Reconciliatio et paenitentia PT 18

Perda do sentido do pecado

18 A partir do Evangelho lido na comunhão eclesial, a consciência cristã adquiriu, no decurso das gerações, uma fina sensibilidade e uma perspicaz percepção dos fermentos de morte que estão contidos no pecado; sensibilidade e capacidade de percepção, também para individuar tais fermentos nas mil formas assumidas pelo pecado, nos mil carizes com que ele se apresenta. É a isto que se costuma chamar o sentido do pecado.

Este sentido tem a sua raiz na consciência moral do homem e é como que o seu termómetro. Anda ligado ao sentido de Deus, uma vez que deriva da consciência da relação que o homem tem com o mesmo Deus, como seu Criador, Senhor e Pai. E assim como não se pode apagar completamente o sentido de Deus nem extinguir a consciência, também não se dissipa nunca inteiramente o sentido do pecado.

Entretanto, não raro no decurso da história, por períodos mais ou menos longos e sob o influxo de múltiplos factores, acontece ficar gravemente obscurecida a consciência moral em muitos homens. «Temos nós uma ideia justa da consciência?» - perguntava eu há dois anos num colóquio com os fiéis - «Não vive o homem contemporâneo sob a ameaça de um eclipse da consciência, de uma deformação da consciência e de um entorpecimento ou duma "anestesia" das consciências?». (97)Demasiados sinais indicam que no nosso tempo existe tal eclipse, tanto mais inquietante quanto esta consciência, definida pelo Concílio como «o núcleo mais secreto e o sacrário do homem», (98) anda «estreitamente ligada à liberdade do homem (...). Por isso, a consciência, com relevância principal, está na base da dignidade interior do homem e ao mesmo tempo, da sua relação com Deus». (99) é inevitável, portanto, que nesta situação fique obnubilado também o sentido do pecado, o qual está intimamente ligado à consciência moral, à procura da verdade e à vontade de fazer um uso responsável da liberdade. Conjuntamente com a consciência, fica também obscurecido o sentido de Deus, e então, perdido este decisivo ponto de referência interior, desaparece o sentido do pecado. Foi este o motivo por que o meu Predecessor Pio XII, com palavras que se tornaram quase proverbiais, pôde declarar um dia que «o pecado do século é a perda do sentido do pecado». (100)

Porquê este fenómeno no nosso tempo? Uma vista de olhos de algumas componentes da cultura contemporânea pode ajudar-nos a compreender a atenuação progressiva do sentido do pecado, exactamente por causa da crise da consciência e do sentido de Deus, acima realçada.

O «secularismo», que, pela sua própria natureza e definição, é um movimento de ideias e de costumes, o qual propugna um humanismo que abstrai de Deus totalmente, concentrado só no culto do empreender e do produzir e arrastado pela embriaguez do consumo e do prazer, sem preocupações com o perigo de «perder a própria alma», não pode deixar de minar o sentido do pecado. Reduzir-se-á este último, quando muito, àquilo que ofende o homem. Mas é precisamente aqui que se impõe a amarga experiência a que já aludia na minha primeira Encíclica; ou seja, que o homem pode construir um mundo sem Deus, mas esse mundo acabará por voltar-se contra o mesmo homem. (101) Na realidade, Deus é a origem e o fim supremo do homem e este leva consigo um gérmen divino. (102) Por isso, é a realidade de Deus, que desvenda e ilumina o mistério do homem. É inútil, pois, esperar que ganhe consistência um sentido do pecado, no que respeita ao homem e aos valores humanos, quando falta o sentido da ofensa cometida contra Deus, isto é, o verdadeiro sentido do pecado.

Desvanece-se este sentido do pecado na sociedade contemporânea também pelos equívocos em que se cai ao apreender certos resultados das ciências humanas. Com base nalgumas afirmações da psicologia, a preocupação de não tachar alguém como culpado nem pôr freio à liberdade leva a nunca reconhecer uma falta. Por indevida extrapolação dos critérios da ciência sociológica acaba-se — como já aludi — por descarregar sobre a sociedade todas as culpas, de que o indivíduo é declarado inocente. E uma certa antropologia cultural, por seu lado, à força de aumentar os condicionamentos e influxos ambientais e históricos, aliás inegáveis, que agem sobre o homem, limita-lhe tanto a responsabilidade que não lhe reconhece já a capacidade de fazer verdadeiros actos humanos e, por consequência, a possibilidade de pecar.

