Reconciliatio et paenitentia PT 9

A Igreja reconciliada

9 O meu venerável Predecessor Paulo VI teve o mérito de esclarecer que, para ser evangelizadora, a Igreja deve começar por se mostrar ela própria evangelizada, isto é, aberta ao anúncio pleno e integral da Boa Nova de Jesus Cristo, para a escutar e pôr em prática. (37) Também eu, coligindo num documento orgânico as reflexões da IV Assembleia Geral do Sínodo, falei de uma Igreja que se catequiza na medida em que faz catequese. (38)

Não hesito agora em retomar, aqui neste ponto, o paralelismo, porquanto ele se aplica ao tema que estou a tratar, para afirmar que a Igreja, para ser reconciliadora, deve começar por ser uma Igreja reconciliada. Nesta expressão simples e linear está subjacente a convicção de que a Igreja, para anunciar e propôr de modo cada vez mais eficaz ao mundo a reconciliação, deve tornar-se cada vez mais uma comunidade (ainda que fosse o «pequeno rebanho» dos primeiros tempos) de discípulos de Cristo, unidos no empenho em se converterem continuamente ao Senhor e em viverem como homens novos no espírito e na prática da reconciliação.

Perante os nossos contemporâneos, tão sensíveis à prova dos testemunhos concretos de vida, a Igreja é chamada a dar o exemplo da reconciliação, antes de mais no seu interior; e para isto, todos devemos esforçar-nos por apaziguar os ânimos, moderar as tensões, superar as divisões, sanar as feridas eventualmente infligidas entre irmãos, quando se agudiza o contraste entre opções no campo do opinável, e procurar de preferência estar unidos naquilo que é essencial para a fé e a vida cristã, segundo a antiga máxima: In dubiis libertas, in necessariis unitas, in omnibus caritas (liberdade naquilo que é duvidoso, unidade no que é necessário e caridade em todas as coisas).

É segundo este mesmo critério, que a Igreja deve actuar também no que se refere à sua dimensão ecuménica. De facto, para ser inteiramente reconciliada, a Igreja sabe que deve prosseguir na busca da unidade entre aqueles que se prezam de chamar-se cristãos, mas se encontram separados entre si, mesmo como Igrejas ou Comunhões, e da Igreja de Roma. Esta procura uma unidade que, para ser fruto e expressão de verdadeira reconciliação, não quer seja fundamentada nem na dissimulação dos aspectos que dividem, nem em compromissos tão fáceis quanto superficiais e frágeis. A unidade deve ser o resultado de uma verdadeira conversão de todos, do perdão recíproco, do diálogo teológico e das relações fraternais, da oração e da plena docilidade à acção do Espírito Santo, que é tambémEspírito de reconciliação.

Por fim, a Igreja, para poder dizer-se plenamente reconciliada, sente o dever de se aplicar cada vez mais em levar o Evangelho a todos os povos, promovendo o «diálogo da salvação» (39)com aqueles vastos sectores da humanidade que, no mundo contemporâneo, não compartilham a sua fé e que, devido a um crescente secularismo, até mesmo se mantêm distantes dela e lhe opõem uma indiferença fria, quando não a hostilizam e perseguem. A Igreja sente o dever de repetir a todos com São Paulo: «Reconciliai-vos com Deus». (40)

Em qualquer caso, a Igreja promove uma reconciliação na verdade, pois sabe bem que não são possíveis nem a reconciliação nem a unidade, fora ou contra a verdade.

(37) Cf. Exort. Apostólica Evangelii Nuntiandi, n.
EN 13: AAS 67 (1976), p. 12 s.
(38) Cf. João Paulo II, Exort. Apostólica Catechesi Tradendae, n. CTR 24: AAS 71 (1979), p. 1297.
(39)Cf. Paulo VI, Encíclica Ecclesiam Suam: AAS 56 (1964), 609-659.
(40) 2Co 5,20.



CAPÍTULO TERCEIRO: A INICIATIVA DE DEUS E O MINISTÉRIO DA IGREJA

10 Comunidade reconciliada e reconciliadora, a Igreja não pode esquecer que na origem do seu dom e da sua missão de reconciliação se encontra a iniciativa, cheia de amor compassivo e de misericórdia, daquele Deus que é amor (41) e que por amor criou os homens: (42) criou-os, com o fim de viverem em amizade com Ele e em comunhão entre si.

(41) Cf.
1Jn 4,8.
(42) Cf. Sg 11,24-26 Gn 1,27 Ps 8,4-8.


A reconciliação vem de Deus

Deus é fiel ao seu desígnio eterno mesmo quando o homem, induzido pelo Maligno (43) e arrastado pelo seu orgulho, abusa da liberdade que lhe foi dada para amar e procurar generosamente o bem, recusando a obediência ao seu Senhor e Pai; mesmo quando o homem, em vez de responder com amor ao amor de Deus, se opõe a Ele como a um seu rival, iludindo-se e presumindo das suas forças, com a consequente ruptura das relações com Aquele que o criou. Não obstante esta prevaricação do homem, Deus permanece fiel no amor. A narração do jardim do éden leva-nos, certamente, a meditar sobre as consequências funestas da rejeição do Pai, que se traduz na desordem interna do homem e na ruptura da harmonia entre o homem e a mulher e entre irmão e irmão. (44) Também é significativa a parábola evangélica dos dois filhos que se afastam do pai, de maneira diversa, cavando um abismo entre si. A recusa do amor de Deus e dos seus dons de amor está sempre na raiz das divisões da humanidade.

