Reconciliatio et paenitentia PT 26

A Catequese

26 Na vasta área em que a Igreja tem a missão de actuar com o instrumento do diálogo, a pastoral da penitência e da reconciliação dirige-se aos membros do corpo da Igreja, primeiro que tudo, por uma adequada catequese sobre as duas realidades distintas e complementares, as quais os Padres sinodais deram uma particular importância e que puseram em realce, em algumas dasPropostas («Propositiones») conclusivas: a penitência e a reconciliação, precisamente. A catequese é, pois, o primeiro meio a utilizar.

Na base desta recomendação do Sínodo, tão oportuna, encontra-se um pressuposto fundamental: aquilo que é pastoral não se opõe ao doutrinal, e a acção pastoral não pode prescindir do conteúdo doutrinal; pelo contrário, a ele vai buscar a sua substância e a sua validade real. Ora, se a Igreja é «coluna e sustentáculo da verdade» (132) e está posta no mundo como Mãe e Mestra, como poderia ela descurar a tarefa de ensinar a verdade que constitui um caminho de vida?

Dos Pastores da Igreja espera-se, pois, antes de mais, uma catequese sobre a reconciliação. Esta não pode deixar de fundamentar-se no ensino bíblico, em especial no do Novo Testamento, sobre a necessidade de reconstituir a aliança com Deus em Cristo Redentor e Reconciliador; e, à luz desta nova comunhão e desta nova amizade e no seu prolongamento, sobre a necessidade de reconciliar-se com o irmão, mesmo à custa de ter de interromper a oferta do sacrifício. (133) Jesus insiste muito neste tema da reconciliação fraterna, quando, por exemplo, convida a oferecer a outra face a quem nos bateu, ou a deixar também a capa a quem já se apossou da túnica; (134) ou quando inculca a lei do perdão, que cada um recebe na medida em que sabe perdoar, (135) perdão a oferecer também aos inimigos, (136) perdão a conceder setenta vezes sete, (137) ou seja, na prática, sem limite algum. Com estas condições, que só são realizáveis num clima genuinamente evangélico, é possível uma verdadeira reconciliação, quer entre os indivíduos, quer entre as famílias, as comunidades, as Nações e os povos. Destes dados bíblicos sobre a reconciliação promanará, naturalmente, uma catequese teológica, que integrará também na sua síntese os dados da psicologia, da sociologia e das outras ciências humanas, os quais podem servir para esclarecer as situações, enquadrar bem os problemas e persuadir os ouvintes ou leitores a tomarem resoluções concretas.

Dos Pastores da Igreja espera-se, ainda, uma catequese sobre a penitência. Também aqui a riqueza da mensagem bíblica deve ser a fonte. Esta mensagem acentua na penitência, primeiro que tudo, o seu valor de conversão, termo com o qual se procura traduzir a palavra do texto gregometánoia, (138) que literalmente significa um reviramento do espírito para o fazer voltar-se para Deus. São estes, aliás, os dois elementos fundamentais que emergem da parábola do filho perdido e reencontrado: o «cair em si» (139) e a decisão de voltar para o pai. Não pode haver reconciliação sem estas atitudes primordiais de conversão, e a catequese deve explicá-las com conceitos e expressões adaptados as várias idades e as diversas condições culturais, morais e sociais.

Trata-se de um primeiro valor da penitência, que se prolonga no segundo: penitência significa também arrependimento. Os dois sentidos da metánoia aparecem na significativa norma dada por Jesus: «Se o teu irmão se arrepender ( = voltar a ti), perdoa-lhe. E se te ofender sete vezes ao dia e sete vezes voltar a ti, dizendo: "Estou arrependido", hás-de perdoar-lhe». (140) Uma boa catequese deverá mostrar que o arrependimento, assim como a conversão, bem longe de ser um sentimento superficial, é uma verdadeira reviravolta da alma.

Um terceiro valor está contido ainda na penitência; trata-se do movimento pelo qual as anteriores atitudes de conversão e arrependimento se manifestam externamente: é o fazer penitência. Este significado é bem perceptível no termo metánoia, como é usado pelo Precursor, segundo o texto dos Sinópticos. (141) Fazer penitência quer dizer, além do mais, restabelecer o equilíbrio e a harmonia alterados pelo pecado, mudar de direcção mesmo à custa de sacrifícios.

