Reconciliatio et paenitentia PT 31

Algumas convicções fundamentais

31 As menciondas verdades, reafirmadas com energia e clareza pelo Sínodo e presentes nasPropostas («Propositiones»), podem resumir-se nas convicções de fé, que a seguir enuncio e à volta das quais se reúnem todas as outras afirmações da doutrina católica sobre o Sacramento da Penitência.

I. A primeira convicção é que, para um cristão, o Sacramento da Penitência é a via ordináriapara obter o perdão e a remissão dos seus pecados graves cometidos depois do Baptismo. O divino Salvador e a sua acção salvífica, certamente, não estão ligados a um sinal sacramental, de maneira a não poderem em qualquer tempo e circunstância da história da salvação agir fora e acima dos Sacramentos. Mas na escola da fé aprendemos que o mesmo Salvador quis e dispôs que os humildes e preciosos Sacramentos da fé sejam ordinariamente os meios eficazes, pelos quais passa e opera o seu poder redentor. Seria portanto insensato, além de presunçoso, querer prescindir arbitrariamente dos instrumentos de graça e de salvação que o Senhor dispôs e, no caso específico, pretender receber o perdão, pondo de lado o Sacramento, instituído por Cristo exactamente para o perdão. A renovação dos ritos, levada a efeito depois do Concílio, não deixa margem para qualquer confusão ou alteração neste sentido. A mesma renovação devia e deve servir, segundo a intenção da Igreja, para suscitar em cada um de nós um novo impulso para a renovação da nossa atitude interior, ou seja, para a compreensão mais profunda da natureza do Sacramento da Penitência; para um seu acolhimento mais repassado de fé, não ansioso mas confiante; para uma maior frequência do Sacramento, que se apresenta totalmente impregnado pelo amor misericordioso do Senhor.

II. A segunda convicção diz respeito à função do Sacramento da Penitência para aqueles que a ele recorrem. Segundo a mais antiga concepção da Tradição trata-se de uma espécie de acto judicial; mas este acto decorre junto de um tribunal mais de misericórdia, do que de estrita e rigorosa justiça, pelo que não é comparável aos tribunais humanos, (178) senão por analogia; ou seja, na medida em que o pecador aí descobre os seus pecados e a sua própria condição de criatura sujeita ao pecado; se compromete a renunciar e a combater o pecado; aceita a pena (penitência sacramental) que o confessor lhe impõe e dele recebe a absolvição.

Ao reflectir, porém, sobre a função deste Sacramento, a consciência da Igreja vislumbra nele, além do carácter judicial, no sentido acima aludido, um carácter terapêutico ou medicinal. E isto relaciona-se com o facto, frequente no Evangelho, da apresentação de Cristo como médico, (179)enquanto a sua obra redentora é muitas vezes chamada, desde a antiguidade cristã, «remédio da salvação» («medicina salutis»). «Eu quero curar, não acusar», dizia Santo Agostinho, referindo-se ao exercício da pastoral penitêncial, (180) e é graças ao remédio da confissão que a experiência do pecado não degenera em desespero. (181) O Ritual da Penitência alude a este aspecto medicinal do Sacramento, (182) ao qual o homem contemporâneo é talvez mais sensível, vendo no pecado o que ele comporta de erro, obviamente, e mais ainda aquilo que ele indica relacionado com a fraqueza e enfermidade humanas.

Tribunal de misericórdia ou lugar de cura espiritual, sob ambos os aspectos o Sacramento exige um conhecimento do íntimo do pecador, para o poder julgar e absolver, para tratar dele e o curar. E precisamente por isto, implica, da parte do penitente, a acusação sincera e completa dos pecados, que tem assim uma razão de ser, não só inspirada em fins ascéticos (como exercício de humildade e de mortificação), mas inerente à própria natureza do Sacramento.

III. A terceira convicção que desejo aqui salientar, diz respeito as realidades ou partes que compõem o sinal sacramental do perdão e da reconciliação. Algumas destas realidades são actos do penitente, de importância diversa, mas cada um deles indispensável ou para a validade ou para a integridade ou para o fruto do sinal.