O sentido do pecado decai facilmente, ainda, sob a influência de uma ética que deriva dum certo relativismo historicista. Pode tratar-se da ética que relativiza a norma moral, negando o seu valor absoluto e incondicionado e negando, por consequência, que possam existir actos intrinsecamente ilícitos, independentemente das circunstâncias em que são realizados pelo sujeito. Trata-se de uma verdadeira «reviravolta e derrocada dos valores morais»; e «o problema não é tanto de ignorância da ética cristã», «mas sobretudo do sentido dos fundamentos e critérios das atitudes morais». (103) O efeito desta reviravolta ética é sempre também o de mitigar a tal ponto a noção de pecado, que se acaba quase por afirmar que o pecado existe, mas não se sabe quem o comete.

Esvai-se, por fim, o sentido do pecado quando — como pode acontecer no ensino aos jovens, nas comunicações de massa e na própria educação famíliar — esse sentido do pecado é erroneamente identificado com o sentimento morboso da culpa ou com a simples transgressão das normas e preceitos legais.

A perda do sentido do pecado, portanto, é uma forma ou um fruto da negação de Deus: não só da negação ateísta, mas também da negação secularista. Se o pecado é a interrupção da relação filial com Deus para levar a própria existência fora da obediência a ele devida, então pecar não é só negar Deus; pecar é também viver como se ele não existisse, bani-lo do próprio quotidiano. Um modelo de sociedade mutilado ou desequilibrado num ou noutro sentido, como é frequentemente veiculado pelos meios de comunicação, favorece bastante a progressiva perda do sentido do pecado. Em tal situação, o ofuscamento ou a debilitação do sentido do pecado resulta: seja da recusa de qualquer referência ao transcendente, em nome da aspiração à autonomia pessoal; seja da sujeição a modelos éticos impostos pelo consenso e costume generalizado, mesmo quando são condenados pela consciência individual; seja das dramáticas condições sócio-económicas, que oprimem grande parte da humanidade, causando a tendência para se verem erros e culpas apenas no âmbito do social; seja, por fim e sobretudo, do obscurecimento da ideia da paternidade de Deus e do seu domínio sobre a vida do homem.

Até mesmo no campo do pensamento e da vida eclesial, algumas tendências favorecem inevitavelmente o declínio do sentido do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituir posições exageradas do passado por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecado em toda a parte, passa-se a não o vislumbrar em lado nenhum; da demasiada acentuação do temor das penas eternas, à pregação dum amor de Deus, que excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado; da severidade no esforço para corrigir as consciências erróneas, a um pretenso respeito pela consciência, até suprimir o dever de dizer a verdade. E por que não acrescentar que a confusãocriada na consciência de muitos fiéis pelas divergências de opiniões e de ensinamentos na teologia, na pregação, na catequese e na direcção espiritual, acerca de questões graves e delicadas da moral cristã, acaba por fazer diminuir, quase até à sua extinção, o verdadeiro sentido do pecado? E não podem deixar-se em silêncio alguns defeitos na prática da Penitência sacramental: tal é a tendência a ofuscar o significado eclesial do pecado e da conversão, reduzindo-os a factos meramente individuais, ou vice-versa, a anular o valor pessoal do bem e do mal para considerar nestes exclusivamente a dimensão comunitária; tal é também o perigo, que nunca foi totalmente esconjurado, do ritualismo rotineiro, que tira ao Sacramento o seu significado pleno e a sua eficácia formativa.

Restabelecer o justo sentido do pecado é a primeira forma de combater a grave crise espiritual que impende sobre o homem do nosso tempo. Mas o sentido do pecado só se restabelecerá com uma chamada a atenção clara para os inderrogáveis princípios de razão e de fé, que a doutrina moral da Igreja sempre sustentou.

É lícito esperar que, sobretudo no mundo cristão eclesial, reaflore um salutar sentido do pecado. A isso levarão uma boa catequese, iluminada pela teologia bíblica da Aliança, a escuta atenta e o acolhimento confiante do Magistério da Igreja, que não cessa de proporcionar luz as consciências, e uma prática cada vez mais cuidada do Sacramento da Penitência.