Mas nós sabemos que Deus, «rico em misericórdia» (45) tal como o pai da parábola, não fecha o coração a nenhum dos seus filhos. Espera-os, procura-os, vai alcançá-los precisamente no ponto em que a recusa da comunhão os aprisiona no isolamento e na divisão e chama-os a reunirem-se à volta da sua mesa, na alegria da festa do perdão e da reconciliação.

Esta iniciativa de Deus concretiza-se e manifesta-se no acto redentor de Cristo, que se irradia no mundo mediante o ministério da Igreja.

De acordo com a nossa fé, de facto, o Verbo de Deus fez-se carne e veio habitar a terra dos homens, entrou na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a em si. (46) Ele revelou-nos que Deus é amor e deu-nos o «mandamento novo» (47) do amor, comunicando-nos, ao mesmo tempo, a certeza de que o caminho do amor está aberto a todos os homens, de tal modo que não é vão o esforço para instaurar a fraternidade universal. (48) Vencendo, com a sua morte na Cruz, o mal e a força do pecado, pela sua obediência cheia de amor trouxe a salvação a todos e tornou-se para todos «reconciliação». N'Ele, Deus reconciliou o homem consigo.

A Igreja, continuando o anúncio de reconciliação que Cristo apregoou nas aldeias da Galileia e de toda a Palestina, (49) não cessa de convidar a humanidade inteira a converter-se e a acreditar na Boa Nova; ela fala em nome de Cristo, fazendo seu o apelo do Apóstolo Paulo, que já recordámos: «Nós somos ... embaixadores ao serviço de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Suplicamo-vos, pois, em nome de Cristo: Reconciliai-vos com Deus». (50)

Quem aceita este apelo entra na economia da reconciliação e faz a experiência da verdade contida naquele outro anúncio de São Paulo, segundo o qual Cristo «é a nossa paz, ele que fez de dois povos um só, destruindo o muro de separação, isto é, de inimizade que constituía a barreira (...) estabelecendo a paz para reconciliar uns e outros com Deus». (51) Embora este texto diga directamente respeito à superação da divisão religiosa entre Israel, como povo eleito do Antigo Testamento, e os outros povos, todos chamados a fazer parte da Nova Aliança, ele contém, todavia, a afirmação da nova universalidade espiritual, querida por Deus e por Ele realizada, mediante o sacrifício do seu Filho, o Verbo feito homem, sem limites nem exclusões de qualquer género, para todos aqueles que se convertem e acreditam em Cristo. Todos, portanto, somos chamados a usufruir dos frutos desta reconciliação querida por Deus: todos e cada um dos homens, todos e cada um dos povos.

(43) Cf. Sg 2,24.
(44) Cf. Gn 3,12 S., Gn 4,1-16.
(45) Ep 2,4
(46) Cf. Ep 1,10.
(47) Jn 13,34.
(48) Cf. Conc. Ecum. Vati. II, Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, GS 38.
(49) Cf. Mc 1,15.
(50) 2Co 5,20
(51) Ep 2,14-16.


A Igreja, grande sacramento de reconciliação

11 A Igreja tem a missão de anunciar esta reconciliação e de ser o seu sacramento no mundo. A Igreja é sacramento, isto é, sinal e instrumento de reconciliação, por diversos títulos, de valor diferente, mas todos convergentes para a obtenção daquilo que a iniciativa divina de misericórdia quer conceder aos homens.

É-o, acima de tudo, pela sua própria existência de comunidade reconciliada, que testemunha e representa no mundo a obra de Cristo.

É-o, depois, pelo seu serviço de guardiã e intérprete da Sagrada Escritura, que é Boa Nova de reconciliação, na medida em que faz conhecer de geração em geração o desígnio de amor de Deus e indica a cada um as vias da reconciliação universal em Cristo.

É-o, por fim, pelos sete Sacramentos que, de um modo peculiar a cada um deles, «perfazem a Igreja». (52) Efectivamente, uma vez que comemoram e renovam o mistério da Páscoa de Cristo, todos os Sacramentos são fonte de vida para a Igreja e, nas mãos dela, instrumento de conversão a Deus e de reconciliação dos homens.

(52) Cf. S. Agostinho, De Civitate Dei, XXII, 17: CCL 48, 835 s.; S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, pars
III 64,2 ad tertium.


Outros caminhos de reconciliação

12 A missão reconciliadora é própria de toda a Igreja, mesmo e sobretudo daquela já foi admitida à plena participação da glória divina, com a Virgem Maria e com os Anjos e os Santos, os quais contemplam e adoram o Deus três vezes santo. Igreja do Céu, Igreja da Terra e Igreja do Purgatório estão misteriosamente unidas nesta cooperação com Cristo para reconciliar o mundo com Deus.

A primeira via desta acção salvadora é a oração. Sem dúvida a Virgem Santíssima, Mãe de Cristo e da Igreja, (53) e os Santos, que já chegaram ao termo da caminhada terrena e à posse da glória de Deus, sustentam, com a sua intercessão, os seus irmãos peregrinos no mundo, no empenho de conversão, de fé, de recuperação após cada queda, de actividade para fazer crescer a comunhão e a paz na Igreja e no mundo. É no mistério da Comunhão dos Santos, que a reconciliação universal é actuada na sua forma mais profunda e mais frutuosa para a salvação de todos.