Uma condição indispensável, primeiro que tudo, é a rectidão e a limpidez da consciência do penitente. Um homem não se põe a caminho para uma verdadeira e genuína penitência, enquanto não perceber que o pecado contrasta com a norma ética, inscrita no íntimo do próprio ser; (183)enquanto não reconhecer ter feito a experiência pessoal e responsável de uma tal oposição; enquanto não disser não apenas «o pecado existe», mas «eu pequei»; enquanto não admitir que o pecado introduziu na sua consciência uma divisão, que avassala todo o seu ser e o separa de Deus e dos irmãos. O sinal sacramental desta limpidez da consciência é o acto tradicionalmente chamado exame de consciência, acto que deveria ser sempre, não tanto uma introspecção psicológica ansiosa, mas o confronto sincero e sereno com a lei moral interior, com as normas evangélicas propostas pela Igreja, com o próprio Jesus Cristo, que é para nós mestre e modelo de vida e com o Pai celeste que nos chama ao bem e à perfeição. (184)

Mas o acto essencial da Penitência, da parte do penitente, é a contrição, ou seja, um claro e decidido repúdio do pecado cometido, juntamente com o propósito de não o tornar a cometer, (185)pelo amor que se tem a Deus e que renasce com o arrependimento. Entendida deste modo a contrição é, pois, o princípio e a alma da conversão, daquela metánoia evangélica que reconduz o homem a Deus, como o filho pródigo que volta ao pai, e que tem no Sacramento da Penitência o seu sinal visível e aperfeiçoador da própria atrição. Por isso, «desta contrição do coração depende a verdade da penitência». (186)

Supondo e chamando a atenção para tudo aquilo que a Igreja, inspirada pela palavra de Deus, ensina acerca da contrição, está-me particularmente a peito, neste ponto, salientar um aspecto de tal doutrina, para que seja melhor conhecido e mais tido presente. Não raro se considera a conversão e a contrição sob o aspecto das inegáveis exigências que elas comportam e da mortificação que impõem em ordem a uma radical mudança de vida. Mas é bom recordar e acentuar que contrição econversão são, sobretudo, uma aproximação da santidade de Deus, um reencontro da própria verdade interior, obscurecida e transtornada pelo pecado , um libertar-se no mais profundo de si próprio e, por isso, um reconquistar a alegria perdida, a alegria de ser salvado, (187) que a maioria dos homens do nosso tempo já não sabe saborear.

Compreende-se, assim, que desde os primeiros tempos cristãos, em ligação com os Apóstolos e com Cristo, a Igreja tenha incluído no sinal sacramental da Penitência a acusação dos pecados. Esta aparece como tão relevante que, desde há séculos, o nome usual do Sacramento foi e é ainda agora o de confissão.Acusar os próprios pecados é exigido, antes de mais, pela necessidade do pecador ser conhecido por aquele que no Sacramento exerce o papel de juiz, o qual deve avaliar, quer a gravidade dos pecados, quer o arrependimento do penitente; e, simultaneamente, o papel de médico, que deve conhecer o estado do enfermo para tratar dele e o curar. Mas a confissão individual tem também o valor de sinal: sinal do encontro do pecador com a mediação eclesial na pessoa do ministro; sinal do seu pôr-se a descoberto diante de Deus e da Igreja como pecador, do esclarecer-se a si mesmo sob o olhar de Deus. A acusação dos pecados, portanto, não pode ser reduzida a qualquer tentativa de autolibertação psicológica, ainda que esta corresponda a uma necessidade legítima e natural de abrir-se com alguém, o que é algo ínsito no coração do homem. Trata-se de um gesto litúrgico, solene na sua dramaticidade, humilde e sóbrio na grandeza do seu significado. É o gesto do filho pródigo que volta para junto do pai e por ele é acolhido com o beijo da paz; gesto de lealdade e de coragem; gesto de entrega de si mesmo, passando além do pecado, à misericórdia que perdoa. (188)

Compreende-se, então, por que é que a acusação dos pecados deve ser ordinariamente individual e não colectiva, tal como o pecado é um facto profundamente pessoal. Ao mesmo tempo, porém, esta acusação arranca, de certo modo, o pecado do segredo do coração e, por conseguinte, do âmbito da pura individualidade, pondo em relevo o seu carácter social, uma vez que, mediante o ministro da Penitência, é a Comunidade eclesial, lesada pelo pecado, que acolhe de novo o pecador arrependido e perdoado.