Em suma, uma catequese sobre a penitência, o mais completa e adequada possível, é impreterível, num tempo como o nosso, em que as atitudes dominantes na psicologia e nos comportamentos sociais contrastam abertamente com o tríplice valor que foi ilustrado: mais do que nunca, o homem contemporâneo parece encontrar dificuldade em reconhecer os seus próprios erros e em decidir voltar atrás para retomar o caminho exacto, fazendo uma rectificação de marcha; parece experimentar grande relutância em dizer: «arrependo-me» ou «tenho muita pena»; parece recusar instintivamente, e muitas vezes irresistivelmente, tudo aquilo que é penitência, no sentido do sacrifício aceito e praticado para se corrigir do pecado. A este respeito, desejo sublinhar que, embora mitigada de há algum tempo a esta parte, a disciplina penitencial da Igreja não pode ser abandonada sem grave prejuízo, quer para a vida interior dos cristãos e da comunidade eclesial, quer para a sua capacidade de irradiação missionária. Não é raro que alguns não-cristãos fiquem surpreendidos com o fraco testemunho de verdadeira penitência da parte dos discípulos de Cristo. É claro, de resto, que a penitência cristã será autêntica, se for inspirada pelo amor, e não pelo mero temor; se consistir num sério esforço para crucificar o «homem velho», a fim de que possa renascer o «novo», por obra de Cristo; se seguir como modelo o mesmo Cristo, que, embora fosse inocente, escolheu o caminho da pobreza, da paciência, da austeridade e, pode dizer-se, da vida penitente.

Dos Pastores da Igreja espera-se ainda — como recordou o Sínodo — uma catequese sobre a consciência e a sua formação. É um tema de viva actualidade, também este, visto que, no meio dos abalos a que está sujeita a cultura do nosso tempo, com muita frequência é agredido, posto à prova, perturbado e obscurecido esse santuário interior, ou seja, o eu mais íntimo do homem: a sua consciência. Para uma catequese sapiente sobre a consciência podem encontrar-se indicações preciosas, quer nos Doutores da Igreja, quer na teologia do Concílio Vaticano II e, especialmente, em dois dos seus Documentos: sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (143) e sobre a Liberdade Religiosa. (143) Nesta mesma linha, o Sumo Pontífice Paulo VI pronunciou-se muitas vezes, para recordar a natureza e o papel da consciência na nossa vida. (144) Eu próprio, seguindo as suas pegadas, não deixo passar ocasião alguma para fazer luz sobre esta altíssima componente da grandeza e dignidade do homem, (145) sobre esta «espécie de sentido moral, que nos leva a distinguir o bem do mal (...), como que os olhos da alma, capacidade visual do espírito, em condições de guiar os nossos passos no caminho do bem; e insisto na necessidade de «formar cristãmente a própria consciência pessoal», a fim de esta não se tornar «numa força destruidora da humanidade verdadeira (da pessoa), mas ser sempre o lugar sagrado onde Deus lhe revela o seu verdadeiro bem». (146)

Também se espera que a catequese dos Pastores da Igreja incida sobre outros pontos, de não menor relevância para a reconciliação:

* Sobre o sentido do pecado, que — como disse — não pouco se tem vindo a atenuar no nosso mundo.

* Sobre a tentação e as tentações: o próprio Senhor Jesus, Filho de Deus, «provado em tudo, à nossa semelhança, excepto no pecado», (147) quis ser tentado pelo Maligno, (148) para indicar que, assim como ele, também os seus discípulos seriam submetidos à tentação; e, ainda, para mostrar como é necessário comportar-se na tentação. Para quem implora do Pai não ser tentado acima das próprias forças (149) e não sucumbir à tentação, (150) para quem não se expõe as ocasiões de pecado, o facto de ser submetido à tentação não significa ter pecado; mas é, prevalentemente, uma ocasião para crescer na fidelidade e na coerência, pela humildade e pela vigilância.

* Sobre o jejum: este pode praticar-se em formas antigas e novas, como sinal de conversão, de arrependimento e de mortificação pessoal; e, ao mesmo tempo, sinal de união com Cristo crucificado e de solidariedade com os que passam fome e que sofrem.

