Redemptoris missio PT 33

A missão ad gentes conserva o seu valor

33 As diferenças de actividade, no âmbito da única missão da Igreja, nascem não de motivações intrínsecas à própria missão, mas das diversas circunstancias onde ela se exerce. 51 Olhando o mundo de hoje, do ponto de vista da evangelização, podemos distinguir três situações distintas.

Antes de mais, temos aquela a que se dirige a actividade missionária da Igreja: povos, grupos humanos, contextos socio-culturais onde Cristo e o Seu Evangelho não é conhecido, onde faltam comunidades cristãs suficientemente amadurecidas para poderem encarnar a fé no próprio ambiente e anunciá-la a outros grupos. Esta é propriamente a missão ad gentes. 52

Aparecem depois as comunidades cristãs que possuem sólidas e adequadas estruturas eclesiais, são fermento de fé e de vida, irradiando o testemunho do Evangelho no seu ambiente, e sentindo o compromisso da missão universal. Nelas se desenvolve a actividade ou cuidado pastoral da Igreja.

Finalmente, existe a situação intermédia, especialmente nos países de antiga tradição cristã, mas, por vezes, também nas Igrejas mais jovens, onde grupos inteiros de baptizados perderam o sentido vivo da fé, não se reconhecendo já como membros da Igreja e conduzindo uma vida distante de Cristo e do Seu Evangelho. Neste caso, torna-se necessária uma « nova evangelização », ou « re-evangelização ».




34 A actividade missionária específica, ou missão ad gentes, tem como destinatários « os povos ou grupos que ainda não crêem em Cristo », « aqueles que estão longe de Cristo », entre os quais a Igreja « não está ainda radicada », 53 e cuja cultura ainda não foi influenciada pelo Evangelho. 54 Distingue-se das outras actividades eclesiais por se dirigir a grupos e ambientes não cristãos, caracterizados pela ausência ou insuficiência ao anúncio evang*lico e da presença eclesial. Vem a ser, portanto, a obra do anúncio de Cristo e do seu Evangelho, da edificação da Igreja local, da promoção dos valores do Reino. A peculiariedade da missão ad gentes deriva do facto de se orientar para os « não cristãos ». É preciso evitar, por isso, que esta « tarefa especificamente missionária, que Jesus confiou e continua quotidianamente a confiar à Sua Igreja », 55 se torne numa realidade diluída na missão global de todo o Povo de Deus, ficando desse modo descurada ou esquecida.

De resto, os confins entre o cuidado pastoral dos fieis, a nova evangelização e a actividade missionária específica não são facilmente identificáveis, e não se deve pensar em criar entre esses ambitos barreiras ou compartimentos estanques. Não se pode, no entanto, perder a tensão para o anúncio e para a fundação de novas Igrejas entre povos ou grupos humanos, onde elas ainda não existem, porque esta é a tarefa primária da Igreja, que é enviada a todos os povos, até aos confins da terra. Sem a missão ad gentes, a propria dimensão missionária da Igreja ficaria privada do seu significado fundamental e do seu exemplo de actuação.

Registe-se também uma real e crescente interdependência entre as diversas actividades salvíficas da Igreja: cada uma influi sobre a outra, estimula e ajuda-a. O dinamismo missionário permite uma troca de valores entre as Igrejas, e projecta para o mundo exterior influência positiva em todos os sentidos. As Igrejas de antiga tradição cristã, por exemplo, preocupadas com a dramática tarefa da nova evangelização, estão mais conscientes de que não podem ser missionárias dos não cristãos de outros países e continentes, se não se preocuparem seriamente comos não cristãos da própria casa: a actividade missionária ad intra é sinal de autenticidade e de estímulo para realizar a outra ad extra, e vice-versa.

A todos os povos, apesar das dificuldades




35 A missão ad gentes tem à sua frente uma tarefa imensa, que está muito longe de se ver concluída. Pelo contrário, quer desde o ponto de vista numérico devido ao aumento demográfico, quer do ponto de vista socio-cultural pelo despontar de novas relações e pela variação das situações, aquela missão parece destinada a possuir horizontes ainda mais vastos. A tarefa de anunciar Jesus Cristo a todos os povos apresenta-se enorme e desproporcionada relativamente às forças humanas da Igreja.