O outro momento essencial do Sacramento da Penitência, compete, por sua vez, ao confessor juiz e médico, imagem de Deus Pai que acolhe aquele que regressa e lhe perdoa: é a absolvição. As palavras que a exprimem e os gestos que a acompanham no antigo e no novo Ritual da Penitência, revestem-se de uma significativa simplicidade na sua grandeza. A fórmula sacramental: «Eu te absolvo...», a imposição das mãos e o sinal da cruz traçado sobre o penitente manifestam quenaquele momento o pecador contrito e convertido entra em contacto com o poder e a misericórdia de Deus. É em tal momento que, em resposta ao penitente, a Santíssima Trindade se torna presente para apagar o seu pecado e restituir-lhe a inocência; e a força salvífica da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus é comunicada ao mesmo penitente, como «misericórdia mais forte do que a culpa e a ofensa», como a designei na Encíclica Dives in Misericordia. Deus é sempre o principal ofendido pelo pecado — «Pequei só contra Vós!» («tibi soli peccavi!») — e só Deus pode perdoar. Por isso, a absolvição que o Sacerdote, ministro do perdão, embora também ele pecador, concede ao penitente, é o sinal eficaz da intervenção do Pai em cada absolvição e da «ressurreição» da «morte espiritual» que se renova todas as vezes que é actuado o Sacramento da Penitência. Só a fé pode assegurar que naquele momento todos e cada um dos pecados são perdoados e apagados pela misteriosa intervenção do Salvador.

A satisfação é o acto final que coroa o sinal sacramental da Penitência. Em alguns países, o que o penitente perdoado e absolvido aceita cumprir depois de ter recebido a absolvição, chama-se precisamente penitência.Qual é o significado desta satisfação que se dá ou desta penitência que se faz? Não é certamente o preço que se paga pelo pecado absolvido e pelo perdão alcançado: nenhum preço humano pode equivaler ao que se obteve, fruto do preciosíssimo Sangue de Cristo. As obras de satisfação — que, embora conservando um carácter de simplicidade e de humildade, deveriam tornar-se mais expressivas de tudo aquilo que significam — querem dizer algo de precioso: são o sinal docompromisso pessoal que o cristão assumiu com Deus, no Sacramento, de começar uma existência nova (e por isso não deveriam reduzir-se somente a algumas fórmulas a recitar, mas consistir em obras de culto, de caridade, de misericórdia e de reparação); incluem a ideia de que o pecador perdoado é capaz de unir a sua própria mortificação física e espiritual, procurada ou ao menos aceite, à Paixão de Jesus que lhe alcançou o perdão; recordam que, mesmo depois da absolvição, permanece no cristão uma zona de sombra devida as feridas do pecado, à imperfeição do amor no arrependimento, ao enfranquecimento das faculdades espirituais em que continua ainda activo um foco infeccioso de pecado, que é preciso combater sempre com a mortificação e a penitência. Tal é o significado da humilde mas sincera satisfação. (189)