* Sobre a esmola: trata-se de um meio para tornar efectiva a caridade, partilhando aquilo que se possui com aqueles que sofrem as consequências da pobreza.

* Sobre o nexo íntimo que concatena a superação das divisões no mundo com a comunhão plena com Deus e entre os homens, finalidade escatológica da Igreja.

* Sobre as circunstâncias concretas em que a reconciliação (na família, na comunidade civil, nas estruturas sociais) se deve realizar; e, particularmente, sobre as quatro reconciliaçõesque consertam as quatro fracturas fundamentais: reconciliação do homem com Deus, consigo mesmo, com os irmãos e com o mundo criado.

E a Igreja não pode omitir, ainda, sem grave mutilação da sua mensagem essencial, uma constante catequese sobre as realidades que a linguagem cristã tradicional designa como os quatro novíssimos do homem: morte, juízo (particular e universal), inferno e paraíso. Numa cultura que tende a encerrar o homem nas suas vicissitudes terrestres, mais ou menos bem sucedidas, aos Pastores da Igreja é solicitada uma catequese que abra e ilumine, com as certezas da fé, o além da vida presente: para lá das misteriosas portas da morte, delineia-se uma eternidade de alegria na comunhão com Deus, ou de pena no afastamento d'Ele. Somente nesta visão escatológica é possível ter a medida exacta do pecado e sentir-se resolutamente impelido para a penitência e a reconciliação.

Não faltarão nunca aos Pastores de almas zelosos e dotados de inventiva as ocasiões para ministrar esta catequese assim, ampla e variada, tendo em conta a diversidade de cultura e de formação religiosa daqueles a quem se dirigem. Com frequência, proporcionam essas ocasiões as próprias leituras bíblicas e os ritos da Santa Missa e dos outros Sacramentos, bem como as próprias circunstâncias em que estes são celebrados. Muitos outras iniciativas podem ser tomadas com o mesmo objectivo, tais como: pregações, palestras, debates, encontros e cursos de cultura religiosa, etc., o que já sucede em muitas partes. Desejo aqui assinalar, em especial, a importância e a eficácia, que revestem para uma tal catequese, as antigas missões populares. Se forem adaptadas as peculiares exigências do nosso tempo, elas podem ser, hoje como ontem, um válido instrumento de educação na fé, também pelo que diz respeito ao sector da penitência e da reconciliação.

Dada a grande importância que tem a reconciliação, fundada sobre a conversão, no campo delicado da relações humanas e da convivência social a todos os níveis, incluindo o internacional, não pode faltar à catequese o precioso contributo da doutrina social da Igreja. O atento e preciso ensino dos meus Predecessores, a partir do Papa Leão XIII, ao qual veio unir-se a contribuição substanciosa da Constituição pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II e juntar-se a dos vários Episcopados, solicitados por diversas circunstâncias dos respectivos países, constitui um vasto e sólido corpo de doutrina a respeito das múltiplas exigências inerentes à vida da comunidade humana, as relações entre os indivíduos, famílias e grupos nos seus diversos âmbitos, e à própria constitução de uma sociedade que queira ser coerente com a lei moral, que é fundamento da civilização.

Na base deste ensino social da Igreja encontra-se, obviamente, a luz que ela vai buscar à Palavra de Deus: a respeito dos direitos e deveres dos indivíduos, da família e da comunidade; a respeito do valor da liberdade e das dimensões da justiça; a respeito do primado da caridade; a respeito da dignidade da pessoa humana e das exigências do bem comum, que deve ser tido em vista pela política e pela própria economia. É sobre estes princípios fundamentais do magistério social, que confirmam e reapresentam os ditames universais da razão e da consciência dos povos que se apoia, em grande parte, a esperança duma solução pacífica de tantos conflitos sociais e, em definitivo, da reconciliação universal.