Há, depois, uma outra via: a da pregação. Discípula do único Mestre Jesus Cristo, a Igreja, por sua vez como Mãe e Mestra, não se cansa de propor aos homens a reconciliação e não hesita em denunciar a maldade do pecado, em proclamar a necessidade da conversão, em convidar e em pedir aos homens que «se deixem reconciliar». Na realidade, é essa a sua missão profética no mundo de hoje, como no de ontem: é a mesma missão do seu Mestre e Cabeça, Jesus. Como ele, a Igreja há-de realizar sempre tal missão com sentimentos de amor misericordioso e levar a todos as palavras do perdão e o convite à esperança, que vêm da Cruz.

Há ainda a via, tantas vezes difícil e árdua, da acção pastoral para trazer cada um dos homens — sejam eles quem forem e onde quer que se encontrem — ao caminho, por vezes longo, do retorno ao Pai na comunhão com todos os irmãos.

Há, por fim, a via do testemunho, quase sempre silencioso, que nasce duma dupla consciência da Igreja: a de ser em si «indefectivelmente santa», (54) mas ao mesmo tempo necessitada de continuar «a purificar-se, dia a dia, até que Cristo a faça comparecer na sua presença, gloriosa, sem mancha nem ruga», dado que, por causa dos nossos pecados, por vezes «o seu rosto resplandece menos» aos olhos de quem a vê. (55) Este testemunho não pode deixar de assumir duas manifestações fundamentais: ser sinal daquela caridade universal que Jesus Cristo deixou como herança aos seus seguidores, como prova da pertença ao seu Reino; e traduzir-se em factos sempre novos de conversão e de reconciliação no interior e no exterior da Igreja, com a superação das tensões, com o perdão recíproco e com o crescimento no espírito de fraternidade e de paz, que tem de ser propagado no mundo inteiro. Percorrendo esta via a Igreja poderá actuar validamente para fazer com que nasça aquilo a que o meu Predecessor Paulo VI chamava «a civilização do amor».

(53) Cf. Paulo VI, Alocução no encerramento da Terceira Sessão do Concílio Ecumenico Vaticano II (21 de Novembro de 1964): AAS 56 (1964), 1015-1018.
(54) Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium,
LG 39.
(55) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, UR 4.



SEGUNDA PARTE

O AMOR MAIOR DO QUE O PECADO


O drama do homem

13 Como escreve o Apóstolo São João «se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós próprios e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele que é fiel e justo perdoar-nos-á os pecados». (56) Estas palavras inspiradas, escritas nos alvores da Igreja, introduzem melhor do que qualquer outra expressão humana a reflexão sobre o pecado, que está intimamente relacionada com o discurso sobre a reconciliação. Elas apreendem o problema do pecado no seu horizonte antropológico, enquanto parte integrante da verdade acerca do homem, mas inserem-no imediatamente no horizonte divino, no qual o pecado é confrontado com a verdade do amor de Deus, justo, generoso e fiel, que se manifesta sobretudo pelo perdão e pela redenção. Por isso, o próprio São João escreve pouco depois que «se (o nosso coração) de alguma coisa nos acusa, Deus é maior do que o nosso coração». (57)

Reconhecer o próprío pecado, ou melhor — indo mais ao fundo na consideração da própria personalidade — reconhecer-se pecador, capaz de pecar e de ser induzido ao pecado, é o princípio indispensável do retorno a Deus. É a experiência exemplar de David, que depois de «ter feito o mal aos olhos do Senhor», repreendido pelo profeta Natan, (58) exclama: «Reconheço a minha culpa, o meu pecado está sempre diante de mim. Pequei contra Vós, só contra Vós; pratiquei aquilo que é mal aos vossos olhos». (59) De resto, Jesus põe na boca e no coração do filho pródigo aquelas palavras significativas: «Pai, pequei contra o Céu e contra ti». (60)

Na realidade, reconciliar-se com Deus supõe e inclui o apartar-se com lucidez e determinação do pecado, no qual se caiu. Supõe e inclui, portanto, o fazer penitência no sentido mais pleno do termo: arrepender-se, manifestar o arrependimento, assumir a atitude concreta do arrependido, que é a de quem se coloca no caminho do regresso ao Pai. Isto é uma lei geral, que cada um deve seguir na situação particular em que se encontra. A exposição sobre o pecado e a conversão, de facto, não pode ser desenvolvida somente em termos abstractos.

Na condição concreta do homem pecador, em que não pode haver conversão sem reconhecimento do próprio pecado, o ministério de reconciliação da Igreja intervém, em qualquer hipótese, com uma finalidade claramente penitencial, isto é, para levar o homem ao «conhecimento de si», segundo a expressão de Santa Catarina de Sena, (61) ao desapego do mal, ao restabelecimento da amizade com Deus, à reordenação interior e à nova conversão eclesial. Acrescente-se que, para além do âmbito da Igreja e dos fiéis, a mensagem e o ministério da penitência são dirigidos a todos os homens, uma vez que todos têm necessidade de conversão e de reconciliação. (62)

Para exercitar adequadamente tal ministério penitencial, será também necessário avaliar, com os «olhos iluminados» (63) pela fé, as consequências do pecado, que são motivo de divisão e de ruptura, não só no interior de cada homem, mas também nos vários círculos em que ele vive: familiar, ambiencial, profissional e social, como tantas vezes se pode verificar pela experiência, em confirmação da página bíblica referente à cidade de Babel e à sua torre. (64) Tendo a intenção de construir aquilo que devia ser, a um tempo, símbolo e foco de unidade, aqueles homens encontraram-se mais dispersos do que antes, confundidos na linguagem, divididos entre si e incapazes de consenso e de convergência.

