mc 15,39). Em Mateus, o acento missionário situa-se na fundação da Igreja e no seu ensinamento (cf. Mt Mt 28,19-20 Mt 16,18); nele, o mandato evidencia a proclamação do Evangelho, mas enquanto deve ser completada por uma específica catequese de ordem eclesial e sacramental. Em Lucas, a missão é apresentada como um testemunho (cf. Lc Lc 24,48 Ac 1,8), principalmente da ressurreição (Ac 1,22); o missionário é convidado a crer na potência transformadora do Evangelho e a anunciar a conversão ao amor e à misericórdia de Deus — que Lucas ilustra muito bem —, a experiência de uma libertação integral até à raiz de todo o mal, o pecado.

João é o único que fala explicitamente de « mandato » — palavra equivalente a « missão » — e une directamente a missão confiada por Jesus aos seus discípulos, com aquela que Ele mesmo recebeu do Pai: « assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jn 20,21). Jesus, dirigindo-se ao Pai, diz: « assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os envio ao mundo » (Jn 17,18). Todo o sentido missionário do Evangelho de S. João se pode encontrar na « Oração Sacerdotal »: a vida eterna é « que Te conheçam a Ti, único Deus Verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste » (Jn 17,3). O fim último da missão é fazer participar na comunhão que existe entre o Pai e o Filho: os discípulos devem viver a unidade entre si, permanecendo no Pai e no Filho, para que o mundo conheça e creia (cf. Jo Jn 17,21 Jo Jn 17,23). Trata-se de um texto de grande alcance missionário, fazendo-nos entender que somos missionários sobretudo por aquilo que se é, como Igreja que vive profundamente a unidade no amor, e não tanto por aquilo que se diz ou faz.

Portanto os quatro Evangelhos, na unidade fundamental de mesma missão, manifestam todavia um pluralismo, que reflecte as diversas experiências e situações das primeiras comunidades cristãs. Também esse pluralismo é fruto do impulso dinamico do Espírito, convidando a prestar atenção aos vários carismas missionários e às múltiplas condições ambientais e humanas. No entanto, todos os evangelistas sublinham que a missão dos discípulos é colaboração com a de Cristo: « Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo » (Mt 28,20). Assim a missão não se baseia na capacidade humana, mas na força de Cristo ressuscitado.



O Espírito guia a missão

24 A missão da Igreja, tal como a de Jesus, é obra de Deus, ou, usando uma expressão frequente em S. Lucas, é obra do Espírito Santo. Depois da ressurreição e ascenção de Jesus, os Apóstolos viveram uma intensa experiência que os transformou: o Pentecostes. A vinda do Espírito Santo fez deles testemunhas e profetas (cf. Ac 1,8 Ac 2,17-18), infundindo uma serena audácia, que os leva a transmitir aos outros a sua experiência de Jesus e a esperança que os anima. O Espírito deu-lhes a capacidade de testemunhar Jesus « sem medo ». 33

Quando os evangelizadores saiem de Jerusalém, o Espírito assume ainda mais a função de « guia » na escolha tanto das pessoas como dos itinerários da missão. A Sua acção manifesta-se especialmente no impulso dado à missão que, de facto, se estende, segundo as palavras de Cristo, desde Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, e vai até aos confins do mundo.

Os Actos dos Apóstolos referem seis « discursos missionários », em miniatura, que foram dirigidos aos judeus, nos primórdios da Igreja (cf. Ac 2,22-39 Ac 3,12-26 Ac 4,9-12 Ac 5,29-32 Ac 10,34-43 Ac 13,16-41). Estes discursos-modelo, pronunciados por Pedro e por Paulo, anunciam Jesus, convidam a « converter-se », isto é, a acolher Jesus na fé e a deixar-se transformar n'Ele, pelo Espírito.

Paulo e Barnabé são impelidos pelo Espírito para a missão entre os pagãos (cf Ac 13,46-48), mesmo no meio de tensões e problemas. Como devem viver os pagãos convertidos, a sua fé em Jesus? Ficam eles vinculados à tradição do judaismo e à lei da circuncisão? No primeiro Concílio, que reune em Jerusalem, à volta dos Apóstolos, os membros das diversas Igrejas, é tomada uma decisão considerada como emanada do Espírito Santo: não é necessário que o pagão se submeta à lei judaica para ser cristão (cf Ac 15,5-11 Ac 15,28) A partir desse momento, a Igreja abre as suas portas e torna-se a casa onde todos podem entrar e sentir-se à vontade, conservando as próprias tradições e cultura, desde que não estejam em contraste com o Evangelho.