(97) João Paulo II, Angelus de 14 de Março de 1982: Insegnamenti V, 1 (1982), 861.
(98) Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, Gaudium et Spes,
GS 16.
(99) João Paulo II, Angelus de 14 de Março de 1982:Insegnamenti V, 1 (1982), 860.
(100) Pio XII, Radiomensagem ao Congresso Catequístico Nacional dos Estados Unidos em Bostom (26 de Outubro de 1946): Discorsi e Radiomessaggi, VIII (1946), 288.
(101) Cf. João Paulo II, Encíclica Redemptor Hominis, RH 15: AAS 71 (1979), 286-289.
(102) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. past. sobre a Igreja no Mundo ContemporâneoGaudium et Spes, GS 3; cf. 1Jn 3,9.
(103) João Paulo II, Discurso aos Bispos da Região Leste da França (1° de Abril de 1982), 2:Insegnamenti V, 1 (1982), 1081.


CAPÍTULO SEGUNDO: «MYSTERIUM PIETATIS»

19 Para conhecer o pecado, era necessário fixarmos o olhar na sua natureza, tal como a revelação da economia da Salvação no-la deu a conhecer: ele é o mistério da iniquidade («mysterium iniquitatis»). Mas nesta economia o pecado não é protagonista nem, menos ainda, vencedor. Contrasta, antes, como antagonista, com um outro princípio operante, que — usando uma bela e sugestiva expressão de São Paulo — podemos chamar o mistério ou sacramento da piedade(«mysterium», ou «sacramentum pietatis»). O pecado do homem seria vencedor e, por fim, destruidor, e o desígnio salvífico de Deus ficaria incompleto ou mesmo vencido, se este mistério da piedade não se tivesse inserido no dinamismo da história para vencer o pecado do homem.

Encontramos esta expressão numa das Cartas Pastorais de São Paulo, a primeira a Timóteo. Aparece aí, repentina, como por uma inspiração impetuosa! O Apóstolo, na verdade, consagrara em precedência longos parágrafos da sua mensagem ao discípulo predilecto, para explicar o significado da organização da comunidade (litúrgica e, ligada a esta, hierárquica); falara depois do papel dos chefes da comunidade, para se referir em seguida ao comportamento do próprio Timóteo na «Igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade». E depois, no final da passagem, evoca quase ex abrupto, mas com intuito profundo, aquilo que dá significado a tudo o que escrevera: «é grande, sem dúvida, o mistério da piedade...». (104)

Sem trair minimamente o sentido literal do texto, podemos alargar esta magnífica intuição teológica do Apóstolo a uma visão mais completa do papel que a verdade por ele anunciada tem na economia da Salvação. «é verdadeiramente grande — repitamos com o mesmo Apóstolo — o mistério da piedade», porque vence o pecado.

Mas o que é, na concepção paulina, esta «piedade»?

(104)
1Tm 3,15 s.



é o próprio Cristo

20 É profundamente significativo que, para apresentar este «mistério da piedade», São Paulo transcreva simplesmente, sem estabelecer uma ligação gramatical com o texto precedente, (105) três linhas de um Hino cristológico, que — segundo a opinião de autorizados estudiosos — era usado nas comunidades helénico-cristãs.

Com as palavras desse Hino, densas de conteúdo teológico e ricas de nobre beleza, esses cristãos do século primeiro professavam a sua fé no mistério de Cristo, pelo qual

* Ele se manifestou na realidade da carne humana e foi pelo Espírito Santo constituído como o Justo, que se oferece pelos injustos;

* Ele apereceu aos Anjos, tornado maior que eles, e foi pregado aos povos, como portador de salvação;

* Ele foi acreditado no mundo, como enviado do Pai, e pelo mesmo Pai assumido no céu, como Senhor. (106)

* O mistério ou sacramento da piedade, portanto, é o próprio mistério de Cristo, E, numa síntese bem densa, ele é o mistério da Encarnação e da Redenção, da plena Páscoa de Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria: mistério da sua paixão e morte, da sua ressurreição e glorificação. O que São Paulo, ao referir as frases do Hino, quis recordar foi que este mistério é o recôndito princípio vital que faz da Igreja a casa de Deus, a coluna e o fundamento da verdade. E na peugada do ensino paulino, nós podemos afirmar que este mesmo mistério da infinita piedade de Deus para connosco é capaz de penetrar até as raízes escondidas da nossa iniquidade, para suscitar na alma um movimento de conversão, para redimi-la, e fazê-la de vela em direcção à reconciliação.