As dificuldades parecem insuperáveis e poderiam fazer desanimar, se se tratasse de uma obra puramente humana. Em alguns países, está proibida a entrada de missionários; noutros, é proibida tanto a evangelização, como a conversão e até mesmo o culto cristão. Há outros lugares, onde os obstáculos são de natureza cultural: a transmissão da mensagem evangélica mostra-se irrelevante ou incompreensível, e a conversão é considerada como abandono do próprio povo e cultura.



36 Não faltam também, ao Povo de Deus, as dificuldades internas, que são as mais dolorosas.

Já o meu predecessor Paulo VI indicava, em primeiro lugar, « a falta de fervor, tanto mais grave por nascer de dentro; manifesta-se no cansaço, na desilusão, no acomodamento e no desinteresse, e sobretudo na falta de alegria e de esperança ». 56 Grandes obstáculos à acção missionária da Igreja são também as divisões, passadas e presentes, entre os cristãos, 57 a descristianização em países cristãos, a diminuição das vocações para o apostolado, o contra-testemunho de fiéis e de comunidades cristãs que não reproduzem em suas vidas o modelo de Cristo. Mas uma das razões mais graves para o escasso interesse pelo empenhamento missionário é a mentalidade do indiferentismo, hoje muito difundida, infelizmente também entre os cristãos, frequentemente radicada em concepções teológicas incorrectas, e geradora de um relativismo religioso, que leva a pensar que « tanto vale uma religião como outra ». Podemos, por último, referir ainda — como dizia o mesmo Pontífice — a existência de « álibis que podem afastar da evangelização; os mais insidiosos são certamente aqueles para os quais se presume encontrar apoio neste ou naquele ensinamento do Concílio ». 58

A este respeito, recomendo vivamente aos teólogos e aos profissionais da imprensa cristã que intensifiquem o seu serviço em favor da missão, para encontrarem o sentido profundo do seu importante trabalho, no verdadeiro caminho do sentire cum ecclesia.

As dificuldades internas ou externas não nos devem deixar pessimistas e inactivos. O que deve contar — aqui, como nos demais sectores da vida cristã — é a confiança que provém da fé, ou seja, a certeza de não sermos nós os protagonistas da missão, mas Jesus Cristo e o Seu Espírito. Somos apenas colaboradores e, depois de termos feito tudo o que estava ao nosso alcance, devemos dizer: « somos servos inúteis, só fizemos o que devíamos fazer » (
Lc 17,10).

51 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 6.
52 Cf. ibid., AGD 6.
53 ibid., AGD 6 AGD 23; cf. AGD 27.
54 Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 18-20: l.c., 17-19.
55 Exort. Ap. pós-sinodal Christifideles laici, CL 35: l.c., 457.
56 Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 80: l.c., 73.
57 Cf. Conc. Ecumt. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 6.
58 Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 80: l.c., 73.


Âmbitos da missão ad gentes

37 A missão ad gentes, devido ao mandato universal de Cristo, não tem fronteiras. Apesar disso, é possível identificar vários ambitos, em que ela se concretiza, para ficarmos com um quadro real da situação.

a) Ambitos territoriais. Normalmente a actividade missionária foi definida em relação a territórios concretos. O Concílio Vaticano II reconheceu a dimensão territorial da missão ad gentes, 59 que ainda hoje permanece válida para determinar responsabilidades, competências e limites geográficos de acção. É certo que a uma missão uníversal deve corresponder uma perspectiva universal: a Igreja, com efeito, não pode aceitar que fronteiras geográficas e impedimentos políticos sejam obstáculos à sua presença missionária. Mas é verdade também que a actividade missionária ad gentes, sendo distinta do cui dado pastoral dos fiéis e da nova evangelização dos não praticantes, se exerce em territórios e grupos humanos bem delimitados.