25 Os missionários, seguindo esta linha de acção, tiveram presente os anseios e as esperanças, as aflições e os sofrimentos, a cultura do povo, para lhe anunciar a salvação em Cristo. Os discursos de Listra e de Atenas (cf. At Ac 14,15-17 Ac 17,22-31) são considerados modelo para a evangelização dos pagãos: neles, Paulo « dialoga » com os valores culturais e religiosos dos diferentes povos. Aos habitantes da Licaónia, que praticavam uma religião cósmica, Paulo lembra experiências religiosas que se referiam ao cosmos; com os Gregos, discute sobre filo sofia e cita os seus poetas (cf. At Ac 17,18 At Ac 17,26-28). O Deus que vem revelar, já está presente nas suas vidas: de facto, foi Ele Quem os criou, e é Ele que misteriosamente conduz os povos e a história; no entanto, para reconhecerem o verdadeiro Deus, é necessário que abandonem os falsos deuses que eles próprios fabricaram, e se abram Àquele que Deus enviou para iluminar a sua ignorância e satisfazer os anseios dos seus corações (cf. At Ac 17,27-30). São discursos que oferecem exemplos de inculturação do Evangelho.

Sob o impulso do Espírito, a fé cristã abre-se decididamente às nações pagãs, e o testemunho de Cristo expande-se em direcção aos centros mais importantes do Mediterraneo oriental, para chegar depois a Roma e ao extremo ocidente. É o Espírito que impele a ir sempre mais além, não só em sentido geográfico, mas também ultrapassando barreiras étnicas e religiosas, até se chegar a uma missão verdadeiramente universal.


O Espírito torna missionária toda a Igreja

26 O Espírito impele o grupo dos crentes a « constituirem comunidades », a serem Igreja. Depois do primeiro anúncio de Pedro no dia de Pentecostes e as conversões que se seguiram, forma-se a primeira comunidade (cf. At Ac 2,42-47 Ac 4,32-35).

Com efeito, uma das finalidades centrais da missão é reunir o povo de Deus na escuta do Evangelho, na comunhão fraterna, na oração e na Eucaristia. Viver a « comunhão fraterna » (koinonía) significa ter « um só coração e uma só alma » (Ac 4,32), instaurando uma comunhão sob os aspectos humano, espiritual e material. A verdadeira comunidade cristã sente necessidade de distribuir os próprios bens, para que não haja necessitados, e todos possam ter acesso a esses bens, « conforme as necessidades de cada um » (Ac 2,45 Ac 4,35). As primeiras comunidades, onde reinava « a alegria e a simplicidade de coração » (Ac 2,46), eram dinamicamente abertas e missionárias: « gozavam da estima de todo o povo » (Ac 2,47). Antes ainda da acção, a missão é testemunho e irradiação. 34



27 Os Actos dos Apóstolos mostram que a missão primeiro se dirigia a Israel, e depois aos pagãos. Para a actuação dessa missão, aparece antes de tudo o grupo dos Doze que, como um corpo guiado por Pedro, proclama a Boa Nova. Depois temos a comunidade dos crentes que, com o seu modo de viver e agir, dá testemunho do Senhor e converte os pagãos (cf. At Ac 2,46-47). Existem também enviados especiais, destinados a anunciar o Evangelho. Assim a comunidade cristã de Antioquia envia os seus membros em missão: depois de ter jejuado, rezado e celebrado a Eucaristia, ela faz notar que o Espírito escolheu Paulo e Barnabé para serem enviados (cf Ac 13,1-4). Logo, nas suas origens, a missão foi vista como um compromiso comunitário e uma responsabilidade da Igreja local, que necessita de « missionários » para se expandir em direcção a novas fronteiras. Ao lado destes enviados, havia outros que testemunhavam espontaneamente a novidade que tinha transformado as suas vidas e uniam à Igreja apostólica, as comunidades em formação.