Referindo-se sem dúvida a este mistério, também São João, com a sua linguagem característica, que é diversa da de São Paulo, pôde escrever que «aquele que nasceu de Deus, não peca»: o Filho de Deus salva-o e «o Maligno não o toca». (107) Nesta afirmação joanina há uma indicação de esperança, fundada sobre as promessas divinas: o cristão recebeu a garantia e as forças necessárias para não pecar. Não se trata, pois, de uma impecabilidade adquirida por virtude própria e, menos ainda, ínsita no homem, como pensavam os Gnósticos. É um resultado da acção de Deus. Para não pecar, o cristão dispõe do conhecimento de Deus, recorda São João nesta passagem. Mas, pouco antes, já tinha escrito: «Todo o que nasceu de Deus não comete pecado, porque habita nele uma semente divina». (108) Se por esta «semente de Deus» entendermos — como propõem alguns comentadores — Jesus, o Filho de Deus, então podemos dizer que para não pecar — ou para libertar-se do pecado — o cristão dispõe da presença em si do próprio Cristo e do mistério de Cristo, que é mistério de piedade.

(105) O texto oferece, por isso, uma certa dificuldade de leitura, uma vez que o pronome relativo, que abre a citação literal, não concorda com o neutro «mysterion». Alguns manuscritos tardios retocaram o texto para o corrigir gramaticalmente; mas São Paulo pretendeu somente justapor ao seu um outro texto venerável, que lhe parecia plenamente esclarecedor.
(106) A comunidade cristã primitiva exprime a sua fé no Crucificado, que foi glorificado, que os anjos adoram e que é Senhor. Mas o elemento impressionante desta mensagem continua a ser o «manifestado na carne»: o «grande mistério» é que o eterno Filho de Deus se tenha feito homem.
(107)
1Jn 5,18 s.
(108) 1Jn 3,9.


O esforço do cristão

21 Mas há no mistério da piedade um outro aspecto: à piedade de Deus para com o cristão há-de corresponder a piedade do cristão para com Deus. Nesta segunda acepção, a piedade (eusébeia)significa exactamente o comportamento do cristão, que à piedade paterna de Deus corresponde com a sua piedade filial.

Também neste sentido podemos afirmar com São Paulo que «é grande o mistério da piedade»; e ainda, que esta piedade, qual força de conversão e de reconciliação, combate a iniquidade e o pecado. Neste caso, ainda, os aspectos essenciais do mistério de Cristo são objecto da piedade, enquanto o cristão acolhe o mistério, o contempla e a ele vai buscar a força espiritual necessária para modelar a sua vida segundo o Evangelho. Também aqui se deve dizer que «quem nasceu de Deus não comete pecado»; mas a expressão tem sentido imperativo: sustentado pelo mistério — e pelos mistérios — de Cristo, como por uma nascente interior de energia espiritual, o cristão é avisado para não pecar e, mais ainda, recebe o mandamento de não pecar: há-de comportar-se dignamente «na casa de Deus, que é a Igreja do Deus vivo», (109) sendo como é um filho de Deus.

(109)
1Tm 3,15.


Para una vida reconciliada

22 Assim a Palavra da Escritura, ao revelar-nos o mistério da piedade, abre a inteligência humana para a conversão e para a reconciliação, entendidas não como abstracções, mas como valores cristãos concretos a conquistar no dia a dia.

Insidiados pela perda do sentido do pecado, tentados, algumas vezes, pela ilusão bem pouco cristã de impecabilidade, também os homens de hoje precisam de ouvir de novo, como dirigida a cada um deles, pessoalmente, a advertência de São João: «Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós»; (110) e mais ainda, que «todo o mundo jaz sob o jugo do Maligno». (111) Cada um, pois, é convidado pela voz da Verdade divina a ler realisticamente na própria consciência e a confessar que foi gerado na iniquidade, como dizemos no SalmoMiserere. (112)

Ameaçados pelo medo e pelo desespero, os homens de hoje podem, no entanto, sentir-se consolados pela promessa divina, que os abre à esperança da plena reconciliação.