O multiplicar-se das Igrejas jovens, nos últimos tempos, não deve iludir-nos. Nos territórios confiados a estas Igrejas, especialmente na Ásia, mas também na África, América Latina e na Oceania, existem várias zonas não evangelizadas: povos inteiros e áreas culturais de grande importancia, em muitas nações, ainda não foram alcançados pelo anúncio evangélico nem pela presença da Igreja local. 60 Inclusive em países tradicionalmente cristãos, há regiões confiadas ao regime especial da missão ad gentes, com grupos e áreas não evangelizadas. Impõe-se, pois, nestes países, não apenas uma nova evangelização, mas, em certos casos, a primeira evangelização. 61

As situações, porém, não são homogéneas. Mesmo reconhecendo que as afirmações sobre a responsabilidade missionária da Igreja não são dignas de crédito se não forem autenticadas por um sério empenho numa nuova evangelização nos Países de antiga tradição cristã, não parece justo equiparar a situação de um povo que nunca ouviu falar em Jesus Cristo, com a de um outro que o conheceu e aceitou, mas depois o rejeitou, embora continuando a viver numa cultura que absorveu em grande parte os princípios e valores evangélicos. Em relação à fé, são duas posições substancialmente diferentes.

Portanto, o critério geográfico, mesmo se provisório e não muito preciso, serve ainda para indicar as fronteiras para as quais se deve dirigir a actividade missionária. Existem Países e áreas geográficas e culturais onde faltam comunidades cristãs autóctones; noutros lugares, estas são tão pequenas, que não é possível reconhecer nelas um sinal claro da presença cristã; ou então, a estas comunidades, falta o dinamismo para evangelizar a própria sociedade, ou pertencem a populações minoritárias, não inseridas na cultura dominante. Em particular no Continente asiático, para onde deveria orientar-se principalmente a missão ad gentes, os cristãos são uma pequena minoria, apesar de às vezes se verificarem movimentos significativos de conversão e testemunhos exemplares de presença cristã.

b) Mundos e fenómenos sociais novos. As rápidas e profundas tranformações que caracterizam o mundo de hoje, particularmente no Hemisfério Sul, influem decididamente no quadro missionário: onde antes as situações humanas e sociais eram estáveis, hoje tudo está em movimentação. Pensemos, por exemplo, na urbanização e no massiço aumento das cidades, especialmente onde é mais forte a pressão demográfica. Em muitos Países, mais de metade da população vive em algumas megalópoles, onde os problemas do homem frequentemente pioram, entre outras razões, por causa do anonimato em que ficam imersas as multidões.

Nos tempos modernos, a actividade missionária desenvolveu-se sobretudo em regiões isoladas, longe dos centros civilizados e inacessíveis por dificuldades de comunicação, de língua e de clima. Hoje a imagem da missão ad gentes está talvez a mudar: lugares privilegiados deveriam ser as grandes cidades, onde surgem novos costumes e modelos de vida, novas formas de cultura e comunicação que depois influem na população. É verdade que a « escolha dos menos afortunados » deve levar a não descuidar os grupos humanos mais isolados e marginalizados, mas também é verdade que não é possível evangelizar as pessoas ou pequenos grupos, descuidando os centros onde nasce — pode-se dizer — uma nova humanidade, com novos modelos de desenvolvimento. O futuro das jovens Nações está-se a formar nas cidades.

Falando de futuro, não é possível esquecer os jovens que, em numerosos Países, constituem mais de metade da população. Como proceder para que a mensagem de Cristo atinja esses jovens não cristãos, que são o futuro de inteiros Continentes? Evidentemente já não bastam os meios tradicionais da pastoral: são necessárias associações e instituições, grupos e centros específicos, iniciativas culturais e sociais para os jovens. Eis um ambito onde os modernos Movimentos eclesiais têm largo campo de acção.