A leitura dos Actos mostra-nos que, no início da Igreja, a missão ad gentes, embora contando com missionários integralmente dedicados a ela por vocação especial, todavia era considera da como o fruto normal da vida cristã, graças ao compromisso de cada crente actuado através do testemunho pessoal e do anúncio explícito, sempre que possível.

22 Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 5.
23 Cf. Conc. ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 22.
24 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium LG 4.
25 ibid., LG 5.
26 Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 16: l.c., 15.
27 Discurso de Abertura da III Sessão do Conc. Ecum. Vat. II, 14 de Setembro de 1904: AAS 56 (1964) 810.


O Espírito está presente e operante em todo o tempo e lugar

28 O Espírito manifesta-se particularmente na Igreja e nos seus membros, mas a Sua presença e acção são universais, sem limites de espaço nem de tempo. 35 O Concílio Vaticano II lembra a obra do Espírito no coração de cada homem, cuidando e fazendo germinar as « sementes do Verbo », presentes nas iniciativas religiosas e nos esforços humanos à procura da verdade, do bem, e de Deus. 36

O Espírito oferece ao homem « luz e forças que lhe permitem corresponder à sua altíssima vocação »; graças a Ele, « o homem chega, por meio da fé, a contemplar e saborear o mistério dos planos divinos »; mais ainda, « devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal ». 37 Seja como for, a Igreja sabe que o homem, solicitado incessantemente pelo Espírito de Deus, nunca poderá ser totalmente indiferente ao problema da religião, mantendo sempre o desejo de saber, mesmo se confusamente, qual o significado da sua vida, da sua actividade, e da sua morte. 38 O Espírito está, portanto, na própria origem da questão existencial e religiosa do homem, que surge não só de situações contingentes, mas sobretudo da estrutura própria do seu ser. 39

A presença e acção do Espírito não atingem apenas os indivíduos, mas também a sociedade e a história, os povos, as culturas e as religiões. Com efeito, Ele está na base dos ideais nobres e das iniciativas benfeitoras da humanidade peregrina: « com admirável providência, o Espírito dirige o curso dos tempos e renova a face da terra ». 40

Cristo ressuscitado, « pela virtude do Seu Espírito, actua já nos corações dos homens, não só despertando o desejo da vida futura, mas também alentando, purificando e robustecendo a família humana para tornar mais humana a sua própria vida e submeter a terra inteira a este fim », 41 É ainda o Espírito que infunde as « sementes do Verbo », presentes nos ritos e nas culturas, e as faz maturar em Cristo. 42




29 Assim o Espírito que « sopra onde quer » (Jn 3,8) e que « já estava a operar no mundo, antes da glorificação do Filho », 43 que « enche o universo, abrangendo tudo e de tudo tem conhecimento » (Sg 1,7), induz-nos a estender o olhar, para podermos melhor considerar a Sua acção, presente em todo o tempo e lugar. 44 É uma referência que eu próprio sigo muitas vezes e que me guiou nos encontros com os mais diversos povos. As relações da Igreja com as restantes religiões baseiam-se num duplo aspecto: « respeito pelo homem na sua busca de resposta às questões mais profundas da vida, e respeito pela acção do Espírito nesse mesmo homem ». 45 0 encontro interreligioso de Assis, excluída toda e qualquer interpretação equívoca, reforçou a minha convicção de que « toda a oração autêntica é suscitada pelo Espírito Santo, que está misteriosamente presente no coração dos homem ». 46

Este Espírito é o mesmo que agiu na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, e actua na Igreja. Não é de modo nenhum uma alternativa a Cristo, nem vem preencher uma espécie de vazio, como algumas vezes se sugere existir, entre Cristo e o Logos. Tudo quanto o Espírito opera no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas e religiões, assume um papel de preparação evangélica, 47 e não pode deixar de se referir a Cristo, Verbo feito carne pela acção do Espírito, « a fim de, como Homem perfeito, salvar todos os homens e recapitular em Si todas as coisas ». 48

A acção universal do Espírito, portanto, não poder ser separada da obra peculiar que Ele desenvolve no Corpo de Cristo, que é a Igreja.