O mistério da piedade, da parte de Deus, é a misericórdia de que o Senhor e nosso Pai — repito-o mais uma vez — é infinitamente rico. (113) Como disse na Encíclica dedicada ao tema da misericórdia divina, (114) esta é um amor mais poderoso do que o pecado, mais forte do que a morte.Quando nos damos conta de que o amor que Deus nos dispensa não se detém diante do nosso pecado, não retrocede diante das nossas ofensas, mas se torna ainda mais solícito e generoso; quando nos apercebemos de que este amor chegou a causar a paixão e a morte do Verbo feito carne, que aceitou remir-nos pagando com o seu Sangue, então prorrompemos em reconhecimento: «Sim, o Senhor é rico em misericórdia», e dizemos mesmo: «O Senhor é misericórdia».

O mistério da piedade é o caminho aberto pela misericórdia divina à vida reconciliada.

(110)
1Jn 1,8.
(111) 1Jn 5,19.
(112) Cf. Ps 51,7 (50), 7.
(113) Cf. Ep 2,4.
(114) Cf. João Paulo II, Encíclica Dives in Misericordia, VIII, DM 15: AAS 72 (1980), 1203-1207; 1231.



TERCEIRA PARTE

A PASTORAL DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO


Promoção da penitência e da reconciliação

23 Suscitar no coração do homem a conversão e a penitência e proporcionar-lhe o dom da reconciliação é a missão conatural da Igreja, como continuadora da obra redentora do seu divino Fundador. Trata-se de uma missão que não será cumprida só com algumas afirmações teóricas e com a proposta de um ideal ético não acompanhado por energias operativas; mas está destinada a expressar-se em funções ministeriais bem precisas, em ordem à prática concreta da penitência e da reconciliação.

A este ministério, fundado e iluminado pelos princípios de fé acima ilustrados, orientado para objectivos precisos e apoiado em meios adequados, podemos dar o nome de pastoral da penitência e da reconciliação. O seu ponto de partida é a convicção da Igreja, de que o homem, a quem se destinam todas as formas de pastoral, mas principalmente a pastoral da penitência e da reconciliação, é o homem marcado pelo pecado, retratado no exemplo significativo do rei David. Repreendido pelo profeta Natan, David aceita olhar de frente as suas próprias torpezas, confessando: «Pequei contra o Senhor». (115) E proclama: «Reconheço os meus pecados, tenho sempre diante de mim as minhas culpas». (116) Mas também suplica: «Purificai-me, Senhor, e ficarei limpo; lavai-me e ficarei mais branco do que a neve»; (117) e recebe a resposta da misericórdia divina: «O Senhor perdoou o teu pecado, não morrerás». (118)

A Igreja encontra-se, pois, diante do homem — de todo um mundo humano — ferido pelo pecado e por ele atingido naquilo que tem de mais íntimo, na profundidade do seu ser; mas, ao mesmo tempo, movido interiormente por um incontível desejo de libertação do pecado e também, especialmente se for cristão, consciente de que o mistério da piedade, Cristo Senhor, já está a actuar nele e no mundo com a força da Redenção.

A função reconciliadora da Igreja deve desenvolver-se, pois, segundo aquele nexo íntimo que cônjunge estreitamente o perdão e a remissão dos pecados de cada homem com a reconciliação plena e fundamental da humanidade, que foi realizada pela Redenção. Este nexo leva-nos a compreender que, sendo o pecado o princípio activo da divisão — divisão entre o homem e o Criador, divisão no coração e no ser do homem, divisão entre os indivíduos e entre os grupos humanos, divisão entre o homem e a natureza criada por Deus — só a conversão do pecado é capaz de operar uma reconciliação profunda e duradoura onde quer que a divisão tenha penetrado.

Não é necessário repetir tudo o que já disse a respeito da importância deste ministério da reconciliação (119) e da correspondente pastoral que o põe em prática na consciência e na vida da Igreja. Esta, de facto, falharia num aspecto essencial do seu ser e deixaria por realizar uma sua função inabdicável, se não apregoasse, com clareza e firmeza, a tempo e fora de tempo, a «palavra da reconciliação» (120) e não proporcionasse ao mundo o dom da reconciliação. Mas, convém repeti-lo, a importância do serviço eclesial da reconciliação estende-se para além das fronteiras visíveis da Igreja, ao mundo inteiro.

Falar de pastoral da penitência e da reconciliação, portanto, equivale a referir-se ao conjunto das tarefas de que a Igreja está incumbida, a todos os níveis, para a promoção de uma e outra. Mais concretamente, falar desta pastoral significa recordar todas as actividades práticas, mediante as quais a Igreja, em todas e cada uma das suas componentes — Pastores e fiéis, a todos os níveis e em todos os campos — e com todos os meios à sua disposição — palavra e acção, ensino e oração — procura levar os homens, individualmente ou em grupo, à verdadeira penitência e introduzi-los assim no caminho da plena reconciliação.