(132)
1Tm 3,15.
(133) Cf. Mt 5,23 s.
(134) Cf. Mt 5,38-40.
(135) Cf. Mt 6,12.
(136) Cf. Mt 5,43 ss.
(137) Cf. Mt 18,21 s.
(138) Cf. Mc 1,4 Mc 1,14 Mt 3,2 Mt 4,17 Lc 3,8.
(139) Cf. Lc 15,17.
(140) Cf. Lc 17,3 s.
(141) Cf. Mt 3,2 Mc 1,2b; Lc 3,1-6.
(142) Cf. Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes, GS 8 GS 16 GS 19 GS 26 GS 41 GS 48.
(143) Cf. Declaração sobre a Liberdade Religiosa Dignitatis Humanae, DH 2 DH 3 DH 4.
(144) Cf. entre muitos outros, os discursos nas Audiências Gerais de 28 de Março de 1973:Insegnamenti, XI (1973), 294 ss.; 8 de Agosto de 1973: Ibidem, 772 ss.; 7 de Novembro de 1973: Ibidem, 1054 ss.; 13 de Março de 1974: Insegnamenti, XVI (1974), 230 ss.; 8 de Maio de 1974: Ibidem, 402 ss., 12 de Fevereiro de 1975: Insegnamenti, XIII (1975), 154 ss., 9 de Abril de 1975: Ibidem, 290 ss.; 13 de Julho de 1977: Insegnamenti, XV (1977), 710 ss.
(145) Cf. João Paulo II, Angelus de 17 de Março de 1982: Insegnamenti, V, 1 (1982), 860 s.
(146) Cf. João Paulo II, Discurso na Audiência Geral de 17 de Agosto de 1983, 1-3:Insegnamenti, VI, 2 (1983), 256 s.
(147) He 4,15.
(148) Cf. Mt 4,1-11 Mc 1,12 s.; Lc 4,1-13.
(149) Cf. 1Co 10,13.
(150) Cf. Mt 6,13 Lc 11,4.


Os Sacramentos

27 O segundo meio de instituição divina, que é oferecido pela Igreja à pastoral da penitência e da reconciliação, é constituído pelos Sacramentos.

No misterioso dinamismo dos Sacramentos, tão rico de simbolismos e de conteúdos, é possível perceber um aspecto nem sempre posto em realce: cada um deles, além da sua graça própria, é também sinal de penitência e reconciliação; e, por isso, em cada um deles, é possível reviver estas dimensões espirituais.

O Baptismo é, certamente, uma ablução salvífica que — como diz São Pedro — tem valor «não (como) purificação das impurezas do corpo, mas pela que consiste em pedir a Deus uma boa consciência». (151) é morte, sepultura e ressurreição com Cristo, morto, sepultado e ressuscitado.(152) é dom do Espírito Santo por intermédio de Cristo. (153) Mas esta dimensão constitutiva essencial e original do Baptismo, longe de eliminar, enriquece o elemento penitencial já presente no baptismo que o próprio Jesus recebeu de João «para se cumprir toda a justiça»: (154) um facto, portanto, de conversão e reintegração na justa ordem das relações com Deus, de reconciliação com Deus, com o apagamento da mancha original e a consequente inserção na grande família dos reconciliados.

Paralelamente, o Crisma, também como confirmação do Baptismo e, juntamente com ele, como Sacramento de iniciação, ao conferir a plenitude do Espírito Santo e ao encaminhar a vida cristã à idade adulta, significa e realiza, por isso exactamente, uma maior conversão do coração e uma mais íntima e efectiva inserção na assembleia dos reconciliados, que é a Igreja de Cristo.

A definição que dá Santo Agostinho da Eucaristia, como sacramento de piedade, sinal de unidade e vínculo da caridade («sacramentum pietatis, signum unitatis, vinculum caritatis»), (155) põe em evidência os efeitos de santificação pessoal (piedade) e de reconciliação comunitária (unidade e caridade), que derivam da própria essência do Mistério eucarístico, como renovação incruenta do sacrifício da Cruz e fonte de salvação e de reconciliação para todos os homens. É necessário, todavia, recordar que a Igreja, guiada pela fé neste augusto Sacramento, ensina que nenhum fiel cristão, consciente de estar em pecado grave, pode receber a Eucaristia sem ter obtido antes o perdão de Deus. Assim se lê na Instrução Eucharisticum Mysterium, a qual, devidamente aprovada pelo Papa Paulo VI, confirma todo o ensino do Concílio de Trento: «a Eucaristia há-de ser proposta aos fiéis "como antídoto que nos liberta das culpas de cada dia e nos preserva dos pecados mortais", e seja-lhes indicada a maneira conveniente para se utilizarem das partes penitênciais da liturgia da Missa. "A quem quiser comungar, seja recordado... o preceito: examine-se cada qual a si mesmo (
1Co 11,28). E a prática da Igreja demonstra que esse exame é necessário, para que ninguém, consciente de estar em pecado mortal, por mais contrito que se julgue, se aproxime da Sagrada Eucaristia antes da Confissão sacramental". E se alguém vier a encontrar-se em caso de necessidade e não tiver a possibilidade de se confessar, faça antes (de comungar) um acto de contrição perfeita».(156)