Porque falhou o ambicioso projecto? Porque «se afadigaram em vão os construtores»? (65) Porque os homens tinham colocado como sinal e garantia da desejada unidade unicamente uma obra das suas mãos, esquecidos da acção do Senhor. Calcularam apenas com a dimensão horizontal do trabalho e da vida social, descurando a dimensão vertical, pela qual se teriam encontrado radicados em Deus, seu Criador e Senhor, e voltados na direcção dele como fim último do seu caminho.

Ora, pode dizer-se que o drama do homem de hoje, como o do homem de todos os tempos, consiste precisamente no seu carácter babélico.

(56)
1Jn 1,8 s.
(57) 1Jn 3,20; cf. a referência por mim feita a este texto, no discurso na Audiência Geral de 14 de Março de 1984;Insegnamenti VII, 1 (1984), p. 683.
(58) Cf. 2S 11-12.
(59) Ps 51,5s [50], 5 s.
(60) Lc 15,18-21.
(61) Lettere, Firenze, 1970, I, pp. 3 s.; Il Dialogo della Divina Provvidenza, Roma, 1980, passim.
(62) Cf. Rm 3,23-26.
(63) Cf. Ep 1,18.
(64) Cf. Gn 11,1-9.
(65) Cf. Ps 127,1 (126), 1.


CAPÍTULO PRIMEIRO: O MISTÉRIO DO PECADO

14 Se lermos a página bíblica da cidade e da torre de Babel à luz da novidade evangélica e a confrontarmos com a outra página da queda dos primeiros pais, podemos tirar daí elementos preciosos para uma tomada de consciência do mistério do pecado. Esta expressão, na qual se repercute o que São Paulo escreve acerca do mistério da iniquidade (66) tem em vista fazer-nos perceber o que se esconde de obscuro e de inexplicável no pecado. Este, sem dúvida, é obra da liberdade do homem; mas por dentro da realidade desta experiência humana agem factores, pelos quais ela se situa para além do humano, na zona limite onde a consciência, a vontade e a sensibilidade do homem estão em contacto com forças obscuras que, segundo São Paulo, agem no mundo até ao ponto de quase o senhorearem. (67)

(66) Cf.
2Th 2,7.
(67) Cf. Rm 7,7-25 Ep 2,2 Ep 6,12.


A desobediência a Deus

Da narração bíblica relativa à construção da torre de Babel emerge um primeiro elemento, que nos ajuda a compreender o pecado: os homens pretenderam edificar uma cidade, reunir-se numa estrutura social, ser fortes e poderosos sem Deus, se bem que, talvez, não contra Deus. (68) Neste sentido, a narração do primeiro pecado no éden e a narração de Babel, não obstante as diferenças notáveis, de conteúdo e de forma, têm um ponto de convergência: em ambas nos encontramos diante de uma exclusão de Deus, pela oposição frontal a um mandamento seu, por uma atitude de rivalidade em relação a Ele, pela ilusória pretensão de ser «como Ele». (69) Na narração de Babel a exclusão de Deus não aparece tanto num tom de contraste com Deus, mas como esquecimento e indiferença em relação a ele, como se e o mesmo Deus não merecesse nenhum interesse no âmbito dos desígnios empreendedores e associativos do homem. Mas em ambos os casos a relação com Deusé cortada com violência. No caso do éden aparece com toda a sua gravidade e dramaticidade aquilo que constitui a essência mais íntima e mais obscura do pecado: a desobediência a Deus, à sua lei, à norma moral que ele deu ao homem, gravando-lha no coração e confirmando-a e aperfeiçoando-a com a revelação.

Exclusão de Deus, ruptura com Deus, desobediência a Deus: é isto o que tem sido, ao longo de toda a história humana, e continua a ser, sob formas diversas, o pecado, que pode chegar até ànegação de Deus e da sua existência: é o fenómeno chamado ateísmo.

Desobediência do homem, que — com um acto da sua liberdade — não reconhece o senhorio de Deus sobre a sua vida, pelo menos naquele momento determinado em que viola a sua lei.

(68) É significativa a terminologia usada na tradução grega dos LXX e no Novo Testamento acerca do pecado. A designação mais comum é a de hamartía, a que há que juntar outras palavras da mesma raiz. Esta exprime o conceito de faltar mais ou menos gravemente, quer contra uma norma ou uma lei, quer contra uma pessoa ou mesmo até contra uma divindade. Mas o pecado é também designado adikía, cujo significado é o de praticar a injustica. Falar-se-á também de parábasis ou transgressão; de asébeia, impiedade, e outros conceitos; todos em conjunto dão-nos a imagem do pecado.
(69) Gn 3,5: «Tornar-vos-eis como Deus, conhecendo o bem e o mal»; cf. também o v. Gn 3,22.