Sempre é o Espírito que actua, quer quando dá vida à Igreja impelindo-a a anunciar Cristo, quer quando semeia e desenvolve os seus dons em todos os homens e povos, conduzindo a Igreja à descoberta, promoção e acolhimento desses dons, através do diálogo. Qualquer presença do Espírito deve ser acolhida com estima e gratidão, mas o discerni-la compete à Igreja, à qual Cristo deu o Seu Espírito para a guiar até à verdade total (cf. Jn 16,13).

28 PAULO VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 34: l.c., 28.
29 Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Temi SceIti d'ecclesiologia no XX aniversário do encerramento do Conc. Ecum. Vat. II (7/X/1985), 10: « L'indole escatologica della Chiesa: Regno di Dio e Chiesa ».
30 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 39.
31 Carta Enc. Dominum et Vivificantem ( 18/V/1986), DEV 42: AAS 78 (1986), 857.
32 ibid., DEV 64: l.c., 892.
33 A expressão « sem medo » corresponde ao termo grego parresia, que significa também entusiasmo, vigor; cf. Ac 2,29 Ac 4,13 Ac 4,29 Ac 4,31 Ac 9,27 Ac 9,28 Ac 13,46 Ac 14,3 Ac 18,26 Ac 19,8 Ac 19,26 Ac 28,31.
34 Cf. PAULO VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 41-42: l.c., 31-33.
35 Cf. Carta Enc. Dominum et Vivificantem, DEV 53: l.c., 874 s.
36 Cf. Conc. Ecum. Var. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 3 AGD 11 AGD 15; Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 10-11 GS 22 GS 26 GS 38 GS 41 GS 92-93.
37 CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudaium et spes, GS 10 GS 15 GS 22.
38 ibid., GS 41.
39 Cf. Carta Enc. Dominum et Vivificantem, DEV 54: l.c., 875 s.
40 CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudiúm et spes, GS 26.
41 ibid., GS 38; cf. GS 93.
42 Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 17; Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 3 AGD 15.
43 Conc. Ecum. Var. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 4.
44 Cf. Carta Enc. Dominum et Vivificantem, DEV 53: l.c., 874.
45 Discurso aos Dirigentes das religiões não cristãs, em Madras (Índia), a 5 de Fevereiro de 1986: AAS 78 (1986), 767; cf. Mensagem aos Povos da Asia, em Manila, a 21 de Fevereiro de 1981, 2-4: AAS 73 ( 1981 ), 392 s.; Discurso aos representantes das religíões nâo cristãs, em Tóquio, a 24 de Fevereiro de 1981, 3-4: Insegnamenti IV/1 ( 1981 ), 507 s.
46 Discurso aos Cardeais, à Família Pontifícia e à Cúria e Prelatura Romana, 22 de Dezembro de 1986, 11: AAS 79 (1987), 1089.
47 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 16.
48 Conc. Ecum. Var. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 45; cf. Carta Enc. Dominum et Vivificantem, DEV 54: l.c., 876.


A actividade missionária està ainda no início

30 O nosso tempo, com uma humanidade em movimento e insatisfeita, exige um renovado impulso na actividade missionária da Igreja. Os horizontes e as possibilidades da missão alargam-se, e é-nos pedida, a nós cristãos, a coragem apostólica, apoiada sobre a confiança no Espírito. Ele é o protagonista da missão!

Na história da humanidade, há numerosas viragens que estimulam o dinamismo missionário, e a Igreja, guiada pelo Espírito, sempre respondeu com generosidade e clarividência. Também não faltaram os frutos! Pouco tempo atrás, celebrou-se o milénio da evangelização da Rússia e dos povos eslavos, estando para se celebrar o quincentésimo aniversário da evangelização das Américas; foram entretanto comemorados, de forma solene, os centenários das primeiras missões em vários Países da Ásia, da África e da Oceania. A Igreja deve hoje enfrentar outros desafios, lançando-se para novas fronteiras, quer na primeira missão ad gentes, quer na nova evangelização dos povos que já receberam o anúncio de Cristo: A todos os cristãos, às Igrejas particulares e à Igreja universal, pede-se a mesma coragem que moveu os missionários do passado, a mesma disponibilidade para escutar a voz do Espírito.