IV. Resta-me fazer uma breve referência a outras importantes convicções relativas ao Sacramento da Penitência.

Antes de mais, é preciso insistir em que não há nada mais pessoal e íntimo do que este Sacramento, no qual o pecador se encontra na presença de Deus, só, com a sua culpa, o seu arrependimento e a sua confiança. Ninguém pode arrepender-se em seu lugar ou pode pedir perdão em seu nome. Há uma certa solidão do pecador na sua culpa, que se pode ver dramaticamente representada em Caim com o pecado «à espreita à sua porta», como diz tão eficazmente o livro do Génesis, e marcado com o sinal particular na sua fronte; (190) em David, repreendido pelo profeta Natan; (191) ou no filho pródigo, quando toma consciência da condição à qual se reduziu pelo afastamento do pai e decide voltar para junto dele: (192) tudo se passa só entre o homem e Deus. Mas, ao mesmo tempo, é inegável a dimensão social deste Sacramento, no qual é toda a Igreja — a militante, a purgante e a triunfante no Céu — que intervém em auxílio do penitente e o acolhe de novo no seu seio, tanto mais que toda a Igreja fora ofendida e ferida pelo seu pecado. O Sacerdote, ministro da Penitência, em virtude da sua função sagrada, aparece como testemunha e representante de tal eclesialidade. São dois aspectos complementares do Sacramento, a individualidade e a eclesialidade, que a progressiva reforma do rito da Penitência, especialmente a do Ordo Paenitentiae (novo Ritual) promulgado pelo Papa Paulo VI, procurou realçar e tornar mais significativos na sua celebração.

V. É de salientar, ainda, que o fruto mais precioso do perdão, obtido pela Penitência, consiste na reconciliação com Deus, a qual se verifica no segredo do coração do filho pródigo, e reencontrado, que é cada penitente. Mas é preciso acrescentar que tal reconciliação com Deus tem como consequência, por assim dizer, outras reconciliações, que vão remediar outras tantas rupturas, causadas pelo pecado: o penitente perdoado reconcilia-se consigo próprio no íntimo mais profundo do próprio ser, onde recupera a própria verdade interior; reconcilia-se com os irmãos, por ele de alguma maneira agredidos e lesados; reconcilia-se com a Igreja; e reconcilia-se com toda a criação. A tomada de consciência de tudo isto faz nascer no penitente, no final da celebração, um sentimento de gratidão para com Deus pelo dom da misericórdia que recebeu; e a Igreja convida-o à acção de graças.

Todos os confessionários são um espaço privilegiado e abençoado, do qual, uma vez eliminadas as divisões, surge, novo e incontaminado, um homem reconciliado — um mundo reconciliado!

VI. E por fim, está-me particularmente a peito fazer uma última consideração que nos diz respeito a todos nós Sacerdotes, que somos os ministros do Sacramento da Penitência, mas que somos também — e devemos sê-lo sempre — os beneficiários. A vida espiritual e pastoral do Sacerdote, como a dos seus irmãos leigos e religiosos, depende, na sua qualidade e no seu fervor, da prática pessoal assídua e conscienciosa do Sacramento da Penitência. (193)

A celebração da Eucaristia e o ministério dos outros Sacramentos, o zelo pastoral, a relação com os fiéis, a comunhão com os irmãos Sacerdotes, a colaboração com o Bispo, a vida de oração, numa palavra, toda a existência sacerdotal sofre inexorável decadência, se lhe falta por negligência ou por qualquer outro motivo o recurso, periódico e inspirado por fé autêntica e devoção, ao Sacramento da Penitência. Num sacerdote que deixasse de se confessar ou se confessasse mal, o seu ser padree o exercício do seu Sacerdócio bem depressa se ressentiriam e disso se daria conta a própria Comunidade de que ele é pastor.

Mas acrescento também que, até para ser bom e eficaz ministro da Penitência, o Sacerdote precisa de recorrer à fonte da graça e santidade presente neste Sacramento. Nós Sacerdotes, com base na nossa experiência pessoal, bem podemos dizer que, na medida em que procuramos recorrer ao Sacramento da Penitência e nos aproximamos dele com frequência e com boas disposições, desempenhamos melhor o nosso próprio ministério de confessores e melhor asseguramos aos penitentes o seu benefício. De outro modo, este ministério perderia muito da sua eficácia, se de alguma maneira deixássemos de ser bons penitentes. Tal é a lógica interna deste grande Sacramento. Ele convida-nos, a todos nós Sacerdotes de Cristo, a uma renovada atenção à nossa confissão pessoal.