A divisão entre os irmãos

15 Nas narrações bíblicas acima recordadas a ruptura com Deus desemboca dramaticamente na divisão entre os irmãos.

Na descrição do «primeiro pecado», a ruptura com Javé espedaçou, ao mesmo tempo, o fio da amizade que unia a família humana; tanto assim que as páginas do Génesis que se seguem nos mostram o homem e a mulher, como que a apontarem com o dedo acusador um contra o outro; (70)depois o irmão que, hostil ao irmão, acaba por tirar-lhe a vida. (71)

Segundo a narração dos factos de Babel, a consequência do pecado é a desagregação da família humana, que já começara com o primeiro pecado e agora chega ao extremo na sua forma social.

Quem quiser indagar sobre o mistério do pecado não pode deixar de considerar esta concatenação de causa e efeito. Como ruptura com Deus, o pecado é o acto de desobediência de uma criatura que, pelo menos implicitamente, enjeita Aquele do qual proveio e que a mantém em vida; é, portanto, um acto suicida.

E dado que com o pecado o homem se recusa a submeter-se a Deus, também se transtorna o seu equilíbrio interior; e, precisamente no seu íntimo, irrompem contradições e conflitos. Assim dilacerado, o homem produz, quase inevitavelmente, uma laceração no tecido das suas relações com os outros homens e com o mundo criado. É uma lei e um facto objectivo, que têm confirmação em muitos momentos da psicologia humana e da vida espiritual, como aliás na realidade da vida social, onde é fácil observar as repercussões e os sinais da desordem interior.

O mistério do pecado é formado por esta dupla ferida, que o pecador abre no seu próprio seio e na relação com o próximo. Por isso, pode falar-se de pecado pessoal e social: todo o pecado sob um aspecto é pessoal, e todo o pecado sob um outro aspecto é social, enquanto e porque tem também consequências sociais.

(70) Cf.
Gn 3,12.
(71) Cf. Gn 4,2-16.


Pecado pessoal e pecado social

16 O pecado, no sentido próprio e verdadeiro, é sempre um acto da pessoa, porque é um acto de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade. Este homem pode ser condicionado, pressionado, impelido por numerosos e ponderosos factores externos, como também pode estar sujeito a tendências, taras e hábitos relacionados com a sua condição pessoal. Em não poucos casos, tais factores externos e internos podem atenuar, em maior ou menor grau, a sua liberdade e, consequentemente, a sua responsabilidade e culpabilidade. No entanto, é uma verdade de fé, também confirmada pela nossa experiência e pela nossa razão, que a pessoa humana é livre. E não se pode ignorar esta verdade, para descarregar em realidades externas — as estruturas, os sistemas, os outros - o pecado de cada um. Além do mais, isso seria obliterar a dignidade e a liberdade de pessoa, que se revelam — se bem que negativa e desastrosamente — também nessa responsabilidade do pecado cometido. Por isso, em todos e em cada um dos homens, não há nada tão pessoal e intransferível como o mérito da virtude ou a responsabilidade da culpa.

Como acto da pessoa, o pecado tem as suas primeiras e mais importantes consequências no próprio pecador; ou seja, na relação dele com Deus, que é o próprio fundamento da vida humana; e também no seu espírito, enfraquecendo-lhe a vontade e obscurecendo-lhe a inteligência.

Chegados a este ponto, devemos perguntar-nos: a que realidade se referiam os que, na preparação do Sínodo e no decorrer dos trabalhos sinodais, mencionaram não poucas vezes o pecado social?A realidade que está subjacente a tal expressão e conceito faz com estes tenham, na verdade, diversos significados.

Falar de pecado social quer dizer, primeiro que tudo, reconhecer que, em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um se repercute, de algum modo, sobre os outros. Está nisto uma outra faceta daquela solidariedade que, a nível religioso, se desenvolve no profundo e magnífico mistério da Comunhão dos Santos, graças à qual se pode dizer que «cada alma que se eleva, eleva o mundo». (72) A esta lei da elevaçãocorresponde, infelizmente, a lei da descida, de tal modo que se pode falar de uma comunhão no pecado, em razão da qual uma alma que se rebaixa pelo pecado arrasta consigo a Igreja, e, de certa maneira, o mundo inteiro. Por outras palavras não há nenhum pecado, mesmo o mais íntimo e secreto, o mais estritamente individual, que diga respeito exclusivamente àquele que o comete. Todo o pecado se repercute, com maior ou menor veemência, com maior ou menor dano, em toda a estrutura eclesial e em toda a família humana. Segundo esta primeira acepção, a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o carácter de pecado social.

Há certos pecados, no entanto, que constituem, pelo seu próprio objecto, uma agressão directa ao próximo e — mais exactamente, com base na linguagem evangélica — ao irmão. Estes são uma ofensa a Deus, porque ofendem o próximo. A tais pecados costuma dar-se a qualificação de sociais; e é esta a segunda acepção do termo. Neste sentido, é social o pecado contra o amor do próximo, que é tanto mais grave na Lei de Cristo, porquanto está em jogo o segundo mandamento, que é «semelhante ao primeiro». (73) é igualmente social todo o pecado cometido contra a justiça, quer nas relações de pessoa a pessoa, quer nas da pessoa com a comunidade, quer, ainda, nas da comunidade com a pessoa. É social todo o pecado contra os direitos da pessoa humana, a começar pelo direito à vida, incluindo a do nascituro, ou contra a integridade física de alguém; todo o pecado contra a liberdade de outrem, especialmente contra a suprema liberdade de crer em Deus e de o adorar; todo o pecado contra a dignidade e a honra do próximo. É social todo o pecado contra o bem comum e contra as suas exigências, em toda a ampla esfera dos direitos e dos deveres dos cidadãos. Pode ser social tanto o pecado de comissão como o de omissão: da parte dos dirigentes políticos, económicos e sindicais, por exemplo, que, embora podendo, não se empenhem com sabedoria no melhoramento ou na transformação da sociedade, segundo as exigências e as possibilidades do momento histórico; como também da parte dos trabalhadores, que faltem aos seus deveres de presença e de colaboração, para que as empresas possam continuar a proporcionar o bem-estar a eles próprios, as suas famílias e à inteira sociedade.