Entre as grandes transformações do mundo contemporâneo, as migrações produziram um novo fenómeno: os não cristãos chegam em grande número aos Países de antiga tradição cristã, criando novas ocasiões para contactos e intercambios culturais, esperando da Igreja o acolhimento, o diálogo, a ajuda, numa palavra, a fraternidade. De entre os emigrantes, os refugiados ocupam um lugar especial e merecem a máxima atenção. São já muitos milhões no mundo e não cessam de aumentar: fogem da opressão política e da miséria desumana, da fome e da seca que assume dimensões catastróficas. A Igreja deve acolhê-los no âmbito da sua solicitude apostólica.

Por fim, lembramos as situações de pobreza, frequentemente intoleráveis, que se criam em bastantes Países, e estão muitas vezes na origem de migrações em massa. Estas situações desumanas desafiam a comunidade cristã: o anúncio de Cristo e do Reino de Deus deve tornar-se instrumento de redenção humana para estas populações.

c) Áreas culturais, ou modernos areópagos. Paulo, depois de ter pregado em numerosos lugares, chega a Atenas e vai ao areópago, onde anuncia o Evangelho, usando uma linguagem adaptada e compreensível para aquele ambiente (Cf. At
Ac 17,22-31). O areópago representava, então, o centro da cultura do douto povo ateniense, e hoje pode ser tomado como símbolo dos novos ambientes onde o Evangelho deve ser proclamado.

O primeiro areópago dos tempos modernos é o mundo das comunicações, que está a unificar a humanidade, transformando-a — como se costuma dizer — na « aldeia global ». Os meios de comunicação social alcançaram tamanha importancia que são para muitos o principal instrumento de informação e formação, de guia e inspiração dos comportamentos individuais, familiares e sociais. Principalmente as novas gerações crescem num mundo condicionado pelos mass-média. Talvez se tenha descuidado um pouco este areópago: deu-se preferência a outros instrumentos para o anúncio evangélico e para a formação, enquanto os mass-média foram deixados à iniciativa de particulares ou de pequenos grupos, entrando apenas secundariamente na programação pastoral. O uso dos mass-média, no entanto, não tem somente a finalidade de multiplicar o anúncio do Evangelho: trata-se de um facto muito mais profundo porque a própria evangelização da cultura moderna depende, em grande parte, da sua influência. Não é suficiente, portanto, usá-los para difundir a mensagem cristã e o Magistério da Igreja, mas é necessário integrar a mensagem nesta « nova cultura », criada pelas modernas comunicações. É um problema complexo, pois esta cultura nasce, menos dos conteúdos do que do próprio facto de existirem novos modos de comunicar com novas linguagens, novas técnicas, novas atitudes psicológicas O meu predecessor Paulo VI dizia que « a ruptura entre o Evangelho e a cultura é, sem dúvida, o drama da nossa época »; 62 e 0 campo da comunicação moderna confirma plenamente este juizo.

Existem muitos outros areópagos do mundo moderno, para os quais se deve orientar a actividade missionária dos povos. Por exemplo, o empenhamento pela paz, o desenvolvimento e a libertação dos povos, sobretudo o das minorias; a promoção da mulher e da criança; a protecção da natureza, são outros tantos sectores a serem iluminados pela luz do Evangelho.

É preciso lembrar além disso, o vastíssimo areópago da cultura, da pesquisa científica, das relações internacionais que favorecem o diálogo e levam a novos projectos de vida. Convém estar atentos e empenhados nestas exigências modernas. Os homens sentem-se como que a navegar no mesmo mar tempestuoso da vida, chamados a uma unidade e solidariedade cada vez maior: as soluções para os problemas existenciais são estudadas, discutidas e experimentadas com o concurso de todos. Eis porque os organismos e as convenções internacionais se apresentam cada vez mais importantes, em muitos sectores da vida humana, desde a cultura à política, da economia à pesquisa Os cristãos, que vivem e trabalham nesta dimensão internacional, tenham sempre presente o seu dever de testemunhar o Evangelho.