A experiência pessoal, por sua vez, torna-se e deve tornar-se hoje um estímulo para o exercício diligente, pontual, paciente e fervoroso do ministério sagrado da Penitência, a que estamos comprometidos por força do nosso Sacerdócio e da nossa vocação para ser pastores e servidores dos nossos irmãos. Assim, com a presente Exortação, quero dirigir um instante apelo a todos os Sacerdotes do mundo, especialmente aos meus Irmãos no Episcopado e aos Párocos, para que favoreçam com todas as veras a frequência dos fiéis a este Sacramento, ponham em prática todos os meios possíveis e convenientes e tentem todas as vias para fazer chegar ao maior número de irmãos nossos a «graça que nos foi dada» mediante a Penitência, para a reconciliação de cada alma e de todo o mundo com Deus, em Cristo.



As formas da celebração

32 Seguindo as indicações do Concílio Vaticano II, o Ordo Paenitentiae predispôs três ritos que, ressalvados sempre os elementos essenciais, permitem adaptar a celebração do Sacramento da Penitência a determinadas circunstancias pastorais.

A primeira forma — reconciliação individual dos penitentes — constitui o único modo normal e ordinário da celebração sacramental, e não pode nem deve deixar-se cair em desuso ou ser descurada. A segunda — reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição individual— ainda que permita, nos actos preparatórios, realçar mais os aspectos comunitários do Sacramento, vai confluir na primeira forma no acto sacramental culminante, que é o da confissão e a absolvição individuais dos pecados; e, por isso, pode ser equiparada à primeira forma no que toca à normalidade do rito. A terceira, ao contrário — reconciliação de vários penitentes com a confissão e a absolvição geral — reveste-se de carácter excepcional e não é, por isso, deixada à livre escolha, mas é regulada por uma disciplina especial.

A primeira forma permite a valorização dos aspectos mais pessoais — e essenciais — que estão compreendidos no itinerário penitencial. O diálogo entre o penitente e o confessor, o próprio conjunto dos subsídios utilizados (os textos bíblicos, a escolha das formas de «satisfação», etc.) são elementos que tornam a celebração sacramental mais correspondente à situação concreta do penitente. Descobre-se o valor de tais elementos, quando se pensa nas diversas razões que levam um cristão à penitência sacramental: necessidade de reconciliação pessoal e readmissão na amizade com Deus, recuperando a graça perdida por causa do pecado; necessidade de verificação do caminho espiritual e, por vezes, de um mais preciso discernimento vocacional; e, tantas outras vezes, uma necessidade e um desejo de sair de um estado de apatia espiritual e de crise religiosa. Graças, ainda, à sua índole individual, a primeira forma de celebração permite associar o Sacramento da Penitência a algo de diferente, mas perfeitamente conciliável com ele: refiro-me à direcção espiritual. Por conseguinte, é óbvio que a decisão e o empenho pessoais estão claramente significados e solicitados nessa primeira forma.

A segunda forma de celebração, precisamente pelo seu carácter comunitário e pela modalidade celebrativa que a caracteriza, faz ressaltar alguns aspectos de grande importância: a Palavra de Deus, escutada em comum, tem um efeito singular, em relação à sua leitura individual, e evidencia melhor o carácter eclesial da conversão e da reconciliação. Essa celebração resulta particularmente significativa nos diversos tempos do ano litúrgico e em conexão com acontecimentos de especial relevância pastoral. Basta acenar aqui, apenas, que para tal celebração importa haver a presença de um número suficiente de confessores.

É natural, portanto, que os critérios para estabelecer a qual das duas formas de celebração se deva recorrer sejam ditados, não por motivações conjunturais e subjectivas, mas pelo desejo de obter o verdadeiro bem espiritual dos fiéis, em obediência à disciplina penitencial da Igreja.

Será bom recordar também que, para uma equilibrada orientação espiritual e pastoral neste campo, é necessário continuar a atribuir grande valor ao Sacramento da Penitência e educar os fiéis a recorrerem a ele, mesmo só para os pecados veniais, como atestam uma tradição doutrinal e uma prática já seculares.