A terceira acepção de pecado social diz respeito as relações entre as várias comunidades humanas. Estas relações nem sempre estão em sintonia com a desígnio de Deus, que quer no mundo justiça, liberdade e paz entre os indivíduos, os grupos, os povos. Assim, a luta de classes, seja quem for o seu responsável ou, por vezes, o sistematizador, é um mal social. Assim, a contraposição obstinada dos blocos de Nações e duma Nação contra a outra e de grupos contra outros grupos no seio da mesma Nação, é igualmente um mal social. Em ambos os casos, pode fazer-se a pergunta, se é possível atribuir a alguém a responsabilidade moral de tais males e, por conseguinte, o pecado. Ora, deve admitir-se que realidades e situações como as que acabam de ser indicadas, ao generalizarem-se e até mesmo ao agigantarem-se como factos sociais, quase sempre se tornam anónimas, assim como são complexas e nem sempre identificáveis as suas causas. Por isso, ao falar-se aqui depecado social, a expressão tem um significado claramente analógico. Em todo o caso, falar depecados sociais, mesmo que seja em sentido analógico, não deve induzir ninguém a subestimar a responsabilidade individual das pessoas; mas tem em vista constituir um alerta para as consciências de todos, a fim de que cada um assuma as próprias responsabilidades, no sentido de serem séria e corajosamente modificadas essas realidades nefastas e essas situações intoleráveis.

Dito isto, de maneira clara e inequívoca, como premissa, é preciso acrescentar imediatamente que não é legítima nem aceitável uma acepção do pecado social, não obstante esteja muito em voga nos nossos dias nalguns ambientes, (74) a qual, ao opôr, não sem ambiguidade, pecado social a pecado pessoal, mais ou menos inconscientemente leva a diluir e quase a eliminar o pessoal, para admitir somente as culpas e responsabilidades sociais.Segundo esta concepção, que revela com facilidade a sua derivação de ideologias e sistemas não cristãos — hoje, talvez, já postos de parte por aqueles mesmos que a certa altura foram os seus fautores oficiais — praticamente todos os pecados seriam sociais, no sentido de serem imputáveis não tanto à consciência moral duma pessoa, quanto a uma entidade vaga e colectividade anónima, que poderia ser a situação, o sistema, a sociedade, as estruturas, a instituição etc.

Pois bem: a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de Nações inteiras e blocos de Nações, sabe e proclama que tais casos de pecado socialsão o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem gera ou favorece a iniquidade ou a desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, ou eliminar, ou pelo menos limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas.

Uma situação — e de igual modo uma instituição, uma estrutura, uma sociedade — não é, de per si, sujeito de actos morais; por isso, não pode ser, em si mesma, boa ou má.

No fundo de cada situação de pecado, porém, encontram-se sempre pessoas pecadoras. Isto é tão verdadeiro que, se tal situação vier a ser mudada nos seus aspectos estruturais e institucionais pela força da lei, ou — como acontece com mais frequência, infelizmente — pela lei da força, a mudança revela-se, na realidade, incompleta, de pouca duração e, no fim de contas, vã e ineficaz — para não dizer mesmo contraproducente — se não se converterem as pessoas directa ou indirectamente responsáveis por essa mesma situação.

(72) A expressão é da autoria da escritora francesa Elisabeth Leseur: Journal et pensées de chaque jour, Paris 1918, p. 31.
(73) Cf.
Mt 22,39 Mc 12,31 Lc 10,27 s.
(74) Cf. Congragação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspectos da «Teologia da Libertação» Libertatis Nuntius: (6 de Agosto de 1984), IV, 14-15: AAS 76 (1984), 885 s.


Pecado mortal e pecado venial

17 Mas há no mistério do pecado uma outra dimensão, sobre a qual a inteligência do homem, nunca deixou de meditar: a da sua gravidade. É um problema inevitável, ao qual a consciência cristã nunca se esquivou de dar uma resposta: porquê e em que medida o pecado é grave na ofensa que faz a Deus e na sua repercussão sobre o homem? A Igreja tem uma doutrina própria a propósito disto e reafirma-a nos seus elementos essenciais, sabendo embora que nem sempre é fácil, no concreto das situações, fazer delimitações nítidas de fronteiras.

Já no Antigo Testamento e para numerosos pecados — os cometidos com deliberação, (75) as várias formas de impureza, (76) de idolatria, (77) de culto dos falsos deuses (78) — se declarava que o réu devia ser «eliminado do seu povo», o que podia significar mesmo ser condenado à morte. (79) A estes contrapunham-se outros pecados, sobretudo os cometidos por ignorância, que eram perdoados mediante um sacrifício. (80)

Com referência também a esses textos, a Igreja, já há séculos, fala constantemente em pecadomortal e pecado venial. Mas esta distinção e estes termos recebem luz sobretudo do Novo Testamento, no qual se encontram muitos textos que enumeram e reprovam, com expressões enérgicas, os pecados particularmente merecedores de condenação, (81) além e na continuidade da confirmação dos do Decálogo feita pelo próprio Jesus. (82) Quereria referir-me aqui, especialmente, a duas páginas significativas e impressionantes.