CAPÍTULO IV - OS IMENSOS HORIZONTES DA MISSÃO AD GENTES

31 O Senhor Jesus enviou os Seus Apóstolos, a todas as pessoas, a todos os povos e a todos os lugares da terra. Nos Apóstolos, a Igreja recebeu uma missão universal, sem limites, referindo-se à salvação em toda a sua integridade, segundo aquela plenitude de vida que Cristo veio trazer (cf. Jn 10,10): ela foi « enviada para manifestar e comunicar a caridade de Deus a todos os homens e povos ». 49

Esta missão é única, sendo a mesma a sua origem e fim; mas na sua dinamica de realização, há diversas funções e actividades. Antes de tudo, está a acção missionária, denominada « missão ad gentes » pelo Decreto conciliar: trata-se de uma actividade primária e essencial da Igreja, jamais concluída. Com efeito, a Igreja « não pode eximir-se da missão permanente de levar o Evangelho a quantos — e são milhões e milhões de homens e mulheres — ainda não conhecem Cristo Redentor do homem. Esta é a tarefa mais especificamente missionária que Jesus confiou e continua quotidianamente a confiar à Sua Igreja ». 50

49 Conc. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 10.
50 Exort. Ap. pós-sinodal Christifideles laici (30/XII/1988), CL 35: AAS 81 (1989), 457.


Um quadro religioso complexo e em mutação

32 Encontramo-nos hoje diante de uma situação religiosa bastante diversificada e mutável: os povos estão em movimento; certas realidades sociais e religiosas, que, tempos atrás, eram claras e definidas, hoje evoluem em situações complexas. Basta pensar em fenómenos tais como o urbanismo, as migrações em massa, a movimentação de refugiados, a descristianização de países com antiga tradição cristã, a influência crescente do Evangelho e dos seus valores em países de elevada maioria não cristã, o pulular de messianismos e de seitas religiosas. É uma alteração tal de situações religiosas e sociais, que se torna difícil aplicar em concreto certas distinções e categorias eclesiais, a que estávamos habituados. Já antes do Concílio, era comum atribuir, a algumas metrópoles ou regiões cristãs, a classificação de « terra de missão », e passados estes anos não se pode dizer que a situação melhorou.

Por outro lado, a obra missionária produziu abundantes frutos, em todas as partes do mundo, como o demonstram as Igrejas implantadas de uma forma tão sólida e amadurecida, que já é capaz de prover às necessidades das suas comunidades, a ponto de enviarem até pessoas a evangelizar outras Igrejas e territórios. Daí o contraste com áreas de antiga tradição cristã, carecidas de serem re-evangelizadas. Alguns perguntam-se inclusive se ainda é o caso de falar em actividade missionária específica, ou dos seus ambitos específicos ou se não deveríamos antes admitir que existe uma única situação missionária, havendo apenas uma única missão, igual em todo o lugar. A dificuldade é real, e a prova de quão difícil é interpretar esta realidade complexa e mutável em ordem ao mandato de evangelizar está patente no « vocabulário missionário »: por exemplo, há uma certa hesitação em usar os termos « missões » e « missionários », porque as consideram superadas por conterem resquícios históricos negativos; prefere-se usar o substantivo « missão » no singular, e o adjectivo « missionário » para qualificar toda a actividade da Igreja.

Estas dificuldades denotam uma mudança real, que contém aspectos positivos. A integração das « missões » na missão da Igreja, o confluir da missionologia para a eclesiologia, e a inserção de ambas no plano trinitário da salvação, deu um novo ar à própria actividade missionária, não concebida já como uma tarefa à margem da Igreja, mas antes inserida no amago da sua vida, como compromisso fundamental de todo o Povo de Deus. Torna-se necessário, porém, precaver-se contra o risco de nivelar situações muito diferentes, e reduzir ou até fazer desaparecer a missão e os missionários ad gentes. A afirmação de que toda a Igreja é missionária não exclui a existência de uma específica missão ad gentes, assim como dizer que todos os católicos devem ser missionários não impede — pelo contrário, exige-o — que haja missionários ad gentes, dedicados por vocação específica à missão por toda a vida.



Redemptoris missio PT 16