Os Padres do Sínodo, como representantes dos seus Irmãos Bispos, guias do povo que lhes está confiado, debruçaram-se sobre esta pastoral nos seus elementos mais práticos e concretos. E é para mim motivo de alegria fazer-me eco deles, associando-me as suas inquietudes e esperanças, acolhendo os frutos dos seus esforços de procura e experiências e encorajando-os nos seus planos e realizações. Que eles possam encontrar nesta parte da Exortação Apostólica a contribuição que deram para o Sínodo, cuja utilidade desejaria tornar extensiva, mediante estas páginas, à Igreja inteira.

Desejaria, pois, pôr em evidência o essencial da pastoral da penitência e da reconciliação, salientando nela, com a Assembleia do Sínodo, os dois pontos seguintes:

1. Os meios usados e as vias seguidas pela Igreja para promover a penitência e a reconciliação,

2. O Sacramento por excelência da penitência e da reconciliação.

(115)
2S 12,13.
(116) Ps 51,5 (50), 5.
(117) Ps 51,9 (50), 9.
(118) 2S 12,13.
(119) Cf. 2Co 5,18.
(120) Cf. 2Co 5,19.



CAPÍTULO PRIMEIRO: MEIOS E VIAS PARA A PROMOÇÃO DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO

24 Para promover a penitência e a reconciliação, a Igreja tem ao seu dispor dois meios, principalmente, que lhe foram confiados pelo seu próprio Fundador: a catequese e os Sacramentos. A utilização destes meios, considerada sempre pela Igreja plenamente conforme as exigências da sua missão salvífica e igualmente susceptível de corresponder as exigências e necessidades espirituais dos homens de todos os tempos, pode ser levada a efeito seguindo formas e modos antigos e novos, entre os quais será bom recordar, especialmente, o que, em continuidade com o meu Predecessor Paulo VI, podemos designar por método do diálogo.


O Diálogo

25 O diálogo é para a Igreja, em certo sentido, um meio e sobretudo um modo de desenvolver a sua acção no mundo contemporâneo.

De facto, o Concílio Vaticano II, depois de ter proclamado que «a Igreja, em virtude da missão que tem de iluminar todo o mundo com a mensagem evangélica e reunir num só Espírito todos os homens (...), torna-se sinal daquela fraternidade que permite e robustece um diálogo sincero», acrescenta que a mesma Igreja deve ser capaz de «estabelecer um diálogo cada vez mais frutuoso entre todos os que constituem o único Povo de Deus», (121) assim como de «estabelecer um diálogo com a sociedade humana». (122)

O meu Predecessor Paulo VI dedicou ao diálogo uma parte notável da sua primeira EncíclicaEcclesiam Suam, na qual o descreve e caracteriza significativamente como diálogo da salvação.(123)

Na verdade, a Igreja usa o método do diálogo para melhor conduzir os homens — aqueles que pelo Baptismo e a profissão de fé se reconhecem membros da comunidade cristã e aqueles que lhe são estranhos — à conversão e à penitência, pelos caminhos de uma profunda renovação da própria consciência e da própria vida à luz do mistério da Redenção e da Salvação, realizadas por Cristo e confiadas ao ministério da sua Igreja. O diálogo autêntico, por conseguinte, tem em vista, antes de mais, a regeneração de cada um, mediante a conversão interior e a penitência, sempre com profundo respeito pelas consciências e com a paciência e o processo gradual requeridos pelas condições dos homens do nosso tempo.

O diálogo pastoral, em vista da reconciliação, continua a ser hoje uma solicitude fundamental da Igreja em diversos âmbitos e a vários níveis.

Antes de mais, a Igreja promove um diálogo ecuménico, ou seja, um diálogo entre Igrejas e Comunidades eclesiais que se atêm à fé em Cristo, Filho de Deus e único Salvador, e um diálogo com as outras comunidades de homens que buscam a Deus e desejam estabelecer uma relação de comunhão com Ele.

Como base desse diálogo com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais e com as outras religiões, e como condição da sua credibilidade e eficácia, deve haver um sincero esforço de diálogo permanente e renovado no interior da própria Igreja católica. Esta tem a consciência de ser, por natureza, sacramento da comunhão universal de caridade; (124) mas também sabe que existem no seu seio tensões que correm o risco de se transformar em factores de divisão.