Numa passagem da sua primeira Carta, São João fala de um pecado que leva à morte (pròs thánaton) em contraposição a outro pecado que não leva à morte (mè pròs thánaton). (83) No conceito de morte, aqui, como é óbvio, subentende-se espiritual: trata-se da perda da verdadeira vida ou «vida eterna», que, para São João, é o conhecimento do Pai e do Filho (84) e a comunhão e a intimidade com eles. O pecado que leva à morte parece ser, nesta passagem, a negação do Filho,(85) ou o culto de falsas divindades. (86) Seja como for, com essa distinção de conceitos, São João parece querer acentuar a incomensurável gravidade daquilo que é a essência do pecado, a recusa de Deus, actuada sobretudo na apostasia e na idolatria; ou seja, no repúdio da fé na verdade revelada e na equiparação a Deus de certas realidades criadas, erigindo-as em ídolos ou falsos deuses. (87)Mas o Apóstolo, nessa mesma página, quer também pôr em evidência a certeza que provém para o cristão do facto de ser «nascido de Deus» pela vinda do Filho: há nele uma força que o preserva da queda no pecado; Deus guarda-o «e o Maligno não o toca». No caso de pecar por fraqueza ou ignorância, subsiste nele a esperança da remissão, também pelo apoio que lhe advém da oração feita em conjunto pelos irmãos.

Noutra página do Novo Testamento, no Evangelho de São Mateus, (88) o próprio Jesus fala duma «blasfémia contra o Espírito Santo», que é «irremissível», porque, nas suas manifestações, ela aparece como uma obstinada recusa de conversão ao amor do Pai das misericórdias.

Trata-se, é claro, de expressões extremas e radicais: rejeição de Deus, rejeição da sua graça e, portanto, oposição ao próprio princípio da salvação, (89) pela qual o homem parece fechar voluntariamente a si mesmo o caminho da remissão. Há que ter esperança, porém, que bem poucos queiram obstinar-se até ao fim nesta atitude de rebelião ou até de desafio a Deus, o qual, aliás, no seu amor misericordioso é maior do que o nosso coração, como nos ensina ainda São João. (90)Deus pode, de facto, vencer todas as nossas resistências psicológicas e espirituais, de tal modo que — como escreve Santo Tomás de Aquino — «não há que desesperar da salvação de ninguém nesta vida, consideradas a omnipotência e a misericórdia de Deus». (91)

Mas, diante do problema do embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo, não se pode deixar de nutrir sentimentos de salutar «temor e tremor», como sugere São Paulo; (92)e o aviso de Jesus sobre o pecado que não é «remissível» confirma a existência de culpas que podem trazer para o pecador, como pena, a «morte eterna».

À luz destes e de outros textos da Sagrada Escritura, os doutores e teólogos, os mestres espirituais e os pastores de almas distinguiram os pecados em mortais e veniais.Santo Agostinho, entre outros, fala de letalia ou mortifera crimina, opondo-os a venialia, levia ou quotidiana. (93) O significado que ele atribui a estes qualificativos influirá posteriormente no Magistério da Igreja. Depois dele seria Santo Tomás de Aquino a formular, nos termos mais claros que foi possível, a doutrina que se tornou constante na Igreja.

Na definição e distinção dos pecados mortais e veniais, não podia estar ausente para Santo Tomás e para a Teologia do pecado que nele se foi inspirar, a referência bíblica e, portanto, o conceito da morte espiritual. Segundo o Doutor Angélico, para viver espiritualmente, o homem deve permanecer em comunhão com o princípio supremo da vida, que é Deus, enquanto fim último de todo o seu ser e do seu agir. Ora o pecado é uma desordem perpetrada pelo homem contra este princípio vital. E quando, «por meio do pecado, a alma provoca uma desordem que vai até à separação do fim último — Deus — ao qual se encontra ligada pela caridade, então há pecado mortal; de outro modo, todas as vezes que a desordem fica aquém da separação de Deus, então o pecado é venial». (94) Por esta razão, o pecado venial não priva da graça santificante, da amizade com Deus, da caridade, nem, por conseguinte, da bem-aventurança eterna; ao passo que tal privação é exactamente consequência do pecado mortal.

Considerando o pecado, ademais, sob o aspecto da pena que implica, Santo Tomás com outros doutores, chama mortal ao pecado que, se não for remido, faz contrair uma pena eterna; venial, ao pecado que merece uma simples pena temporal (quer dizer, parcial e expiável na terra ou no Purgatório).

Se se atender, depois, à matéria do pecado, as ideias de morte, de ruptura radical com Deus, sumo bem, de desvio do caminho que leva a Deus ou de interrupção da caminhada em direcção a ele (tudo modos de definir o pecado mortal) conjugam-se com a ideia da gravidade do conteúdo objectivo; por isso, o pecado grave identifica-se praticamente, na doutrina e na acção pastoral da Igreja, com o pecado mortal.