O Sacramento da Ordem destina-se a dar à Igreja os Pastores, os quais, além de mestres e guias, são chamados a ser também testemunhas e operadores de unidade, construtores da família de Deus, defensores e preservadores da comunhão desta família contra os fermentos de divisão e de dispersão.

O Sacramento do Matrimónio, exaltação do amor humano sob a acção da graça, é sinal, sim, do amor de Cristo pela Igreja, mas também da vitória que Ele concede aos esposos obterem sobre as forças que deformam e destroem o amor, de tal forma que a família, nascida deste Sacramento, se torna sinal também da Igreja reconciliada e reconciliadora, para um mundo reconciliado em todas as suas estruturas e instituições.

Por fim, a Unção dos Enfermos, na provação da doença e da velhice, especialmente na hora derradeira do cristão, é sinal da definitiva conversão ao Senhor, bem como da total aceitação da dor e da morte como penitência pelos pecados. E nisto actua-se a suprema reconciliação com o Pai.

Entre os Sacramentos, porém, há um, que, muito embora frequentemente chamado confissão, por motivo da acusação dos pecados que nele se faz, mais propriamente pode considerar-se oSacramento da Penitência por antonomásia, como de facto se chama; e, por isso, é o Sacramento da conversão e da reconciliação. Foi deste Sacramento que a recente Assembleia do Sínodo tratou, em particular, dada a importância que ele tem para a reconciliação.

(151) 1P 3,21.
(152) Cf. Rm 6,3 s.; Col 2,12.
(153) Cf. Mt 3,11 Lc 3,16 Jn 1,33 Ac 1,5 Ac 11,16.
(154) Cf. Mt 3,15.
(155) S. Agostinho, In Iohannis Evangelium tractatus, 26, 13: CCL 36, 266.
(156) S. Congregação dos Ritos, Instr. sobre o Culto do Mistério Eucarístico Eucharisticum Mysterium (25 de Maio de 1967), 35:AAS 59 (1967), 560 s.



CAPÍTULO SEGUNDO: O SACRAMENTO DA PENITÊNCIA E DA RECONCILIAÇÃO

28 Em todas as fases e a todos os níveis do seu decurso, o Sínodo considerou com a máxima atenção aquele sinal sacramental que representa e ao mesmo tempo realiza a penitência e a reconciliação. Este Sacramento não esgota em si mesmo, certamente, os conceitos de conversão e reconciliação. A Igreja, de facto, desde as suas origens, conhece e valoriza numerosas e variadas formas de penitência: algumas litúrgicas ou paralitúrgicas, que vão do acto penitencial da Missa as funções propiciatórias e as peregrinações; outras, de carácter ascético, como o jejum. No entanto, de todos esses actos nenhum é mais significativo, mais divinamente eficaz e mais elevado e ao mesmo tempo acessível no seu rito, do que o Sacramento da Penitência.

Desde a sua preparação e, sucessivamente, nas numerosas intervenções que se sucederam no seu decorrer, nos trabalhos de grupo e nas Propostas («Propositiones») finais, o Sínodo teve em conta a afirmação pronunciada muitas vezes em tons diversos e com diverso conteúdo: o Sacramento da Penitência está em crise; e desta crise tomou a devida nota. Recomendou uma aprofundada catequese, mas também, uma não menos aprofundada análise de carácter teológico, histórico, psicológico, sociológico e jurídico acerca da penitência em geral e do Sacramento da Penitência em particular. Com tudo isso teve a intenção de esclarecer os motivos da crise e abrir caminhos no sentido de uma sua solução positiva, para benefício da humanidade. Entretanto, do próprio Sínodo a Igreja recebeu uma confirmação clara da sua fé no que respeita ao Sacramento, pelo qual é dada a cada cristão e a toda a comunidade dos fiéis a certeza do perdão graças ao poder do Sangue redentor de Cristo.