A exortação dorida e firme, feita a seu tempo pelo meu Predecessor, com vista ao Ano Santo de 1975, (125) continua válida ainda no momento actual. Para se obter a superação dos conflitos e fazer com que as normais tensões não resultem nocivas para a unidade da Igreja, é preciso que todos nos confrontemos com a Palavra de Deus e, postas de parte as próprias maneiras de ver subjectivas, procuremos a verdade onde ela se encontra, ou seja, na mesma Palavra divina e na interpretação autêntica que dela nos dá o Magistério da Igreja. Sob esta luz, a escuta recíproca, o respeito e a abstenção de todo o juízo apressado, a paciência, a capacidade de evitar que a fé, que une, seja subordinada as opiniões, as modas e as opções ideológicas, que dividem, são outras tantas qualidades de um diálogo que, no interior da Igreja, deve ser assíduo, cheio de boa vontade e sincero. E é claro que não o seria, nem se tornaria num factor de reconciliação, sem a atenção ao Magistério e a aceitação do mesmo.

Aplicada deste modo, efectivamente, na busca da sua própria comunhão interna, a Igreja católica pode dirigir o apelo à reconciliação - como de há tempos já vem fazendo - as outras Igrejas com as quais não se verifica plena comunhão, bem como as outras religiões e até mesmo a quem simplesmente procura Deus com coração sincero.

À luz do Concílio e do Magistério dos meus Predecessores, cuja preciosa herança recebi e me esforço por conservar e pôr em actuação, posso afirmar que a Igreja católica, com todas as suas componentes, se empenha com lealdade no diálogo ecuménico, sem optimismos fáceis, mas também sem desalento e sem hesitações ou perdas de tempo. As regras fundamentais que ela procura seguir nesse diálogo são: por um lado, a persuasão de que somente um ecumenismo espiritual — ou seja, fundado na oração comum e na comum docilidade ao único Senhor — permitirá corresponder sincera e seriamente as outras exigências da acção ecuménica; (126) e, por outro lado, a convicção de que um certo irenismo em matéria doutrinal e sobretudo dogmática, poderia talvez levar a um a forma de convivência superficial e não duradoura, mas nunca àquela comunhão profunda e estável que todos desejamos. Chegar-se-á a esta comunhão, no momento em que a divina Providência quiser; mas para se chegar lá, a Igreja católica, pelo que lhe diz respeito, sabe que deve estar aberta e sensível a todos «os valores verdadeiramente cristãos, que promanam do património comum e se encontram também entre os irmãos de nós separados»; (127) mas sabe igualmente que deve colocar na base de um diálogo leal e construtivo a clareza na posição dos problemas, a fidelidade e a coerência com a fé transmitida e definida na esteira da tradição perene pelo seu Magistério. Apesar da ameaça dum aparente derrotismo e malgrado a inevitável lentidão que a inconsideração não poderá nunca corrigir, a Igreja católica continua a procurar com todos os outros Irmãos cristãos as vias da unidade, e com os seguidores das outras religiões um diálogo sincero. Que este diálogo inter-religioso possa fazer chegar pelo menos à superação das atitudes de hostilidade, de desconfiança, de mútua condenação e quiçá de mútuas invectivas. Nisto está uma condição preliminar para que possamos encontrar-nos pelo menos na fé num Deus único e na certeza da vida eterna para a alma imortal. Que o Senhor faça, em particular, com que o diálogo ecuménico leve a uma sincera reconciliação centralizada em tudo aquilo que já possamos ter em comum com as outras Igrejas cristãs: a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, Salvador e Senhor, a escuta da Palavra, o estudo da Revelação e o sacramento da Baptismo.

Na medida em que a Igreja for capaz de suscitar a concórdia activa — a unidade na variedade — no seu próprio interior e de se apresentar como testemunha e humilde artífice de reconciliação nas relações com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais e com as outras religiões, ela tornar-se-á, segundo a expressiva definição de Santo Agostinho, «mundo reconciliado». (128) E então poderá ser sinal de reconciliação no mundo e para o mundo.