Atingimos aqui o núcleo do ensino tradicional da Igreja, recordado muitas vezes e com vigor no decorrer do recente Sínodo. Este, de facto, não só reafirmou tudo aquilo que foi proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e a natureza dos pecados mortais e veniais, (95) mas quis ainda lembrar que é pecado mortal aquele que tem por objecto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado. E impõe-se acrescentar — como se fez também no mesmo Sínodo — que alguns pecados, quanto à sua matéria,são intrinsecamente graves e mortais. Quer dizer, há determinados actos que, por si mesmos e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objecto. Esses actos, se forem praticados com suficiente advertência e liberdade, são sempre culpa grave. (96)

Esta doutrina, fundamentada no Decálogo e na pregação do Antigo Testamento e retomada nokérigma dos Apóstolos, e que faz parte do mais antigo ensino que a Igreja tem vindo a repetir até hoje, tem uma comprovação cabal na experiência humana de todos os tempos. O homem sabe bem, por experiência, que na caminhada da fé e da justiça, que o leva ao conhecimento e ao amor de Deus nesta vida e à perfeita união com ele na eternidade, pode parar ou distrair-se, sem abandonar, no entanto, o rumo de Deus: neste caso há efectivamente pecado venial. Este, porém, não deverá ser atenuado, como se, automaticamente, se tratasse de algo que pudesse ser transcurado ou de um «pecado de pouca monta».

Sucede também que o homem igualmente sabe, por dolorosa experiência, que com um acto consciente e livre da sua vontade pode inverter a marcha, caminhar no sentido oposto à vontade de Deus e, desse modo, afastar-se dele (aversio a Deo), recusando a comunhão de amor com ele, afastando-se do princípio de vida que ele é, e escolhendo, por isso mesmo, a morte.

Com toda a tradição da Igreja, chamamos pecado mortal a este acto pelo qual um homem, com liberdade e advertência, rejeita Deus, a sua lei, a aliança de amor que Deus lhe propõe, preferindo voltar-se para si mesmo, para qualquer realidade criada e finita, para algo contrário ao querer divino (conversio ad creaturam). Isto pode acontecer de modo directo e formal, como nos pecados de idolatria, apostasia e ateísmo; ou de modo equivalente, como em todas as desobediências aos mandamentos de Deus em matéria grave. O homem sente que esta desobediência a Deus corta a ligação com o seu princípio vital: é um pecado mortal, ou seja, um acto que ofende gravemente a Deus e acaba por se voltar contra o próprio homem, com uma força obscura e potente de destruição.

Durante a Assembleia sinodal foi proposta por alguns Padres uma distinção tripartida entre os pecados, que haveriam de passar a ser classificados com veniais, graves e mortais. A tripartição poderia pôr em realce o facto de que entre os pecados graves existe uma gradação. Mas permanece sempre verdadeiro que a distinção essencial e decisiva é a que existe entre pecados que destroem a caridade e pecados que não matam a vida sobrenatural: entre a vida e a morte não há lugar para um meio termo.

De igual modo, há-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de «opção fundamental» contra Deus — como hoje em dia se costuma dizer — entendendo com isso um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo. Dá-se, efectivamente, o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta-se a si próprio de Deus e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por actos particulares. Podem, sem dúvida, verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador. Mas da consideração da esfera psicológica não se pode passar para a constituição de uma categoria teológica, como é precisamente a da «opção fundamental», entendendo-a de tal modo que, no plano objectivo, mudasse ou pusesse em dúvida a concepção tradicional do pecado mortal.

Se bem que sejam de apreciar todas as tentativas sinceras e prudentes de esclarecer o mistério psicológico e teológico do pecado, a Igreja tem no entanto o dever de recordar a todos os estudiosos desta matéria: a necessidade, por um lado, de serem fiéis à Palavra de Deus, que nos elucida também sobre o pecado; e, por outro, o risco que se corre de contribuir para atenuar ainda mais, no mundo contemporâneo, o sentido do pecado.

(75) Cf.
Nb 15,30.
(76) Cf. Lv 18,26-30.
(77) Cf. Lv 19,4.
(78) Lv 20,1-7.
(79) Cf. Ex 21,17.
(80) Cf. Lv 4,2 ss.; Lv 5,1 ss.; Nb 15,22-29.
(81) Cf. Mt 5,28 Mt 6,23 Mt 12,31 s.; Mt 15,19 Mc 3,28-30 Rm 1,29-31 Rm 13,13 Jc 4.
(82) Cf. Mt 5,17 Mt 15,1-10 Mc 10,19 Lc 18,20.
(83) Cf. 1Jn 5,16 s.
(84) Cf. Jn 17,3.
(85) 1Jn 2,22.
(86) Cf. 1Jn 5,16-21.
(87) Cf. 1Jn 5,16-21.
(88) Mt 12,31 s.
(89) Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II 14,1-3.
(90) Cf. 1Jn 3,20.
(91) S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II 14,3 ad primum.
(92) Cf. Ph 2,12.
(93) Cf. S. Agostinho, De spiritu et littera, XXVIII: CSEL 60, 202 s.; Enarrat. in ps. 39, 22: CCL 38, 441; Enchiridion ad Laurentium de fide et spe et caritate, XIX, 71: CCL 46, 88; In Ioannis Evangelium tractatus, 12, 3, 14: CCL 36, 129.
(94) S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II 72,5.
(95) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio VI, De iustificatione, cap. II, e Câns. 23, 25, 27:Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Bologna 19733, 671. 680 s. (DS 1573 DS 1575 DS 1577).
(96) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio VI, De iustificiatione, cap. XV: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 677 (DS 1544).



Reconciliatio et paenitentia PT 9