É bom renovar e reafirmar esta fé num momento em que poderia debilitar-se, perder algo da sua integridade ou entrar numa zona de penumbra e de silêncio, ameaçada como se encontra pela já mencionada crise, no que ela tem de negativo. Insidiam, de facto, o Sacramento da Confissão: por um lado, o obscurecimento da consciência moral e religiosa, a atenuação do sentido do pecado, a adulteração do conceito do arrependimento, a escassa propensão para uma vida autenticamente cristã; por outro lado, a mentalidade, as vezes difundida, de que se poderia obter o perdão directamente de Deus, mesmo de modo ordinário, sem receber o Sacramento da Reconciliação, bem como a rotina de uma prática sacramental algumas vezes destituída de verdadeiro fervor e sem espontaneidade espiritual, originada, talvez, por uma consideração errada e degenerada dos efeitos do Sacramento.

Convém, portanto, recordar os principais aspectos deste grande Sacramento.


«A quem perdoardes»

29 O primeiro dado fundamental é-nos proporcionado pelos Livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento, no que diz respeito à misericórdia do Senhor e ao seu perdão. Nos Salmos e na pregação dos Profetas o nome de misericordioso é talvez o que mais frequentemente se atribui ao Senhor, em oposição ao persistente cliché, segundo o qual o Deus do Antigo Testamento é apresentado sobretudo como severo e punidor. Assim, nos Salmos, um longo discurso sapiencial, remontando à tradição do êxodo, reevoca a acção benigna de Deus no meio do seu povo. Tal acção, apesar da sua representação antropomórfica, é talvez uma das mais eloquentes proclamações vetero-testamentárias da misericórdia divina. Basta aqui recordar o versículo: «E Ele, misericordioso, perdoava-lhes a falta e não os exterminava; antes, muitas vezes conteve a sua cólera e não deixou acender-se o seu furor, recordando que eram simples carne, sopro que se esvai e não volta». (157)

Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus, vindo como o Cordeiro que tira e carrega sobre si o pecado do mundo, (158) aparece como aquele que tem poder, quer de julgar, (159) quer de perdoar os pecados (160) e que veio não para condenar, mas para perdoar e salvar. (161)

Ora este poder de perdoar os pecados Jesus confere-o, mediante o Espírito Santo, a simples homens, sujeitos também eles próprios à insídia do pecado, isto é, aos seus Apóstolos: «Recebei o Espírito Santo: a quem perdoardes os pecados ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes ficar-lhes-ão retidos».(162) Esta é uma das mais formidáveis novidades evangélicas! Jesus confere tal poder aos Apóstolos também como transmissível — assim o entendeu a Igreja desde o seu dealbar — aos seus sucessores, investidos pelos mesmos Apóstolos na missão e na responsabilidade de continuar a sua obra de anunciadores do Evangelho e de ministros da obra redentora de Cristo.

Aqui aparece em toda a sua grandeza a figura do ministro do Sacramento da Penitência, chamado, por antiquíssimo costume, o confessor.

Como no altar onde celebra a Eucaristia e como em cada um dos Sacramentos, o Sacerdote, ministro da Penitência, age «in persona Christi». O mesmo Cristo, por ele tornado presente e que por meio dele actua o mistério da remissão dos pecados, é Aquele que aparece como irmão do homem,(163) pontífice misericordioso, fiel e cheio de compaixão, (164) pastor decidido a procurar a ovelha perdida, (165) médico que cura e conforta, (166) mestre único que ensina a verdade e indica os caminhos de Deus, (167) juiz dos vivos e dos mortos, (168) que julga segundo a verdade e não segundo as aparências. (169)

Trata-se, sem dúvida, do ministério mais difícil e delicado, do mais cansativo e exigente; mas também de um dos mais belos e consoladores ministérios do Sacerdote; e, precisamente por isto, atendendo à vigorosa chamada do Sínodo, nunca me cansarei de pedir aos meus Irmãos, Bispos e Presbíteros, o seu fiel e diligente desempenho. (170)