Mesmo sabendo e ensinando que os pecados veniais são perdoados também de outros modos — pense-se nos actos de contrição, na obras de caridade, na oração e nos ritos penitenciais — a Igreja não cessa de recordar a todos a singular riqueza do momento sacramental também pelo que se refere a tais pecados. O recurso frequente ao Sacramento — a que estão obrigadas algumas categorias de fiéis — reforça a consciência de que também os pecados menores ofendem a Deus e ferem a Igreja, corpo de Cristo; e a celebração do mesmo Sacramento torna-se para todos os cristãos «ocasião e estímulo a conformarem-se mais intimamente com Cristo e a tornarem-se mais dóceis à voz do Espírito». (194) Sobretudo deve frisar-se bem o facto de a graça própria da celebração sacramental ter grande eficácia terapêutica e contribuir para arrancar as próprias raízes do pecado.

O cuidado dispensado ao aspecto celebrativo, (195) com particular referência à importância da Palavra de Deus, lida, evocada e explicada, quando for possível e oportuno, aos fiéis e com os fiéis, contribuirá para vivificar a prática do Sacramento e para impedir que decaia para algo de formal e rotineiro. O penitente há-de ser ajudado sobretudo a descobrir que está a viver um acontecimento de salvação, capaz de infundir nele um novo impulso de vida e uma verdadeira paz no seu coração. Este cuidado pela celebração há-de levar, ainda, entre outras coisas, a fixar em cada Igreja tempos destinados à celebração do Sacramento e a educar os fiéis, especialmente as crianças e os jovens, a aterem-se a eles, ordinariamente, salvo a casos de necessidade, em relação aos quais o pastor de almas deverá mostrar-se sempre pronto a acolher de boa vontade quem a ele recorrer.

(178) O Concílio de Trento usa a expressão atenuada «ad instar actus iudicialis» (Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. 6: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 707 (
DS 1685), para frisar a diferença relativamente aos tribunais humanos. O novo Ritual da Penitência alude a esta função, nn. 6 b e 10 a.
(179) Cf. Lc 5,31 s.: Não são os que gozam de saúde que precisam de médico, mas sim os que estão doentes», com a conclusão: «Eu (...) vim para chamar (...) os pecadores para que se arrependam; Lc 9,2: «enviou-os a pregar o Reino de Deus e a curar os enfermos». A imagem de Cristo-médico adquire novas e impressionantes tonalidades, se a pusermos em confronto com a figura daquele «Servo de Javé» do qual o Livro de Isaías profetizava que «ele tomou sobre si as nossas enfermidades carregou-se com as nossas dores» e que «pelas suas chagas nós fomos curados» (Is 53,4 s.).
(180) S. Agostinho, Sermo 82 8: PL 38, 511.
(181) Cf. S. Agostinho, Sermo 352, 3, 8-9- PL 39, 1558 s.
(182) Cf. Ordo Paenitentiae 6 c.
(183) Já os pagãos — como Sófocles (Antígona vv. 450-460) e Aristóteles (Rhetor., lib. I, cap. 15, 1375 a-b) reconheciam a existência de normas morais «divinas», que existiram «desde sempre» profundamente gravadas no coração do homem.
(184) Sobre este papel de consciência, cf. aquilo que tive ocasião de dizer no decorrer da Audiência Geral de 14 de Março de 1984, 3: Insegnamenti, VII, 1 (1984), 683.
(185) Cf. Conc. Ecum. Tridentino, Sessio XIV, De sacramento Poenitentiae, cap. IV De contritione: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, ed. cit., 705 (DS 1676-1677). Como é conhecido, para se aproximar do sacramento da Penitência é suficiente a atrição, ou seja, um arrependimento imperfeito, devido mais ao temor do que ao amor; mas, no âmbito do Sacramento, sob a acção da graça que recebe, o penitente «ex attrito fit contritus»; de tal modo que a Penitência, de facto, produz como efeito em quem se aproximar dela bem disposto a conversão no amor: cf. Conc. Ecum. Tridentino, ibidem, ed. cit., 705 (DS 1678).
(186) Cf. Ordo Paenitentiae, 6 c.
(187) Cf. Ps 51,14 (50), 14.
(188) Sobre estes aspectos da Penitência, todos eles fundamentais, tive ocasião de falar nas Audiência Gerais de: 19 de Maio de 1982: Insegnamenti V, 2 (1982), 1758 ss.; 28 de Fevereiro de 1979: Insegnamenti, II (1979), 475-478; de 21 de Março de 1984: Insegnamenti, VII, 1 (1984), 720-722. Chama-se também a atenção para as normas do Código de Direito Canónico, que dizem respeito ao lugar para a administração do Sacramento e aos confessionários (cân. 964, 2-3).
(189) Tratei resumidamente do tema no decorrer da Audiência Geral de 7 de Março de 1984:Insegnamenti, VII, 1 (1984), 63 1-633.
(190) Cf. Gn 4,7 Gn 4,15.
(191) Cf. 2S 12.
(192) Cf. Lc 15,17-21.
(193) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Decr. sobre o Ministério e Vida dos SacerdotesPresbyterorum Ordinis, PO 18.
(194) Ordo Paenitentiae, 7 b.
(195) Cf. Ordo Paenitentiae, 17.