59 Cf. Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 6.
60 Cf. ibid., AGD 20.
61 Cf. Discurso aos membros do Simpósio do Conselbo das Conferências Episcopais da Europa, 11 de Outubro de 1985: AAS 78 (1986), 178-189.
62 Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 20: l.c., 19.



38 A época em que vivemos é, ao mesmo tempo, dramática e fascinante. Se por um lado, parece que os homens vão no encalço da prosperidade material, mergulhando cada vez mais no consumismo materialista, por outro lado, manifesta-se a angustiante procura de sentido, a necessidade de vida interior, o desejo de aprender novas formas e meios de concentração e de oração. Não só nas culturas densas de religiosidade, mas também nas sociedades secularizadas, procura-se a dimensão espiritual da vida como antídoto à desumanização. Este fenómeno, denominado « ressurgimento religioso », não está isento de ambiguidade, mas traz com ele também um convite. A Igreja tem em Cristo, que se proclamou « o Caminho, a Verdade e a Vida » (Jn 14,6), um imenso património espiritual para oferecer à humanidade. É o caminho cristão que leva ao encontro de Deus, à oração, à ascese, à descoberta do sentido da vida. Também este é um areópago a evangelizar.



Fidelidade a Cristo promoção da liberdade do homem

39 Todas as formas de actividade missionária se caracterizam pela consciência de promover a liberdade do homem, anunciando-lhe Jesus Cristo. A Igreja deve ser fiel a Cristo, já que é o Seu Corpo e continua a Sua missão. É necessário que ela « caminhe pela mesma via de Cristo, via de pobreza, obediência, serviço e imolação própria até à morte, da qual Ele saiu vitorioso pela sua ressurreição ». 63 A Igreja, portanto, tem o dever de fazer todo o possível para cumprir a sua missão no mundo e alcançar todos os povos; e tem também o direito, que lhe foi dado por Deus, de levar a termo o seu plano. A liberdade religiosa, por vezes ainda limitada e cerceada, é a premissa e a garantia de todas as liberdades que asseguram o bem comum das pessoas e dos povos. É de se auspiciar que a autêntica liberdade religiosa seja concedida a todos, em qualquer lugar, e para isso a Igreja se empenha a fim de que tal aconteça nos vários Países, especialmente nos de maioria católica, onde ela alcançou uma maior influência. Não se trata porém, de um problema de maioria ou de minoria, mas de um direito inalienável de toda a pessoa humana.

Por outro lado, a Igreja dirige-se ao homem no pleno respeito da sua liberdade: 64 a missão não restringe a liberdade, pelo contrário, favorece-a. A Igreja propõe, não impõe nada: respeita as pessoas e as culturas, detendo-se diante do sacrário da consciência Aos que se opõem com os mais diversos pretextos à actividade missionária, a Igreja repete: Abrí as portas a Cristo!

Dirijo-me a todas as Igrejas particulares, antigas ou de formação recente. O mundo vai-se unificando cada vez mais, o espírito evangélico deve levar à supressão de barreiras culturais, nacionalistas, evitando qualquer isolamento. Já Bento XV admoestava os missionários do seu tempo a que nunca « esquecessem a dignidade pessoal para não pensarem mais na pátria terrena que na do céu », 65 A mesma recomendação vale hoje para as Igrejas particulares: abrí as portas aos missionários, pois « toda a Igreja particular que se separasse voluntariamente da Igreja universal perderia a sua referência ao desígnio de Deus e empobrecer-se-ia na sua dimensão eclesial », 66

63 Conc. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes,
AGD 5; cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 8.
64 Cf. Conc. Ecum. VAT. II, Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, DH 3-4; Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 79-80: l.c., 71-75; João Paulo II, Carta Enc. Redemptor hominis, RH 12: l.c., 278-281.
65 Epist. Ap. Maximum illud: l.c., 446.
66 PauLo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 62: l.c., 52.