Perante a consciência do fiel, que a ele se abre, com um misto de tremor e de confiança, o confessor é chamado a uma tarefa sublime que é serviço à causa da penitência e da reconciliação humana: conhecer as fraquezas e as quedas, de um determinado fiel, avaliar o seu desejo de recuperação e os esforços para a conseguir, discernir a acção do Espírito santificador no seu coração, comunicar-lhe o perdão que só Deus pode conceder, «celebrar» a sua reconciliação com o Pai representada na parábola do filho pródigo, reinserir esse pecador resgatado na comunhão eclesial com os irmãos e advertir paternalmente esse penitente com um firme, encorajador e amigável «doravante não tornes a pecar». (171)

Para o exercício eficaz de tal ministério, o confessor tem de possuir necessariamente qualidades humanas de prudência, discreção, discernimento e firmeza temperada pela mansidão e bondade. Deve ter, ainda, séria e cuidada preparação, não fragmentária mas integral e harmónica, nos diversos ramos da teologia, na pedagogia e na psicologia, na didáctica catequética, na metodologia do diálogo e, sobretudo, no conhecimento vivo e comunicativo da Palavra de Deus. Mas é mais necessário ainda que ele viva uma vida espiritual intensa e genuína. Para guiar os outros pelos caminhos da perfeição cristã, o ministro da Penitência deve percorrer, ele próprio, primeiro, este caminho; e mais com obras do que com palavras exuberantes, dar mostras de real experiência da oração vivida, de prática das virtudes evangélicas teologais e morais, de fiel obediência à vontade de Deus, de amor à Igreja e de docilidade ao seu Magistério.

Todo este aparato de dotes humanos, de virtudes cristãs e de capacidades pastorais não se improvisa nem se adquire sem esforço. Para o ministério da Penitência sacramental cada Sacerdote deve ser preparado desde os anos do Seminário: juntamente com o estudo da teologia dogmática, moral, espiritual e pastoral (que são sempre uma só teologia), com as ciências do homem e com a metodologia do diálogo e, especialmente, do colóquio pastoral. Há-de, ainda, ser iniciado e amparado nas primeiras experiências. Deverá cuidar sempre do próprio aperfeiçoamento e actualização, com o estudo permanente. Que tesouros de graça, de verdadeira vida e de irradiação espiritual não adviriam à Igreja, se cada Sacerdote se mostrasse cuidadoso em nunca faltar, por negligência ou desculpas várias, ao encontro com os fiéis no confessionário e tivesse ainda maior cuidado de nunca aí se sentar sem preparação, ou sem as indispensáveis qualidades humanas e condições espirituais e pastorais!

A este propósito não posso deixar de evocar, com devota admiração, as figuras de extraordinários apóstolos do confessionário, como São João Nepomuceno, São João Maria Vianney, São José Cafasso e São Leopoldo de Castelnuovo, para falar só de alguns mais conhecidos, que a Igreja inscreveu no album dos seus Santos. Mas desejo igualmente prestar homenagem à inumerável pléiade de confessores santos e quase sempre anónimos, aos quais se ficou a dever a salvação de tantas almas, por eles ajudadas na conversão, na luta contra o pecado e as tentações, no progresso espiritual e, em definitivo, na santificação. Não hesito em afirmar que os grandes Santos canonizados sairam geralmente desses confessionários e, com os Santos, o património espiritual da Igreja e o próprio florescimento de uma civilização impregnada de espírito cristão! Honra seja, portanto, a este silencioso exército de irmãos nossos, que bem serviram e servem cada dia a causa da reconciliação, mediante o ministério da Penitência sacramental!