A celebração do Sacramento com absolvição geral

33 Na nova ordenação litúrgica e, mais recentemente, no novo Código de Direito Canónico, (196) estão determinadas as condições que legitimam o recurso ao «rito da reconciliação de vários penitentes, com a confissão e a absolvição geral». As normas e as directrizes dadas quanto a este ponto, fruto de madura e equilibrada consideração, devem ser acolhidas e aplicadas evitando toda a espécie de interpretação arbitrária.

É oportuna uma ulterior reflexão, mais aprofundada, sobre as motivações, que impõem a celebração da Penitência numa das duas primeiras formas e que permitem o recurso à terceira forma. Há, antes de mais, uma motivação de fidelidade à vontade do Senhor Jesus, transmitida pela doutrina da Igreja e, além disso, de obediência as leis da mesma Igreja: o Sínodo reafirmou numa das suasPropostas («Propositiones») o inalterado ensino que a Igreja foi haurir na mais antiga Tradição e recordou a lei com que codificou a antiga prática penitencial: a confissão individual e íntegra dos pecados, com a absolvição igualmente individual, constitui o único modo ordinário, pelo qual o fiel, culpado de pecado grave, é reconciliado com Deus e com a Igreja. Desta confirmação do ensino da Igreja, resulta claramente que todos os pecados devem ser sempre declarados, com as suas circunstâncias determinantes, numa confissão individual.

Existe, ainda, uma motivação de ordem pastoral. Se é verdade que, verificando-se as condições requeridas pela disciplina canónica, se pode fazer uso da terceira forma de celebração da Penitência, não se deve esquecer, no entanto, que esta não pode tornar-se uma forma ordinária, e que não pode nem deve ser adoptada — repetiu-o o Sínodo — senão «em casos de grave necessidade», permanecendo firme a obrigação de confessar individualmente os pecados graves antes de recorrer novamente à absolvição geral. O Bispo, portanto, o único a quem compete, no âmbito da sua Diocese, ajuizar se existem em concreto as condições que a lei canónica estabelece para o uso dessa terceira forma, dará tal juízo, onerando gravemente a sua consciência, com respeito pleno da lei e da prática da Igreja; e, além disso, tendo em conta critérios e orientações que hajam sido dados — com base nas considerações doutrinais e pastorais acima apresentadas — de comum acordo, pelos demais membros da Conferência Episcopal. Terá de haver, igualmente, uma autêntica preocupação pastoral em procurar e garantir as condições que tornem o recurso à terceira forma susceptível de dar aqueles frutos espirituais, para os quais ela está prevista.

Assim, o uso excepcional da terceira forma de celebração do Sacramento da Penitência não deverá nunca levar a uma menor consideração e, menos ainda, ao abandono das formas ordinárias, ou então a considerar essa forma como uma alternativa das outras duas. Não é, efectivamente, deixado à liberdade dos Pastores e dos fiéis escolher entre as mencionadas formas de celebração aquela que retiverem mais oportuna. Para os Pastores permanece a obrigação de facilitarem aos fiéis a prática da confissão íntegra e individual dos pecados, que constitui para eles não só um dever, mas também um direito inviolável e inalienável, além de uma necessidade espiritual.