Dirigir a atenção para Sul e Oriente

40 A actividade missionária ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja. À medida que se aproxima o fim do segundo Milénio da Redenção, é cada vez mais evidente que os povos que ainda não receberam o primeiro anúncio de Cristo constituem a maioria da humanidade. Certamente o balanço da actividade missionária dos tempos modernos é positivo: a Igreja está estabelecida em todos os continentes, e a maioria dos fiéis e das Igrejas particulares já não está na velha Europa, mas nos Continentes que os missionários abriram à fé.

Permanece, porém, o facto de que « os confins da terra » para onde o Evangelho deve ser levado, alargam-se cada vez mais e a sentença de Tertuliano, segundo a qual o Evangelho foi anunciado por toda a terra e a todos os povos, 67 está ainda longe de se concretizar: a missão ad gentes ainda está no começo. Novos povos aparecem no cenário mundial e também eles têm o direito de receber o anúncio da salvação. O crescimento demográfico no sul e no oriente, em Países não cristãos, faz aumentar continuamente o número das pessoas que ignoram a redenção de Cristo.

É necessário, portanto, dirigir a atenção missionária para aquelas áreas geográficas e para aqueles ambientes culturais que permaneceram à margem do influxo evangélico. Todos os crentes em Cristo devem sentir, como parte integrante da sua fé, a solicitude apostólica de a transmitir aos outros, pela alegria e luz que ela gera. Essa solicitude deve-se transformar, por assim dizer, em fome e sede de dar a conhecer o Senhor, quando estendemos o olhar para os horizontes imensos do mundo não-cristão.

67 Cf. De praescriptione haereticorum, XX: CCL I, 201 s.



CAPÍTULO V - OS CAMINHOS DA MISSÃO

41 « A actividade missionária não é mais nem menos do que a manifestação ou epifania, e a realização do desígnio de Deus no mundo e na história: pela missão, Deus realiza claramente a história de salvação». 68 Que caminhos segue a Igreja para conseguir este resultado?

A missão é uma realidade unitária, mas complexa; e explica-se de vários modos, alguns do quais são de particular importância, na presente situação da Igreja e do mundo.

68 Conc. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes,
AGD 9; cf. cap. II, AGD 10-18.


A primeira forma de evangelização é o testemunho

42 O homem contemporâneo acredita mais nas testemunhas do que nos mestres, 69 mais na experiência do que na doutrina, mais na vida e nos factos do que nas teorias. O testemunho da vida cristã é a primeira e insubstituível forma de missão: Cristo, cuja missão nós continuamos, é a « testemunha » por excelência (Ap 1,5 Ap 3,14) e o modelo do testemunho cristão. O Espírito

Santo acompanha o caminho da Igreja, associando-a ao testemunho que Ele próprio dá de Cristo (cf. Jn 15,26-27).

A primeira forma de testemunho é a própria vida do missionário, da família cristã e da comunidade eclesial, que torna visível um novo modo de se comportar. O missionário que, apesar dos seus limites e defeitos humanos, vive com simplicidade, segundo o modelo de Cristo, é um sinal de Deus e das realidades transcendentes. Mas todos na Igreja, esforçando-se por imitar o divino Mestre, podem e devem dar o mesmo testemunho, 70 que é, em muitos casos, o único modo possível de se ser missionário.

O testemunho evangélico, a que o mundo é mais sensível, é o da atenção às pessoas e o da caridade a favor dos pobres, dos mais pequenos, e dos que sofrem. A gratuidade deste relacionamento e destas acções, em profundo contraste com o egoismo presente no homem, faz nascer questões precisas, que orientam para Deus e para o Evangelho. Também o compromiso com a paz, a justiça, os direitos do homem, a promoção humana, é um testemunho do Evangelho, caso seja um sinal de atenção às pessoas e esteja ordenado ao desenvolvimento integral do homem. 71

69 Cf. PAULO VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 41: l.c., 31 s.
70 Cf. Conc. Ecum. VAT. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, LG 28 LG 35 LG 38; Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, GS 43; Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 11-12.
71 Cf. Paulo VI, Carta Enc. Populorum progressio (26/III/1967), PP 21 PP 42: AAS 59 ( 1967), 267 s., 278.