(157)
Ps 78,38 (77), 38 s.
(158) Cf. Jn 1,29 Is 53,7 Is 53,12.
(159) Cf. Jn 5,27.
(160) Cf. Mt 9,2-7 Lc 5,18-25 Lc 7,47-49 Mc 2,3-12.
(161) Cf. Jn 3,17.
(162) Jn 20,22 Mt 18,18; cf. também, pelo que diz respeito a Pedro, Mt 16,19. O Beato Isac della Stella, num seu discurso sobre a plena comunhão de Cristo com a Igreja no que se refere à remissão dos pecados, acentua: «A Igreja nada pode perdoar sem Cristo e Cristo nada quer perdoar sem a Igreja. A Igreja não pode perdoar senão a quem é penitente, isto é, a quem Cristo tocou com a sua graça; e Cristo nada quer considerar como perdoado a quem despreza a sua Igreja»: Sermo11 (In dominica III post Epiphaniam, I): PL 194, 1729.
(163) Cf. Mt 12,49 s.; Mc 3,33 s.; Lc 8,20 s.; Rm 8,29: «primogénito entre muitos irmãos».
(164) Cf. He 2,17 He 4,15.
(165) Cf. Mt 18,12 s.; Lc 15,4-6.
(166) Cf. Lc 5,31 s.
(167) Cf. Mt 22,16.
(168) Ac 10,42.
(169) Jn 8,16.
(170) Cf. Discurso aos Penitenciários das Basílicas Patriarcais de Roma e aos Sacerdotes confessores, ao terminar o Jubileu da Redenção (9 de Julho de 1984): L'Osservatore Romano, 9-10 de Julho de 1984.
(171) Jn 8,11.


O Sacramento do Perdão

30 Pela revelação do valor deste ministério e do poder de perdoar os pecados, conferido por Cristo aos Apóstolos e aos seus sucessores, desenvolveu-se na Igreja a consciência do sinal do perdão, concedido mediante o Sacramento da Penitência; ou seja, a certeza, de que o próprio Senhor Jesus instituíu e confiou à Igreja — qual dom da sua benignidade e da sua «filantropía», (172) a proporcionar a todos os homens — um especial Sacramento para a remissão dos pecados cometidos depois do Baptismo.

A prática deste Sacramento, pelo que se refere à sua celebração e à sua forma, conheceu um longo processo de desenvolvimento, como atestam os mais antigos sacramentários, as actas dos Concílios e dos Sínodos episcopais, a pregação dos Padres e o ensino dos Doutores da Igreja Mas quanto àsubstância do Sacramento, permaneceu sempre sólida e imutável, na consciência da Igreja, acerteza de que, por vontade de Cristo, o perdão é oferecido a cada um por meio da absolvição sacramental, dada pelos ministros da Penitência; esta certeza é reafirmada com particular vigor, quer pelo Concílio de Trento, (173) quer pelo Concílio Vaticano II: «Aqueles que se aproximam do Sacramento da Penitência recebem da misericórdia de Deus o perdão das ofensas que lhe fizeram e, ao mesmo tempo, reconciliam-se com a Igreja, à qual infligiram uma ferida com o pecado: a Igreja que coopera na sua conversão com a caridade, com o exemplo e a oração». (174) E como dado essencial da fé sobre o valor e a finalidade da Penitência deve reafirmar-se que «o nosso Salvador Jesus Cristo instituiu na sua Igreja o Sacramento da Penitência, para que os fiéis caidos no pecado depois do Baptismo recebessem a graça e se reconciliassem com Deus». (175)

A fé da Igreja neste Sacramento comporta algumas outras verdades fundamentais, que são ineludíveis. O rito sacramental da Penitência, na sua evolução e variação de formas práticas, sempre conservou e realçou claramente essas verdades. O Concílio Vaticano II, ao prescrever a reforma deste rito, tinha em vista fazer com que ele exprimisse ainda com mais clareza tais verdades, (176) o que se verificou com o novo Ritual da Penitência. (177) Este, de facto, assumiu na sua integridade a doutrina da tradição coligida pelo Concílio de Trento, transferindo-a do seu particular contexto histórico (o de um esforço corajoso de esclarecimento doutrinal, defronte aos graves desvios em relação ao genuino ensino da Igreja) para a traduzir fielmente em termos mais adequados ao contexto do nosso tempo.

(172) Cf.
Tt 3,4.
(173) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. I e cân. 1:Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 703 s., 711 (DS 1668-1670 DS 1701).
(174) Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, LG 11.
(175) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. I e cân. 1:Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 703 s., 711 (DS 1668-1670 DS 1701).
(176) Cf. Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, SC 72.
(177) Cf. Rituale Romanum ex Decreto Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II instauratum, auctoritate Pauli VI promulgatum. Ordo Paenitentiae, Typis Polyglottis Vaticanis, 1974.



Reconciliatio et paenitentia PT 26