Para os fiéis o uso da terceira forma de celebração comporta a obrigação de se aterem a todas as normas que regulam a sua prática, incluindo a de não recorrerem de novo à absolvição geral antes de uma confissão regular, integral e individual dos pecados, que deverão fazer logo que seja possível. Os mesmos fiéis devem ser advertidos e instruídos pelo Sacerdote, acerca desta norma e da obrigação de a observar, antes da absolvição.

Ao recordar assim a doutrina e a lei da Igreja, é minha intenção inculcar em todos o vivo sentido de responsabilidade, que sempre nos deve guiar ao tratar das coisas sagradas; estas não são propriedade nossa, como é o caso dos Sacramentos; ou então têm direito a não serem deixadas na incerteza e na confusão, como são as consciências. Coisas sagradas — repito — são uns e outras: os Sacramentos e as consciências; e exigem da nossa parte serem servidas com verdade.

Esta é a razão da lei da Igreja!



Alguns casos mais delicados

34 Sinto-me no dever, chegado a este ponto, de fazer uma alusão, ainda que brevíssima, a um caso pastoral que o Sínodo quis tratar — na medida que lhe era possível fazê-lo — contemplando-o também numa das Propostas («Propositiones»). Refiro-me a certas situações, hoje não infrequentes, em que, vêm a encontrar-se cristãos desejosos de continuarem a prática religiosa sacramental, mas que disso estão impedidos pela própria condição pessoal, em contraste com os compromissos assumidos livremente diante de Deus e da Igreja. São situações que se apresentam particularmente delicadas e quase inextricáveis.

Não poucas intervenções, no decorrer do Sínodo, exprimindo o pensamento geral dos Padres, puseram bem a claro a coexistência e a influência mútua de dois princípios, igualmente importantes, no que respeita a estes casos. O primeiro é o princípio da compaixão e da misericórdia, segundo o qual a Igreja, continuadora na história da presença e da obra de Cristo, não querendo a morte do pecador, mas que se converta e viva, (197) atenta a não partir a cana já fendida e a não apagar a chama que ainda fumega, (198) procura sempre facultar, na medida em que lhe é possível, o caminho do retorno a Deus e da reconciliação com ele. O outro é o princípio da verdade e da coerência, pelo qual a Igreja não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem. Baseando-se nestes dois princípios complementares, a Igreja mais não pode do que convidar os seus filhos, que se encontram nessas situações dolorosas, a aproximarem-se da misericórdia divina por outras vias, mas não pela via dos Sacramentos, especialmente da Penitência e da Eucaristia, até que não tenham podido alcançar as condições requeridas.

Acerca desta matéria, que angustia profundamente também o nosso coração de pastores, pareceu-me ser meu preciso dever, já na Exortação Apostólica Familiaris Consortio, dizer palavras claras pelo que se refere ao caso dos divorciados novamente casados (199) ou de cristãos que, de qualquer maneira, convivem conjugalmente de modo irregular.

Ao mesmo tempo, sinto vivamente o dever de exortar, juntamente com o Sínodo, as comunidades eclesiais e, sobretudo os Bispos, a darem toda a ajuda possível aos Sacerdotes, que, tendo faltado aos graves compromissos assumidos na Ordenação, se encontram em situações irregulares. Nenhum destes irmãos há-de sentir-se abandonado pela Igreja.

Para todos aqueles que não se encontrem actualmente nas condições objectivas requeridas pelo Sacramento da Penitência, as demonstrações de maternal bondade por parte da Igreja, o apoio de actos de piedade diversos dos actos sacramentais, o esforço sincero por se manter em contacto com o Senhor, a participação na Santa Missa, a repetição frequente de actos de fé, de esperança, de caridade e de contrição quanto for possível perfeitos, poderão preparar o caminho para uma plena reconciliação no momento que só a Providência conhece.

(196) Câns.
CIC 961-963.
(197) Cf. Ez 18,23.
(198) Cf. Is 42,3 Mt 12,20.
(199) Cf. Exort. Apostólica Familiaris Consortio, FC 84: AAS 74 (1982), 184-186.


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