43 O cristão e as comunidades cristãs vivem profundamente inseridos na vida dos respectivos povos, e são também sinal do Evangelho pela fidelidade à sua pátria, ao seu povo, e à sua cultura nacional, sempre porém na liberdade que Cristo trouxe. O cristianismo está aberto à fraternidade universal, porque todos os homens são filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo.

A Igreja é chamada a dar o seu testemunho por Cristo, assumindo posições corajosas e proféticas, face à corrupção do poder político ou económico; não correndo ela própria atrás da glória e dos bens materiais; usando os seus bens para o serviço dos mais pobres e imitando a simplicidade de vida de Cristo. A Igreja e os missionários devem ainda dar o testemunho da humildade, começando por si próprios, ou seja, desenvolvendo a capacidade de exame de consciência, a nível pessoal e comunitário, a fim de corrigirem nas suas atitudes aquilo que é anti-evangélico e desfigura o rosto de Cristo.



O primeiro anúncio de Cristo Salvador

44 O anúncio tem a prioridade permanente, na missão: a Igreja não pode esquivar-se ao mandato explícito de Cristo, não pode privar os homens da « Boa Nova » de que Deus os ama e salva. « A evangelização conterá sempre — como base, centro e, ao mesmo tempo, vértice do seu dinamismo — uma proclamação clara de que, em Jesus Cristo (...) a salvação é of erecida a cada homem, como dom de graça e de misericórdia do próprio Deus ». 72 Todas as formas de actividade missionária tendem para esta proclamação que revela e introduz no mistério, desde sempre escondido e agora revelado em Cristo (cf. Ef Ep 3,3-9 Col Col 1,25-29), o qual se encontra no amago da missão e da vida da Igreja, como ponto fulcral de toda a evangelização.

Na realidade complexa da missão, o primeiro anúncio tem um papel central e insubstituível, porque introduz « no mistério do amor de Deus, que, em Cristo, nos chama a uma estreita relação pessoal com Ele » 73 e predispõe a vida para a conversão. A fé nasce do anúncio, e cada comunidade edesial consolida-se e vive da resposta pessoal de cada fiel a esse anúncio. 74 Como a economia salvífica está centrada em Cristo, assim a actividade missionária tende para a proclamação do Seu mistério.

O anúncio tem por objecto Cristo crucificado, morto e ressuscitado: por meio d'Ele se realiza a plena e autêntica libertação do mal, do pecado e da morte; n'Ele Deus dá a « vida nova », divina e eterna. É esta a « Boa Nova », que muda o homem e a história da humanidade, e que todos os povos têm o direito de conhecer. Um tal anúncio tem de se inserir no contexto vital do homem e dos povos que o recebem. Além disso ele deve ser feito numa atitude de amor e de estima a quem o escuta, com uma linguagem concreta e adaptada às circunstancias. Para isso concorre o Espírito, que instaura uma união entre o missionário e os ouvintes, tornada possível enquanto um e os outros, por Cristo, entram em comunhão com o Pai. 75



45 Sendo feito em união com toda a comunidade eclesial, o anúncio nunca é um facto pessoal. O missionário está presente e actuante em virtude de um mandato recebido, pelo que, mesmo se estiver sozinho, sempre viverá coligado, através de laços invisíveis mas profundos, à actividade evangelizadora de toda a Igreja. 76 Os ouvintes, mais cedo ou mais tarde, entrevêem, por detrás dele, a comunidade que o enviou e o apoia.

O anúncio é animado pela fé, que gera entusiasmo e ardor no missionário. Como ficou dito, os Actos dos Apóstolos definem uma tal atitude com a palavra parresía, que significa falar com coragem e desembaraço; o mesmo termo aparece em S. Paulo: « No nosso Deus, encontramos coragem para vos anunciar o Evangelho, no meio de muitos obstáculos » (
1Th 2,2). « Rezai também por mim, para que, quando abrir a boca, me seja dado anunciar corajosamente o Mistério do Evangelho, do qual, mesmo com as algemas, sou embaixador, e para que tenha a audácia de falar dele como convém » (Ep 6,19-20) .