Com a consciência da imensa gravidade da situação criada pelas forças da divisão e da guerra, que constitui hoje uma séria ameaça, não só para o equilíbrio e a harmonia das Nações, mas também para a própria sobrevivência da humanidade, a Igreja sente-se no dever de oferecer e propor a sua colaboração específica para a superação dos conflitos e para o restabelecimento da concórdia.

Trata-se de um complexo e delicado diálogo de reconciliação, no qual a Igreja está empenhada, antes de mais, mediante a actividade da Santa Sé e dos seus diversos Organismos. A Santa Sé esforça-se quer por intervir junto dos governantes das Nações e dos responsáveis das várias Instituições internacionais, quer por associar-se a eles, dialogando com eles ou estimulando-os a um diálogo entre si, em favor da reconciliação no meio dos numerosos conflitos. E faz isto não com segundos fins ou interesses ocultos — dado que os não tem — mas «por uma preocupação humanitária», (129) pondo a sua estrutura institucional e a sua autoridade moral, absolutamente singulares, ao serviço da concórdia e da paz. Fá-lo na convicção de que, assim como «na guerra há duas facções que se levantam uma contra a outra», assim também «na questão da paz há sempre duas partes que necessariamente devem saber empenhar-se»; e nisto «se encontra o verdadeiro sentido do diálogo para a paz». (130)

No diálogo em favor da reconciliação, a Igreja também se empenha por intermédio dos Bispos, com a competência e a responsabilidade que lhes é própria, quer individualmente na orientação das respectivas Igrejas particulares, quer reunidos nas Conferências Episcopais, com a colaboração dos Presbíteros e de todas as componentes das Comunidades cristãs. Eles desempenham regularmente essas suas tarefas, quando promovem o diálogo que é indispensável e proclamam as exigências humanas e cristãs de reconciliação e de paz. Em comunhão com os seus Pastores, os leigos, que têm como «campo próprio da sua actividade evangelizadora o mundo vasto e complicado da politica, da realidade social e da economia (...), da vida internacional», (131) são chamados a empenhar-se directamente no diálogo ou em favor do diálogo para a reconciliação. Por intermédio deles, é ainda a Igreja que desenvolve a sua acção reconciliadora.

Na regeneração dos corações, mediante a conversão e a penitência, portanto, está o pressuposto fundamental e a base segura para toda e qualquer renovação social e para a paz entre as Nações.

Há que relembrar, por fim, que da parte da Igreja e dos seus membros, o diálogo, seja qual for a forma sob a qual ele se desenrole — e existem e podem existir formas muito diversas, pois o próprio conceito de diálogo tem valor analógico — não poderá nunca partir de uma atitude de indiferença em relação à verdade; mas tem de ser, sobretudo, uma apresentação da verdade, feita serenamente e com respeito pela inteligência e pela consciência dos outros. O diálogo da reconciliação não poderá nunca substituir ou atenuar o anúncio da verdade evangélica, que tem como objectivo preciso a conversão, abandonando o pecado, e a comunhão com Cristo e com a Igreja; mas deverá servir para a sua transmissão e realização, através dos meios deixados por Cristo à Igreja para a pastoral da reconciliação: a catequese e a Penitência.

(121) Const past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes,
GS 92.
(122) Cf. Decr. sobre o Múnus Pastoral dos Bispos Christus Dominus, CD 13; cf. Decl. sobre a Educação Cristã Gravissimum Educationis, GE 8; Decr. sobre a Actividade Missionária da Igreja Ad Gentes, AGD 11 AGD 12.
(123) Cf. Paulo VI, Encíclica Ecclesiam Suam, III: AAS 56 (1964), 639-659.
(124) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 1 LG 9 LG 13.
(125) Paulo VI, Exort. Apostólica Paterna cum Benevolentia: AAS 67 (1975), 5-23.
(126) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ecumenismo Unitatis Redintegratio, UR 7-8.
(127) Ibidem, UR 4.
(128) S. Agostinho, Sermo 96, 7: PL 38, 588.
(129) João Paulo II, Discurso aos Membros do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (15 de Janeiro de 1983), 4. 6. 11: AAS 75 (1983), 376. 378 s.; 381.
(130) João Paulo II, Homilia da Missa do XVI Dia Mundial da Paz (1· de Janeiro de 1983), 6:Insegnamenti, VI, 1 (1983), 7.
(131) Paulo VI, Exort. Apostólica Evangelii Nuntiandi, EN 70: AAS 68 (1976), 59 s.



Reconciliatio et paenitentia PT 18