Ao anunciar Cristo aos não cristãos, o missionário está convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela acção do Espírito, uma ansia — mesmo se inconsciente — de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à libertação do pecado e da morte. O entusiasmo posto no anúncio de Cristo deriva da convicção de responder a tal ansia, pelo que o missionário não perde a coragem nem desiste do seu testemunho, mesmo quando é chamado a manifestar a sua fé num ambiente hostil ou indiferente. Ele sabe que o Espírito do Pai fala nele (cf. Mt 10,17-20 Lc 12,11-12), podendo repetir com os apóstolos: « nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo » (Ac 5,32). Está ciente de que não anuncia uma verdade humana, mas « a Palavra de Deus », dotada de intrínseca e misteriosa força (cf. Rm 1,16).

A prova suprema é o dom da vida, até ao ponto de aceitar a morte para testemunhar a fé em Jesus Cristo. Como sempre, na história cristã, os « mártires », isto é, as testemunhas, são numerosas e indispensáveis no caminho do Evangelho. Também na nossa época, há tantos: bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas, leigos, tantas vezes, heróis desconhecidos que deram a vida para testemunhar a fé. São esses, os anunciadores e as testemunhas por excelência.

72 Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 27: l.c., 23.
73 Conc. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 13.
74 Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 15: l.c., 13-15; Coce. Ecum. Vat. II, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, AGD 13-14.
75 Cf. Carta Enc. Dominum et Vivificantem, DEV 42 DEV 64: l.c., 857-859, 892-894.
76 Cf. Paulo VI, Exort. Ap. Evangelii nuntiandi, EN 60: l.c., 50 s.


Conversão e baptismo

46 O anúncio da Palavra de Deus visa a conversão cristã, isto é, a adesão plena e sincera a Cristo e ao seu Evangelho, mediante a fé. A conversão é dom de Deus, obra da Trindade: é o Espírito que abre as portas dos corações, para que os homens possam acreditar no Senhor e « confessá-l'O » (1Co 12,3). Jesus, referindo-se a quem se aproxima d'Ele pela fé, diz: « ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que me enviou, o não atrair » (Jn 6,44).

Desde o início, a conversão exprime-se com uma fé total e radical: não põe limites nem impedimentos ao dom de Deus. Ao mesmo tempo, porém, determina um processo dinâmico e permanente que se prolonga por toda a existência, exigindo uma passagem contínua da « vida segundo a carne » à « vida segundo o Espírito » (cf. Rm 8,3-13). Esta significa aceitar, por decisão pessoal, a soberania salvífica de Cristo, tornando-se Seu discípulo.

A Igreja chama a todos, a esta conversão, a exemplo de João Baptista que preparava o caminho para Cristo, « pregando um baptismo de conversão, em ordem ao perdão dos pecados » (Mc 1,4), e a exemplo do próprio Cristo que, « depois de João ter sido preso, veio para a Galileia pregar a Boa Nova de Deus, dizendo: 'Completou-se o tempo, o Reino de Deus está próximo:arrependei-vos, e acreditai no Evangelho' » (Mc 1,14-15).

Hoje o apelo à conversão, que os missionários dirigem aos não cristãos, é posto em discussão ou facilmente deixado no silêncio. Vê-se nele um acto de « proselitismo »; diz-se que basta ajudar os homens a tornarem-se mais homens ou mais fiéis à própria religião, que basta construir comunidades capazes de trabalharem pela justiça, pela liberdade, pela paz, e pela solidariedade. Esquece-se, porém, que toda a pessoa tem o direito de ouvir a « Boa Nova » de Deus que se revela e se dá em Cristo, para realizar em plenitude a sua própria vocação. A grandeza deste evento ressoa nas palavras de Jesus à samaritana: « Se tu conhecesses o dom de Deus », e no desejo inconsciente, mas intenso da mulher: « Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sêde » (Jn 4,10 Jn 4,15).


Redemptoris missio PT 33